"É
inútil fechar os olhos à realidade. Se o fizermos, a
realidade abrirá nossas pálpebras e nos imporá a sua
presença"
Jucelino Kubitschek |
ARTIGOS(3ª
parte) |
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Artigos de 2002
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TÓPICO 1
A herança do populismo |
Jornal do Brasil,
sexta-feira, 11 de janeiro de 2002
Alguém, raspando o fundo da
memória ou apelando para os arquivos que socorrem os brancos
da cuca, será capaz de descobrir, ainda que como o exemplo
da exceção, uma única frase de discurso, entrevista ou
documento de governador, prefeito ou líder fluminense
reconhecendo que a sua cidade está pronta, com o modelo da
sua vocação definido e que a prioridade do governo é
preservá-la da devastação do inchaço populacional, do
crescimento caótico, da invasão das favelas e das ocupações
clandestinas?
A dúvida
girou na minha cuca, no redemoinho da angústia, nas curtas
férias natalinas passadas em Gramado e nas inusitadas e
singulares declarações do seu prefeito, no terceiro mandato,
Pedro Bertolucci. Ditas sem a menor ênfase, como a coisa
mais natural do mundo: a cidade, que é uma das jóias da
paradisíaca serra gaúcha, consolidou sua população fixa em
torno de 28 mil habitantes. É o seu tamanho ideal. Desdenha
o progresso dos espigões, das grandes empresas sem estrutura
de serviços sociais para seus empregados, desde as moradias,
escolas, rede de esgoto. Os seus problemas, analisados
durante a campanha, resumem-se em cuidar do que está feito,
corrigir erros, melhorar as condições de vida nos bairros da
classe média e de operários e organizar o turismo,
estabelecendo limites aos excessos dos milhares de
visitantes que os ônibus despejam nas temporadas de festas,
como o Natal Luz, a Festa das Colônias e nos piques de
inverno.
Gramado
e seu prefeito não são exemplos catados a dedo para forçar a
contundente comparação com o cenário da deterioração
galopante que assola o Estado do Rio de Janeiro e outras
regiões maltratadas do país.
O
aprendizado que humilha, indigna e constrange começa na
última etapa da viagem, no trecho entre Porto Alegre e a
escalada da serra. Claro que há profundas diferenças. A
Grande Porto Alegre engole municípios populosos, como
Canoas, Nova Hamburgo, São Leopoldo, que se emendam no
desfile de edifícios que furam as nuvens cinzentas da
poluição e purgam os altos índices de violência, com
assaltos, seqüestros, invasões de domicílio do repertório do
gênero. O fracasso reconhecido da Secretaria de Segurança é
um dos pecados mortais que atormentam o governo petista do
bigodudo governador Olívio Dutra.
Panorama
de beira de rodovias de intenso movimento em zona industrial
não é exatamente um colírio para os olhos. Na periferia da
capital, uma grande e veterana favela lembra o Rio, como a
fisgada do vexame. Feio, com poeira manchando a caiação das
paredes de fábricas, lojas, depósitos. O restante das
dezenas de quilômetros está arrumado. Sem a bagunça
deprimente da Niterói-Manilha, na saída do Rio para a região
dos Lagos ou para as deslumbrantes serras que serpenteiam na
estrada para Nova Friburgo.
O
contraste tem o impacto de um soco no estômago. Desde a
sinalização perfeita das rodovias, quase todas privatizadas,
com o asfalto impecável, sem ressaltos e buracos até a
paisagem às duas margens, passando por pequenas e médias
cidades de presépio, limpas, claras, luminosas, às belezas
que se sucedem a cada curva e cada reta. Não se vê um
barranco com lixo escorrendo, o desmatamento criminoso, a
favela cultivada como ceva de votos.
Qual a
explicação para a chocante diferença entre regiões tão
assemelhadas no clima, nas altitudes médias, nas
temperaturas e, principalmente, na beleza natural que lá se
preserva e aqui se destrói com a complacência, a omissão e o
estímulo dos políticos de todos os partidos?
Falo do
que vi. Há três décadas testemunho a implacável destruição
de Nova Friburgo, que conheci nos prenúncios da decadência,
mas com as graças que a celebrizaram como uma atração
turística que encantou Machado de Assis, segundo o
testemunho de sua correspondência, quando buscou nos ares
abençoados do verde a saúde comprometida da sua mulher, a
Carolina do soneto célebre.
Certamente que nunca a causa única justifica o fenômeno
social da migração interna que inverteu em meio século a
pirâmide populacional, esvaziando a zona rural e entupindo e
desfigurando as cidades.
Mas o
impulso decisivo, o empurrão do desequilíbrio, a rasteira do
tombo, com toda a justiça, devem ser atribuídos ao populismo
que se espalhou como tiririca na terra fluminense, cunhando
o modelo que aleija quase todas as suas cidades. Petrópolis
e Teresópolis são clones de Nova Friburgo. Chocados no ninho
da descoberta velhaca de que mais vale um favela na mão do
que a mata que não vota ou a ocupação racional do terreno,
definida por plano diretor.
Uma
invasão planejada com competência política, transforma-se em
favela da noite para o dia e elege um vereador, um deputado
estadual, engorda a votação do deputado federal, do senador.
Quanto
vale, na bolsa dos votos, a favela que aumenta todos os dias
e compõe a paisagem da Niterói-Manilha? Uma nota preta.
Villas-Bôas Corrêa é repórter político do Jornal do Brasil
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Topo TÓPICO 2
TEMA EM
DEBATE - Favela Bairro |
Jornal O Globo, Opinião,
segunda-feira, 28 de Janeiro de 2002
Não basta
O grande mérito do programa Favela-Bairro, da prefeitura do Rio,
é a intervenção urbanística em áreas que foram ocupadas
irregularmente e sem respeitar regras exigidas para edificações
no restante da cidade. A partir dessa realidade, as favelas que
vêm sofrendo esse tipo de intervenção ganham acessos que
facilitam a prestação de serviços públicos às comunidades
locais, já que pelas novas vias podem passar caminhões de coleta
de lixo, ambulâncias, carros de bombeiros, viaturas policiais,
equipes das concessionárias de energia, telefonia etc.
Tais comunidades passam a usufruir também de espaços para lazer,
e simultaneamente o poder público se compromete a promover um
esforço de inserção social, com iniciativas relacionadas à
qualificação profissional, formação de microempresas e
encaminhamento a empregos. Com o Favela-Bairro, esperava-se que
ao menos essas áreas deixassem de se degradar e que a
recuperação da auto-estima dos moradores resultasse pouco a
pouco em melhoria das suas próprias casas.
O programa continua sendo válido e inclusive merece receber mais
atenção e continuidade para conservação dos investimentos
realizados. Entretanto, o Favela-Bairro não é ainda a grande
solução que por um momento chegou-se a imaginar para o problema
habitacional de metrópoles como o Rio.
O número de construções irregulares na cidade continuou a
crescer em ritmo acelerado, formando núcleos de novas favelas.
Para famílias de renda muito baixa, os programas convencionais
de casas populares continuam sendo necessários.
Reestruturar
MARIA LUCIA PETERSEN
O Programa Favela Bairro é uma das propostas mais avançadas em
todo o mundo de integração das áreas de pobreza. A construção do
espaço urbano com ruas, praças, áreas de esporte, creches e
centros comunitários valoriza de forma inequívoca o patrimônio
de cada família. Criam-se as condições de desenvolvimento que
integram a ação do poder público e do morador do lugar,
descartando-se qualquer política de remoção.
Ao contrário do que se possa pensar, a proposta nasceu dentro do
próprio poder público, através do Projeto Mutirão Remunerado,
que em 86 já apresentava uma concepção interdisciplinar de
urbanismo. Incluía reflorestamento, construção de creches e
educação sanitária, abrindo espaço para a implantação do
programa Gari Comunitário, da Comlurb, de coleta de lixo. Em
1992, 70 favelas tinham sido objeto das intervenções integradas,
contabilizando 200ha de áreas reflorestadas e mais de 50 creches
construídas.
Em 93, o prefeito Cesar Maia criou a Secretaria Extraordinária
de Habitação, que formulou a política habitacional. No ano
seguinte, priorizou a implantação do Favela Bairro em 16
comunidades. O trabalho incluía, além da criação de espaços
públicos, consolidação das políticas sociais, importante para a
sustentabilidade do programa. A iniciativa foi a caução de
credibilidade determinante para a assinatura de contrato com o
BID, em fins de 95, para a liberação de US$ 300 milhões. As seis
favelas já em obras funcionaram como amostra para definição do
Regulamento Operacional de implantação do Programa de
Urbanização de Assentamentos Populares.
A partir de 99, com a consolidação de 58 favelas concluídas ou
em andamento e desdobramentos para os Programas Bairrinho e
Grandes Favelas, o programa vai aos poucos se transformando na
galinha dos ovos de ouro, em termos de votos. Predominam
intervenções físicas, em detrimento das políticas sociais,
expressas posteriormente pelos cortes introduzidos na assinatura
do segundo contrato com o BID. Iniciado o processo eleitoral em
2000, o programa passa a ser objeto de acordos, manipulações,
proibição de entradas nas favelas, utilização da máquina
estatal, etc., baseados na crença de vitória absoluta nas
eleições.
É fundamental a reestruturação conceitual do Favela Bairro. Nas
áreas em que foi implantado, é necessário recuperar a
credibilidade do poder institucional, o que passa pela presença
efetiva da prefeitura na operação, manutenção e ocupação dos
espaços públicos construídos. O processo de regularização
fundiária é inadiável e vem sendo priorizado pela gestão
municipal. Isso dispensa maiores explicações sobre o tempo
necessário para a implantação da segunda etapa do programa, já
iniciada, de modo que ele volte a ser considerado, no Brasil e
no exterior, exemplar para redução da pobreza e da violência.
MARIA LUCIA
PETERSEN foi gerente do Programa Favela Bairro de 1994 a 2000.
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TÓPICO 3
Em defesa
do Favela Bairro |
Jornal O
Globo, Opinião, terça-feira, 6 de julho de 2000
TEMA EM
DEBATE: Favela Bairro
Já
indispensável
FRANCIS BOGOSSIAN
"O
ambiente está saneado, há praças com crianças brincando"
Quando se lançou a idéia.
de urbanizar as favelas da cidade do Rio de Janeiro para
transformá-las em bairros, pensou-se que era mais um daqueles
projetos que não sairiam das pranchetas. Era um sonho de
arquitetos e sociólogos que a engenharia considerava em
princípio inviável, não apenas em face das dificuldades
executivas como pelos custos delas decorrentes.
Isso sem
falar nas questões políticas e fundiárias. Era a aceitação de
se legalizar as invasões, na maioria, de morros e áreas
de mangue, e a antítese da solução lacerdista de remoção dos
favelados para sítios afastados dos centros urbanos da cidade.
Um ponto,
porém, era incontestável: o gigantismo que já haviam assumido
muitas dessas ocupações ilegais elevava a índices astronômicos
os custos materiais e sociais de uma erradicação.
Também não
era mais possível a convivência do Rio urbanizado com os
desconfortos e riscos sanitários dos esgotos a céu aberto, da
água racionada, transportada e armazenada sem qualquer
higiene, da falta de coleta de lixo, dos "gatos de toda a
sorte para se dispor de energia nas habitações.
As favelas já não eram
mais poéticas como nas canções de Ari Barroso, Orestes
Barbosa, Herivelto Martins, dentre outros. Já não havia mais
barracos de tábuas ou de pau-a-pique e telhados de zinco
furados, com a lua salpicando estrelas pelo chão.
Eram, sim,
habitações simples, com estrutura de concreto armado,
alvenaria e telhados convencionais, esquadrias de madeira ou
alumínio, porém construídas ilegalmente e longe das posturas,
através dos mutirões familiares e comunitários. Cada casa
já há muitos anos representa um patrimônio cuja construção
seguramente consumiu trabalho, dinheiro e muito suor de cada
núcleo.
A despeito da
insalubridade e falta de conforto, o acesso ao mercado de
trabalho facilitado pela proximidade do coração da cidade é
trunfo considerável para uma população que, além de não poder
pagar aluguel, não dispõe de recursos para se transportar ao
local do emprego.
Há muitos
anos as favelas são realidades tão absolutas quanto
insofismáveis. Nas comunidades estabelecidas com atividades
comerciais instaladas, os problemas de água, de esgotos, de
iluminação pública, com carência de creches e áreas de lazer,
bem como de estruturas viárias, já estavam beirando o caos.
Sem acessos para coleta de lixo, assistência médica e
bombeiros e também para a polícia, as favelas se tornaram o
abrigo de focos da marginalidade e o lugar ideal para se
estabelecerem as chamadas fortalezas do tráfico de drogas.
As
intervenções de engenharia nas favelas localizadas nas
encostas dos morros, através de obras de contenção,
primeiramente como ação corretiva dos muitos acidentes e
posteriormente como ações preventivas nas áreas com potencial
de risco, foram uma primeira melhoria que atingia pontos
localizados mas nem de longe pretendia enfocar os aspectos
habitacionais e urbanísticos de cada favela como um todo.
O sucesso,
hoje em nível internacional, do projeto Favela Bairro deve ser
creditado à coragem dos que o conceberam e acreditaram
possível sua Implantação.
Como
presidente da Associação das Empresas de Engenharia do Rio de
Janeiro, tenho tido oportunidade de conhecer projetos e
visitar obras já concluídas ou em adiantada fase de execução.
Quem
conheceu qualquer favela antes e depois das intervenções do
Favela Bairro, mesmo com todas as limitações geográficas, pode
aquilatar a importância do projeto. O ambiente hoje está
saneado, há praças com crianças brincando e dotadas de um
mobiliário urbano sem luxo, mas adequado. Não há mais cheiro
de lixo ou de esgotos, as vias estão convenientemente
pavimentadas e drenadas, as creches e as associações de
moradores são ativas, o comércio foi melhorado nos níveis do
novo ambiente, enfim são bairros simples e pobres, mas
dignos.
Quem
poderia hoje imaginar o Rio sem o Parque do Flamengo sem
os túneis Santa Bárbara r Rebouças, sem a Auto-estrada
Lagoa-Barra, sem o alargamento e urbanização da Av. Atlântica,
sem o Metrô, sem a Linha Vermelha, sem a Linha Amarela,
sem os Rio-Cidades, etc...etc...? Com toda a tranqüilidade eu
acrescentaria, nesse rol os Favela Bairros. E, desafio os
incrédulos a visitarem os que já estão entregues às
comunidades.
__________________________________________________________________________________
FRANCIS BOGOSSIAN é presidente da Associação de Empresas de
Engenharia do Rio de Janeiro.
Uma
unanimidade?
EDUARDO DANTAS
"A
integração da favela pode acarretar erros estratégicos"
Ao ler o artigo do
arquiteto Paulo Casé - "Finalmente, uma unanimidade - senti
impulso imediato de levantar-me da cadeira para manifestar
outra opinião, menos pela condução do projeto e seus reflexos
para os favelados, que são muito positivos, mais pelo tom
excessivamente vitorioso que a pretensa unanimide possa
conceber.
O caminho
da integração da favela à cidade formal pode, à luz da
unanimidade, acarretar erros estratégicos, visto que existem
outras soluções que não podem ser desprezadas.
Olho para
o Parque da Catacumba, que com toda a sua beleza transforma
aquela região da Lagoa em um dos metros quadrados caros da
cidade, gerando um belíssimo cartão-postal para ser visto por
todo o mundo, trazendo riqueza para nossa cidade, que pode e
deve ser distribuída para os cariocas, em especial os
subcidadãos, e penso que, felizmente, a Catacumba hoje não
precisa de Favela-Bairro. Mas, e se a favela ainda estivesse
lá?
Com toda a
mortandade de peixes, é inegável que muitos turistas vêm ao
Brasil, porque o Rio de Janeiro é sua porta de entrada, para
ver a Lagoa Rodrigo de Freitas em festa, e o turismo é, sem
dúvida nenhuma, nossa maior vocação natural. Mas, e se a
favela ainda estivesse lá?
Com todos
os cocôs do mar poluído de Copacabana, os turistas em peso a
visitam, porque 70% da rede hoteleira da cidade estão lá. Mas,
e se as favelas não estivessem lá? E se as pessoas do
Cantagalo e do Pavão-Pavãozínbo tivessem a oportunidade de se
integrar à sociedade formal de forma imediata e não gradual? E
se elas pudessem escolher onde morar, com os recursos que
receberiam pela venda do solo que ocupam pelo valor que o
mesmo teria se estivesse "limpo"? E se elas pudessem de um dia
para o outro desfrutar da liberdade das leis da sociedade, com
direitos e obrigações que a lei da droga não pode conceder?
Há muito a
se ganhar com a erradicação daquelas favelas, se considerarmos
o mundo do valor, o mundo da qualidade de vida, o mundo das
oportunidades.
Por tudo
isso é que me sinto inquieto, pela perspectiva de que o
programa Favela-Bairro, cujo valor é inquestionável, merecendo
nosso total apoio para continuidade, venha a produzir o
conforto da missão cumprida, pois não "redime os discursos por
justiça social, e não "repara a enunciação de conceitos de
difícil comprovação", limitando-se a traduzir ações concretas
e visíveis que arquitetura pode produzir para saciar as
necessidades básicas infra-estrutura que as pessoas favela têm
que ter atendidas.
Espero,
honestamente, que somatório de erros que nossa elite vem
cometendo possa resultar, por outro lado, na maturada vontade
política de produzir programa ainda melhor do que o
Favela-Bairro, envolvendo a cidade como um todo:
O programa
Subcidadão-Cidadão.
__________________________________________________________________________________
EDUARDO DANTAS é engenheiro, compositor e professor de
matemática financeira. |
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TÓPICO 4
A exclusão
por conta própria - I |
(o artigo
me foi enviado por e-mail pela internet por um membro do PF)
A
EXCLUSÃO POR CONTA PRÓPRIA - I
Jorge Ernesto Macedo Geisel
"A ausência de
alternativas torna as mentes espantosamente claras"-
Henry Kissinger, consultor político e ex-Secretário de Estado
dos Estados Unidos.
Podem colocar defeitos nas
favelas do Rio de Janeiro. Mas, inegavelmente, elas se
transformaram na solução dos que descobriram que é mais seguro
morar sob a tutela de lideranças mais objetivas do que aquelas
que só sabem, entre outras coisas piores, cobrar IPTU
altíssimo e condenar o indivíduo comum e sua polícia à morte.
Ambos estão na mira da bandidagem obsidiante, enquistada
no espaço geográfico de gente de toda a espécie, expelida da
formalidade pelo salário mínimo, pela justiça trabalhista,
pelo terrorismo tributário, e dominando posições
inexpugnáveis, vielas, becos e caminhos ardilosos - com
instalações sob o consentimento dos políticos eleitos
pelas promessas mentirosas...sem qualquer ação pública por
parte do Judiciário...
O Rio transformou-se numa
Stalingrado, sem as glórias da guerra formalizada, sem
generais medalhados, sem embates ideológicos. São as pessoas
que morrem no noticiário de cada dia, no combate das ruas,
sepultadas na memória da estatística coletiva,com o apoio da
delinquência,autoritariamente irresponsável, dos três
amontoados pseudofederativos atuais: Poder Central,
Estado e Município...
As favelas cariocas, bem
diferente do que o leigo possa imaginar, não são iguais. Cada
uma tem sua característica própria. Entretanto,toda a
diversidade brasileira tem suas pinceladas no quadro da
exclusão carioca : cuicas, cuias, costelas assadas, vatapá,
comidinha mineira, suco de assaí, macumba , buchada de bode,
padre e pastor, liberais, socialistas, comunistas,
anarquistas, ateus e gente boa e à toa... Existem aquelas que
são formadas, por exemplo, pelos contingentes majoritários de
nordestinos. São as mais seguras. O pessoal não é debochado e
tem um sistema de prestação jurisdicional de justiça e de
polícia própria (a tal da "polícia mineira") que é mais
radical do que aquela da "tolerância zero" do prefeito
Giulianni de Nova Iorque... Não há lugar com mais segurança
interna no Rio do que na favela bem organizada...
Seus moradores são constituintes numa sociedade de
confiança...
As lideranças comunitárias são
bem entrosadas na Justiça e tem políticos lobistas a seu
serviço integral. Qualquer um destes bestas que paga impostos
e que age na formalidade econômica, se soubesse das vantagens
de ser excluído por conta própria morreria de inveja.
É claro que nestas comunidades
de carentes, também, existem os desfavorecidos da sorte - ora,
por favor, também não vamos exagerar... Mas hoje, com os
milhões de dólares gastos pelo Contribuinte com a urbanização
do programa "favela-bairro", dá gosto de se ver como as coisas
melhoraram em muitas das favelas cariocas. Boa parte da
população já está motorizada e tem até transporte coletivo
privado interno circulando. Hoje já há água encanada (sem
esgoto, imitando o bairro chiquérrimo e pagante da Barra da
Tijuca e alhures), luz farta e baratíssima, televisão a cabo
super-coletivisada, telefone e construções por todo o lado -
tudo, sem aquelas impertinências formais e políticas
de burocracia, estabelecida para impressionar e pressionar a
burguesia, implacavelmente cadastrada como gado de cria...
para futuro abate...
Hoje, investir nestas
comunidades, no comércio, pequena indústria, na edificação de
pequenos prédios para aluguel, é negócio excelente, sem
aquelas baixarias de investidas fiscalizatórias sobre os
"incluídos" de narizinho em pé... Afinal, pensam que têm
direitos só porque são contribuintes...
Descobri que muitos "desempresários",
não podendo manter suas posições sociais incluídas no ról dos
pagantes da meia centena de obrigações tributárias, estão se
mudando para estas comunidades, cujos endereços mantêm a
suposta dignidade anterior. Por exemplo, o Itanhangá hoje é
formado por condomínios (só de fachada) de pretensos ricos e
numa linha contínua, até Jacarepaguá, adornada pela vizinhança
cômoda de umas cinco "comunidades", que podem se utilizar do
mesmo endereço postal. A grande vantagem da "comunidade" é que
não tem a visita freqüente de esbirros e, principalmente, está
a salvo das impertinências fiscais. Os fiscais do IR e do
ICMS, e de qualquer outra sigla oficial que inclua a idéia de
tributo, não gostam de passar por lá, por motivos que prefiro
desconhecer...
Um advogado colega meu, me
confidenciou que um de seus inúmeros clientes, tendo encerrado
suas atividades empresariais, engolido por juros e tributos,
viu-se às voltas com sérios problemas conjugais. Separando-se
extrajudicialmente, ofereceu à ex-esposa um imóvel alugado no
Itanhangá, prontamente aceito pela interessada. Ela pode ser
vista hoje, passeando de salto alto nas ruas cimentadas de um
favela-bairro adjacente ao bairro que lhe gabarita a imagem,
sem as inconveniências da carestia imposta ao pessoal
considerado "socialmente incluído". Tenho passeado
por estes aprazíveis lugares. A sensação é notável. Ao invés
da gente encontrar aquele clima de derrotismo ingrato dos
"socialmente incluídos", há o prazer estampado naqueles rostos
servidos pela reengenharia social, da alegria de viver. As
comunidades estão repletas de templos de todas as
denominações, tendas espíritas, e confesso: excelentes
padarias, açougues e de simpáticas mercearias, de salões de
beleza, barbearias, supermercadinhos sem fila e a preços
abaixo daqueles presunçosos da Avenida das Américas e de
Ipanema. Ninguém lá comenta sobre os azares e pesares do
racionamento energético (a Light não vai mandar para a cadeia
toda uma comunidade socialmente excluída, por amor de Deus!).
Aqueles que moram em cidades
tidas ainda como organizadas, não sabem o quê estou querendo
dizer. É simples, eu desejo contar aos meus amigos e aos que
aceitam ler minhas mensagens com a necessária tolerância
democrática, que afinal encontrei, em pleno Rio de Janeiro, um
outro país, sem continuidade geográfica, mas unido por
comunidades apenas organizadas pelos interesses
comuns, dentro do País cujo Estado (tributarista até à
medula), prefere continuar na ficção...
O universo da exclusão por conta
própria está provando que a união dos seus constituintes, traz
muito mais liberdade de iniciativa do que aos que simplesmente
pagam impostos, desunidos, escorchados tributariamente,
iludidos pela ficção de uma cidadania nacional,
sem direitos à cidade urbanamente organizada...
A favela, de certa forma, não
seria a precursora agressiva de um neo-capitalismo,
federativo, popular, distritalista, que se agiganta pouco a
pouco no cenário do unitarismo obtuso, socializante, predador
da economia e da felicidade dos seres humanos? Ela está
invadindo as grandes cidades, em provocações de desobediência
civil magistrais!
Em algum tempo desse Século,
quem sabe se também todos nós não teremos aderido aos
princípios libertários da exclusão por conta própria, com
justiça rápida e polícia distritais, morando do lado da gente?
* O autor é Advogado e
Vice-Presidente Nacional do Partido Federalista para o Rio de
Janeiro.
jorgegeisel@hotmail.com
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Topo TÓPICO 5
Habitação -
novas possibilidades |
Jornal O globo, Opinião,
domingo, 9 de junho de 2002
Habitação: novas
possibilidades
ROBERTO KAUFFMANN
A substituição de sub-habitações, situadas em áreas de risco e
de preservação ambiental, sem condições de serem urbanizadas,
não é impraticável. Ela é possível, num prazo entre 10 e 15
anos, como resultado de uma ação integrada que articule
governos estadual e municipal e a iniciativa privada, a ser
conduzida por um interlocutor qualificado da esfera federal —
uma agência ou um ministério de desenvolvimento urbano —
prioridade nacional que esperamos seja atendida pelo futuro
governo.
A solução não é tão difícil como pode parecer à primeira
vista. O México e o Chile são exemplos de política
habitacional exitosa, cuja experiência deve ser por nós
apropriada e adaptada às nossas peculiaridades.
No nosso caso, o que se tem que fazer são bairros novos, com
grupamentos residenciais de no máximo 200 unidades, contendo
cada um equipamentos comunitários adequados (creche, posto
médico, escola etc.), dotados de infra-estrutura (água,
energia elétrica, tratamento de esgotos, transportes etc.),
localizados nos vazios urbanos e nas periferias das grandes
cidades, inclusive em terrenos que hoje estão classificados
como zonas agrícolas e industriais, mas que não são utilizados
para estes fins e que poderão receber classificação
residencial.
Para o financiamento subsidiado do programa, o governo federal
destinaria anualmente uma verba do Orçamento Geral da União da
ordem de R$ 3 bilhões a 4 bilhões. Os municípios se obrigariam
a aperfeiçoar os procedimentos de aprovação dos projetos de
interesse social e de executar nos grupamentos, com recursos
próprios, os equipamentos comunitários. Aos estados caberia
subsidiar, mediante uma bolsa-alimentação de R$ 70 a R$ 100
por mês, as famílias adimplentes nas suas prestações,
deduzindo o valor despendido do ICMS a ser recolhido pelos
supermercados. A iniciativa privada construiria os
grupamentos, dentro dos parâmetros técnicos e orçamentos
aprovados, e se obrigaria, no caso de construção de casas
básicas com previsão de acréscimos futuros, a dar toda a
assistência técnica necessária para que os moradores ampliem
suas casas, em regime de autoconstrução ou mutirão numa
segunda fase, a exemplo do Programa Morar e Crescer, já
apresentado pelo Sindicato da Indústria da Construção Civil no
Estado do Rio de Janeiro (Sinduscon), ao governo.
Seriam projetados vários padrões de casas ou pequenos prédios,
conforme a demanda do público-alvo cadastrado, contemplando
desde a casa básica de 24m² para ser ampliada, até casas
completas de 40m² ou apartamentos de 45m², além de outras
propostas que seriam definidas de comum acordo pelos agentes
governamentais, setor privado e representantes dos moradores.
Os recursos existem. Além do OGU, contamos com o FGTS, a
Caderneta de Poupança e os orçamentos de municípios e estados.
Os construtores estão à disposição e a demanda é colossal.
Havendo vontade política, embasada pelo apoio popular que verá
em curto prazo a redução da violência, o resgate da dignidade
da população favelada, a redução dos problemas de saúde e a
janela de oportunidades para os jovens destas famílias
progredirem, será possível, em um prazo entre 10 e 15 anos,
impor-se um novo conceito de moradia nas nossas metrópoles.
Nos dias 22 e 23 de maio, a Secretaria Especial de
Desenvolvimento Urbano da Presidência da República e a Caixa
Econômica Federal apresentaram, num workshop em
Brasília, uma nova proposta de política nacional de habitação,
desenvolvida pela Fundação de Empreendimentos Científicos e
Tecnológicos, vinculada à Universidade de Brasília, em
parceria com o Banco Mundial. Na sua parte mais importante, o
estudo trata das habitações de interesse social, detalhando as
diretrizes e instrumentos que permitirão ao futuro governo
resolver a questão da favelização de nossas cidades que,
reitero, é viável e pode ser realizada com sucesso.
ROBERTO
KAUFFMANN é presidente do Sindicato da Indústria da Construção
Civil no Estado do Rio de Janeiro.
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TÓPICO 6
Sobre(a)vivência dos moradores |
Jornal O Globo, domingo,
16 de junho de 2002
Sobre (a) vivência dos
moradores
Jailson de Souza e Silva
A vida cotidiana nas favelas do Rio é um mundo desconhecido
para a grande maioria dos cariocas. Fascínio, preconceito e
medo se entrelaçam nas falas dos moradores do asfalto ao
tratarem dos habitantes das favelas e de seus espaços. E, em
particular no momento atual, estes parecem mais
incompreensíveis e distantes do que os marroquinos da novela
de maior sucesso da TV.
As interpretações mais comuns sobre favelas, violência e
tráfico de drogas, em função do desconhecimento e do
preconceito, são caracterizadas por pressupostos
sociocêntricos, que dificultam a compreensão e o encontro de
alternativas adequadas para os problemas reais da vida nos
espaços populares. O sociocentrismo se materializa quando, a
partir de padrões de vida, valores e crenças de um determinado
grupo social, se estabelece um conjunto de comparações com
outros, colocados, em geral, em condições de inferioridade. Os
discursos estabelecidos em relação aos espaços populares,
dentre outros, seguem esse padrão. Por isso, a valorização das
ausências é o emblema característico daquelas áreas urbanas: a
favela é definida, sempre, pela ausência, seja de serviços
públicos e equipamentos urbanos, de leis, de beleza e, no
limite, de noções básicas de moral e de ética.
A trágica morte de Tim Lopes permitiu que o espaço formal
percebesse com mais intensidade um fato denunciado há anos: há
uma guerra silenciosa na cidade, e muitos inocentes são
atingidos. O assassinato contribuiu, entretanto, para reforçar
ainda mais os estereótipos sobre as favelas, assim como,
dentro das devidas dimensões, o atentado às torres gêmeas
reforçou a política militarista e autoritária dos EUA no
mundo. A crueldade é ressaltada, a libertação do mandante do
crime é denunciada, o uso da força é exigido. O triste
assassinato, todavia, pode servir para sairmos do terreno do
discurso e encaminharmos uma série de ações vigorosas e
ampliadas para o enfrentamento da crise social que vivemos.
Resta saber se a sociedade do asfalto está disposta a
aceitá-las.
A priorização de iniciativas de preservação da vida, com o
vigoroso combate ao tráfico de armas e ao seu porte (o que
implica a aplicação de penas severas aos que as traficam e a
intensificação das apreensões); a mudança da legislação que
trata do tráfico, aproximando-a da aplicada ao álcool (que
pune os atos anti-sociais que ele pode gerar e não o uso); uma
polícia bem treinada e bem paga, com efetiva punição da
corrupção e do abuso de autoridade; uma legislação penal que
trate da mesma forma os desiguais social e economicamente; o
aumento do investimento no tratamento dos usuários
dependentes, tratando-os como doentes e não criminosos; o
aumento do investimento social e da segurança nos espaços
favelados; a punição da discriminação ao morador da favela e
outros.
Essas iniciativas, no entanto, ameaçam práticas sociais comuns
no Rio: o tradicional suborno ao policial e ao fiscal
desonestos; a defesa de tratamento privilegiado para os atos
infracionais dos setores médios; a superação de velhos
preconceitos e conceitos em relação às drogas e aos usuários e
à possibilidade de que todos os que cometerem crimes possam
ser punidos, e não apenas os pobres.
Todas as ações apontadas implicam investimentos vigorosos e/ou
mudanças de cultura por parte da população do asfalto e das
instituições, privadas e públicas. As ações são fundamentais
no tratamento do fenômeno da violência no Rio. Resta saber se
os setores médios e dominantes da cidade estão dispostos à
mudança de postura. Caso contrário, a indignação e a emoção
demonstradas na morte de Tim Lopes não passarão de atos
cínicos e hipócritas. Atos característicos, aliás, da maior
parte da população do asfalto quando trata de vizinhos tão
próximos, mas tão distantes.
JAILSON DE
SOUZA E SILVA é ex-morador do Complexo da Maré e
professor-doutor da Universidade Federal Fluminense
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Voltar ao
Topo TÓPICO 7
Passeatas
não vão cegar o sabre dos Elias Maluco |
Jornal O Globo, domingo,
16 de junho de 2002
Passeatas não vão cegar o
sabre dos Elias Maluco
Marcelo Yuka
Peguei uma época boa de subúrbio, das pessoas se conhecerem
bem, em que o bandido tinha respeito pela comunidade dele. Com
o aumento da disputa pelos pontos de vendas de drogas e a onda
de invasões aos morros, a violência urbana vive uma nova fase,
em que o traficante se torna mais cruel, seja porque perde a
noção de raiz, passa a ser um estrangeiro no morro invadido,
seja porque a idade dos bandidos diminui e, com isso, cresce a
ousadia.
A disparidade social é cada vez mais ostensiva. As chances de
mobilidade social diminuíram até nas telenovelas. Agora a
novela já estréia com cenas sensacionais no exterior. O
consumismo cresceu vertiginosamente. A Tijuca, por exemplo,
onde eu moro há mais de 15 anos, nunca teve tanto shopping.
Tem shopping com tanto cinema que parece até saguão de
aeroporto. Os campos de várzea viraram mais prédios e
condomínios fechados.
Há em curso um processo de desumanização das elites, de
emburrecimento total. A elite emburreceu mais ainda nos
últimos 30 anos. Antes, os filhos da elite estudavam na
Europa, vinham de lá com uma formação mais humanística. Isso
foi substituído pela tecnocracia disseminada pelos Estados
Unidos. A elite não quer ceder, não quer compartilhar. A
favela tem uma tremenda lucidez. Quem pirou foi meia dúzia de
bandidos. Eu comecei a ter medo da rua. Criado na periferia,
comecei a sentir a mudança na década de 90. Comecei a sentir
medo de voltar para casa, depois da boemia.
Eu não acredito que haja alguma possibilidade de reversão
desse quadro simplesmente com passeatas na orla, se vestindo
de branco. Isso não vai cegar o sabre dos Elias Maluco da
vida. Não considero séria nem eficaz essa forma de luta. Para
mim, essas passeatas são quase como um desfile de moda com o
merchandising da antiviolência. É apenas uma tentativa de
aliviar culpas. É uma coisa deles, enquanto Zona Sul, gente
bonita e bronzeada. A situação requer uma emergência maior.
Ninguém assume o quanto essa questão da violência é de fato
emergencial. Todo mundo se vira para o mar, de costas para o
interior, para a pobreza, a miséria, o abandono da periferia e
das favelas. Tudo agora é entretenimento. Ser feliz agora é se
entreter, se divertir. Há uma necessidade de se esconder
nossas mazelas.
Será que vamos precisar de um mutilado em cada casa para que a
indignação contra a violência produza resultados? Mas a gente
não quer se ver etnicamente. Há uma enorme necessidade de não
se ver como povo, de se manter no alto da pirâmide, vendo
tudo, sem o menor engajamento.“Por que vamos assumir que todos
nós estamos errados? Quem está errado é o bandido, a polícia,
o poder público. Eu pago meus impostos e tudo bem”. Todas as
palavras não conseguem ainda sensibilizar a parte abonada da
sociedade. As classes mais favorecidas privatizaram também a
notoriedade de suas tragédias pessoais. Todo mundo diz que o
Brasil todo ficou muito triste com a derrota para o Uruguai,
no Maracanã, na Copa de 50. Será que o país não pode ficar se
comportar assim também diante da violência?
Sem fazer qualquer apologia ao crime, algum pesquisador vai
acabar conseguindo provar que esse problema da violência só
vai ter solução quando as vítimas forem mulheres, brancas,
jovens, residentes na Zona Sul. Só aí a coisa vai mudar de
rumo. Mas é uma situação tão catastrófica e absurda que
ninguém consegue imaginar. Enquanto as vítimas são negras e
pobres, não há qualquer tipo de pressão eficiente sobre o
poder público e a sociedade. Sem contar que, na mídia, um
escândalo esfria o outro. A sensação de insegurança não se dá
em toda a parte da cidade. Ainda existem bolsões de segurança.
Marcelo Yuka,
músico nascido em Campo Grande e morador da Tijuca, está
paraplégico depois de baleado
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TÓPICO 8
Quem são os
culpados? |
Jornal O Globo, domingo,
16 de junho de 2002
Quem são os culpados?
Paulo Lins
Suponhamos que conseguíssemos acabar com o tráfico de armas,
de drogas e com os bailes funk; diminuíssemos a idade penal;
aumentássemos o rigor das penas; e dobrássemos o efetivo das
polícias. Será que seríamos felizes num país onde a
desigualdade monetária é uma das maiores do mundo? Será que
todos os excluídos iriam seguir caninamente a ordem social?
Acabariam os conflitos?
Quem será que matou o jornalista? Foi apenas Elias Maluco,
André Capeta, Boizinho e seus pares? Ou foram também as nossas
elites racistas, exibicionistas, alienadas, bandidas e os
sucessivos governos que sempre atenderam aos seus interesses?
Quando soube que Tim Lopes estava desaparecido numa favela
para onde foi com a finalidade de fazer jornalismo de
denúncia, facilmente concluí que entre os possíveis culpados a
serem apresentados pela polícia estariam novamente jovens
negros, nordestinos migrados e pobres, esses bandidos que não
têm o perfil dos que comentem crimes no Congresso, no
Judiciário, no mercado financeiro, não colocam dinheiro no
caixa dois, não mandam fortunas para o exterior. Quem faz isso
(crimes que deveriam ser considerados hediondos) são as
elites.
Não quero afirmar que todo pobre é bandido, porque senão
estaríamos realmente em guerra civil, mas sim que dentro das
favelas são os mais miseráveis e membros de famílias
desorganizadas, analfabetos ou semi-analfabetos que na maioria
engrossam as fileiras da criminalidade. Os moradores das
periferias já sabem, desde cedo, quem vai ou quem não vai
entrar para a vida do crime, pois são aqueles que estão na
base da pirâmide social da favela que matam e morrem
regularmente. A entrada para as fileiras da criminalidade é
ainda na infância, num processo lento e doloroso, pois ninguém
vira bandido da noite para o dia, mesmo sendo essa a única
opção. A segunda opção, a de inclusão no mercado de
mão-de-obra barata, é para os que estão no topo da pirâmide,
pois, por incrível que pareça, está fora de alcance da base.
A pirâmide social nas classes populares é bem fácil de
entender: no topo estão os profissionais empregados,
geralmente funcionários públicos, militares de baixa patente e
pouquíssimos trabalhadores que conseguiram se manter
empregados em empresas privadas; logo em seguida vêm os
profissionais com estabilidade, mas sem qualificação
(serventes de toda sorte); depois os biscateiros, vendedores
do mercado informal, diaristas; por fim, a grande maioria que
faz pequenos serviços na própria favela, vive de favor, esmola
e vende produtos baratos nos sinais, arruma vagas de
estacionamentos.
Os bailes funk viraram provedores de violência sexual. Mas o
que dizer do apelo sexual na publicidade, na mídia que regula
o imaginário da maioria dos brasileiros? Será que a
banalização do sexo não está diretamente ligada às grandes
empresas de comunicação?
Durante os 30 anos em que morei em favela, sempre tive medo
daqueles traficantes que cometem crimes hediondos nas
comunidades onde atuam, matam crianças, mulheres que, às
vezes, até por esquecimento, não pagam a dívida de drogas.
Bandidos que se aliam até a grandes comerciantes, executando
aqueles que praticam pequenos furtos em seus estabelecimentos,
inventam mentiras para matarem seus próprios companheiros e,
além de tudo, coíbem o direito de ir e vir.
Hoje, com as facções agindo em áreas distintas, os pobres, que
já sofrem a segregação majoritária, e que têm relações de
parentesco, compadrio, amor e amizade com habitantes de
favelas de outro domínio, não podem mais se encontrar por
causa de uma guerra absurda. São novamente confinados em suas
comunidades. Não há mais os churrascos de fins de semana, os
torneios de futebol entre comunidades. São os moradores que
mais sofrem com a ação dos traficantes e, como se não
bastasse, são reféns da violência policial.
PAULO LINS é escritor e ex-morador da Cidade de Deus |
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TÓPICO 9
O inferno
‘pertinho do céu’ |
Jornal O Globo, domingo,
16 de junho de 2002
O inferno ‘pertinho do
céu’
Zuenir Ventura
“Quem mora lá no morro já vive pertinho do céu”, cantava o
carioca nos anos 40 e continuou cantando até meados dos anos
70, quando o paraíso começou a ser invadido pelo inferno das
drogas. “Nunca vi por ali uma pessoa pouco afável ou uma
pessoa triste”, escrevia por sua vez Stefan Zweig, depois de
visitar uma favela também nos “anos dourados”.
Evidentemente, era a visão idealizada de uma realidade que
acumulava tensões e conflitos que iriam explodir com o tempo.
Dourados por fora, mas nem tanto por dentro. A visão
romântica, no entanto, tinha seus fundamentos. Vivia-se de
fato numa cidade mais amena, onde os moradores do morro e do
asfalto, os pobres e os ricos se olhavam sem medo e sem ódio.
Os contrastes e as diferenças sociais já existiam, mas eram
menores — e os antagonismos também.
Senhoras de embaixadores se aventuravam pelas favelas em
trabalhos assistenciais sem pedir licença para isso. Moças da
Zona Sul saíam de madrugada para lecionar nos subúrbios.
Namorava-se à noite nas ruas do Rio! Um repórter registrava a
“invasão da Mangueira pelos grã-finos”, que fingiam sambar com
“lenços molhados de lança-perfume no nariz” (Mais tarde, esses
mesmos narizes descobririam outro cheiro).
As mães não temiam que seus filhos subissem os morros com os
amigos favelados, pois sabiam que eles iam soltar pipa ou
jogar bola, não comprar cocaína. Lá no alto ainda se
encontrava um pouco do clima bucólico que havia inspirado seus
nomes: Cabritos, Cantagalo, Pavão-Pavãozinho, Rocinha,
Mangueira. Existiam, bem entendido, os malandros, os bandidos
e até mesmo a maconha, “coisa de marginal”, mas em escala
artesanal, praticamente inofensiva, quase folclórica ou, como
escreveu Paulo Francis lembrando esses tempos, em quantidades
muito menores e não intromissivas. As ruas da Zona Sul eram
“nossas”, da classe média e acima.
Por que essa paisagem mudou tanto?
A resposta pode parecer idéia fixa, já que hoje se costuma
atribuir ao mercado todos os males da Terra. Mas a verdade é
que quando ele, o mercado, subiu o morro levando sua lógica,
suas leis e o negócio mais perverso, nocivo e também o mais
rentável do mundo foi que tudo começou a mudar. Nunca é demais
repetir: assim como não planta coca e nem fabrica armas, as
favelas também não inventaram esse comércio clandestino. Elas
apenas entraram com o ponto e a mão-de-obra— barata, ociosa,
sem futuro. A ausência do estado e o descaso da sociedade
fizeram o resto.
Usando a miséria como caldo de cultura, não foi difícil ao
tráfico tomar o poder e implantar uma ditadura militar. Os
“soldados” instalaram suas bases de operação, montaram um
poderoso arsenal e fizeram das favelas um campo de batalha —
tudo graças à inestimável contribuição do asfalto, que ao
longo desses anos forneceu uma freguesia cativa e dependente
para garantir o sucesso do negócio e de seus subprodutos:
violência, guerra, crueldade, corrupção de menores.
Como ironia sem graça da História, só nos demos conta do que
estava acontecendo, só percebemos que o espaço “pertinho do
céu” estava virando um inferno quando, em vez do som dos
pandeiros e tamborins, passamos a ouvir o rufar dos AR-15. E
quando as balas perdidas começaram a cair sobre nossas
cabeças. Aí já era tarde.
ZUENIR VENTURA é jornalista, morador da Zona Sul e autor
do livro “Cidade partida” |
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TÓPICO 10
Atenção
devida |
Jornal O Globo, Opinião,
domingo, 23 de junho de 2002
Atenção devida
A construção civil isoladamente responde por mais de 9% do
Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, índice acima do de
qualquer outro setor. O impacto da construção civil é tão
forte que é possível avaliar claramente o que anda acontecendo
com o conjunto da economia observando-se a atividade desse
segmento industrial. Quando a construção está ativa, é sinal
de que a economia vai bem. E se a economia está caminhando
devagar, percebe-se isso pela ausência de gruas nas cidades.
Tal termômetro é explicável pelo fato de a construção depender
de uma série de fatores de política econômica. É um tipo de
setor que não consegue se alavancar por si mesmo, pois exige
investimentos de longo prazo e, em contrapartida, poupança
capaz de financiá-lo.
Dessa forma, a construção civil é muito afetada pelo
comportamento das taxas de juros de curto prazo. Se os juros
ficam excessivamente altos por muito tempo, como nos últimos
anos, a indústria da construção se inviabiliza, com perda de
renda e empregos.
As dificuldades de financiamento e as limitações na oferta de
terrenos edificáveis também são grandes obstáculos à
atividade, até mesmo mais do que os preços dos materiais.
Esses dois itens certamente contribuíram para a acelerada
expansão das favelas nas regiões metropolitanas e cidades
médias do país. Na última década, as favelas se multiplicaram
e se transformaram (com os barracos sendo substituídos por
casas de alvenaria). Foi uma expansão urbana desordenada que
não chegou a diminuir significativamente o déficit
habitacional brasileiro.
Ainda que esteja em uma fase inicial, os debates da campanha
eleitoral quase nada acrescentaram na busca de soluções para
esse grave problema. As propostas setoriais apresentadas até
aqui nem chegam a ser paliativos.
Com a conjuntura de juros altos, a reativação da construção
civil sempre exigirá algum tipo de subsídio. Se, desse debate,
resultar a conclusão de que subsídios serão inevitáveis, ao
menos que fiquem explícitos dentro de previsões orçamentárias,
para que não se repitam os erros do passado. O setor é
fundamental para o país e merece maior atenção por parte dos
governantes.
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TÓPICO 11
Efeito
pobreza |
Jornal O Globo, Opinião,
domingo, 23 de junho de 2002
Efeito pobreza
O quadro apresentado pelo IBGE no levantamento sobre
desenvolvimento sustentável não é novidade: como em décadas
passadas, nos anos 90 a sociedade brasileira apresentou
progressos ao mesmo tempo concretos e pequenos. Assim, os
salários subiram pouco mas subiram, tanto os altos quanto os
baixos; mas a diferença entre eles permaneceu virtualmente
igual. O percentual de trabalhadores que ganhavam até meio
salário-mínimo caiu de 25,9% para 20%, e os 5,8% que ganhavam
até cinco salários-mínimos passaram a 9,4%, outro palpável e
modesto sinal de progresso.
Os avanços não devem ser menosprezados, mas é grande demais a
lentidão com que ocorrem. O principal, a queda do Índice Gini,
que mede a distribuição de renda, de 0,571 em 1992 para 0,567
em 1999, foi inferior a 1% — uma evolução incomodamente
próxima de zero.
Acelerar o ritmo com que essas desigualdades vêm diminuindo
será importante não apenas do ponto de vista social, mas
também pelo custo ambiental que elas implicam. É devido à
pobreza que apenas cerca de 40% das 228 mil toneladas de lixo
recolhidas diariamente no país têm destino adequado; o mesmo
ocorre com o esgoto: as deficiências do saneamento têm
inevitável efeito de degradação sobre o meio ambiente.
Habitações inadequadas contribuem para agravar o problema, e
mais de 24 milhões de brasileiros vivem em residências com
excesso de ocupantes.
Temos feito progressos importantes na defesa do meio ambiente.
Diminuiu a emissão de fluorocarbonos e dos gases causadores de
efeito estufa; caiu a participação do carvão vegetal na matriz
energética; cresceu a reciclagem de latas de alumínio; as
áreas ambientais protegidas já são mais de 400 mil quilômetros
quadrados. Embora haja pontos fracos, como o aumento do uso de
agrotóxicos, de modo geral estamos lidando bem com os males
causados pelo desenvolvimento. Mas quando se trata de danos
ambientais cuja origem está na pobreza, não há outra forma de
enfrentá-los senão combatendo a pobreza em si. |
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TÓPICO 12
CÂNCER
URBANO |
Jornal O Globo, OPINIÃO,
quarta-feira, 22 de maio de 2002
Qual é a
única força capaz de deter o crescimento desordenado das
favelas do Rio de Janeiro? Na prática, só se conhece uma
resposta: a geografia da cidade. Como bem observou um morador
da Gávea ouvido pelo GLOBO, as favelas da Rocinha e do Vidigal
só não se juntam num imenso favelão por causa da rocha
escarpada do Morro Dois Irmãos, que funciona como gigantesca
divisória natural.
Numa visão
superficial, o problema poderia ser solucionado de imediato,
removendo-se os moradores das encostas para áreas planas.
Medidas desse tipo faziam sentido quando havia poucas favelas
e muito espaço livre para a construção de bairros populares.
Vila Kennedy e Vila Aliança são exemplos clássicos dessa
política, que como tantas outras ao longo de décadas se
mostrou inadequada. Distantes de tudo, sem infra-estrutura de
transporte público e sem vida econômica própria, fracassaram
por confinamento. Ë o que acontecerá com os atuais projetos em
Sepetiba.
Hoje a
remoção é impensável: só cadastradas pela prefeitura, são 604
favelas onde vivem mais de um milhão de pessoas. O número real
ainda está sendo calculados Sabe-se que nos últimos quatro
anos segundo dados do Instituto Pereira Passos, surgiram mais
ou menos cem - uma média de 25 por ano. Elas brotam em toda
parte. E as antigas não param de crescer. A Rocinha começa em
São Conrado, sobre a encosta, e se derrama pela Gávea: entre
1991 e 2000, cresceu 31,3%.
Era de
esperar que projetos em andamento, como o elogiado
Favela-Bairro, agissem como freio.Afinal, baseiam-se numa
premissa inatacável: o da necessidade de Integrar as favelas
ao resto da cidade. Os próprios moradores, depois de
beneficiados, teriam interesse em seguir as novas diretrizes.
Mas o
problema ainda não está sob controle. Ao que tudo indica, não
está sequer dimensionado. E é justamente por ai que deveria
começar a intervenção do poder público. Seu papel mais
importante é o de impor limites, estabelecendo, para começar,
um plano diretor. Delimitar é a palavra de ordem: o número de
comunidades, de residências, de moradores; as fronteiras
geográficas. Em áreas de risco, ou de preservação ambiental,
nem pensar.
Sem regras
precisas, projeto algum terá êxito nessa área. Os recursos
materiais são escassos, as fontes de financiamento estancam
quando menos se espera, a ocupação desordenada tem custo
altíssimo para todos. |
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TÓPICO 13
A origem do
poder paralelo |
Jornal do Brasil, segunda-feita,
15 de julho de 2002
Sandra Cavalcanti
A expansão caótica das favelas nos grandes centros urbanos
ocorre há décadas, como conseqüência do desrespeito às normas
e às posturas legalmente obrigatórias para qualquer edificação
urbana. É como se a lei não existisse para todos. Basta ser na
favela, para que cada um faça o que quer, construa do jeito
como deseja e ocupe do modo como lhe convém. Espantosamente,
todos os poderes, de todos os níveis, se omitem ou se dobram.
É o caso das autoridades federais, responsáveis pela
preservação da Mata Atlântica, das margens de rios, lagos,
lagoas e praias. Não tomam conhecimento de coisa alguma. E não
se ouve qualquer reclamação vinda das famosas entidades
ambientalistas, com suas ONGs verdes, azuis ou amarelas. Só
muito depois, as áreas já devastadas, começam elas a delirar
em torno de projetos comunitários de recuperação da natureza.
As autoridades estaduais, responsáveis pelas redes de água,
esgoto, transporte coletivo, educação e saúde, dão a impressão
de que sumiram do mapa. Só quando a desordem urbana já se
instalou é que elas aparecem. Mas aí é para pôr em prática a
velha politicagem do assistencialismo populista. Bicas, postos
de saúde, teleféricos.
Quanto às autoridades municipais, exatamente as que devem
zelar pelas licenças de edificação, se conformam com a
humilhada postura de meras espectadoras do processo de
degradação urbana. É incrível a falta de capacidade para
impedir, para intervir, para reassentar ou para exercer
poderes fiscais, apesar de sua insaciável gula arrecadadora.
Experimente um morador da Barra, ou da Tijuca, ou de Ipanema,
ou de Copacabana, construir uma pequena cobertura na última
lage de seu prédio, sem pedir licença à egrégia autoridade
municipal! Vai se dar muito mal. Se tem a audácia de
acrescentar uns metros quadrados à sua casa, dentro de seu
próprio terreno, a punição vem rápida e severa no imposto
predial logo aumentado.
Fica difícil para o transgressor entender o espírito da coisa,
se a menos de 50 metros de seu prédio ou de seu terreno, bem
ao lado, uma favela cresce livre e fagueira. Quem viu o
Vidigal de 1980 e vê aquilo hoje, nem acredita! Quem passa
pela Rocinha, pensa que está sonhando. Um amontoado de
prédios, muitos com mais de oito pavimentos, colados uns aos
outros, sobrando por cima de calçadas, num indecifrável
emaranhado.
Os grandes centros urbanos estão divididos entre a cidade
legal e a cidade não legal. O morador legal, para construir,
deve primeiro provar que é proprietário do terreno. Nas
favelas, essa exigência não existe. Desse modo, sempre que um
terreno é invadido, e que ali se erguem as primeiras
edificações, nasce uma comunidade de exceção.
É aí que mora o perigo! Quando uma comunidade percebe que pode
dispensar a lei em certos casos, acaba dispensando em todos.
Se alguém pode construir onde quiser e como quiser, também
pode ocupar o que quiser, onde quiser. Se alguém pode usar um
serviço público sem pagar, por que vai querer pagar? Se alguém
pode abrir um negócio sem licença, por que vai pedir licença?
Se alguém pode inventar um pagamento para garantir a
segurança, por que vai deixar de cobrar?
Esse sentimento anárquico de desnecessidade da lei faz, da
favela, o local perfeito para as cidadelas do crime
organizado.
O favelado hoje, em qualquer grande favela, vive sem a lei.
Não que ele seja um fora da lei, não! A maioria é gente
trabalhadora, pobre, lutadora. Mas a lei não faz parte de seu
comportamento cotidiano. Onde ele vive, não existe o poder
legal.
Um dia, o poder legal fechou os olhos para a invasão da
propriedade, privada ou pública. Omitiu-se diante do não
cumprimento das exigências urbanas de edificação. Explorou
demagogicamente o desamparo das pessoas, fingindo protegê-las.
Aceitou todas as exceções. Agora tem de enfrentá-las!
Há décadas, nessas favelas, as comunidades pobres vivem em
pleno regime de exceção, sob o comando e o controle de outras
autoridades, submetidas a outras regras, atendendo a outras
exigências e obedecendo a outro poder.
O poder paralelo nasceu desse processo de exceção. Só quando
esse processo for interrompido, pode-se pensar em acabar com
essa situação.
A professora Sandra Cavalcanti é ex-parlamentar e
ex-secretária de Estado
E-mail: sandrac@ig.com.b |
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TÓPICO 14
Caos urbano
e violência |
Jornal O Globo, Opinião,
quarta-feira, 24 de julho de 2002
Caos urbano e violência
LUCIANO OLIVEIRA MATTOS DE SOUZA
Inegavelmente o Brasil tem demonstrado sua deficiência no
trato dos temas relacionados aos direitos sociais básicos,
proporcionando um sem-número de infrações aos direitos
humanos.
Dentre esses direitos encontra-se o direito à habitação,
garantido pela Constituição federal, cuja violação faz
aumentar cada vez mais o número de pessoas que buscam moradia
nos núcleos urbanos, o que causa transtornos à ordem social. A
sociedade e o poder público, especialmente o municipal, ainda
não atentaram para a importância da questão urbanística na
contenção, melhoramento e quiçá resolução dos problemas
sociais gerados com a desorganização urbana, vista em grandes
e pequenos centros.
O problema, que se alastra por vários e longos anos, aparece
nos dias atuais com conotação diferenciada de outrora, o que
poderá acarretar maior cuidado e atenção por parte dos setores
sociais competentes.
As ocupações urbanas desordenadas aumentam consideravelmente a
cada dia, exigindo constante fiscalização do poder público não
somente para coibi-las, em alguns casos, mas também para
organizá-las, seja em áreas públicas ou privadas.
E esse é o novo enfoque que se pretende dar ao fato de forma a
que, no momento em que surjam as ocupações — desde que elas
sejam passíveis de ocorrer segundo a lei — o poder público
interfira para organizá-las e, com isso, evite o descontrole
urbanístico, cujos efeitos irradiam problemas muitas vezes
insuperáveis.
A disciplina de ocupação, projetos de construção de baixa
renda previamente aprovados nos municípios, métodos
alternativos para o tratamento do esgoto domiciliar, o
distanciamento entre as casas, os espaços urbanos, a
instalação de mutirões e tantas outras providências poderiam
ser adotadas concomitantemente ou logo em seguida à formação
daquele grupamento humano. Nada impede que ainda as sejam,
embora com muito maiores dificuldades.
Os benefícios seriam sentidos imediatamente pelos ocupantes,
que teriam seus direitos respeitados, poderiam almejar mais
concretamente a possibilidade do recebimento de serviços
públicos essenciais, proporcionando mais dignidade, ao passo
que toda a sociedade estaria sendo mediata ou também
imediatamente beneficiada.
E o que se tem visto atualmente em todos os cantos do Brasil é
justamente o contrário: a verdadeira omissão do poder público,
que, sem ser cobrado pela sociedade, que naquele momento ainda
não se deu conta do problema, adota a medida eleitoralmente
mais eficaz, que não representa qualquer trabalho para o
administrador ou custo para a administração: nada. O pior é
que muitas vezes o descontrole é mesmo incentivado e orientado
pelos próprios políticos locais!
Com o passar do tempo, o caos urbanístico se instala, os
serviços públicos essenciais somente podem ser prestados com
recursos públicos elevados (o que na esmagadora maioria das
vezes significa a sua não-prestação), a comunidade local vive
sérias e graves dificuldades, fragilizando-se e abrindo flanco
para o domínio da marginalidade, muitas vezes iniciada pelo
tráfico de drogas e armas.
O comando paralelo surge, pois, justamente da fragilidade da
autoridade pública, que se omite no seu dever de coibir e
organizar os assentamentos urbanos, permitindo inicialmente a
ocupação que muito provavelmente apresentará inviabilidade
urbanística e promoverá agressão a direitos sociais
fundamentais dos indivíduos, inclusive daqueles beneficiários.
Com essa lacuna, titulares de interesses espúrios ocupam a
função estatal e impõem a ordem diametralmente oposta aos
legítimos interesses da sociedade.
Medidas urgentes do poder público começam a ser pensadas, a
mobilização social começa a surgir, mas seus efeitos mais se
aproximam de uma guerra civil, diante da inacessibilidade e
descontrole criados naqueles pontos urbanos, que, diga-se,
continuam sofrendo com a omissão da autoridade e de serviços
públicos.
Talvez o primeiro passo para a diminuição da violência seja a
contenção desse crescimento desornado e desgovernado de
ocupações urbanas...
Se a devida atenção for dada à regular ocupação do solo
urbano, muito provavelmente para o futuro se poderá enxergar o
caminho da tão almejada paz social, inobstante outros fatores
também não possam ser esquecidos.
LUCIANO OLIVEIRA MATTOS DE SOUZA é promotor de Justiça da
1 Promotoria Regional de Proteção aos Direitos Difusos em Cabo
Frio/RJ.
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Topo TÓPICO 15
O barão
Haussmann |
Jornal O Globo, sexta-feira,
2 de agosto de 2002
O barão Haussmann
Arthur Dapieve
Os bulevares e as avenidas de Paris são tão espetaculares que,
num instante de vertigem, somos tentados a julgá-los eternos,
à moda rodriguiana. Eles, porém, não existem desde 40 minutos
antes do Nada. Para uma cidade de mais de 24 séculos de
história, tal face monumental é até bastante jovem: ano que
vem seu nascimento estará completando meros 150 anos. Embora
nos momentos de pico os trabalhos de reconstrução tenham
chegado a empregar um quarto da mão-de-obra local, pode-se
dizer que a presente capital francesa é obra de um único
homem: o barão Georges Eugène Haussmann.
No poder absoluto desde 1852, o imperador Napoleão III,
sobrinho do célebre baixote corso, no ano seguinte nomeou
Haussmann para chefe do Departamento do Sena, supercargo que a
rigor unificava o de prefeito de Paris, o de planejador-chefe
da cidade e o de ministro de Obras Públicas. O barão exerceria
essas funções por 17 anos. Se hoje quedamo-nos à mesa de um
café na calçada do Boulevard Saint-Germain, folheando um
jornal ou simplesmente observando os passantes, devemos este
pequeno grande prazer da vida à revolução urbanística
empreendida a ferro, fogo e macadame por Haussmann.
Por ironia, a revolução urbanística era movida — também, mas
não apenas — por uma contra-revolução política. Antes do
Segundo Império, Paris ainda era uma cidade medieval, cheia de
velhos bairros assemelhados a favelas em suas áreas centrais.
Suas ruelas eram propícias a que, em caso de revolta popular,
erguessem-se barricadas, o que ocorrera nas revoluções de 1830
e de 1848. O novo sistema viário imaginado por Haussmann
visava permitir que as tropas pudessem se deslocar rapidamente
de um canto a outro da cidade. E os longos e retos bulevares e
avenidas, em alguns casos com 100 metros de largura, quase
impossibilitavam o aparecimento das barricadas temidas pelo
imperador, além de facilitar a ação das cargas de cavalaria e
da artilharia pesada.
(Uma consulta ao “Houaiss” quanto à etimologia da palavra
portuguesa bulevar, vinda da francesa boulevard ,
mostra ser esta derivada do termo medieval bolevers ,
“obra de defesa” ou “fortificação exterior de uma praça forte
constituída por um terrapleno diante das muralhas”.
Bolevers , por sua vez, era proveniente do holandês
bolwerc , “bastião”.)
O barão, contudo, enxergava muito além dos imperativos
políticos de ocasião. A sua Paris foi concebida para ser
também bela, afluente e vigorosa. As obras que abriram 95
quilômetros de novas ruas — e sepultaram 50 quilômetros de
ruas antigas— permitiram que a cidade se enxergasse melhor,
circulasse melhor e se cuidasse mais. Prédios públicos,
monumentos e parques foram postados como clímaces dos
bulevares e avenidas. Pessoas e coisas passaram a transitar
com mais desembaraço, estimulando a interação social e a
atividade econômica. A saúde da população melhorou, graças à
rede de esgotos e à coleta de lixo. Esse último ponto não deve
ser subestimado: quem já ficou fechado num vagão de metrô
cheio de nativos entre as estações Filles du Calvaire e
Billancourt sabe o quanto aquela cidade ainda pode ser
insalubre.
Ao analisar como a poesia de Baudelaire reflete o nascimento
da nova Paris em “Tudo que é sólido desmancha no ar — A
aventura da modernidade”, o americano Marshall Berman
assinala: “Ele pôde ver-se não só como um espectador, mas como
participante e protagonista dessa tarefa em curso; seus
escritos parisienses expressam o drama e o trauma aí
implicados. Baudelaire nos mostra algo que nenhum escritor
pôde ver com tanta clareza: como a modernização da cidade
simultaneamente inspira e força a modernização da alma dos
seus cidadãos.” Pouco adiante, Berman escreve, referindo-se a
Haussmann: “O empreendimento pôs abaixo centenas de edifícios,
deslocou milhares e milhares de pessoas, destruiu bairros
inteiros que aí tinham existido por séculos. Mas franqueou
toda a cidade, pela primeira vez em sua história, à totalidade
de seus habitantes. Agora, após séculos de vida claustral, em
células isoladas, Paris se tornava um espaço físico e humano
unificado.”
Haussmann foi implacável. Botou abaixo até mesmo a casa em que
nascera. Abriu, entre outros, os bulevares Sébastopol,
Voltaire e Magenta, as avenidas Foch, Kléber e Victor Hugo, as
ruas de Rennes, des Ecoles e parte da Rivoli. Naturalmente, o
tempo, os automóveis e os novos conceitos de urbanismo se
encarregaram de aposentar muitas das idéias do barão.
Entretanto, o impacto da sua obra foi enorme e duradouro,
refletindo-se, por exemplo, em Viena e em Barcelona. Também o
Rio do prefeito Pereira Passos (1903-1906), rasgando a Avenida
Central, hoje Rio Branco, ecoou Haussmann.
Toda essa história para dizer o seguinte. A transformação do
Rio de Janeiro — e falo da cidade onde nasci, mas creio que
isso se aplica a São Paulo e a Belo Horizonte — de uma “cidade
partida” num “espaço físico e humano unificado” passa não
apenas pela repressão policial e pela inclusão social das
comunidades carentes. Passa, também, pela gigantesca tradução
urbanística, arquitetônica e ambiental disso. Senão, a maior
parte dos cariocas continuará a viver espremida entre o
laissez-faire das favelas transformadas em feudos pelos
traficantes e o dos condomínios fechados transformados em
feudos pelas elites. |
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O Programa
Favela Bairro- uma avaliação |
http://www.angelfire.com/pq/favelabairro/artigos/rmrj.favela.pdf |
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TEMA EM
DEBATE - FAVELAS - Um risco - Volta ao passado |
Jornal O Globo, Opinião,
segunda-feira, 21 de abril de 2003
NOSSA OPINIÃO
Um risco
Cerca de 80% da população vivem hoje em áreas urbanas, sendo
que metade delas encontra-se nas regiões metropolitanas. Esse
processo de urbanização e concentração demográfica ocorreu de
forma impressionante e se explica pela busca de melhores
condições de vida por parte das camadas mais pobres da
população que historicamente estavam nas zonas rurais.
As regiões metropolitanas concentram a maior parcela da renda
nacional. Não há, então, alternativa para o migrante. Ele
precisa ir para as grandes cidades, onde de fato encontrará
mais oportunidades do que em sua terra natal. No entanto, o
custo de moradia em cidades grandes é alto, de modo que as
pessoas de baixa renda acabam sendo empurradas para a ocupação
irregular de terrenos. Esse processo poderia ter sido
minimizado se o poder público (nas diferentes esferas de
governo) tivesse sido mais rigoroso no acompanhamento da
urbanização e dado mais atenção a políticas de habitação
popular.
O problema de fato é complexo, pois em certos casos a
concessão de facilidades pode até se tornar um chamariz para
as regiões metropolitanas. Esse é um risco que existe com o
programa de regularização de favelas. A titularidade deve ser
reconhecida apenas em comunidades estabelecidas há anos e onde
não haja ocupação em áreas de risco.
Se o reconhecimento de posse for indiscriminado, o que veremos
é um crescimento exponencial das ocupações irregulares e
favelas. Em vez de solucionar o problema, ele será agravado.
Aumentará a desigualdade social e ainda se abrirão novas áreas
para a atuação de criminosos.
OUTRA OPINIÃO
Voltar ao passado
AFONSO KUENERZ
As grandes cidades brasileiras estão hoje circundadas por
comunidades de baixa renda que constituem imenso foco de
problemas. Visando a melhorar as condições de vida dos que ali
moram, o governo federal pretende conceder títulos de
propriedade nas favelas. É uma iniciativa de grande alcance
social, pois as pessoas ficarão livres do risco de remoção,
cuidarão melhor de suas moradias, com reflexos positivos na
auto-estima e na cidadania. É, porém, uma medida que não toca
no descompasso entre as exigências municipais de
infra-estrutura para novos loteamentos e o poder aquisitivo de
grande parcela da nossa população.
Até a década de 1970, as obrigações mínimas para loteamentos
populares eram a abertura de ruas de saibro, a demarcação dos
lotes, a rede de alimentação de água e um projeto que
permitisse a drenagem natural. O preço dos lotes era
acessível; os interessados faziam um esforço para comprá-los,
construíam um pequeno módulo inicial, muitas vezes em mutirão,
e, mais adiante, faziam outros melhoramentos e ampliações.
Eram legítimos proprietários dos imóveis; pagavam impostos, se
organizavam em associações de moradores. Com o tempo, comércio
e serviços se instalavam, a prefeitura urbanizava ruas, e os
bairros se valorizavam, tornando-se excelentes lugares de
moradia. A Freguesia do Ó, em São Paulo, e Samambaia, em
Brasília, são apenas alguns dos milhares de exemplos de
bairros assim criados.
No embalo do “milagre econômico” da década de 70, o carro foi
colocado à frente dos bois. A partir de 1972, as prefeituras
passaram a exigir do loteador infra-estrutura completa:
asfaltamento das ruas, meio-fio, calçadas em concreto, redes
de drenagem de águas pluviais, de esgoto, de gás, de força,
iluminação pública e arborização. Com isso, cessou a oferta de
lotes para a população de baixa renda, pois esta não tinha
poder aquisitivo para pagar por toda essa infra-estrutura. A
maioria das empresas loteadoras encerrou suas atividades;
outras bandearam-se para a ilegalidade. A favelização
expandiu-se, com suas desastrosas conseqüências. As razões
para essas exigências das prefeituras são óbvias: evitar que o
custo da urbanização recaia sobre seus orçamentos. O tiro,
porém, saiu pela culatra. Elas deixaram de receber os impostos
prediais de grande parte da população, e acabaram tendo que
arcar com custos muito maiores de urbanização, pois urbanizar
a desordem é mais caro. Torna-se urgente um retorno à forma
antiga de urbanização.
AFONSO KUENERZ é arquiteto.
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TÓPICO 18
Romper o
cerco |
Jornal O Globo,
Editorial, 07 de maio de 2003
ROMPER O CERCO
Na pesada atmosfera de violência que se abateu sobre o Rio, os
cariocas aprenderam cedo a distinguir dois tipos de
comportamento. Primeiro: os criminosos quase sempre cumprem
suas ameaças. Segundo: as autoridades quase nunca cumprem suas
promessas. Por isso, quando bandidos mandam fechar, cria-se um
penoso dilema.
Em tese, a resposta sobre o que fazer diante da ordem que vem
dos morros está na ponta da língua de qualquer um. É claro que
não se deve obedecer. Permitir que traficantes decidam quando
o comércio abre, quando as escolas e os hospitais funcionam,
seria uma abdicação coletiva, uma deserção suicida,
um acovardamento de gravíssimas conseqüências. Mas a realidade
é mais complexa e cruel. Mesmo reconhecendo que a ordem é de
um atrevimento inominável, todos sabem que desobedecê-la
implica risco de vida.
No caso do ataque à Universidade Estácio de Sá, não havia o
que discutir. Quando traficantes do Morro do Turano ordenaram
o fechamento, diz a direção que não houve sequer tempo hábil
para mandar os alunos de volta sem causar pânico. Os bandidos
abriram fogo e uma aluna foi gravemente ferida. Mas é evidente
que há medidas urgentes a serem tomadas para que os alunos não
continuem expostos, e a universidade possa funcionar.
A gravidade do crime dá ao novo secretário de Segurança,
Anthony Garotinho, a oportunidade de mostrar, exemplarmente,
que o governo tem uma resposta à altura e é capaz de acuar os
criminosos, em vez de permitir que eles mantenham a sociedade
acossada e intimidada. Ninguém precisa lhe dizer que a
primeira providência é prender rapidamente os responsáveis -
de preferência em questão de horas. Esse deve ser o recado
enérgico da autoridade a traficantes encastelados em favelas
ou, o que é ainda mais inconcebível, em
presídios.
É hora também de pensar numa solução radical e definitiva -
que não precisa ser desumana - para as favelas que pela
localização se tornaram fortalezas inexpugnáveis do tráfico. É
impensável - mais que isso, é inadmissível - que a cidade
permaneça em sua linha de tiro, como animal a caminho do
abatedouro. |
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TÓPICO 19
O Rio de
Janeiro para principiantes |
http://www.nominimo.com.br
O Rio de Janeiro para
principiantes
04.Mai.2003 | Maus
tempos aqueles em que o carioca, em vez de linchar tubarão, se
ofendia quando um forasteiro lhe perguntava se nas ruas do Rio
de Janeiro transitavam cobras. Transitar, elas nunca
transitaram. Mas esse já foi um modo de insinuar que a cidade
ainda mal saíra do mato, num tempo em que nada ofendia mais o
civismo urbano do que ter um pé no sertão bravio.
Hoje estão ambos vingados. Se a cobra visitasse a cidade
atualmente, encontraria os turistas à sua espera, com todo o
equipamento que promove a modalidade esportiva o exercício de
sobrevivência na selva: uniforme cáqui,
chapéu de explorador, guia fantasiado de mateiro e jipão
camuflado. Só falta a cobra.
E o carioca aprendeu a ganhar dinheiro com o que em outros
tempos usava só para escovar os brios da cidade. Os
estrangeiros querem visitá-la como se estivessem entrando em
Tikrit? Não seja por isso. Estamos aqui para lhes mostrar tudo
o que o Rio de Janeiro tem de bravio e exótico. A começar,
naturalmente, pelas favelas, que antes os guias turísticos
tentavam apagar dos morros com retoques fotográficos.
A Jeep Tour, agência desbravadora do ecoturismo no asfalto,
comprou dez anos atrás os primeiros veículos 4x4 para levar à
floresta da Tijuca os delegados da Eco-92 e acabou topando no
alto do morro com a atração internacional da Rocinha. Diz ela,
em sua página na internet: "Satisfazendo a curiosidade de
turistas, visitamos uma comunidade carente e desenvolvemos um
projeto social em uma área marginalizada, berço do carnaval e
fonte de mão-de-obra para a cidade (motoristas, porteiros,
camareiras, domésticas etc.), possibilitando um maior contato
com as raízes do povo brasileiro".
Reconhecer que as favelas fazem parte do cenário carioca
parece um grande negócio, além de ser socialmente saudável e
turisticamente simpático. Umadécada depois a Jeep Tour tem 15
representantes no Rio. Enfrenta a
concorrência de pelo menos duas firmas rivais. E nem por isso
se queixa de ociosidade em sua frota de "30 jipes militares,
com capacidade e segurança para 200 passageiros, uma equipe de
motoristas treinados e guias poliglotas, e um conjunto de
itinerários dedicados ao ecoturismo".
Quais? Há, por exemplo, a Trilha da Borboleta Azul, que
termina numa cachoeira em Angra dos Reis, com "água
cristalina" e uma "verdadeira hidromassagem". A Costa Verde,
no litoral fluminense, onde "o contraste do azul do mar e o
verde das montanhas oferece uma paisagem deslumbrante". Ou o
Circuito do Café, em Barra do Piraí, para "observar todo o
luxo e esplendor em que viveram os primeiros barões do
Brasil".
Mas, até pelo lugar que ocupa em sua publicidade, o prato de
resistência desse cardápio é mesmo a favela - "a maior da
América do Sul", promete a agência, com certo ufanismo. Seu
programa oferece um mergulho na rotina da Rocinha, "com visita
a casas de moradores, creches e escolas, caminha por entre as
vielas e pelo centro de comércio do bairro", além de conhecer
o galpão da escola de samba e uma feira-livre com "comidas,
bebidas e artigos de artesanato da região Nordeste".
Dizem os guias que eles chegam a trabalhar com 600 turistas
por mês. Os carros usados nessas ocasiões são invariavelmente
relíquias das forças armadas compradas em leilões de sucata,
como o caminhão Dodge M-601 ou a picape F8s FF-220. Quase
sempre viajam em caravana, parecendo uma tropa de ocupação. A
clientela, geralmente vestida a caráter, vai empoleirada em
caçambas abertas, desfraldando cabeleiras louras ao sol e ao
vento. Os grupos não poderiam ser mais espalhafatosos no
asfalto. Mas na favela parecem invisíveis.
Quantas vezes a Jeep Tour e sua carga de turistas tiveram
problemas com assaltos, balas perdidas e traficantes
encastelados em seus feudos, nesses dez anos de operação?
"Nenhuma", responde o recepcionista. E qual o segredo de
tamanha imunidade? "Empregamos de preferência motoristas e
cicerones contratados na própria favela. Sabemos onde ir, onde
fotografar. Ou seja, tomamos cuidados normais", ele garante.
Há qualquer coisa de estranho, como se vê, na violência
carioca. Ao contrário das cobras, ela anda mesmo solta nas
ruas. Mas, de perto, é muito bem amestrada. |
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TÓPICO 20
Entrevista
com o Prefeito Cesar Maia |
Jornal O Globo, domingo,
18 de maio de 2003
ENTREVISTA COM CESAR MAIA
'Favelas afastaram empresas'
Para o prefeito Cesar Maia, a Zona Norte tem chances de
crescer com comércio, indústria e entretenimento. No entanto,
ele destaca que as favelas afastaram empresas.
Em que setores a Zona Norte pode se desenvolver?
CESAR MAIA: A construção do Estádio Olímpico, no Engenho de
Dentro, e a reestruturação do Pavilhão de São Cristóvão (que
vai se transformar no Centro de Tradições Nordestinas) vão
impulsionar o comércio, o entretenimento e a indústria.
Mas a região tem muitas áreas abandonadas.
CESAR: A Zona Norte já foi o pólo da indústria no Rio e hoje
tem muitas áreas decadentes. A proximidade de favelas afastou
os empresários, mas isso agora pode mudar. O Makro (rede de
supermercados de São Paulo) comprou um terreno na Avenida
Itaóca e, em breve, vai se instalar no local.
O senhor conhece de perto os problemas da região?
CESAR: A Zona Norte é de extrema importância para a cidade e
sempre foi priorizada, desde o meu primeiro governo. O
Favela-Bairro feito em mais de 70 comunidades da região é um
exemplo.
Então, as prioridades são as favelas?
CESAR: Não. O Rio Cidade é um grande projeto e a Zona Norte
foi priorizada também. Hoje ainda estão em andamento Méier II,
Madureira II e Marechal Hermes. O de Irajá foi o mais
detalhado de todos.
A ocupação irregular na região é uma realidade. Há projetos de
transferência dessas famílias para outras áreas?
CESAR: Temos dois tipos de ocupação: a irregular em áreas
privadas como galpões abandonados e aquelas em locais de
risco. No caso de terrenos particulares, como na antiga
fábrica da CCPL, em Benfica, não temos o que
fazer. Depende de o proprietário tomar uma atitude. A
Leopoldina é uma área cujo crescimento deste tipo de ocupação
foi o maior que tivemos.
Hoje as principais vias da Zona Norte são alvos da violência.
O que a prefeitura pode fazer para ajudar a controlar a
insegurança?
CESAR: As linhas Amarela e Vermelha e a Avenida Brasil
poderiam ser patrulhadas pelo Exército. A Avenida Pastor
Martin Luther King Jr. (antiga Automóvel Clube) também precisa
de reforço porque é perigosa. A prefeitura vai repassar R$ 100
milhões ao governo do estado para serem usados em projetos de
segurança pública na cidade. |
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Topo TÓPICO 21
Mea-culpa |
Jornal O Globo, Editoria,
terça-feira, 20 de maio de 2003
Mea-culpa
A NOVA arma da prefeitura para deter a favelização parece ser
o
reconhecimento de um fracasso. Liberar a ocupação do Alto da
Boa Vista para
residências de classe média deve funcionar, de fato, como
antídoto eficaz
contra os barracos. Pois, como reza antiga lei da física, dois
imóveis não
ocupam o mesmo lugar no espaço.
MAS, NA prática, o resultado final pode ser o mesmo:
desmatamento,
edificações pouco seguras e a invasão de áreas que deveriam
ser preservadas
para o bem dos mananciais e da cobertura vegetal ----
portanto, para o
próprio bem da população.
POR VIAS transversas, a prefeitura admite ser incapaz de
conter a
favelização. Radicalizada, essa política poderá destruir a
Floresta da
Tijuca. |
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Topo TÓPICO 22
Favela e
populismo |
Jornal O Globo, Rio,
sexta-feira, 23 de Maio de 2003
Opinião
Favela e populismo
AS FAVELAS sempre foram campo de caça de votos para políticos
populistas. Na
troca do assistencialismo (muitos vezes inevitável) por apoio
em dia de
eleição, várias dessas comunidades foram sendo mantidas
penduradas nos
morros, geralmente em áreas de preservação florestal.
E ASSIM a deterioração na qualidade de vida passou a ser
democratizada entre
toda a população carioca. Ao agir com rigor, como no caso das
favelas da
Vila Alice, em Laranjeiras, e Pinheiro Guimarães, em Botafogo,
onde barracos
de madeira e "puxadinhos" de alvenaria foram demolidos, a
prefeitura ajuda a
quebrar essa lógica nefasta.
MAS NÃO se tem a garantia de que essa saudável preocupação em
conter a
favelização vingue e vá adiante. Pois ainda há quem adote
aquela nefasta
maneira de fazer política junto aos pobres. |
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TÓPICO 23
TEMA EM
DEBATE - FAVELIZAÇÃO |
Jornal O Globo, Opinião,
24 de maio de 2003
TEMA EM DISCUSSÃO:
FAVELIZAÇÃO
Regra para todos
Triste marca da cidade, a favelização volta ao debate a partir
da proposta da prefeitura do Rio de evitar a ocupação
desordenada do Alto da Boa Vista pela liberação da construção
de imóveis de classe média nas encostas do bairro, numa das
fronteiras da Floresta da Tijuca. O projeto faz lembrar uma
peculiaridade carioca: ao contrário de cidades do Primeiro
Mundo com topografia semelhante, no Rio quem mora no alto são
os pobres e, na planície, os ricos. A disponibilidade de
terrenos nos morros, a distribuição espacial do mercado de
trabalho na cidade, entre outros aspectos, ajudam a explicar
essa característica.
Mas como não será o franqueamento dos morros às classes mais
abastadas que fará desaparecer as famílias carentes e o
déficit habitacional nas faixas mais pobres da população, a
idéia da prefeitura merece mesmo ser discutida.
O primeiro questionamento refere-se à preservação das áreas
verdes do Rio. E nesse ponto a autoridade não deve transigir:
se a vegetação nessa ou naquela área precisa ser mantida por
razões técnicas, a proibição para construções tem de valer
para ricos e pobres. Uma política que libere encostas para a
classe média, porque ao menos parte da vegetação será mantida,
equivale a admitir que o poder público é incapaz de conter a
favelização.
Além disso, nada garante que as favelas pararão de crescer -
até ficarem parede com parede com as residências de classe
média. O problema da favelização parece ser mais complexo do
que a solução simples de acabar com
os espaços disponíveis para os barracos.
COM CRITÉRIO
Durante décadas as encostas cariocas foram alvo de dois tipos
de ocupação predadora: agressivos projetos da construção
civil, insensíveis à beleza carioca, e a expansão das favelas,
que se intensificou fortemente a partir
do início dos anos 80. O despertar ambientalista, a partir
daquela década, levou a progressivas medidas de preservação
que acabaram inviabilizando os famosos espigões nas encostas.
No período mais recente a ameaça maior passou a vir do
crescimento explosivo das favelas. Em diversas áreas da cidade
restrições demasiado fortes à construção legal e a
desvalorização de áreas próximas a favelas levaram ao abandono
de lotes de edificabilidade muito restrita que acabaram
virando presa da chamada ocupação informal, às vezes promovida
pelos seus próprios donos.
Há alguns anos surgiram propostas para a liberação de pequenos
condomínios, em áreas altas, onde, hoje, só é permitida uma
única casa em um grande lote. Seria uma forma de viabilizar
economicamente uma ocupação regular como anteparo à
favelização. Embora concorde com esse tipo de solução em
alguns lugares, sempre fui contrário à sua generalização
indiscriminada por toda cidade, pois em outros poderia ter
resultados diametralmente opostos ao pretendido. Em áreas bem
preservadas com vegetação densa isso seria
problemático, podendo, inclusive, gerar favelização na medida
em que a abertura de novos logradouros, acima da cota 100,
aliada ao afluxo da mão-de-obra desses empreendimentos,
poderia, eventualmente, propiciar focos de informalidade
construtiva nas imediações. Já noutras áreas esta
flexibilização pode ser bastante positiva, viabilizando
economicamente a construção de várias casas ou mesmo de
pequenos prédios em grandes lotes, hoje unifamiliares, pouco
arborizados, degradados e potencialmente ameaçados de
favelização.
Não deve haver um critério uniforme, pois temos situações bem
diferenciadas. Há bairros onde isso pode ser positivo e outros
onde pode ser perigoso. Penso que o Alto da Boa Vista e Santa
Teresa são exemplos do primeiro caso e a Gávea e o Jardim
Botânico do segundo. A discussão sobre isso deve ser
criteriosa e, sobretudo, participativa. A população dos
bairros precisa ser ouvida. Associações de moradores,
proprietários, construtores, ambientalistas, todos devem
debater. Do estudo cuidadoso e da discussão aberta e
transparente surgirão as boas soluções.
Alfredo Sirkis
Secretário Municipal de Urbanismo |
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TÓPICO 24
Fiscalização e favelas |
Jornal O Globo, Opinião,
quarta-feira, 04 de junho de 2003
FISCALIZAÇÃO E FAVELAS
ALFREDO SIRKIS é secretário municipal de Urbanismo.
A discussão sobre favelas vem produzindo uma cacofonia pouco
esclarecedora, cuja última novidade é a volta da proposta de
"erradicação" dos anos 60.
Cerca de 40% do total de edificações no Rio são irregulares.
Um milhão de pessoas mora nas mais de 700 favelas cariocas. O
grande desafio é estabelecer um divisor de águas entre passado
e futuro, e não permitir que a regularização urbanística e
fundiária seja estímulo para uma subseqüente expansão da
informalidade, cada vez menos produto dos sem-teto e cada vez
mais de um empresariado pirata da construção civil.
Uma relativamente pequena parte das edificações informais terá
que ser removida, e seus moradores realocados o mais perto
possível, por se encontrar em área de risco, logradouro
público ou ser irremediavelmente insalubre. Por outro lado,
regras anacrônicas precisam ser revistas para facilitar a
construção dentro da lei.
Vários instrumentos vêm sendo aplicados: a instalação dos
ecolimites (cabos de aço e marcos) cercando as favelas,
inibindo o crescimento horizontal; a negociação com as
comunidades, de pactos de auto-regulação do crescimento, em
troca de projetos geradores de renda, como são os mutirões
remunerados de
reflorestamento, saneamento e catação de lixo; e as próprias
melhorias do Favela-Bairro, além da elaboração de normas
urbanísticas e ambientais para cada comunidade. A contenção do
crescimento vertical é mais difícil, mas
pode ser conseguida, a médio prazo, ao criar-se o hábito de
construir dentro da lei.
Mas nada disso funcionará se não houver uma política nacional
de habitação para os mais pobres, com crédito, lotes
urbanizados e estímulos para investimentos em imóveis para
baixa renda.
O que mais se lê, em reportagens e nas declarações de
palpiteiros, é que "falta fiscalização". Apesar das carências
de efetivo e da escala do problema, a fiscalização urbanística
consegue identificar e autuar a grande
maioria das obras irregulares. Em 2002, a SMU lavrou 4.871
multas. Aparentemente elas não doem o suficiente no bolso dos
infratores da cidadeformal, e são simplesmente ignoradas por
aqueles da informal.
Tramita na Câmara de Vereadores um projeto de lei agravando
substancialmente multas por infração urbanística. No passado,
os embargos da SMU eram impunemente desrespeitados.
Atualmente, com apoio policial, multiplicam-se prisões por
desobediência e procedimentos criminais. Mas mesmo isso não
assusta os mais recalcitrantes, pois depois da visita à
delegacia ninguém permanece preso.
Foram 1.105 embargos, em 2002. No nosso país, é singularmente
difícil punir pequenos crimes e incivilidade. Seria importante
instituir tribunais especiais capazes de julgá-los no mesmo
dia, como acontece em países
civicamente mais avançados.
Nas favelas os mecanismos formais de fiscalização e suas
conseqüências administrativas têm pouco efeito. O problema não
é a falta de fiscalização, mas a ausência de mecanismos
eficazes de repressão.
O poder público, evidentemente, não pode adotar a "lei do
morro", pela qual coíbe-se com eficácia, na favela, do pequeno
furto à paquera da mulher alheia. São punições selvagens que
não podem fazer parte do arsenal do
estado de direito.
A única arma relativamente eficaz são as demolições
administrativas. Elas funcionam especialmente contra
edificações em construção, ocupações não consolidadas, que
possam ser contidas no nascedouro. Precisariam ser
complementadas por um trabalho sistemático de indiciamento
criminal dos construtores piratas, que é uma tarefa da polícia
e do Ministério Público.
Demolições exigem considerável tempo de preparação,
mobilização significativa de máquinas e efetivos; dependem da
coordenação de diversos órgãos e do apoio das polícias.
Funcionam sobretudo como exemplo e
dissuasão. Não é viável realizá-las todos os dias nem em todas
as situações.
A mídia, que cobra providências, freqüentemente estigmatiza
estas operações - vide a reportagem sobre o tratorista baiano
glorificado por obstruir uma reintegração de posse judicial -
e o próprio Judiciário amiúde
concede liminares aos infratores até mesmo de edificações em
construção.
No caso de moradias ocupadas, é obrigação do poder público
encontrar alternativas de residência ou uma compensação aos
ocupantes, por mais ilegal que seja a construção. Isso envolve
recursos, longas negociações e sempre frustra a ansiedade de
quem cobra resultados mais expeditos.
Há forças políticas populistas que promoveram ativamente
processos de favelização ou loteamento clandestino, visando à
formação de clientelas eleitorais. Há advogados, policiais e
magistrados protegendo essas atividades.
Finalmente, é preciso colocar tudo isto no contexto de uma
cidade na qual as favelas estão, em grande parte, controladas
por traficantes com armamento de guerra que praticam, todos os
dias, impunemente, os mais bárbaros crimes, e alimentam um
caldo de cultura favorável aos crimes menores, à incivilidade
e à bandalha generalizada.
Quando o Estado não controla o armamento de guerra nem a
totalidade do território, o desafio à autoridade espraia-se em
todos os níveis. A ocupação do espaço urbano não escapa dessa
lógica e toda ação destinada a defendê-lo vira parte da
guerra. Quem não puder ajudar que, pelo menos, não atrapalhe.
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TÓPICO 25
Sob o
império da Lei |
Jornal O
Globo, domingo 03 de agosto de 2003 |
SOB O
IMPÉRIO DA LEI |
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Ainda meio inseguro
quanto à compreensão do que pretendo escrever
abaixo, taquei o título aí em cima e continuo
inseguro, embora um pouco menos. O título parece com
os dos filmes de caubói de antigamente, quando
cidades do tempo do bangue-bangue nos Estados Unidos
viviam entregues a bandidos que usavam tiros até
para matar baratas (Glenn Ford uma vez matou uma,
enquanto relaxava numa banheira, com o inseparável
Colt 45 ao lado; assisti pessoalmente, embora não
lembre o título do filme) e temo que o que vou dizer
seja tido como uma exortação à transformação dos
nossos grandes centros urbanos em cidades do
faroeste.
Mas claro que não farei uma exortação desse tipo e a
razão é bastante simples. Em primeiro lugar, o que
parece não ter importância alguma, sou contra a
violência. Em segundo lugar, menos um pouco
desimportante, estamos há muito tempo em falta de
mocinhos, em todos os níveis de governo. E, agora
sim, importante, já vivemos nessa situação há muito
tempo. Somos cidades de faroeste, diferençadas
apenas por detalhes, como carros e motocicletas, em
vez de cavalos, e a ausência de coldres recheados à
mostra. De resto, basta pensar e ver que, em cidades
onde morre mais gente baleada do que em países em
guerra, só podemos ser uma espécie de faroeste.
Já nos acostumamos e por isso mal notamos. Quem nota
e pode, vai morar em fortalezas ou complexos
penitenciários, eufemisticamente rotulados de
“condomínios”, mas na verdade com mais segurança do
que a velha Alcatraz, embora inútil pois às vezes os
próprios agentes dessa “segurança” estão por trás ou
ao lado de sua violação. Quem pode, dá no pé e vai
morar em algum país no qual não seja necessário
rezar sempre que um filho vai à rua e um celular
para cada um desses filhos não é considerado
equipamento de segurança indispensável. Quem chega
de fora fica assombrado em ver o número de grades
pelas quais tudo é cercado, de edifícios a praças
públicas, como se fosse normal o cidadão viver por
trás de grades, enquanto o pau come solto lá fora.
Nossas medidas pessoais de segurança já estão
ficando tão arraigadas que achamos que elas fazem
parte natural da vida. E encontramos sempre gente
para dizer que nossas cidades são iguais a quaisquer
outras grandes cidades do mundo, o que patentemente
não é verdade. Acontece todo tipo de crime em muitas
cidades grandes e civilizadas no exterior, mas há
poucas como, por exemplo, Rio e São Paulo. Não é
normal o sujeito ter de andar com documentos e, para
não tê-los furtados, ser aconselhado pelas
autoridades a portar cópias desses documentos. Não é
normal ver a luz verde acesa para os pedestres e
esperar que os carros parem mesmo, para ousar
atravessar a rua. Não é normal o kit-assalto que
muita gente já usa, o qual inclui desde as
mencionadas cópias de documentos a bolsos nas
cuecas, dinheirinho para o assaltante, relógio para
o assaltante, companheiro para ficar do lado de fora
enquanto a gente tremulamente vai a um caixa
eletrônico, dinheiro maior entre a meia e o sapato e
um terço rezado pelas mães, enquanto os filhos
adolescentes vão a uma festinha.
Chega dessa besteira de dizer que isso também é
normal em Nova York, Paris ou Miami, porque não é.
Tampouco é normal ter medo da polícia e de parar
para a fiscalização, achando que se trata de uma
blitz falsa. Blindar carros de família também não é
normal. Botar janelas à prova de balas em
apartamentos não é normal. Ter delegacias de polícia
invadidas não é normal. Ler todo dia sobre alguém
que morreu por bala perdida também não é normal. Ter
feriados decretados por bandidos não é normal. Armar
guaritas de estilo militar e cancelas à entrada de
ruas públicas não é normal.
Mas para nós ficou. E vai piorando. Nada impede, a
não ser a organização de uma liderança
suficientemente poderosa, que o Rio de Janeiro
termine por ser inteiramente dominado por bandidos.
Hoje, por exemplo, segundo me dizem, os policiais
evitam usar suas identificações funcionais, porque
quando chegar a normalíssima hora do assalto ao
ônibus, à agência bancária ou mesmo à banca de
revistas e os assaltantes descobrirem que um dos
presentes é policial, o fuzilam na hora. E, também
segundo me dizem, há policiais cujos salários os
obrigam a morar em favelas perigosas que não podem
deixar a farda lavada secando do lado de fora, para
não descobrirem que ali mora um tira e o matarem, ou
alguém da família dele.
Para resolver isso, que cresce como um câncer em
metástase desenfreada, os governos oferecem
palavrório e legislação. Devemos ter as leis mais
avançadas do mundo e vêm vindo mais. Por exemplo — e
chego finalmente ao ponto mais polêmico — agora o
plano é desarmar os cidadãos, proibindo
terminantemente o porte de armas, mesmo que
exclusivamente dentro de casa. Não tenho arma e sou
visceralmente contra seu uso, mas não sou maluco. O
cidadão que respeitar a lei não terá mais arma em
casa, ou nem mesmo no sitiozinho, onde relaxar virou
privilégio de quem pode contratar seguranças e ter
cachorros ferozes por tudo quanto é canto. Mas o
bandido? Ah, este estará de agora em diante perdido,
porque o novo dispositivo legal cerceará sua ação
criminosa. Verdade que terá certeza de que poderá
entrar na casa de qualquer cidadão ordeiro, porque
esse cidadão não contará com uma arma para
defender-se. Mas o bandido poderá ser facilmente
vencido. Basta que se guarde um exemplar da nova lei
para mostrar ao assaltante: “Olhe aí, diz aqui que é
proibido o porte de armas.” “Ah, desculpe”, dirá o
assaltante, pedindo licença para retirar-se e saindo
sem bater a porta. “Foi mal, eu não tinha sido
informado.” E não duvido nada que, se o cidadão
tiver em casa um revólver, mesmo que não dê um tiro
no assaltante, seja preso e processado
inafiançavelmente, enquanto o assaltante, réu
primário, servirá pena de dois anos em regime
semi-aberto. Tudo sob o império da lei.
JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor.
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Topo TÓPICO 26
Desordem
Urbana |
Jornal O Globo, Opinião,
terça-feira, 11 de novembro de 2003
DESORDEM URBANA
O programa Favela-Bairro encheu de esperança cariocas, e
brasileiros de todos os cantos, principalmente os que vivem em
cidades médias e grandes, e se sentem impotentes diante do
ritmo acelerado de desordem urbana no país.
O Favela-Bairro partiu da realidade de que a grande maioria
das habitações construídas nas últimas três décadas no Brasil
o foi por iniciativa dos seus moradores, sem financiamento,
acompanhamento ou orientação do poder público. Famílias de
baixa renda construíram como puderam e nessas condições
deixaram de lado o respeito a regras urbanísticas.
Os mais pobres acabaram construindo em áreas de risco,
incluindo faixas de domínio de estradas e ferrovias. O
programa Favela-Bairro, inicialmente voltado para pequenas
comunidades, cresceu por ter se proposto a interromper esse
processo. Favelas seriam (e várias de fato o foram)
transformadas em bairros exatamente porque sofreriam
intervenções urbanísticas do poderpúblico. Um dos principais
objetivos do programa era estabelecer limites para a
favela, evitando a expansão desordenada e a reocupação de
áreas de risco. O Favela-Bairro sem dúvida melhorou a
qualidade de vida das comunidades atendidas. Mas o poder
público não tem conseguido evitar a expansão e o surgimento de
favelas. Até mesmo áreas em que a prefeitura e o
estado removeram barracos foram novamente ocupadas.
Essa situação atinge todas as regiões da cidade, e é mais
grave nos chamados subúrbios da Central e da Leopoldina (além
dos atendidos pela linha 2 do metrô), como constatou
reportagem publicada no GLOBO na edição de domingo.
Tal desordem aparentemente decorre do empobrecimento de uma
parcela da população. Pode-se então culpar o modelo econômico
e cruzar os braços, o que só agravará o problema, pois a
desvalorização dos imóveis, o clima de insegurança e o
fechamento de empresas não levam, de forma alguma, a uma
melhora das condições de vida dos mais pobres.
Ou agir enquanto é tempo, com intervenções diretas e firmes
para as quais só o poder público tem autoridade e legitimidade
de fazê-las. |
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TÓPICO 27
Crise
urbana |
Jornal O Globo, Opinião,
quarta-feira, 31 de outubro de 2003
CRISE URBANA
A grande maioria dos brasileiros (cerca de 91%) vive em
cidades. E em boa parte (40%) nas capitais e suas
periferias. Esse processo de urbanização ocorreu de forma
acelerada, praticamente em quatro décadas. As cidades, em
especial as metrópoles, não se prepararam para receber tamanha
massa humana, e o resultado foi que se disseminaram ocupações
irregulares nas áreas urbanas.
Os esforços para reordenar essas ocupações são relativamente
recentes. No passado foram feitas remoções de favelas, sem se
restabelecer antigos laços de vizinhança. Além da desagregação
social, as comunidades resultantes dessa remoção acabaram se
transformando em novas favelas, às vezes pioradas.
Programas como o Favela Bairro, da prefeitura do Rio, ou o
Projeto Cingapura, de São Paulo, assim como iniciativas de
outras cidades, somente ganharam impulso nos anos 90.
Certamente contribuíram para diminuir o ritmo da favelização
ou até contê-lo. No entanto, estamos ainda muito longe de
resolver o problema. O déficit habitacional no Brasil passa de
seis milhões e moradias. Mesmo nas faixas de renda alta, o
número de imóveis é inferior ao de muitos países. E além
disso, como acaba de mostrar o Censo de 2000, há enormes
carências de infra-estrutura, principalmente saneamento: 54,1%
dos domicílios são semi-adequados ou inadequados.
A eliminação do déficit habitacional caberá basicamente a
iniciativas particulares, mas é o poder público que precisa
ditar as regras para novas ocupações, além de fomentar
construções por meio do crédito e de um regime tributário que
estimule o mercado a buscar soluções. Cabe também ao poder
público, e somente a ele, promover as intervenções necessárias
para que áreas de risco e de proteção ambiental sejam
desocupadas, além de avaliar se para as comunidades carentes é
preferível fazer investimentos em urbanização ou se é melhor
indenizá-las para que construam em locais mais apropriados.
Não se trata de tarefa fácil, mas que precisa ser encarada com
urgência, pois as cidades correm o risco de se converter em
grandes favelas. |
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Topo TÓPICO 28
Favela
Brasil |
Jornal O Globo, Opinião, 14 de
novembro de 2003
Favela Brasil
Basta visitar qualquer cidade grande ou média brasileira para
se constatar que a favelização é uma doença urbana grave e em
expansão por todo o país. O cenário desenhado pelos números do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística não é
desconhecido. O que não reduz a sua importância, pois chamam a
atenção para a dimensão do problema. Longe de serem uma marca
registrada do Rio - onde são mais visíveis por se misturarem
com bairros abastados - os barracos tornaram-se um triste
símbolo nacional.
Em 25% dos municípios existem favelas ou loteamentos
irregulares - um dado subestimado, pois nem todas as
prefeituras forneceram informações. O total desses domicílios
precários passou de 921,7 mil para 2.362 mil, entre 1991 e
2001 ---- um salto dramático de 156%, indicador do agravamento
da situação. E mesmo assim, 47% das prefeituras declararam não
ter qualquer programa ou ação habitacional para as famílias
pobres.
É previsível, portanto, que no próximo levantamento a chaga da
favelização esteja maior. Mas culpar exclusivamente as
prefeituras é simplificar a questão. Há inércia administrativa
e manipulações populistas por trás desse processo de
degradação das cidades. Mas não só.
Pressionadas pela mais avassaladora migração do campo para as
cidades ocorrida no Ocidente no século XX, as regiões
metropolitanas brasileiras foram invadidas por milhões de
pessoas no espaço de tempo de pouco mais de uma geração sem
que houvesse infra-estrutura para abrigá-las. Tentaram-se
programas habitacionais, o maior deles centrado no BNH, que
ruiu soterrado numa montanha de subsídios, grande parte deles
apropriada pelas classes médias. A crise fiscal do Estado e a
disparada da inflação acabaram por
soterrar as políticas habitacionais para a baixa renda. É
preciso fazer o caminho de volta, sem cometer os mesmos erros,
por óbvio.
A maioria dessa população, por insuficiência de renda, precisa
de subsídio. Mas a batalha da habitação tem de ser travada com
várias armas. A do crédito é apenas uma delas, necessária
também para ajudar a formalizar a expansão imobiliária nessas
áreas (pouco mais de 80% das construções no país são feitos
sem controle, normas, à margem dos financiamentos).
Instrumentos como o Programa Favela-Bairro são indicados para
resgatar da marginalidade as favelas já existentes. Urbanizar
essas comunidades, formalizar a propriedade significa trazer
amplas regiões das cidades para o mundo legal. E aqui o
problema urbanístico se mistura com o da segurança. Pela
dimensão dessa enorme e crescente favela nacional, o assunto
precisa ser tratado como de emergência. Repete-se na habitação
o que ocorre na segurança: o problema explode na frente de
prefeitos, encurrala governadores, mas só com a participação
do Executivo federal será possível formular e executar planos
com a abrangência necessária. |
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TÓPICO 29
Os
brasileiros da riqueza invisível |
Os brasileiros da riqueza
invisível
XICO VARGAS
24.Nov.2003 | Mais
que o arrebatamento a que o presidente Lula leva platéias
mundo afora, o sucesso brasileiro mede-se nesses últimos
tempos pelos dólares que transbordam da balança comercial:
quase 24 bilhões de dólares de saldo. São números
estonteantes para um país que acostumou seu povo a
ouvir-lhe o nome associado à pobreza. O resultado das
exportações em 2003 cresceu quase 30% sobre 2002. É
o maior dos últimos 14 anos. Já imaginou? Há
gerações que nunca ouviram falar nisso.
-
Somos campeões mundiais
na soja.
-
O comércio com a China
opera em altíssima velocidade:
-
Fomos os maiores
exportadores de carne bovina do mundo este ano, batendo
os Estados Unidos e a Austrália;
-
70% do suco de laranja
consumido no planeta é plantado e industrializado por
brasileiros;
-
a próxima safra de
algodão deverá chegar a 1 milhão de toneladas e antes de
estar toda plantada já vendemos 240 mil toneladas;
-
aumentamos em 44% as
vendas de papel e celulose;
-
o frango bateu 1,5
milhão de toneladas vendidas em 2003. Quase 26% acima de
2002.
Parece piada, mas diz-se
até que, se cada chinês que come frango resolver consumir
mais um por mês, os brasileiros não voltarão a enxergar no
prato o velho herói do Plano Real. São os melhores
das últimas duas décadas, os números que o país conheceu
este ano. Mas conheceu também os piores.
Os construtores dessa riqueza, que forrou o bolso da
elite, na hora da ceia foram retirados da mesa e mandados
dormir na favela. As contas que o IBGE serviu aos
brasileiros neste fim de ano mostram que mais de 10
milhões de trabalhadores vivem em quase 2,5 milhões de
barracos de 19.631 favelas cadastradas no país. São
os donos de um patrimônio invisível, como os moradores de
Rio das Pedras, favela das que mais crescem no Rio de
Janeiro. Ali, há dois anos, a arquiteta Lu Petersen,
funcionária da prefeitura, tentava negociar com moradores
instalados à margem da lagoa da Tijuca indenização pelos
barracos e transferência para lugar próximo e melhor.
Na discussão, um impasse: como o terreno não tinha
consistência, era normal que as construções afundassem na
lama. Assim, podiam-se encontrar barracos que, na
verdade, tinham dois, três andares chão adentro, como se
fossem alicerces. “Na hora de acertar o preço, o
morador queria cobrar pelo barraco e pelos andares que
estavam enterrados na lama”, conta Lu. Não havia
dinheiro que chegasse.
Esses são os brasileiros do movimento a
esperança-é-a-última-que-morre. Puseram gerações no
mundo e as ensinaram a trabalhar. Tudo o que botam de pé
torna-se acerto de políticas governamentais, como se a
nação fosse o governo e não o seu povo. O que levam para
casa, além de não entrar na conta, às vezes, desaparece na
lama. Com sorte, sobra-lhes a cama onde descansam o
esqueleto. Ensurdeceram na ditadura ouvindo que deveriam
bater a massa para ganhar uma fatia do bolo crescido.
Quando cresceu não receberam nem biscoito. Pior: foram
empurrados para os mocambos, palafitas e barracos que se
amontoam em 80% das cidades nas regiões metropolitanas do
país. Na prática, não há cidade brasileira com mais de 500
mil habitantes sem um portentoso conjunto de favelas.
Em São Paulo e no Rio de Janeiro, nessa ordem, mora o
maior contingente favelado. Mas o IBGE encontrou no
Sul a maior concentração de favelas (mais de 7 mil).
Justamente na região onde o poder público oferece as
maiores facilidades para investimento na produção de bens
e serviços. Ou seja: é ali que a elite
proporcionalmente mais ganha e menos leva a mão ao bolso
para distribuir. A extraordinária riqueza de São
Paulo também não alcança as 700 mil pessoas que se
amontoam em cortiços, na capital, nem os 2 milhões que
vivem nas favelas em 31 das 39 cidades da Região
Metropolitana. Nada muito diferente do Rio de
Janeiro, onde só não há favela em um dos 19 municípios da
Região Metropolitana.
O Rio ganhou uma favela por mês nos últimos 10 anos. A
Rocinha, uma das grandes da cidade, cresce à média de 300
famílias a cada dois anos, segundo levantamentos da Light.
Em outra grande, a do Rio das Pedras, em Jacarepaguá, a
associação de moradores avalia a expansão em cinco
barracos por semana. Ali, nos últimos anos, a
prefeitura desenvolve em ritmo lento um programa chamado
Favela Bairro, conjunto de iniciativas destinado a
corrigir distorções e conter o crescimento das favelas
cariocas. Segundo moradores, porém, a parte relativa a
“conter o crescimento” está suspensa até as eleições.
São assim também as favelas brasileiras: bolsões de
votos administrados pelos governantes. “Há sempre uma
troca de favores a serviço do interesse político”, como
diz o sociólogo Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, professor
da UFRJ e autor de “O futuro das metrópoles”, um dos
textos mais competentes já produzidos sobre o assunto.
Como não param de crescer e multiplicar-se, as favelas
brasileiras tendem a confirmar a previsão do relatório da
ONU, segundo o qual essa população no mundo dobrará de
tamanho nos próximos 25 anos. Em São Paulo, na
última década, 1,5 milhão de pessoas tornou-se morador de
loteamentos ilegais, áreas desprovidas de qualquer sinal
de infra-estrutura básica. No Rio, o bairro do
Itanhangá é bom exemplo desse ritmo. Em 10 anos
ganhou 11 favelas. No bairro ao lado, Jacarepaguá, o
maior símbolo de degradação urbana é Rio das Pedras.
Há 10 anos era um modesto aglomerado de casas de
funcionários e aposentados de um clube de golfe e do
Jockey Club. Deitou braços sobre terrenos privados
num morro e sobre as margens da lagoa da Tijuca. Em duas
administrações municipais tornou-se um conglomerado de
pobreza predominantemente nordestina.
Por uma construção de tijolos sem revestimento, de 4x5
metros, 20 metros quadrados, portanto, paga-se em Rio das
Pedras R$ 320,00 mensais. Se for para o lado da
lagoa, são grandes as possibilidades de afundar na lama.
Nesse espaço, geralmente um quadrilátero de cortinas isola
o vaso sanitário e o que sobra acomoda a vida de quatro
pessoas. Na Rocinha um quarto-e-sala chega a R$
550,00. Nos cortiços da rua da Abolição, no Centro
de São Paulo, o aluguel não sai por menos de R$ 300,00,
mais R$ 60,00 de “condomínio” que cobrem as despesas de
água e luz (quando existe) nas áreas comuns. Na
favela do Vidigal, no Rio, a passagem do Favela-Bairro
valorizou os imóveis e alargou a trilha da especulação
imobiliária. Como na favela do Jacarezinho, onde os
aluguéis subiram de R$ 170,00 para R$ 220,00, ali romperam
o teto de R$ 300,00 para R$ 350,00, mesmo preço de um
apartamento de quarto-e-sala no condomínio Parque dos
Passarinhos, na estrada de Jacarepaguá, bairro do Anil.
Aluguéis são o cravo final no calvário desses brasileiros.
É o item do orçamento que a cada ano amplia a leva de
excluídos dos excluídos. No Rio das Pedras criou o
“pessoal do charco”, localizado ano passado por uma
pesquisa da PUC vivendo em barracos de papelão e madeira
junto ao canal que despeja os esgotos da favela na lagoa
da Tijuca. Nas favelas da Zona Sul, quem já não consegue
pagar aluguel mora nas areias das praias, sob as marquises
ou nos buracos e cavernas da avenida Niemeyer. Em
São Paulo, a Companhia de desenvolvimento Habitacional e
Urbano calcula em 13,5% o percentual de imóveis alugados
nas favelas. No Rio, o Instituto Pereira Passos,
ligado à prefeitura, acredita que não ultrapasse 12%.
Há cinco anos, quando a prefeitura passou o trator na
favela Roque Santeiro, construída sobre a pista de uma
avenida, em Jacarepaguá, dos 86 barracos derrubados 29
pertenciam a Manoela Paes, moradora da rua Hilário de
Gouvêa, Copacabana. A propósito, foi a única que
obteve uma liminar na Justiça e ficou com seus barracos em
pé por mais 15 dias.
Sem solução à vista, a saída talvez esteja na defesa
veemente que faz do jeito favelado de morar o arquiteto
Sérgio Magalhães. Gaúcho, instalado numa rua do
Jardim Botânico, bairro da Zona Sul do Rio onde não resta
espaço à favelização, Magalhães foi secretário de
Urbanismo na administração Luiz Paulo Conde. De sua
cadeira assistiu à degração de Rio das Pedras.
Recentemente escreveu um livro ("Sobre a cidade: habitação
e democracia no Rio de Janeiro") em que declara a falência
de todos os programas governamentais que até hoje tentaram
dar casa digna ao brasileiro pobre. Magalhães defende o
“protagonismo da família na decisão sobre a moradia”.
Segundo ele, caberá a cada família a decisão sobre como,
onde e em que condições morar. Ao poder público
restará seguir atrás, “para construir cidade onde as
famílias já construíram suas casas, mesmo que precárias”.
Na prática, Magalhães prega a destruição das cidades tal
como as conhecemos. À primeira vista, pode parecer
insanidade. Quando teve a oportunidade de fazer algo
pelo Rio, não fez muito mais do que dar passagem ao caos
urbano que ainda hoje se vê. Mas talvez valha a pena
prestar atenção no que ele diz. Nessa área a
sabedoria popular é pródiga em frases e exemplos.
Uma delas diz: “Maluco e relógio parado duas vezes
por dia estão certos”.
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TÓPICO 30
O século da
favela |
Jornal
O Globo, Opinião, Segunda-feira, 3 de novembro de 2003
O século da favela
Sergio Magalhães
Com a divulgação dos dados brasileiros do século XX, o
IBGE confirmou a derrota das políticas de habitação da
República. Nesses cem anos, o Brasil tratou a habitação
popular segundo dois modelos. Um absenteísta, outro
autoritário. Ambos fracassaram.
Na República Velha (até 1930), o entendimento hegemônico
era o de que a produção da moradia popular cabia aos
capitalistas, que construíam para aluguel; cabia aos
governos, regular e estimular essa produção. As moradias
feitas pelo povo — favelas e cortiços — eram percebidas
como “chagas sociais”, que precisavam ser
“cauterizadas”, como disse Alfred Agache. Ao findar esse
período, as favelas cariocas abrigavam 200 mil
moradores.
A crítica política a esse modelo absenteísta levou o
Estado Novo a defender o papel oposto: o governo é que
deveria construir as moradias que o povo precisava. Com
a Lei do Inquilinato (1942), que congelou os aluguéis,
desestimulou a iniciativa privada a continuar produzindo
para renda.
Através dos Institutos de Previdência e outros
organismos, o governo ergueu grandes conjuntos
residenciais, obedecendo a padrões arquitetônicos que
distinguiam o país no pós-guerra. Permanecia a idéia de
que o governo e os arquitetos é que sabiam como o povo
deveria morar e, para ensiná-lo, expediam normas sobre
como viver em um apartamento, como usar o vaso
sanitário, quantos quilos de roupa poderiam ser lavados
por dia nas lavanderias coletivas. Enfim, tudo perfeito.
Mas esse belo modelo produziu parte mínima das novas
moradias necessárias. Coube ao povo continuar
construindo do jeito que dava, nas favelas e sobretudo
nos loteamentos irregulares da periferia.
O regime militar criou o BNH (1964), que passou a
construir não mais para aluguel, mas para venda. Mas o
modelo continuou o mesmo: os governos é que decidiam
sobre a moradia popular. A tônica foram as remoções
compulsórias de favelas e a construção de gigantescos
conjuntos residenciais — agora sem a mesma qualidade.
São desse período a Cidade de Deus e a Vila Kennedy.
Extinto o Banco, a Constituição de 88 reconhece o
direito à cidade e à habitação, mas não constrói um novo
modelo. Ao findar essa década, um milhão de cariocas
morava em favelas.
Não obstante, desde o Estado Novo, o Brasil urbano
construiu 35 milhões de novos domicílios. É uma fabulosa
produção. Todavia, o modelo oficial constituiu fragoroso
fracasso: somando-se todas as moradias construídas por
todos os governos — federais, estaduais e municipais —
todos os financiamentos dos Institutos e do BNH, toda a
produção financiada pela Caixa e pelos bancos privados,
somando todas as unidades produzidas pelos construtores
com financiamento, resulta em menos de um quarto do que
o Brasil urbano construiu. Isto é: 3 em cada 4 moradias
foram responsabilidade exclusiva das famílias, sem
crédito, localizadas, é óbvio, principalmente nas
favelas e nos loteamentos da periferia. É por isso que,
hoje, mais de metade da cidade é constituída por
habitação na irregularidade.
O país continuará construindo 1,2 milhão de moradias
urbanas por ano — independentemente dos planos
governamentais. Será um investimento anual de R$ 30
bilhões, no mínimo.
Para alcançarmos um resultado em que todas essas novas
moradias sejam legais, regulares, será preciso mudar o
modelo que vigora desde o Estado Novo, paternalista e
autoritário; tampouco serve o que vigorou nesta última
década, quase tão absenteísta quanto o foi a República
Velha.
Um novo modelo, republicano e democrático, precisará ser
construído, que atenda ao interesse geral dos cidadãos e
que esteja comprometido com a distribuição eqüitativa da
condição urbana. Por certo, reconhecerá tanto o
protagonismo da família na decisão sobre a moradia
quanto a responsabilidade coletiva na produção da
cidade.
O protagonismo das famílias significa crédito
universalizado, elas decidindo onde, como e em que
condições morar. (Não são os governos ou os
empreendedores, que, monopolizando os financiamentos,
devam decidir, como vigorou ao longo do século.) É
claro, os recursos para o crédito serão coletivos, mas
não serão públicos.
No entanto, os recursos públicos serão insubstituíveis
no combate ao déficit urbano, isto é, para construir
cidade onde as famílias já construíram suas casas, mesmo
que precárias, mas não têm como construir as
infra-estruturas e os serviços; logo, na urbanização dos
assentamentos populares, favelas e loteamentos; nas
redes de transporte de massa; na expansão dos serviços
públicos, inclusive o de segurança, a todos os
territórios urbanos, muitos deles verdadeiros
territórios da anomia.
Não há milagres, como a utopia modernista acreditou, ao
desejar uma cidade toda nova, perfeita,
“revolucionária”, resultado de um gesto, da associação
entre prancheta e governo.
Uma política habitacional que queira enfrentar os
desafios do novo século necessariamente será múltipla,
em resposta à complexidade da vida urbana. Não poderá
mais ser decisão autoritária, centralizada, com os
mesmos programas para todo o país.
A viabilidade de novos modelos está demonstrada
empiricamente pela experiência da política habitacional
do Rio, construída nos anos 90, reconhecida
internacionalmente, com programas como Morar Legal
(urbanização de loteamentos), Morar Carioca (cartas de
crédito para as famílias), Favela-Bairro (urbanização de
favelas consolidadas) e Morar Sem Risco (reassentamento).
Se o século XX viu a favela e o loteamento da periferia
ser a solução que o pobre encontrou para participar da
vida urbana, será que o século XXI alcançará a cidade
com qualidade de vida bem distribuída? A 110 anos de
República, saberemos construir um modelo republicano e
democrático?
SÉRGIO MAGALHÃES é subsecretário estadual do
Desenvolvimento Urbano do Rio de Janeiro.
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