Artigos 2002, 2003

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"É inútil fechar os olhos à realidade. Se o fizermos, a realidade abrirá nossas pálpebras e nos imporá a sua presença"
Jucelino Kubitschek

ARTIGOS(3ª parte)
 

 Artigos de 2002

 
Tópico 1  A herança do populismo
Tópico 2  TEMA EM DEBATE - Favela Bairro
Tópico 3 Em defesa do Favela Bairro
Tópico 4 A exclusão por conta própria - I
Tópico 5  Habitação - novas possibilidades
Tópico 6 Sobre (a) vivência dos moradores
Tópico 7 Passeatas não vão cegar o sabre dos Elias Maluco
Tópico 8 Quem são os culpados?
Tópico 9  O inferno ‘pertinho do céu’
Tópico 10 Atenção devida
Tópico 11 Efeito pobreza
Tópico 12 Câncer urbano
Tópico 13 A origem do poder paralelo
Tópico 14 Caos urbano e violência
Tópico 15 O barão Haussmann
Tópico 16 O Programa Favela Bairro: uma avaliação

 Artigos de 2003

Tópico 17  TEMA EM DEBATE - FAVELAS - Um risco - Volta ao passado
Tópico 18  Romper o cerco
Tópico 19 O Rio de Janeiro para principiantes
Tópico 20 Entrevista com o Prefeito Cesar Maia
Tópico 21  Mea-culpa
Tópico 22 Favela e populismo
Tópico 23 Tema em Debate - Favelização
Tópico 24 Fiscalização e favelas
Tópico 25 Sob o império da Lei
Tópico 26 Desordem Urbana
Tópico 27 Crise urbana
Tópico 28 Favela Brasil
Tópico 29 Os brasileiros da riqueza invisível
Tópico 30 O século da favela
Tópico 31 Entrevista com Sergio Magalhães

 

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A herança do populismo

Jornal do Brasil, sexta-feira, 11 de janeiro de 2002

Alguém, raspando o fundo da memória ou apelando para os arquivos que socorrem os brancos da cuca, será capaz de descobrir, ainda que como o exemplo da exceção, uma única frase de discurso, entrevista ou documento de governador, prefeito ou líder fluminense reconhecendo que a sua cidade está pronta, com o modelo da sua vocação definido e que a prioridade do governo é preservá-la da devastação do inchaço populacional, do crescimento caótico, da invasão das favelas e das ocupações clandestinas?

A dúvida girou na minha cuca, no redemoinho da angústia, nas curtas férias natalinas passadas em Gramado e nas inusitadas e singulares declarações do seu prefeito, no terceiro mandato, Pedro Bertolucci. Ditas sem a menor ênfase, como a coisa mais natural do mundo: a cidade, que é uma das jóias da paradisíaca serra gaúcha, consolidou sua população fixa em torno de 28 mil habitantes. É o seu tamanho ideal. Desdenha o progresso dos espigões, das grandes empresas sem estrutura de serviços sociais para seus empregados, desde as moradias, escolas, rede de esgoto. Os seus problemas, analisados durante a campanha, resumem-se em cuidar do que está feito, corrigir erros, melhorar as condições de vida nos bairros da classe média e de operários e organizar o turismo, estabelecendo limites aos excessos dos milhares de visitantes que os ônibus despejam nas temporadas de festas, como o Natal Luz, a Festa das Colônias e nos piques de inverno.

Gramado e seu prefeito não são exemplos catados a dedo para forçar a contundente comparação com o cenário da deterioração galopante que assola o Estado do Rio de Janeiro e outras regiões maltratadas do país.

O aprendizado que humilha, indigna e constrange começa na última etapa da viagem, no trecho entre Porto Alegre e a escalada da serra. Claro que há profundas diferenças. A Grande Porto Alegre engole municípios populosos, como Canoas, Nova Hamburgo, São Leopoldo, que se emendam no desfile de edifícios que furam as nuvens cinzentas da poluição e purgam os altos índices de violência, com assaltos, seqüestros, invasões de domicílio do repertório do gênero. O fracasso reconhecido da Secretaria de Segurança é um dos pecados mortais que atormentam o governo petista do bigodudo governador Olívio Dutra.

Panorama de beira de rodovias de intenso movimento em zona industrial não é exatamente um colírio para os olhos. Na periferia da capital, uma grande e veterana favela lembra o Rio, como a fisgada do vexame. Feio, com poeira manchando a caiação das paredes de fábricas, lojas, depósitos. O restante das dezenas de quilômetros está arrumado. Sem a bagunça deprimente da Niterói-Manilha, na saída do Rio para a região dos Lagos ou para as deslumbrantes serras que serpenteiam na estrada para Nova Friburgo.

O contraste tem o impacto de um soco no estômago. Desde a sinalização perfeita das rodovias, quase todas privatizadas, com o asfalto impecável, sem ressaltos e buracos até a paisagem às duas margens, passando por pequenas e médias cidades de presépio, limpas, claras, luminosas, às belezas que se sucedem a cada curva e cada reta. Não se vê um barranco com lixo escorrendo, o desmatamento criminoso, a favela cultivada como ceva de votos.

Qual a explicação para a chocante diferença entre regiões tão assemelhadas no clima, nas altitudes médias, nas temperaturas e, principalmente, na beleza natural que lá se preserva e aqui se destrói com a complacência, a omissão e o estímulo dos políticos de todos os partidos?

Falo do que vi. Há três décadas testemunho a implacável destruição de Nova Friburgo, que conheci nos prenúncios da decadência, mas com as graças que a celebrizaram como uma atração turística que encantou Machado de Assis, segundo o testemunho de sua correspondência, quando buscou nos ares abençoados do verde a saúde comprometida da sua mulher, a Carolina do soneto célebre.

Certamente que nunca a causa única justifica o fenômeno social da migração interna que inverteu em meio século a pirâmide populacional, esvaziando a zona rural e entupindo e desfigurando as cidades.

Mas o impulso decisivo, o empurrão do desequilíbrio, a rasteira do tombo, com toda a justiça, devem ser atribuídos ao populismo que se espalhou como tiririca na terra fluminense, cunhando o modelo que aleija quase todas as suas cidades. Petrópolis e Teresópolis são clones de Nova Friburgo. Chocados no ninho da descoberta velhaca de que mais vale um favela na mão do que a mata que não vota ou a ocupação racional do terreno, definida por plano diretor.

Uma invasão planejada com competência política, transforma-se em favela da noite para o dia e elege um vereador, um deputado estadual, engorda a votação do deputado federal, do senador.

Quanto vale, na bolsa dos votos, a favela que aumenta todos os dias e compõe a paisagem da Niterói-Manilha? Uma nota preta.

Villas-Bôas Corrêa é repórter político do Jornal do Brasil

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TEMA EM DEBATE - Favela Bairro

Jornal O Globo, Opinião, segunda-feira, 28 de Janeiro de 2002

 

Não basta

O grande mérito do programa Favela-Bairro, da prefeitura do Rio, é a intervenção urbanística em áreas que foram ocupadas irregularmente e sem respeitar regras exigidas para edificações no restante da cidade. A partir dessa realidade, as favelas que vêm sofrendo esse tipo de intervenção ganham acessos que facilitam a prestação de serviços públicos às comunidades locais, já que pelas novas vias podem passar caminhões de coleta de lixo, ambulâncias, carros de bombeiros, viaturas policiais, equipes das concessionárias de energia, telefonia etc.

Tais comunidades passam a usufruir também de espaços para lazer, e simultaneamente o poder público se compromete a promover um esforço de inserção social, com iniciativas relacionadas à qualificação profissional, formação de microempresas e encaminhamento a empregos. Com o Favela-Bairro, esperava-se que ao menos essas áreas deixassem de se degradar e que a recuperação da auto-estima dos moradores resultasse pouco a pouco em melhoria das suas próprias casas.

O programa continua sendo válido e inclusive merece receber mais atenção e continuidade para conservação dos investimentos realizados. Entretanto, o Favela-Bairro não é ainda a grande solução que por um momento chegou-se a imaginar para o problema habitacional de metrópoles como o Rio.

O número de construções irregulares na cidade continuou a crescer em ritmo acelerado, formando núcleos de novas favelas. Para famílias de renda muito baixa, os programas convencionais de casas populares continuam sendo necessários.


Reestruturar


MARIA LUCIA PETERSEN

O Programa Favela Bairro é uma das propostas mais avançadas em todo o mundo de integração das áreas de pobreza. A construção do espaço urbano com ruas, praças, áreas de esporte, creches e centros comunitários valoriza de forma inequívoca o patrimônio de cada família. Criam-se as condições de desenvolvimento que integram a ação do poder público e do morador do lugar, descartando-se qualquer política de remoção.

Ao contrário do que se possa pensar, a proposta nasceu dentro do próprio poder público, através do Projeto Mutirão Remunerado, que em 86 já apresentava uma concepção interdisciplinar de urbanismo. Incluía reflorestamento, construção de creches e educação sanitária, abrindo espaço para a implantação do programa Gari Comunitário, da Comlurb, de coleta de lixo. Em 1992, 70 favelas tinham sido objeto das intervenções integradas, contabilizando 200ha de áreas reflorestadas e mais de 50 creches construídas.

Em 93, o prefeito Cesar Maia criou a Secretaria Extraordinária de Habitação, que formulou a política habitacional. No ano seguinte, priorizou a implantação do Favela Bairro em 16 comunidades. O trabalho incluía, além da criação de espaços públicos, consolidação das políticas sociais, importante para a sustentabilidade do programa. A iniciativa foi a caução de credibilidade determinante para a assinatura de contrato com o BID, em fins de 95, para a liberação de US$ 300 milhões. As seis favelas já em obras funcionaram como amostra para definição do Regulamento Operacional de implantação do Programa de Urbanização de Assentamentos Populares.

A partir de 99, com a consolidação de 58 favelas concluídas ou em andamento e desdobramentos para os Programas Bairrinho e Grandes Favelas, o programa vai aos poucos se transformando na galinha dos ovos de ouro, em termos de votos. Predominam intervenções físicas, em detrimento das políticas sociais, expressas posteriormente pelos cortes introduzidos na assinatura do segundo contrato com o BID. Iniciado o processo eleitoral em 2000, o programa passa a ser objeto de acordos, manipulações, proibição de entradas nas favelas, utilização da máquina estatal, etc., baseados na crença de vitória absoluta nas eleições.

É fundamental a reestruturação conceitual do Favela Bairro. Nas áreas em que foi implantado, é necessário recuperar a credibilidade do poder institucional, o que passa pela presença efetiva da prefeitura na operação, manutenção e ocupação dos espaços públicos construídos. O processo de regularização fundiária é inadiável e vem sendo priorizado pela gestão municipal. Isso dispensa maiores explicações sobre o tempo necessário para a implantação da segunda etapa do programa, já iniciada, de modo que ele volte a ser considerado, no Brasil e no exterior, exemplar para redução da pobreza e da violência.


MARIA LUCIA PETERSEN foi gerente do Programa Favela Bairro de 1994 a 2000.

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Em defesa do Favela Bairro

Jornal O Globo, Opinião, terça-feira, 6 de julho de 2000

TEMA EM DEBATE: Favela Bairro

Já indispensável
FRANCIS BOGOSSIAN

"O ambiente está saneado, há praças com crianças brincando"

Quando se lançou a idéia. de urbanizar as favelas da cidade do Rio de Janeiro para transformá-las em bairros, pensou-se que era mais um daqueles projetos que não sairiam das pranchetas. Era um sonho de arquitetos e sociólogos que a engenharia considerava em princípio inviável, não apenas em face das dificuldades executivas como pelos custos delas decorrentes.

Isso sem falar nas questões políticas e fundiárias. Era a aceitação de se legalizar as invasões,  na maioria, de morros e áreas de mangue, e a antítese da solução lacerdista de remoção dos favelados para sítios afastados dos centros urbanos da cidade.

Um ponto, porém, era incontestável: o gigantismo que já haviam assumido muitas dessas ocupações ilegais elevava a índices astronômicos os custos materiais e sociais de uma erradicação.

Também não era mais possível a convivência do Rio urbanizado com os desconfortos e riscos sanitários dos esgotos a céu aberto, da água racionada, transportada e armazenada sem qualquer higiene, da falta de coleta de lixo, dos "gatos de toda a sorte para se dispor de energia nas habitações.

As favelas já não eram mais poéticas como nas canções de Ari Barroso, Orestes Barbosa, Herivelto Martins, dentre outros. Já não havia mais barracos de tábuas ou de pau-a-pique e telhados de zinco furados, com a lua salpicando estrelas pelo chão.

Eram, sim, habitações simples, com estrutura de concreto armado, alvenaria e telhados convencionais, esquadrias de madeira ou alumínio, porém construídas ilegalmente e longe das posturas, através dos mutirões familiares e comunitários. Cada casa  já há muitos anos representa um patrimônio cuja construção seguramente consumiu trabalho, dinheiro e muito suor de cada núcleo.

A despeito da insalubridade e falta de conforto, o acesso ao mercado de trabalho facilitado pela proximidade do coração da cidade é trunfo considerável para uma população que, além de não poder pagar aluguel, não dispõe de recursos para se transportar ao local do emprego.

Há muitos anos as favelas são realidades tão absolutas quanto insofismáveis. Nas comunidades estabelecidas com atividades comerciais instaladas, os problemas de água, de esgotos, de iluminação pública, com carência de creches e áreas de lazer, bem como de estruturas viárias, já estavam beirando o caos. Sem acessos para coleta de lixo, assistência médica e bombeiros e também para a polícia, as favelas se tornaram o abrigo de focos da marginalidade e o lugar ideal para se estabelecerem as chamadas fortalezas do tráfico de drogas.

As intervenções de engenharia nas favelas localizadas nas encostas dos morros, através de obras de contenção, primeiramente como ação corretiva dos muitos acidentes e posteriormente como ações preventivas nas áreas com potencial de risco, foram uma primeira melhoria que atingia pontos localizados mas nem de longe pretendia enfocar os aspectos habitacionais e urbanísticos de cada favela como um todo.

O sucesso, hoje em nível internacional, do projeto Favela Bairro deve ser creditado à coragem dos que o conceberam e acreditaram possível sua Implantação.

Como presidente da Associação das Empresas de Engenharia do Rio de Janeiro, tenho tido oportunidade de conhecer projetos e visitar obras já concluídas ou em adiantada fase de execução.

Quem conheceu qualquer favela antes e depois das intervenções do Favela Bairro, mesmo com todas as limitações geográficas, pode aquilatar a importância do projeto. O ambiente hoje está saneado, há praças com crianças brincando e dotadas de um mobiliário urbano sem luxo, mas adequado. Não há mais cheiro de lixo ou de esgotos, as vias estão convenientemente pavimentadas e drenadas, as creches e as associações de moradores são ativas, o comércio foi melhorado nos níveis do novo ambiente, enfim são bairros simples e  pobres, mas dignos.

Quem poderia hoje imaginar o  Rio sem o Parque do Flamengo sem os túneis Santa Bárbara r Rebouças, sem a Auto-estrada Lagoa-Barra, sem o alargamento e urbanização da Av. Atlântica, sem o Metrô, sem a Linha Vermelha,  sem a Linha Amarela, sem os Rio-Cidades, etc...etc...? Com toda a tranqüilidade eu acrescentaria, nesse rol os Favela Bairros. E, desafio os incrédulos a visitarem os que já estão entregues às comunidades.
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FRANCIS BOGOSSIAN é presidente da Associação de Empresas de Engenharia do Rio de Janeiro.


Uma unanimidade?
EDUARDO DANTAS

"A integração da favela pode acarretar erros estratégicos"

Ao ler o artigo do arquiteto Paulo Casé - "Finalmente, uma unanimidade - senti impulso imediato de levantar-me da cadeira para manifestar outra opinião, menos pela condução do projeto e seus reflexos para os favelados, que são muito positivos, mais pelo tom excessivamente vitorioso que a pretensa unanimide possa conceber.

O caminho da integração da favela à cidade formal pode, à luz da unanimidade, acarretar erros estratégicos, visto que existem outras soluções que não podem ser desprezadas.

Olho para o Parque da Catacumba, que com toda a sua beleza transforma aquela região da Lagoa em um dos metros quadrados caros da cidade, gerando um belíssimo cartão-postal para ser visto por todo o mundo, trazendo riqueza para nossa cidade, que pode e deve ser distribuída para os cariocas, em especial os subcidadãos, e penso que, felizmente, a Catacumba hoje não precisa de Favela-Bairro. Mas, e se a favela ainda estivesse lá? 

Com toda a mortandade de peixes, é inegável que muitos turistas vêm ao Brasil, porque o Rio de Janeiro é sua porta de entrada, para ver a Lagoa Rodrigo de Freitas em festa, e o turismo é, sem dúvida nenhuma, nossa maior vocação natural. Mas, e se a favela ainda estivesse lá? 

Com todos os cocôs do mar poluído de Copacabana, os turistas em peso a visitam, porque 70% da rede hoteleira da cidade estão lá. Mas, e se as favelas não estivessem lá? E se as pessoas do Cantagalo e do Pavão-Pavãozínbo tivessem a oportunidade de se integrar à sociedade formal de forma imediata e não gradual? E se elas pudessem escolher onde morar, com os recursos que receberiam pela venda do solo que ocupam pelo valor que o mesmo teria se estivesse "limpo"? E se elas pudessem de um dia para o outro desfrutar da liberdade das leis da sociedade, com direitos e obrigações que a lei da droga não pode conceder?

Há muito a se ganhar com a erradicação daquelas favelas, se considerarmos o mundo do valor, o mundo da qualidade de vida, o mundo das oportunidades.

Por tudo isso é que me sinto inquieto, pela perspectiva de que o programa Favela-Bairro, cujo valor é inquestionável, merecendo nosso total apoio para continuidade, venha a produzir o conforto da missão cumprida, pois não "redime os discursos por justiça social, e não "repara a enunciação de conceitos de difícil comprovação", limitando-se a traduzir ações concretas e visíveis que arquitetura pode produzir para saciar as necessidades básicas infra-estrutura que as pessoas favela têm que ter atendidas.

Espero, honestamente, que somatório de erros que nossa elite vem cometendo possa resultar, por outro lado, na maturada vontade política de produzir programa ainda melhor do que o Favela-Bairro, envolvendo a cidade como um todo:

O programa Subcidadão-Cidadão.

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EDUARDO DANTAS é engenheiro, compositor e professor de matemática financeira.

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A exclusão por conta própria - I

 

(o artigo me foi enviado por e-mail pela internet por um membro do PF)

A EXCLUSÃO POR CONTA PRÓPRIA  - I

 

Jorge Ernesto Macedo Geisel


"A ausência de alternativas torna as mentes espantosamente claras"- Henry Kissinger, consultor político e ex-Secretário de Estado dos Estados Unidos.


Podem colocar defeitos nas favelas do Rio de Janeiro. Mas, inegavelmente, elas se transformaram na solução dos que descobriram que é mais seguro morar sob a tutela de lideranças mais objetivas do que aquelas que só sabem, entre outras coisas piores, cobrar IPTU altíssimo e condenar o indivíduo comum e sua polícia à morte. Ambos estão na mira  da bandidagem obsidiante, enquistada no espaço geográfico de gente de toda a espécie, expelida da formalidade pelo salário mínimo, pela justiça trabalhista, pelo terrorismo tributário,  e dominando posições inexpugnáveis, vielas, becos e caminhos ardilosos - com instalações  sob o consentimento dos políticos eleitos pelas promessas mentirosas...sem qualquer ação pública por parte do Judiciário...

O Rio transformou-se numa Stalingrado, sem as glórias da guerra formalizada, sem  generais medalhados, sem embates  ideológicos. São as pessoas que morrem no noticiário de cada dia, no combate das ruas, sepultadas na memória da estatística coletiva,com o apoio da delinquência,autoritariamente irresponsável,  dos três amontoados  pseudofederativos atuais:  Poder Central, Estado  e Município...  

As favelas cariocas, bem diferente do que o leigo possa imaginar, não são iguais. Cada uma tem sua característica própria.  Entretanto,toda a diversidade brasileira tem suas pinceladas no quadro da exclusão carioca : cuicas, cuias, costelas assadas, vatapá, comidinha mineira, suco de assaí, macumba , buchada de bode,  padre e pastor, liberais, socialistas, comunistas, anarquistas, ateus e gente boa e à toa... Existem aquelas que são formadas, por exemplo, pelos contingentes majoritários de nordestinos. São as mais seguras. O pessoal não é debochado e tem um sistema de prestação jurisdicional de justiça e de polícia própria (a tal da "polícia mineira") que é mais radical do que aquela da "tolerância zero" do prefeito Giulianni de Nova Iorque... Não há lugar com mais segurança interna no Rio do que na favela bem organizada... Seus moradores são constituintes numa sociedade de confiança... 

As lideranças comunitárias são bem entrosadas na Justiça e tem políticos lobistas a seu serviço integral. Qualquer um destes bestas que paga impostos e que age na formalidade econômica, se soubesse das vantagens de ser excluído por conta própria morreria de inveja.

É claro que nestas comunidades de carentes, também, existem os desfavorecidos da sorte - ora, por favor, também não vamos exagerar... Mas hoje, com os milhões de dólares gastos pelo Contribuinte com a urbanização do programa "favela-bairro", dá gosto de se ver como as coisas melhoraram em muitas das favelas cariocas. Boa parte da população já está motorizada e tem até transporte coletivo privado interno circulando. Hoje já há água encanada (sem esgoto, imitando o bairro chiquérrimo e pagante da Barra da Tijuca e alhures), luz farta e baratíssima, televisão a cabo super-coletivisada, telefone e construções por todo o lado - tudo, sem aquelas impertinências formais e políticas de  burocracia, estabelecida para impressionar e pressionar a burguesia, implacavelmente cadastrada como gado de cria... para futuro abate...

Hoje, investir nestas comunidades, no comércio, pequena indústria, na edificação de pequenos prédios para aluguel, é negócio excelente, sem aquelas baixarias de investidas fiscalizatórias sobre os "incluídos" de narizinho em pé... Afinal, pensam que têm direitos só porque são contribuintes...

Descobri que muitos "desempresários", não podendo manter suas posições sociais incluídas no ról dos pagantes da meia centena de obrigações tributárias, estão se mudando para estas comunidades, cujos endereços mantêm a suposta dignidade anterior. Por exemplo, o Itanhangá hoje é formado por condomínios (só de fachada) de pretensos ricos e numa linha contínua, até Jacarepaguá, adornada pela vizinhança cômoda de umas cinco "comunidades", que podem se utilizar do mesmo endereço postal. A grande vantagem da "comunidade" é que não tem a visita freqüente de esbirros e, principalmente, está a salvo das impertinências fiscais. Os fiscais do IR e do ICMS, e de qualquer outra sigla oficial que inclua a idéia de tributo, não gostam de passar por lá, por motivos que prefiro desconhecer...

Um advogado colega meu, me confidenciou que um de seus inúmeros clientes, tendo encerrado suas atividades empresariais, engolido por juros e tributos, viu-se às voltas com sérios problemas conjugais. Separando-se extrajudicialmente, ofereceu à ex-esposa um imóvel alugado no Itanhangá, prontamente aceito pela interessada. Ela pode ser vista hoje, passeando de salto alto nas ruas cimentadas de um favela-bairro adjacente ao bairro que lhe gabarita a imagem, sem as inconveniências da carestia imposta ao pessoal considerado "socialmente incluído".   Tenho passeado por estes aprazíveis lugares. A sensação é notável. Ao invés da gente encontrar aquele clima de derrotismo ingrato dos "socialmente incluídos", há o prazer estampado naqueles rostos servidos pela reengenharia social, da alegria de viver. As comunidades estão repletas de templos de todas as denominações, tendas espíritas, e confesso: excelentes padarias, açougues e de simpáticas mercearias, de salões de beleza, barbearias, supermercadinhos sem fila e a preços abaixo daqueles presunçosos da Avenida das Américas e de Ipanema. Ninguém lá comenta sobre os azares e pesares do racionamento energético (a Light não vai mandar para a cadeia toda uma comunidade socialmente excluída, por amor de Deus!).

Aqueles que moram em cidades tidas ainda como organizadas, não sabem o quê estou querendo dizer. É simples, eu desejo contar aos meus amigos e aos que aceitam ler minhas mensagens com a necessária tolerância democrática, que afinal encontrei, em pleno Rio de Janeiro, um outro país, sem continuidade geográfica, mas unido por comunidades apenas organizadas pelos  interesses comuns, dentro do País cujo Estado (tributarista até à medula), prefere continuar na ficção...  

O universo da exclusão por conta própria está provando que a união dos seus constituintes, traz muito mais liberdade de iniciativa do que aos que simplesmente pagam impostos, desunidos,  escorchados tributariamente, iludidos pela ficção de uma  cidadania nacional,  sem direitos à cidade urbanamente organizada...

A favela, de certa forma, não seria a precursora agressiva de um neo-capitalismo, federativo, popular, distritalista, que se agiganta pouco a pouco no cenário do unitarismo obtuso, socializante, predador da economia e da felicidade dos seres humanos? Ela está invadindo as grandes cidades, em provocações de desobediência civil magistrais!

Em algum tempo desse Século, quem sabe se também todos nós não teremos aderido aos princípios libertários da exclusão por conta própria, com justiça rápida e polícia distritais, morando do lado da gente?


* O autor é Advogado e Vice-Presidente Nacional do Partido Federalista para o Rio de Janeiro. jorgegeisel@hotmail.com


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Habitação - novas possibilidades

 

Jornal O globo, Opinião, domingo, 9 de junho de 2002

Habitação: novas possibilidades
ROBERTO KAUFFMANN

A substituição de sub-habitações, situadas em áreas de risco e de preservação ambiental, sem condições de serem urbanizadas, não é impraticável. Ela é possível, num prazo entre 10 e 15 anos, como resultado de uma ação integrada que articule governos estadual e municipal e a iniciativa privada, a ser conduzida por um interlocutor qualificado da esfera federal — uma agência ou um ministério de desenvolvimento urbano — prioridade nacional que esperamos seja atendida pelo futuro governo.

A solução não é tão difícil como pode parecer à primeira vista. O México e o Chile são exemplos de política habitacional exitosa, cuja experiência deve ser por nós apropriada e adaptada às nossas peculiaridades.

No nosso caso, o que se tem que fazer são bairros novos, com grupamentos residenciais de no máximo 200 unidades, contendo cada um equipamentos comunitários adequados (creche, posto médico, escola etc.), dotados de infra-estrutura (água, energia elétrica, tratamento de esgotos, transportes etc.), localizados nos vazios urbanos e nas periferias das grandes cidades, inclusive em terrenos que hoje estão classificados como zonas agrícolas e industriais, mas que não são utilizados para estes fins e que poderão receber classificação residencial.

Para o financiamento subsidiado do programa, o governo federal destinaria anualmente uma verba do Orçamento Geral da União da ordem de R$ 3 bilhões a 4 bilhões. Os municípios se obrigariam a aperfeiçoar os procedimentos de aprovação dos projetos de interesse social e de executar nos grupamentos, com recursos próprios, os equipamentos comunitários. Aos estados caberia subsidiar, mediante uma bolsa-alimentação de R$ 70 a R$ 100 por mês, as famílias adimplentes nas suas prestações, deduzindo o valor despendido do ICMS a ser recolhido pelos supermercados. A iniciativa privada construiria os grupamentos, dentro dos parâmetros técnicos e orçamentos aprovados, e se obrigaria, no caso de construção de casas básicas com previsão de acréscimos futuros, a dar toda a assistência técnica necessária para que os moradores ampliem suas casas, em regime de autoconstrução ou mutirão numa segunda fase, a exemplo do Programa Morar e Crescer, já apresentado pelo Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado do Rio de Janeiro (Sinduscon), ao governo.

Seriam projetados vários padrões de casas ou pequenos prédios, conforme a demanda do público-alvo cadastrado, contemplando desde a casa básica de 24m² para ser ampliada, até casas completas de 40m² ou apartamentos de 45m², além de outras propostas que seriam definidas de comum acordo pelos agentes governamentais, setor privado e representantes dos moradores.

Os recursos existem. Além do OGU, contamos com o FGTS, a Caderneta de Poupança e os orçamentos de municípios e estados. Os construtores estão à disposição e a demanda é colossal. Havendo vontade política, embasada pelo apoio popular que verá em curto prazo a redução da violência, o resgate da dignidade da população favelada, a redução dos problemas de saúde e a janela de oportunidades para os jovens destas famílias progredirem, será possível, em um prazo entre 10 e 15 anos, impor-se um novo conceito de moradia nas nossas metrópoles.

Nos dias 22 e 23 de maio, a Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano da Presidência da República e a Caixa Econômica Federal apresentaram, num workshop em Brasília, uma nova proposta de política nacional de habitação, desenvolvida pela Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos, vinculada à Universidade de Brasília, em parceria com o Banco Mundial. Na sua parte mais importante, o estudo trata das habitações de interesse social, detalhando as diretrizes e instrumentos que permitirão ao futuro governo resolver a questão da favelização de nossas cidades que, reitero, é viável e pode ser realizada com sucesso.


ROBERTO KAUFFMANN é presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado do Rio de Janeiro.

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Sobre(a)vivência dos moradores

Jornal O Globo, domingo, 16 de junho de 2002

Sobre (a) vivência dos moradores
Jailson de Souza e Silva

A vida cotidiana nas favelas do Rio é um mundo desconhecido para a grande maioria dos cariocas. Fascínio, preconceito e medo se entrelaçam nas falas dos moradores do asfalto ao tratarem dos habitantes das favelas e de seus espaços. E, em particular no momento atual, estes parecem mais incompreensíveis e distantes do que os marroquinos da novela de maior sucesso da TV.

As interpretações mais comuns sobre favelas, violência e tráfico de drogas, em função do desconhecimento e do preconceito, são caracterizadas por pressupostos sociocêntricos, que dificultam a compreensão e o encontro de alternativas adequadas para os problemas reais da vida nos espaços populares. O sociocentrismo se materializa quando, a partir de padrões de vida, valores e crenças de um determinado grupo social, se estabelece um conjunto de comparações com outros, colocados, em geral, em condições de inferioridade. Os discursos estabelecidos em relação aos espaços populares, dentre outros, seguem esse padrão. Por isso, a valorização das ausências é o emblema característico daquelas áreas urbanas: a favela é definida, sempre, pela ausência, seja de serviços públicos e equipamentos urbanos, de leis, de beleza e, no limite, de noções básicas de moral e de ética.

A trágica morte de Tim Lopes permitiu que o espaço formal percebesse com mais intensidade um fato denunciado há anos: há uma guerra silenciosa na cidade, e muitos inocentes são atingidos. O assassinato contribuiu, entretanto, para reforçar ainda mais os estereótipos sobre as favelas, assim como, dentro das devidas dimensões, o atentado às torres gêmeas reforçou a política militarista e autoritária dos EUA no mundo. A crueldade é ressaltada, a libertação do mandante do crime é denunciada, o uso da força é exigido. O triste assassinato, todavia, pode servir para sairmos do terreno do discurso e encaminharmos uma série de ações vigorosas e ampliadas para o enfrentamento da crise social que vivemos. Resta saber se a sociedade do asfalto está disposta a aceitá-las.

A priorização de iniciativas de preservação da vida, com o vigoroso combate ao tráfico de armas e ao seu porte (o que implica a aplicação de penas severas aos que as traficam e a intensificação das apreensões); a mudança da legislação que trata do tráfico, aproximando-a da aplicada ao álcool (que pune os atos anti-sociais que ele pode gerar e não o uso); uma polícia bem treinada e bem paga, com efetiva punição da corrupção e do abuso de autoridade; uma legislação penal que trate da mesma forma os desiguais social e economicamente; o aumento do investimento no tratamento dos usuários dependentes, tratando-os como doentes e não criminosos; o aumento do investimento social e da segurança nos espaços favelados; a punição da discriminação ao morador da favela e outros.

Essas iniciativas, no entanto, ameaçam práticas sociais comuns no Rio: o tradicional suborno ao policial e ao fiscal desonestos; a defesa de tratamento privilegiado para os atos infracionais dos setores médios; a superação de velhos preconceitos e conceitos em relação às drogas e aos usuários e à possibilidade de que todos os que cometerem crimes possam ser punidos, e não apenas os pobres.

Todas as ações apontadas implicam investimentos vigorosos e/ou mudanças de cultura por parte da população do asfalto e das instituições, privadas e públicas. As ações são fundamentais no tratamento do fenômeno da violência no Rio. Resta saber se os setores médios e dominantes da cidade estão dispostos à mudança de postura. Caso contrário, a indignação e a emoção demonstradas na morte de Tim Lopes não passarão de atos cínicos e hipócritas. Atos característicos, aliás, da maior parte da população do asfalto quando trata de vizinhos tão próximos, mas tão distantes.
JAILSON DE SOUZA E SILVA é ex-morador do Complexo da Maré e professor-doutor da Universidade Federal Fluminense

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Passeatas não vão cegar o sabre dos Elias Maluco

Jornal O Globo, domingo, 16 de junho de 2002

 

Passeatas não vão cegar o sabre dos Elias Maluco
Marcelo Yuka

Peguei uma época boa de subúrbio, das pessoas se conhecerem bem, em que o bandido tinha respeito pela comunidade dele. Com o aumento da disputa pelos pontos de vendas de drogas e a onda de invasões aos morros, a violência urbana vive uma nova fase, em que o traficante se torna mais cruel, seja porque perde a noção de raiz, passa a ser um estrangeiro no morro invadido, seja porque a idade dos bandidos diminui e, com isso, cresce a ousadia.

A disparidade social é cada vez mais ostensiva. As chances de mobilidade social diminuíram até nas telenovelas. Agora a novela já estréia com cenas sensacionais no exterior. O consumismo cresceu vertiginosamente. A Tijuca, por exemplo, onde eu moro há mais de 15 anos, nunca teve tanto shopping. Tem shopping com tanto cinema que parece até saguão de aeroporto. Os campos de várzea viraram mais prédios e condomínios fechados.

Há em curso um processo de desumanização das elites, de emburrecimento total. A elite emburreceu mais ainda nos últimos 30 anos. Antes, os filhos da elite estudavam na Europa, vinham de lá com uma formação mais humanística. Isso foi substituído pela tecnocracia disseminada pelos Estados Unidos. A elite não quer ceder, não quer compartilhar. A favela tem uma tremenda lucidez. Quem pirou foi meia dúzia de bandidos. Eu comecei a ter medo da rua. Criado na periferia, comecei a sentir a mudança na década de 90. Comecei a sentir medo de voltar para casa, depois da boemia.

Eu não acredito que haja alguma possibilidade de reversão desse quadro simplesmente com passeatas na orla, se vestindo de branco. Isso não vai cegar o sabre dos Elias Maluco da vida. Não considero séria nem eficaz essa forma de luta. Para mim, essas passeatas são quase como um desfile de moda com o merchandising da antiviolência. É apenas uma tentativa de aliviar culpas. É uma coisa deles, enquanto Zona Sul, gente bonita e bronzeada. A situação requer uma emergência maior. Ninguém assume o quanto essa questão da violência é de fato emergencial. Todo mundo se vira para o mar, de costas para o interior, para a pobreza, a miséria, o abandono da periferia e das favelas. Tudo agora é entretenimento. Ser feliz agora é se entreter, se divertir. Há uma necessidade de se esconder nossas mazelas.

Será que vamos precisar de um mutilado em cada casa para que a indignação contra a violência produza resultados? Mas a gente não quer se ver etnicamente. Há uma enorme necessidade de não se ver como povo, de se manter no alto da pirâmide, vendo tudo, sem o menor engajamento.“Por que vamos assumir que todos nós estamos errados? Quem está errado é o bandido, a polícia, o poder público. Eu pago meus impostos e tudo bem”. Todas as palavras não conseguem ainda sensibilizar a parte abonada da sociedade. As classes mais favorecidas privatizaram também a notoriedade de suas tragédias pessoais. Todo mundo diz que o Brasil todo ficou muito triste com a derrota para o Uruguai, no Maracanã, na Copa de 50. Será que o país não pode ficar se comportar assim também diante da violência?

Sem fazer qualquer apologia ao crime, algum pesquisador vai acabar conseguindo provar que esse problema da violência só vai ter solução quando as vítimas forem mulheres, brancas, jovens, residentes na Zona Sul. Só aí a coisa vai mudar de rumo. Mas é uma situação tão catastrófica e absurda que ninguém consegue imaginar. Enquanto as vítimas são negras e pobres, não há qualquer tipo de pressão eficiente sobre o poder público e a sociedade. Sem contar que, na mídia, um escândalo esfria o outro. A sensação de insegurança não se dá em toda a parte da cidade. Ainda existem bolsões de segurança.
Marcelo Yuka, músico nascido em Campo Grande e morador da Tijuca, está paraplégico depois de baleado

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Quem são os culpados?

Jornal O Globo, domingo, 16 de junho de 2002

Quem são os culpados?
Paulo Lins

Suponhamos que conseguíssemos acabar com o tráfico de armas, de drogas e com os bailes funk; diminuíssemos a idade penal; aumentássemos o rigor das penas; e dobrássemos o efetivo das polícias. Será que seríamos felizes num país onde a desigualdade monetária é uma das maiores do mundo? Será que todos os excluídos iriam seguir caninamente a ordem social? Acabariam os conflitos?

Quem será que matou o jornalista? Foi apenas Elias Maluco, André Capeta, Boizinho e seus pares? Ou foram também as nossas elites racistas, exibicionistas, alienadas, bandidas e os sucessivos governos que sempre atenderam aos seus interesses?

Quando soube que Tim Lopes estava desaparecido numa favela para onde foi com a finalidade de fazer jornalismo de denúncia, facilmente concluí que entre os possíveis culpados a serem apresentados pela polícia estariam novamente jovens negros, nordestinos migrados e pobres, esses bandidos que não têm o perfil dos que comentem crimes no Congresso, no Judiciário, no mercado financeiro, não colocam dinheiro no caixa dois, não mandam fortunas para o exterior. Quem faz isso (crimes que deveriam ser considerados hediondos) são as elites.

Não quero afirmar que todo pobre é bandido, porque senão estaríamos realmente em guerra civil, mas sim que dentro das favelas são os mais miseráveis e membros de famílias desorganizadas, analfabetos ou semi-analfabetos que na maioria engrossam as fileiras da criminalidade. Os moradores das periferias já sabem, desde cedo, quem vai ou quem não vai entrar para a vida do crime, pois são aqueles que estão na base da pirâmide social da favela que matam e morrem regularmente. A entrada para as fileiras da criminalidade é ainda na infância, num processo lento e doloroso, pois ninguém vira bandido da noite para o dia, mesmo sendo essa a única opção. A segunda opção, a de inclusão no mercado de mão-de-obra barata, é para os que estão no topo da pirâmide, pois, por incrível que pareça, está fora de alcance da base.

A pirâmide social nas classes populares é bem fácil de entender: no topo estão os profissionais empregados, geralmente funcionários públicos, militares de baixa patente e pouquíssimos trabalhadores que conseguiram se manter empregados em empresas privadas; logo em seguida vêm os profissionais com estabilidade, mas sem qualificação (serventes de toda sorte); depois os biscateiros, vendedores do mercado informal, diaristas; por fim, a grande maioria que faz pequenos serviços na própria favela, vive de favor, esmola e vende produtos baratos nos sinais, arruma vagas de estacionamentos.

Os bailes funk viraram provedores de violência sexual. Mas o que dizer do apelo sexual na publicidade, na mídia que regula o imaginário da maioria dos brasileiros? Será que a banalização do sexo não está diretamente ligada às grandes empresas de comunicação?

Durante os 30 anos em que morei em favela, sempre tive medo daqueles traficantes que cometem crimes hediondos nas comunidades onde atuam, matam crianças, mulheres que, às vezes, até por esquecimento, não pagam a dívida de drogas. Bandidos que se aliam até a grandes comerciantes, executando aqueles que praticam pequenos furtos em seus estabelecimentos, inventam mentiras para matarem seus próprios companheiros e, além de tudo, coíbem o direito de ir e vir.

Hoje, com as facções agindo em áreas distintas, os pobres, que já sofrem a segregação majoritária, e que têm relações de parentesco, compadrio, amor e amizade com habitantes de favelas de outro domínio, não podem mais se encontrar por causa de uma guerra absurda. São novamente confinados em suas comunidades. Não há mais os churrascos de fins de semana, os torneios de futebol entre comunidades. São os moradores que mais sofrem com a ação dos traficantes e, como se não bastasse, são reféns da violência policial.
PAULO LINS é escritor e ex-morador da Cidade de Deus

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O inferno ‘pertinho do céu’

Jornal O Globo, domingo, 16 de junho de 2002

O inferno ‘pertinho do céu’
Zuenir Ventura

“Quem mora lá no morro já vive pertinho do céu”, cantava o carioca nos anos 40 e continuou cantando até meados dos anos 70, quando o paraíso começou a ser invadido pelo inferno das drogas. “Nunca vi por ali uma pessoa pouco afável ou uma pessoa triste”, escrevia por sua vez Stefan Zweig, depois de visitar uma favela também nos “anos dourados”.

Evidentemente, era a visão idealizada de uma realidade que acumulava tensões e conflitos que iriam explodir com o tempo. Dourados por fora, mas nem tanto por dentro. A visão romântica, no entanto, tinha seus fundamentos. Vivia-se de fato numa cidade mais amena, onde os moradores do morro e do asfalto, os pobres e os ricos se olhavam sem medo e sem ódio. Os contrastes e as diferenças sociais já existiam, mas eram menores — e os antagonismos também.

Senhoras de embaixadores se aventuravam pelas favelas em trabalhos assistenciais sem pedir licença para isso. Moças da Zona Sul saíam de madrugada para lecionar nos subúrbios. Namorava-se à noite nas ruas do Rio! Um repórter registrava a “invasão da Mangueira pelos grã-finos”, que fingiam sambar com “lenços molhados de lança-perfume no nariz” (Mais tarde, esses mesmos narizes descobririam outro cheiro).

As mães não temiam que seus filhos subissem os morros com os amigos favelados, pois sabiam que eles iam soltar pipa ou jogar bola, não comprar cocaína. Lá no alto ainda se encontrava um pouco do clima bucólico que havia inspirado seus nomes: Cabritos, Cantagalo, Pavão-Pavãozinho, Rocinha, Mangueira. Existiam, bem entendido, os malandros, os bandidos e até mesmo a maconha, “coisa de marginal”, mas em escala artesanal, praticamente inofensiva, quase folclórica ou, como escreveu Paulo Francis lembrando esses tempos, em quantidades muito menores e não intromissivas. As ruas da Zona Sul eram “nossas”, da classe média e acima.

Por que essa paisagem mudou tanto?

A resposta pode parecer idéia fixa, já que hoje se costuma atribuir ao mercado todos os males da Terra. Mas a verdade é que quando ele, o mercado, subiu o morro levando sua lógica, suas leis e o negócio mais perverso, nocivo e também o mais rentável do mundo foi que tudo começou a mudar. Nunca é demais repetir: assim como não planta coca e nem fabrica armas, as favelas também não inventaram esse comércio clandestino. Elas apenas entraram com o ponto e a mão-de-obra— barata, ociosa, sem futuro. A ausência do estado e o descaso da sociedade fizeram o resto.

Usando a miséria como caldo de cultura, não foi difícil ao tráfico tomar o poder e implantar uma ditadura militar. Os “soldados” instalaram suas bases de operação, montaram um poderoso arsenal e fizeram das favelas um campo de batalha — tudo graças à inestimável contribuição do asfalto, que ao longo desses anos forneceu uma freguesia cativa e dependente para garantir o sucesso do negócio e de seus subprodutos: violência, guerra, crueldade, corrupção de menores.

Como ironia sem graça da História, só nos demos conta do que estava acontecendo, só percebemos que o espaço “pertinho do céu” estava virando um inferno quando, em vez do som dos pandeiros e tamborins, passamos a ouvir o rufar dos AR-15. E quando as balas perdidas começaram a cair sobre nossas cabeças. Aí já era tarde.
ZUENIR VENTURA é jornalista, morador da Zona Sul e autor do livro “Cidade partida”

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Atenção devida

Jornal O Globo, Opinião, domingo, 23 de junho de 2002


Atenção devida

A construção civil isoladamente responde por mais de 9% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, índice acima do de qualquer outro setor. O impacto da construção civil é tão forte que é possível avaliar claramente o que anda acontecendo com o conjunto da economia observando-se a atividade desse segmento industrial. Quando a construção está ativa, é sinal de que a economia vai bem. E se a economia está caminhando devagar, percebe-se isso pela ausência de gruas nas cidades.

Tal termômetro é explicável pelo fato de a construção depender de uma série de fatores de política econômica. É um tipo de setor que não consegue se alavancar por si mesmo, pois exige investimentos de longo prazo e, em contrapartida, poupança capaz de financiá-lo.

Dessa forma, a construção civil é muito afetada pelo comportamento das taxas de juros de curto prazo. Se os juros ficam excessivamente altos por muito tempo, como nos últimos anos, a indústria da construção se inviabiliza, com perda de renda e empregos.

As dificuldades de financiamento e as limitações na oferta de terrenos edificáveis também são grandes obstáculos à atividade, até mesmo mais do que os preços dos materiais. Esses dois itens certamente contribuíram para a acelerada expansão das favelas nas regiões metropolitanas e cidades médias do país. Na última década, as favelas se multiplicaram e se transformaram (com os barracos sendo substituídos por casas de alvenaria). Foi uma expansão urbana desordenada que não chegou a diminuir significativamente o déficit habitacional brasileiro.

Ainda que esteja em uma fase inicial, os debates da campanha eleitoral quase nada acrescentaram na busca de soluções para esse grave problema. As propostas setoriais apresentadas até aqui nem chegam a ser paliativos.

Com a conjuntura de juros altos, a reativação da construção civil sempre exigirá algum tipo de subsídio. Se, desse debate, resultar a conclusão de que subsídios serão inevitáveis, ao menos que fiquem explícitos dentro de previsões orçamentárias, para que não se repitam os erros do passado. O setor é fundamental para o país e merece maior atenção por parte dos governantes.

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Efeito pobreza

Jornal O Globo, Opinião, domingo, 23 de junho de 2002

Efeito pobreza

O quadro apresentado pelo IBGE no levantamento sobre desenvolvimento sustentável não é novidade: como em décadas passadas, nos anos 90 a sociedade brasileira apresentou progressos ao mesmo tempo concretos e pequenos. Assim, os salários subiram pouco mas subiram, tanto os altos quanto os baixos; mas a diferença entre eles permaneceu virtualmente igual. O percentual de trabalhadores que ganhavam até meio salário-mínimo caiu de 25,9% para 20%, e os 5,8% que ganhavam até cinco salários-mínimos passaram a 9,4%, outro palpável e modesto sinal de progresso.

Os avanços não devem ser menosprezados, mas é grande demais a lentidão com que ocorrem. O principal, a queda do Índice Gini, que mede a distribuição de renda, de 0,571 em 1992 para 0,567 em 1999, foi inferior a 1% — uma evolução incomodamente próxima de zero.

Acelerar o ritmo com que essas desigualdades vêm diminuindo será importante não apenas do ponto de vista social, mas também pelo custo ambiental que elas implicam. É devido à pobreza que apenas cerca de 40% das 228 mil toneladas de lixo recolhidas diariamente no país têm destino adequado; o mesmo ocorre com o esgoto: as deficiências do saneamento têm inevitável efeito de degradação sobre o meio ambiente. Habitações inadequadas contribuem para agravar o problema, e mais de 24 milhões de brasileiros vivem em residências com excesso de ocupantes.

Temos feito progressos importantes na defesa do meio ambiente. Diminuiu a emissão de fluorocarbonos e dos gases causadores de efeito estufa; caiu a participação do carvão vegetal na matriz energética; cresceu a reciclagem de latas de alumínio; as áreas ambientais protegidas já são mais de 400 mil quilômetros quadrados. Embora haja pontos fracos, como o aumento do uso de agrotóxicos, de modo geral estamos lidando bem com os males causados pelo desenvolvimento. Mas quando se trata de danos ambientais cuja origem está na pobreza, não há outra forma de enfrentá-los senão combatendo a pobreza em si.

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CÂNCER URBANO

Jornal O Globo, OPINIÃO, quarta-feira, 22 de maio de 2002

Qual é a única força capaz de deter o crescimento desordenado das favelas do Rio de Janeiro? Na prática, só se conhece uma resposta: a geografia da cidade. Como bem observou um morador da Gávea ouvido pelo GLOBO, as favelas da Rocinha e do Vidigal só não se juntam num imenso favelão por causa da rocha escarpada do Morro Dois Irmãos, que funciona como gigantesca divisória natural.

Numa visão superficial, o problema poderia ser solucionado de imediato, removendo-se os moradores das encostas para áreas planas. Medidas desse tipo faziam sentido quando havia poucas favelas e muito espaço livre para a construção de bairros populares. Vila Kennedy e Vila Aliança são exemplos clássicos dessa política, que como tantas outras ao longo de décadas se mostrou inadequada. Distantes de tudo, sem infra-estrutura de transporte público e sem vida econômica própria, fracassaram por confinamento. Ë o que acontecerá com os atuais projetos em Sepetiba.

Hoje a remoção é impensável: só cadastradas pela prefeitura, são 604 favelas onde vivem mais de um milhão de pessoas. O número real ainda está sendo calculados Sabe-se que nos últimos quatro anos segundo dados do Instituto Pereira Passos, surgiram mais ou menos cem - uma média de 25 por ano. Elas brotam em toda parte. E as antigas não param de crescer. A Rocinha começa em São Conrado, sobre a encosta, e se derrama pela Gávea: entre 1991 e 2000, cresceu 31,3%.

Era de esperar que projetos em andamento, como o elogiado Favela-Bairro, agissem como freio.Afinal, baseiam-se numa premissa inatacável: o da necessidade de Integrar as favelas ao resto da cidade. Os próprios moradores, depois de beneficiados, teriam interesse em seguir as novas diretrizes.

Mas o problema ainda não está sob controle. Ao que tudo indica, não está sequer dimensionado. E é justamente por ai que deveria começar a intervenção do poder público. Seu papel mais importante é o de impor limites, estabelecendo, para começar, um plano diretor. Delimitar é a palavra de ordem: o número de comunidades, de residências, de moradores; as fronteiras geográficas. Em áreas de risco, ou de preservação ambiental, nem pensar.

Sem regras precisas, projeto algum terá êxito nessa área. Os recursos materiais são escassos, as fontes de financiamento estancam quando menos se espera, a ocupação desordenada tem custo altíssimo para todos.

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A origem do poder paralelo

Jornal do Brasil, segunda-feita, 15 de julho de 2002


Sandra Cavalcanti

A expansão caótica das favelas nos grandes centros urbanos ocorre há décadas, como conseqüência do desrespeito às normas e às posturas legalmente obrigatórias para qualquer edificação urbana. É como se a lei não existisse para todos. Basta ser na favela, para que cada um faça o que quer, construa do jeito como deseja e ocupe do modo como lhe convém. Espantosamente, todos os poderes, de todos os níveis, se omitem ou se dobram.

É o caso das autoridades federais, responsáveis pela preservação da Mata Atlântica, das margens de rios, lagos, lagoas e praias. Não tomam conhecimento de coisa alguma. E não se ouve qualquer reclamação vinda das famosas entidades ambientalistas, com suas ONGs verdes, azuis ou amarelas. Só muito depois, as áreas já devastadas, começam elas a delirar em torno de projetos comunitários de recuperação da natureza.

As autoridades estaduais, responsáveis pelas redes de água, esgoto, transporte coletivo, educação e saúde, dão a impressão de que sumiram do mapa. Só quando a desordem urbana já se instalou é que elas aparecem. Mas aí é para pôr em prática a velha politicagem do assistencialismo populista. Bicas, postos de saúde, teleféricos.

Quanto às autoridades municipais, exatamente as que devem zelar pelas licenças de edificação, se conformam com a humilhada postura de meras espectadoras do processo de degradação urbana. É incrível a falta de capacidade para impedir, para intervir, para reassentar ou para exercer poderes fiscais, apesar de sua insaciável gula arrecadadora.

Experimente um morador da Barra, ou da Tijuca, ou de Ipanema, ou de Copacabana, construir uma pequena cobertura na última lage de seu prédio, sem pedir licença à egrégia autoridade municipal! Vai se dar muito mal. Se tem a audácia de acrescentar uns metros quadrados à sua casa, dentro de seu próprio terreno, a punição vem rápida e severa no imposto predial logo aumentado.

Fica difícil para o transgressor entender o espírito da coisa, se a menos de 50 metros de seu prédio ou de seu terreno, bem ao lado, uma favela cresce livre e fagueira. Quem viu o Vidigal de 1980 e vê aquilo hoje, nem acredita! Quem passa pela Rocinha, pensa que está sonhando. Um amontoado de prédios, muitos com mais de oito pavimentos, colados uns aos outros, sobrando por cima de calçadas, num indecifrável emaranhado.

Os grandes centros urbanos estão divididos entre a cidade legal e a cidade não legal. O morador legal, para construir, deve primeiro provar que é proprietário do terreno. Nas favelas, essa exigência não existe. Desse modo, sempre que um terreno é invadido, e que ali se erguem as primeiras edificações, nasce uma comunidade de exceção.

É aí que mora o perigo! Quando uma comunidade percebe que pode dispensar a lei em certos casos, acaba dispensando em todos. Se alguém pode construir onde quiser e como quiser, também pode ocupar o que quiser, onde quiser. Se alguém pode usar um serviço público sem pagar, por que vai querer pagar? Se alguém pode abrir um negócio sem licença, por que vai pedir licença? Se alguém pode inventar um pagamento para garantir a segurança, por que vai deixar de cobrar?

Esse sentimento anárquico de desnecessidade da lei faz, da favela, o local perfeito para as cidadelas do crime organizado.

O favelado hoje, em qualquer grande favela, vive sem a lei. Não que ele seja um fora da lei, não! A maioria é gente trabalhadora, pobre, lutadora. Mas a lei não faz parte de seu comportamento cotidiano. Onde ele vive, não existe o poder legal.

Um dia, o poder legal fechou os olhos para a invasão da propriedade, privada ou pública. Omitiu-se diante do não cumprimento das exigências urbanas de edificação. Explorou demagogicamente o desamparo das pessoas, fingindo protegê-las. Aceitou todas as exceções. Agora tem de enfrentá-las!

Há décadas, nessas favelas, as comunidades pobres vivem em pleno regime de exceção, sob o comando e o controle de outras autoridades, submetidas a outras regras, atendendo a outras exigências e obedecendo a outro poder.

O poder paralelo nasceu desse processo de exceção. Só quando esse processo for interrompido, pode-se pensar em acabar com essa situação.

A professora Sandra Cavalcanti é ex-parlamentar e ex-secretária de Estado

E-mail: sandrac@ig.com.b

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Caos urbano e violência

Jornal O Globo, Opinião, quarta-feira, 24 de julho de 2002

Caos urbano e violência
LUCIANO OLIVEIRA MATTOS DE SOUZA

Inegavelmente o Brasil tem demonstrado sua deficiência no trato dos temas relacionados aos direitos sociais básicos, proporcionando um sem-número de infrações aos direitos humanos.

Dentre esses direitos encontra-se o direito à habitação, garantido pela Constituição federal, cuja violação faz aumentar cada vez mais o número de pessoas que buscam moradia nos núcleos urbanos, o que causa transtornos à ordem social. A sociedade e o poder público, especialmente o municipal, ainda não atentaram para a importância da questão urbanística na contenção, melhoramento e quiçá resolução dos problemas sociais gerados com a desorganização urbana, vista em grandes e pequenos centros.

O problema, que se alastra por vários e longos anos, aparece nos dias atuais com conotação diferenciada de outrora, o que poderá acarretar maior cuidado e atenção por parte dos setores sociais competentes.

As ocupações urbanas desordenadas aumentam consideravelmente a cada dia, exigindo constante fiscalização do poder público não somente para coibi-las, em alguns casos, mas também para organizá-las, seja em áreas públicas ou privadas.

E esse é o novo enfoque que se pretende dar ao fato de forma a que, no momento em que surjam as ocupações — desde que elas sejam passíveis de ocorrer segundo a lei — o poder público interfira para organizá-las e, com isso, evite o descontrole urbanístico, cujos efeitos irradiam problemas muitas vezes insuperáveis.

A disciplina de ocupação, projetos de construção de baixa renda previamente aprovados nos municípios, métodos alternativos para o tratamento do esgoto domiciliar, o distanciamento entre as casas, os espaços urbanos, a instalação de mutirões e tantas outras providências poderiam ser adotadas concomitantemente ou logo em seguida à formação daquele grupamento humano. Nada impede que ainda as sejam, embora com muito maiores dificuldades.

Os benefícios seriam sentidos imediatamente pelos ocupantes, que teriam seus direitos respeitados, poderiam almejar mais concretamente a possibilidade do recebimento de serviços públicos essenciais, proporcionando mais dignidade, ao passo que toda a sociedade estaria sendo mediata ou também imediatamente beneficiada.

E o que se tem visto atualmente em todos os cantos do Brasil é justamente o contrário: a verdadeira omissão do poder público, que, sem ser cobrado pela sociedade, que naquele momento ainda não se deu conta do problema, adota a medida eleitoralmente mais eficaz, que não representa qualquer trabalho para o administrador ou custo para a administração: nada. O pior é que muitas vezes o descontrole é mesmo incentivado e orientado pelos próprios políticos locais!

Com o passar do tempo, o caos urbanístico se instala, os serviços públicos essenciais somente podem ser prestados com recursos públicos elevados (o que na esmagadora maioria das vezes significa a sua não-prestação), a comunidade local vive sérias e graves dificuldades, fragilizando-se e abrindo flanco para o domínio da marginalidade, muitas vezes iniciada pelo tráfico de drogas e armas.

O comando paralelo surge, pois, justamente da fragilidade da autoridade pública, que se omite no seu dever de coibir e organizar os assentamentos urbanos, permitindo inicialmente a ocupação que muito provavelmente apresentará inviabilidade urbanística e promoverá agressão a direitos sociais fundamentais dos indivíduos, inclusive daqueles beneficiários. Com essa lacuna, titulares de interesses espúrios ocupam a função estatal e impõem a ordem diametralmente oposta aos legítimos interesses da sociedade.

Medidas urgentes do poder público começam a ser pensadas, a mobilização social começa a surgir, mas seus efeitos mais se aproximam de uma guerra civil, diante da inacessibilidade e descontrole criados naqueles pontos urbanos, que, diga-se, continuam sofrendo com a omissão da autoridade e de serviços públicos.

Talvez o primeiro passo para a diminuição da violência seja a contenção desse crescimento desornado e desgovernado de ocupações urbanas...

Se a devida atenção for dada à regular ocupação do solo urbano, muito provavelmente para o futuro se poderá enxergar o caminho da tão almejada paz social, inobstante outros fatores também não possam ser esquecidos.
LUCIANO OLIVEIRA MATTOS DE SOUZA é promotor de Justiça da 1 Promotoria Regional de Proteção aos Direitos Difusos em Cabo Frio/RJ.

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O barão Haussmann


Jornal O Globo, sexta-feira, 2 de agosto de 2002

O barão Haussmann

Arthur Dapieve

Os bulevares e as avenidas de Paris são tão espetaculares que, num instante de vertigem, somos tentados a julgá-los eternos, à moda rodriguiana. Eles, porém, não existem desde 40 minutos antes do Nada. Para uma cidade de mais de 24 séculos de história, tal face monumental é até bastante jovem: ano que vem seu nascimento estará completando meros 150 anos. Embora nos momentos de pico os trabalhos de reconstrução tenham chegado a empregar um quarto da mão-de-obra local, pode-se dizer que a presente capital francesa é obra de um único homem: o barão Georges Eugène Haussmann.

No poder absoluto desde 1852, o imperador Napoleão III, sobrinho do célebre baixote corso, no ano seguinte nomeou Haussmann para chefe do Departamento do Sena, supercargo que a rigor unificava o de prefeito de Paris, o de planejador-chefe da cidade e o de ministro de Obras Públicas. O barão exerceria essas funções por 17 anos. Se hoje quedamo-nos à mesa de um café na calçada do Boulevard Saint-Germain, folheando um jornal ou simplesmente observando os passantes, devemos este pequeno grande prazer da vida à revolução urbanística empreendida a ferro, fogo e macadame por Haussmann.

Por ironia, a revolução urbanística era movida — também, mas não apenas — por uma contra-revolução política. Antes do Segundo Império, Paris ainda era uma cidade medieval, cheia de velhos bairros assemelhados a favelas em suas áreas centrais. Suas ruelas eram propícias a que, em caso de revolta popular, erguessem-se barricadas, o que ocorrera nas revoluções de 1830 e de 1848. O novo sistema viário imaginado por Haussmann visava permitir que as tropas pudessem se deslocar rapidamente de um canto a outro da cidade. E os longos e retos bulevares e avenidas, em alguns casos com 100 metros de largura, quase impossibilitavam o aparecimento das barricadas temidas pelo imperador, além de facilitar a ação das cargas de cavalaria e da artilharia pesada.

(Uma consulta ao “Houaiss” quanto à etimologia da palavra portuguesa bulevar, vinda da francesa boulevard , mostra ser esta derivada do termo medieval bolevers , “obra de defesa” ou “fortificação exterior de uma praça forte constituída por um terrapleno diante das muralhas”. Bolevers , por sua vez, era proveniente do holandês bolwerc , “bastião”.)

O barão, contudo, enxergava muito além dos imperativos políticos de ocasião. A sua Paris foi concebida para ser também bela, afluente e vigorosa. As obras que abriram 95 quilômetros de novas ruas — e sepultaram 50 quilômetros de ruas antigas— permitiram que a cidade se enxergasse melhor, circulasse melhor e se cuidasse mais. Prédios públicos, monumentos e parques foram postados como clímaces dos bulevares e avenidas. Pessoas e coisas passaram a transitar com mais desembaraço, estimulando a interação social e a atividade econômica. A saúde da população melhorou, graças à rede de esgotos e à coleta de lixo. Esse último ponto não deve ser subestimado: quem já ficou fechado num vagão de metrô cheio de nativos entre as estações Filles du Calvaire e Billancourt sabe o quanto aquela cidade ainda pode ser insalubre.

Ao analisar como a poesia de Baudelaire reflete o nascimento da nova Paris em “Tudo que é sólido desmancha no ar — A aventura da modernidade”, o americano Marshall Berman assinala: “Ele pôde ver-se não só como um espectador, mas como participante e protagonista dessa tarefa em curso; seus escritos parisienses expressam o drama e o trauma aí implicados. Baudelaire nos mostra algo que nenhum escritor pôde ver com tanta clareza: como a modernização da cidade simultaneamente inspira e força a modernização da alma dos seus cidadãos.” Pouco adiante, Berman escreve, referindo-se a Haussmann: “O empreendimento pôs abaixo centenas de edifícios, deslocou milhares e milhares de pessoas, destruiu bairros inteiros que aí tinham existido por séculos. Mas franqueou toda a cidade, pela primeira vez em sua história, à totalidade de seus habitantes. Agora, após séculos de vida claustral, em células isoladas, Paris se tornava um espaço físico e humano unificado.”

Haussmann foi implacável. Botou abaixo até mesmo a casa em que nascera. Abriu, entre outros, os bulevares Sébastopol, Voltaire e Magenta, as avenidas Foch, Kléber e Victor Hugo, as ruas de Rennes, des Ecoles e parte da Rivoli. Naturalmente, o tempo, os automóveis e os novos conceitos de urbanismo se encarregaram de aposentar muitas das idéias do barão. Entretanto, o impacto da sua obra foi enorme e duradouro, refletindo-se, por exemplo, em Viena e em Barcelona. Também o Rio do prefeito Pereira Passos (1903-1906), rasgando a Avenida Central, hoje Rio Branco, ecoou Haussmann.

Toda essa história para dizer o seguinte. A transformação do Rio de Janeiro — e falo da cidade onde nasci, mas creio que isso se aplica a São Paulo e a Belo Horizonte — de uma “cidade partida” num “espaço físico e humano unificado” passa não apenas pela repressão policial e pela inclusão social das comunidades carentes. Passa, também, pela gigantesca tradução urbanística, arquitetônica e ambiental disso. Senão, a maior parte dos cariocas continuará a viver espremida entre o laissez-faire das favelas transformadas em feudos pelos traficantes e o dos condomínios fechados transformados em feudos pelas elites.

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O Programa Favela Bairro- uma avaliação

http://www.angelfire.com/pq/favelabairro/artigos/rmrj.favela.pdf

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TEMA EM DEBATE - FAVELAS - Um risco - Volta ao passado

Jornal O Globo, Opinião, segunda-feira, 21 de abril de 2003

NOSSA OPINIÃO

Um risco

Cerca de 80% da população vivem hoje em áreas urbanas, sendo que metade delas encontra-se nas regiões metropolitanas. Esse processo de urbanização e concentração demográfica ocorreu de forma impressionante e se explica pela busca de melhores condições de vida por parte das camadas mais pobres da população que historicamente estavam nas zonas rurais.

As regiões metropolitanas concentram a maior parcela da renda nacional. Não há, então, alternativa para o migrante. Ele precisa ir para as grandes cidades, onde de fato encontrará mais oportunidades do que em sua terra natal. No entanto, o custo de moradia em cidades grandes é alto, de modo que as pessoas de baixa renda acabam sendo empurradas para a ocupação irregular de terrenos. Esse processo poderia ter sido minimizado se o poder público (nas diferentes esferas de governo) tivesse sido mais rigoroso no acompanhamento da urbanização e dado mais atenção a políticas de habitação popular.

O problema de fato é complexo, pois em certos casos a concessão de facilidades pode até se tornar um chamariz para as regiões metropolitanas. Esse é um risco que existe com o programa de regularização de favelas. A titularidade deve ser reconhecida apenas em comunidades estabelecidas há anos e onde não haja ocupação em áreas de risco.

Se o reconhecimento de posse for indiscriminado, o que veremos é um crescimento exponencial das ocupações irregulares e favelas. Em vez de solucionar o problema, ele será agravado. Aumentará a desigualdade social e ainda se abrirão novas áreas para a atuação de criminosos.

OUTRA OPINIÃO

Voltar ao passado


AFONSO KUENERZ

As grandes cidades brasileiras estão hoje circundadas por comunidades de baixa renda que constituem imenso foco de problemas. Visando a melhorar as condições de vida dos que ali moram, o governo federal pretende conceder títulos de propriedade nas favelas. É uma iniciativa de grande alcance social, pois as pessoas ficarão livres do risco de remoção, cuidarão melhor de suas moradias, com reflexos positivos na auto-estima e na cidadania. É, porém, uma medida que não toca no descompasso entre as exigências municipais de infra-estrutura para novos loteamentos e o poder aquisitivo de grande parcela da nossa população.

Até a década de 1970, as obrigações mínimas para loteamentos populares eram a abertura de ruas de saibro, a demarcação dos lotes, a rede de alimentação de água e um projeto que permitisse a drenagem natural. O preço dos lotes era acessível; os interessados faziam um esforço para comprá-los, construíam um pequeno módulo inicial, muitas vezes em mutirão, e, mais adiante, faziam outros melhoramentos e ampliações. Eram legítimos proprietários dos imóveis; pagavam impostos, se organizavam em associações de moradores. Com o tempo, comércio e serviços se instalavam, a prefeitura urbanizava ruas, e os bairros se valorizavam, tornando-se excelentes lugares de moradia. A Freguesia do Ó, em São Paulo, e Samambaia, em Brasília, são apenas alguns dos milhares de exemplos de bairros assim criados.

No embalo do “milagre econômico” da década de 70, o carro foi colocado à frente dos bois. A partir de 1972, as prefeituras passaram a exigir do loteador infra-estrutura completa: asfaltamento das ruas, meio-fio, calçadas em concreto, redes de drenagem de águas pluviais, de esgoto, de gás, de força, iluminação pública e arborização. Com isso, cessou a oferta de lotes para a população de baixa renda, pois esta não tinha poder aquisitivo para pagar por toda essa infra-estrutura. A maioria das empresas loteadoras encerrou suas atividades; outras bandearam-se para a ilegalidade. A favelização expandiu-se, com suas desastrosas conseqüências. As razões para essas exigências das prefeituras são óbvias: evitar que o custo da urbanização recaia sobre seus orçamentos. O tiro, porém, saiu pela culatra. Elas deixaram de receber os impostos prediais de grande parte da população, e acabaram tendo que arcar com custos muito maiores de urbanização, pois urbanizar a desordem é mais caro. Torna-se urgente um retorno à forma antiga de urbanização.
AFONSO KUENERZ é arquiteto.

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Romper o cerco

Jornal O Globo, Editorial, 07 de maio de 2003

ROMPER O CERCO


Na pesada atmosfera de violência que se abateu sobre o Rio, os cariocas aprenderam cedo a distinguir dois tipos de comportamento. Primeiro: os criminosos quase sempre cumprem suas ameaças. Segundo: as autoridades quase nunca cumprem suas promessas. Por isso, quando bandidos mandam fechar, cria-se um penoso dilema.

Em tese, a resposta sobre o que fazer diante da ordem que vem dos morros está na ponta da língua de qualquer um. É claro que não se deve obedecer. Permitir que traficantes decidam quando o comércio abre, quando as escolas e os hospitais funcionam, seria uma abdicação coletiva, uma deserção suicida,
um acovardamento de gravíssimas conseqüências. Mas a realidade é mais complexa e cruel. Mesmo reconhecendo que a ordem é de um atrevimento inominável, todos sabem que desobedecê-la implica risco de vida.

No caso do ataque à Universidade Estácio de Sá, não havia o que discutir. Quando traficantes do Morro do Turano ordenaram o fechamento, diz a direção que não houve sequer tempo hábil para mandar os alunos de volta sem causar pânico. Os bandidos abriram fogo e uma aluna foi gravemente ferida. Mas é evidente que há medidas urgentes a serem tomadas para que os alunos não continuem expostos, e a universidade possa funcionar.

A gravidade do crime dá ao novo secretário de Segurança, Anthony Garotinho, a oportunidade de mostrar, exemplarmente, que o governo tem uma resposta à altura e é capaz de acuar os criminosos, em vez de permitir que eles mantenham a sociedade acossada e intimidada. Ninguém precisa lhe dizer que a primeira providência é prender rapidamente os responsáveis - de preferência em questão de horas. Esse deve ser o recado enérgico da autoridade a traficantes encastelados em favelas ou, o que é ainda mais inconcebível, em
presídios.

É hora também de pensar numa solução radical e definitiva - que não precisa ser desumana - para as favelas que pela localização se tornaram fortalezas inexpugnáveis do tráfico. É impensável - mais que isso, é inadmissível - que a cidade permaneça em sua linha de tiro, como animal a caminho do abatedouro.

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O Rio de Janeiro para principiantes

http://www.nominimo.com.br

 

O Rio de Janeiro para principiantes

04.Mai.2003 |  Maus tempos aqueles em que o carioca, em vez de linchar tubarão, se ofendia quando um forasteiro lhe perguntava se nas ruas do Rio de Janeiro transitavam cobras. Transitar, elas nunca transitaram. Mas esse já foi um modo de insinuar que a cidade ainda mal saíra do mato, num tempo em que nada ofendia mais o civismo urbano do que ter um pé no sertão bravio.

Hoje estão ambos vingados. Se a cobra visitasse a cidade atualmente, encontraria os turistas à sua espera, com todo o equipamento que promove a modalidade esportiva o exercício de sobrevivência na selva: uniforme cáqui,
chapéu de explorador, guia fantasiado de mateiro e jipão camuflado. Só falta a cobra.

E o carioca aprendeu a ganhar dinheiro com o que em outros tempos usava só para escovar os brios da cidade. Os estrangeiros querem visitá-la como se estivessem entrando em Tikrit? Não seja por isso. Estamos aqui para lhes mostrar tudo o que o Rio de Janeiro tem de bravio e exótico. A começar, naturalmente, pelas favelas, que antes os guias turísticos tentavam apagar dos morros com retoques fotográficos.

A Jeep Tour, agência desbravadora do ecoturismo no asfalto, comprou dez anos atrás os primeiros veículos 4x4 para levar à floresta da Tijuca os delegados da Eco-92 e acabou topando no alto do morro com a atração internacional da Rocinha. Diz ela, em sua página na internet: "Satisfazendo a curiosidade de turistas, visitamos uma comunidade carente e desenvolvemos um projeto social em uma área marginalizada, berço do carnaval e fonte de mão-de-obra para a cidade (motoristas, porteiros, camareiras, domésticas etc.), possibilitando um maior contato com as raízes do povo brasileiro".

Reconhecer que as favelas fazem parte do cenário carioca parece um grande negócio, além de ser socialmente saudável e turisticamente simpático. Umadécada depois a Jeep Tour tem 15 representantes no Rio. Enfrenta a
concorrência de pelo menos duas firmas rivais. E nem por isso se queixa de ociosidade em sua frota de "30 jipes militares, com capacidade e segurança para 200 passageiros, uma equipe de motoristas treinados e guias poliglotas, e um conjunto de itinerários dedicados ao ecoturismo".

Quais? Há, por exemplo, a Trilha da Borboleta Azul, que termina numa cachoeira em Angra dos Reis, com "água cristalina" e uma "verdadeira hidromassagem". A Costa Verde, no litoral fluminense, onde "o contraste do azul do mar e o verde das montanhas oferece uma paisagem deslumbrante". Ou o Circuito do Café, em Barra do Piraí, para "observar todo o luxo e esplendor em que viveram os primeiros barões do Brasil".

Mas, até pelo lugar que ocupa em sua publicidade, o prato de resistência desse cardápio é mesmo a favela - "a maior da América do Sul", promete a agência, com certo ufanismo. Seu programa oferece um mergulho na rotina da Rocinha, "com visita a casas de moradores, creches e escolas, caminha por entre as vielas e pelo centro de comércio do bairro", além de conhecer o galpão da escola de samba e uma feira-livre com "comidas, bebidas e artigos de artesanato da região Nordeste".

Dizem os guias que eles chegam a trabalhar com 600 turistas por mês. Os carros usados nessas ocasiões são invariavelmente relíquias das forças armadas compradas em leilões de sucata, como o caminhão Dodge M-601 ou a picape F8s FF-220. Quase sempre viajam em caravana, parecendo uma tropa de ocupação. A clientela, geralmente vestida a caráter, vai empoleirada em caçambas abertas, desfraldando cabeleiras louras ao sol e ao vento. Os grupos não poderiam ser mais espalhafatosos no asfalto. Mas na favela parecem invisíveis.

Quantas vezes a Jeep Tour e sua carga de turistas tiveram problemas com assaltos, balas perdidas e traficantes encastelados em seus feudos, nesses dez anos de operação? "Nenhuma", responde o recepcionista. E qual o segredo de tamanha imunidade? "Empregamos de preferência motoristas e cicerones contratados na própria favela. Sabemos onde ir, onde fotografar. Ou seja, tomamos cuidados normais", ele garante.

Há qualquer coisa de estranho, como se vê, na violência carioca. Ao contrário das cobras, ela anda mesmo solta nas ruas. Mas, de perto, é muito bem amestrada.

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Entrevista com o Prefeito Cesar Maia

 

Jornal O Globo, domingo, 18 de maio de 2003

ENTREVISTA COM CESAR MAIA


'Favelas afastaram empresas'

Para o prefeito Cesar Maia, a Zona Norte tem chances de crescer com comércio, indústria e entretenimento. No entanto, ele destaca que as favelas afastaram empresas.

Em que setores a Zona Norte pode se desenvolver?

CESAR MAIA: A construção do Estádio Olímpico, no Engenho de Dentro, e a reestruturação do Pavilhão de São Cristóvão (que vai se transformar no Centro de Tradições Nordestinas) vão impulsionar o comércio, o entretenimento e a indústria.

Mas a região tem muitas áreas abandonadas.

CESAR: A Zona Norte já foi o pólo da indústria no Rio e hoje tem muitas áreas decadentes. A proximidade de favelas afastou os empresários, mas isso agora pode mudar. O Makro (rede de supermercados de São Paulo) comprou um terreno na Avenida Itaóca e, em breve, vai se instalar no local.

O senhor conhece de perto os problemas da região?

CESAR: A Zona Norte é de extrema importância para a cidade e sempre foi priorizada, desde o meu primeiro governo. O Favela-Bairro feito em mais de 70 comunidades da região é um exemplo.

Então, as prioridades são as favelas?

CESAR: Não. O Rio Cidade é um grande projeto e a Zona Norte foi priorizada também. Hoje ainda estão em andamento Méier II, Madureira II e Marechal Hermes. O de Irajá foi o mais detalhado de todos.

A ocupação irregular na região é uma realidade. Há projetos de transferência dessas famílias para outras áreas?

CESAR: Temos dois tipos de ocupação: a irregular em áreas privadas como galpões abandonados e aquelas em locais de risco. No caso de terrenos particulares, como na antiga fábrica da CCPL, em Benfica, não temos o que
fazer. Depende de o proprietário tomar uma atitude. A Leopoldina é uma área cujo crescimento deste tipo de ocupação foi o maior que tivemos.

Hoje as principais vias da Zona Norte são alvos da violência. O que a prefeitura pode fazer para ajudar a controlar a insegurança?

CESAR: As linhas Amarela e Vermelha e a Avenida Brasil poderiam ser patrulhadas pelo Exército. A Avenida Pastor Martin Luther King Jr. (antiga Automóvel Clube) também precisa de reforço porque é perigosa. A prefeitura vai repassar R$ 100 milhões ao governo do estado para serem usados em projetos de segurança pública na cidade.

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Mea-culpa

Jornal O Globo, Editoria, terça-feira,  20 de maio de 2003

Mea-culpa

A NOVA arma da prefeitura para deter a favelização parece ser o
reconhecimento de um fracasso. Liberar a ocupação do Alto da Boa Vista para
residências de classe média deve funcionar, de fato, como antídoto eficaz
contra os barracos. Pois, como reza antiga lei da física, dois imóveis não
ocupam o mesmo lugar no espaço.

MAS, NA prática, o resultado final pode ser o mesmo: desmatamento,
edificações pouco seguras e a invasão de áreas que deveriam ser preservadas
para o bem dos mananciais e da cobertura vegetal ---- portanto, para o
próprio bem da população.

POR VIAS transversas, a prefeitura admite ser incapaz de conter a
favelização. Radicalizada, essa política poderá destruir a Floresta da
Tijuca.

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Favela e populismo

Jornal O Globo, Rio, sexta-feira, 23 de Maio de 2003

Opinião

Favela e populismo

AS FAVELAS sempre foram campo de caça de votos para políticos populistas. Na
troca do assistencialismo (muitos vezes inevitável) por apoio em dia de
eleição, várias dessas comunidades foram sendo mantidas penduradas nos
morros, geralmente em áreas de preservação florestal.

E ASSIM a deterioração na qualidade de vida passou a ser democratizada entre
toda a população carioca. Ao agir com rigor, como no caso das favelas da
Vila Alice, em Laranjeiras, e Pinheiro Guimarães, em Botafogo, onde barracos
de madeira e "puxadinhos" de alvenaria foram demolidos, a prefeitura ajuda a
quebrar essa lógica nefasta.

MAS NÃO se tem a garantia de que essa saudável preocupação em conter a
favelização vingue e vá adiante. Pois ainda há quem adote aquela nefasta
maneira de fazer política junto aos pobres.

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TEMA EM DEBATE - FAVELIZAÇÃO

Jornal O Globo, Opinião, 24 de maio de 2003

TEMA EM DISCUSSÃO: FAVELIZAÇÃO


Regra para todos

Triste marca da cidade, a favelização volta ao debate a partir da proposta da prefeitura do Rio de evitar a ocupação desordenada do Alto da Boa Vista pela liberação da construção de imóveis de classe média nas encostas do bairro, numa das fronteiras da Floresta da Tijuca. O projeto faz lembrar uma peculiaridade carioca: ao contrário de cidades do Primeiro Mundo com topografia semelhante, no Rio quem mora no alto são os pobres e, na planície, os ricos. A disponibilidade de terrenos nos morros, a distribuição espacial do mercado de trabalho na cidade, entre outros aspectos, ajudam a explicar essa característica.

Mas como não será o franqueamento dos morros às classes mais abastadas que fará desaparecer as famílias carentes e o déficit habitacional nas faixas mais pobres da população, a idéia da prefeitura merece mesmo ser discutida.

O primeiro questionamento refere-se à preservação das áreas verdes do Rio. E nesse ponto a autoridade não deve transigir: se a vegetação nessa ou naquela área precisa ser mantida por razões técnicas, a proibição para construções tem de valer para ricos e pobres. Uma política que libere encostas para a classe média, porque ao menos parte da vegetação será mantida, equivale a admitir que o poder público é incapaz de conter a favelização.

Além disso, nada garante que as favelas pararão de crescer - até ficarem parede com parede com as residências de classe média. O problema da favelização parece ser mais complexo do que a solução simples de acabar com
os espaços disponíveis para os barracos.

COM CRITÉRIO


Durante décadas as encostas cariocas foram alvo de dois tipos de ocupação predadora: agressivos projetos da construção civil, insensíveis à beleza carioca, e a expansão das favelas, que se intensificou fortemente a partir
do início dos anos 80. O despertar ambientalista, a partir daquela década, levou a progressivas medidas de preservação que acabaram inviabilizando os famosos espigões nas encostas.

No período mais recente a ameaça maior passou a vir do crescimento explosivo das favelas. Em diversas áreas da cidade restrições demasiado fortes à construção legal e a desvalorização de áreas próximas a favelas levaram ao abandono de lotes de edificabilidade muito restrita que acabaram virando presa da chamada ocupação informal, às vezes promovida pelos seus próprios donos.

Há alguns anos surgiram propostas para a liberação de pequenos condomínios, em áreas altas, onde, hoje, só é permitida uma única casa em um grande lote. Seria uma forma de viabilizar economicamente uma ocupação regular como anteparo à favelização. Embora concorde com esse tipo de solução em alguns lugares, sempre fui contrário à sua generalização indiscriminada por toda cidade, pois em outros poderia ter resultados diametralmente opostos ao pretendido. Em áreas bem preservadas com vegetação densa isso seria
problemático, podendo, inclusive, gerar favelização na medida em que a abertura de novos logradouros, acima da cota 100, aliada ao afluxo da mão-de-obra desses empreendimentos, poderia, eventualmente, propiciar focos de informalidade construtiva nas imediações. Já noutras áreas esta flexibilização pode ser bastante positiva, viabilizando economicamente a construção de várias casas ou mesmo de pequenos prédios em grandes lotes, hoje unifamiliares, pouco arborizados, degradados e potencialmente ameaçados de favelização.

Não deve haver um critério uniforme, pois temos situações bem diferenciadas. Há bairros onde isso pode ser positivo e outros onde pode ser perigoso. Penso que o Alto da Boa Vista e Santa Teresa são exemplos do primeiro caso e a Gávea e o Jardim Botânico do segundo. A discussão sobre isso deve ser criteriosa e, sobretudo, participativa. A população dos bairros precisa ser ouvida. Associações de moradores, proprietários, construtores, ambientalistas, todos devem debater. Do estudo cuidadoso e da discussão aberta e transparente surgirão as boas soluções.

Alfredo Sirkis
Secretário Municipal de Urbanismo

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Fiscalização e favelas

Jornal O Globo, Opinião, quarta-feira, 04 de junho de 2003

FISCALIZAÇÃO E FAVELAS

ALFREDO SIRKIS é secretário municipal de Urbanismo.


A discussão sobre favelas vem produzindo uma cacofonia pouco esclarecedora, cuja última novidade é a volta da proposta de "erradicação" dos anos 60.

Cerca de 40% do total de edificações no Rio são irregulares. Um milhão de pessoas mora nas mais de 700 favelas cariocas. O grande desafio é estabelecer um divisor de águas entre passado e futuro, e não permitir que a regularização urbanística e fundiária seja estímulo para uma subseqüente expansão da informalidade, cada vez menos produto dos sem-teto e cada vez mais de um empresariado pirata da construção civil.

Uma relativamente pequena parte das edificações informais terá que ser removida, e seus moradores realocados o mais perto possível, por se encontrar em área de risco, logradouro público ou ser irremediavelmente insalubre. Por outro lado, regras anacrônicas precisam ser revistas para facilitar a construção dentro da lei.

Vários instrumentos vêm sendo aplicados: a instalação dos ecolimites (cabos de aço e marcos) cercando as favelas, inibindo o crescimento horizontal; a negociação com as comunidades, de pactos de auto-regulação do crescimento, em troca de projetos geradores de renda, como são os mutirões remunerados de
reflorestamento, saneamento e catação de lixo; e as próprias melhorias do Favela-Bairro, além da elaboração de normas urbanísticas e ambientais para cada comunidade. A contenção do crescimento vertical é mais difícil, mas
pode ser conseguida, a médio prazo, ao criar-se o hábito de construir dentro da lei.

Mas nada disso funcionará se não houver uma política nacional de habitação para os mais pobres, com crédito, lotes urbanizados e estímulos para investimentos em imóveis para baixa renda.

O que mais se lê, em reportagens e nas declarações de palpiteiros, é que "falta fiscalização". Apesar das carências de efetivo e da escala do problema, a fiscalização urbanística consegue identificar e autuar a grande
maioria das obras irregulares. Em 2002, a SMU lavrou 4.871 multas. Aparentemente elas não doem o suficiente no bolso dos infratores da cidadeformal, e são simplesmente ignoradas por aqueles da informal.

Tramita na Câmara de Vereadores um projeto de lei agravando substancialmente multas por infração urbanística. No passado, os embargos da SMU eram impunemente desrespeitados. Atualmente, com apoio policial, multiplicam-se prisões por desobediência e procedimentos criminais. Mas mesmo isso não
assusta os mais recalcitrantes, pois depois da visita à delegacia ninguém permanece preso.

Foram 1.105 embargos, em 2002. No nosso país, é singularmente difícil punir pequenos crimes e incivilidade. Seria importante instituir tribunais especiais capazes de julgá-los no mesmo dia, como acontece em países
civicamente mais avançados.

Nas favelas os mecanismos formais de fiscalização e suas conseqüências administrativas têm pouco efeito. O problema não é a falta de fiscalização, mas a ausência de mecanismos eficazes de repressão.

O poder público, evidentemente, não pode adotar a "lei do morro", pela qual coíbe-se com eficácia, na favela, do pequeno furto à paquera da mulher alheia. São punições selvagens que não podem fazer parte do arsenal do
estado de direito.

A única arma relativamente eficaz são as demolições administrativas. Elas funcionam especialmente contra edificações em construção, ocupações não consolidadas, que possam ser contidas no nascedouro. Precisariam ser complementadas por um trabalho sistemático de indiciamento criminal dos construtores piratas, que é uma tarefa da polícia e do Ministério Público.

Demolições exigem considerável tempo de preparação, mobilização significativa de máquinas e efetivos; dependem da coordenação de diversos órgãos e do apoio das polícias. Funcionam sobretudo como exemplo e
dissuasão. Não é viável realizá-las todos os dias nem em todas as situações.

A mídia, que cobra providências, freqüentemente estigmatiza estas operações - vide a reportagem sobre o tratorista baiano glorificado por obstruir uma reintegração de posse judicial - e o próprio Judiciário amiúde
concede liminares aos infratores até mesmo de edificações em construção.

No caso de moradias ocupadas, é obrigação do poder público encontrar alternativas de residência ou uma compensação aos ocupantes, por mais ilegal que seja a construção. Isso envolve recursos, longas negociações e sempre frustra a ansiedade de quem cobra resultados mais expeditos.

Há forças políticas populistas que promoveram ativamente processos de favelização ou loteamento clandestino, visando à formação de clientelas eleitorais. Há advogados, policiais e magistrados protegendo essas atividades.

Finalmente, é preciso colocar tudo isto no contexto de uma cidade na qual as favelas estão, em grande parte, controladas por traficantes com armamento de guerra que praticam, todos os dias, impunemente, os mais bárbaros crimes, e alimentam um caldo de cultura favorável aos crimes menores, à incivilidade e à bandalha generalizada.

Quando o Estado não controla o armamento de guerra nem a totalidade do território, o desafio à autoridade espraia-se em todos os níveis. A ocupação do espaço urbano não escapa dessa lógica e toda ação destinada a defendê-lo vira parte da guerra. Quem não puder ajudar que, pelo menos, não atrapalhe.

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Sob o império da Lei

Jornal O Globo, domingo 03 de agosto de 2003
SOB O IMPÉRIO DA LEI
Ainda meio inseguro quanto à compreensão do que pretendo escrever abaixo, taquei o título aí em cima e continuo inseguro, embora um pouco menos. O título parece com os dos filmes de caubói de antigamente, quando cidades do tempo do bangue-bangue nos Estados Unidos viviam entregues a bandidos que usavam tiros até para matar baratas (Glenn Ford uma vez matou uma, enquanto relaxava numa banheira, com o inseparável Colt 45 ao lado; assisti pessoalmente, embora não lembre o título do filme) e temo que o que vou dizer seja tido como uma exortação à transformação dos nossos grandes centros urbanos em cidades do faroeste.

Mas claro que não farei uma exortação desse tipo e a razão é bastante simples. Em primeiro lugar, o que parece não ter importância alguma, sou contra a violência. Em segundo lugar, menos um pouco desimportante, estamos há muito tempo em falta de mocinhos, em todos os níveis de governo. E, agora sim, importante, já vivemos nessa situação há muito tempo. Somos cidades de faroeste, diferençadas apenas por detalhes, como carros e motocicletas, em vez de cavalos, e a ausência de coldres recheados à mostra. De resto, basta pensar e ver que, em cidades onde morre mais gente baleada do que em países em guerra, só podemos ser uma espécie de faroeste.

Já nos acostumamos e por isso mal notamos. Quem nota e pode, vai morar em fortalezas ou complexos penitenciários, eufemisticamente rotulados de “condomínios”, mas na verdade com mais segurança do que a velha Alcatraz, embora inútil pois às vezes os próprios agentes dessa “segurança” estão por trás ou ao lado de sua violação. Quem pode, dá no pé e vai morar em algum país no qual não seja necessário rezar sempre que um filho vai à rua e um celular para cada um desses filhos não é considerado equipamento de segurança indispensável. Quem chega de fora fica assombrado em ver o número de grades pelas quais tudo é cercado, de edifícios a praças públicas, como se fosse normal o cidadão viver por trás de grades, enquanto o pau come solto lá fora.

Nossas medidas pessoais de segurança já estão ficando tão arraigadas que achamos que elas fazem parte natural da vida. E encontramos sempre gente para dizer que nossas cidades são iguais a quaisquer outras grandes cidades do mundo, o que patentemente não é verdade. Acontece todo tipo de crime em muitas cidades grandes e civilizadas no exterior, mas há poucas como, por exemplo, Rio e São Paulo. Não é normal o sujeito ter de andar com documentos e, para não tê-los furtados, ser aconselhado pelas autoridades a portar cópias desses documentos. Não é normal ver a luz verde acesa para os pedestres e esperar que os carros parem mesmo, para ousar atravessar a rua. Não é normal o kit-assalto que muita gente já usa, o qual inclui desde as mencionadas cópias de documentos a bolsos nas cuecas, dinheirinho para o assaltante, relógio para o assaltante, companheiro para ficar do lado de fora enquanto a gente tremulamente vai a um caixa eletrônico, dinheiro maior entre a meia e o sapato e um terço rezado pelas mães, enquanto os filhos adolescentes vão a uma festinha.

Chega dessa besteira de dizer que isso também é normal em Nova York, Paris ou Miami, porque não é. Tampouco é normal ter medo da polícia e de parar para a fiscalização, achando que se trata de uma blitz falsa. Blindar carros de família também não é normal. Botar janelas à prova de balas em apartamentos não é normal. Ter delegacias de polícia invadidas não é normal. Ler todo dia sobre alguém que morreu por bala perdida também não é normal. Ter feriados decretados por bandidos não é normal. Armar guaritas de estilo militar e cancelas à entrada de ruas públicas não é normal.

Mas para nós ficou. E vai piorando. Nada impede, a não ser a organização de uma liderança suficientemente poderosa, que o Rio de Janeiro termine por ser inteiramente dominado por bandidos. Hoje, por exemplo, segundo me dizem, os policiais evitam usar suas identificações funcionais, porque quando chegar a normalíssima hora do assalto ao ônibus, à agência bancária ou mesmo à banca de revistas e os assaltantes descobrirem que um dos presentes é policial, o fuzilam na hora. E, também segundo me dizem, há policiais cujos salários os obrigam a morar em favelas perigosas que não podem deixar a farda lavada secando do lado de fora, para não descobrirem que ali mora um tira e o matarem, ou alguém da família dele.

Para resolver isso, que cresce como um câncer em metástase desenfreada, os governos oferecem palavrório e legislação. Devemos ter as leis mais avançadas do mundo e vêm vindo mais. Por exemplo — e chego finalmente ao ponto mais polêmico — agora o plano é desarmar os cidadãos, proibindo terminantemente o porte de armas, mesmo que exclusivamente dentro de casa. Não tenho arma e sou visceralmente contra seu uso, mas não sou maluco. O cidadão que respeitar a lei não terá mais arma em casa, ou nem mesmo no sitiozinho, onde relaxar virou privilégio de quem pode contratar seguranças e ter cachorros ferozes por tudo quanto é canto. Mas o bandido? Ah, este estará de agora em diante perdido, porque o novo dispositivo legal cerceará sua ação criminosa. Verdade que terá certeza de que poderá entrar na casa de qualquer cidadão ordeiro, porque esse cidadão não contará com uma arma para defender-se. Mas o bandido poderá ser facilmente vencido. Basta que se guarde um exemplar da nova lei para mostrar ao assaltante: “Olhe aí, diz aqui que é proibido o porte de armas.” “Ah, desculpe”, dirá o assaltante, pedindo licença para retirar-se e saindo sem bater a porta. “Foi mal, eu não tinha sido informado.” E não duvido nada que, se o cidadão tiver em casa um revólver, mesmo que não dê um tiro no assaltante, seja preso e processado inafiançavelmente, enquanto o assaltante, réu primário, servirá pena de dois anos em regime semi-aberto. Tudo sob o império da lei.

JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor.

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Desordem Urbana

Jornal O Globo, Opinião, terça-feira, 11 de novembro de 2003

DESORDEM URBANA

O programa Favela-Bairro encheu de esperança cariocas, e brasileiros de todos os cantos, principalmente os que vivem em cidades médias e grandes, e se sentem impotentes diante do ritmo acelerado de desordem urbana no país.

O Favela-Bairro partiu da realidade de que a grande maioria das habitações construídas nas últimas três décadas no Brasil o foi por iniciativa dos seus moradores, sem financiamento, acompanhamento ou orientação do poder público. Famílias de baixa renda construíram como puderam e nessas condições deixaram de lado o respeito a regras urbanísticas.

Os mais pobres acabaram construindo em áreas de risco, incluindo faixas de domínio de estradas e ferrovias. O programa Favela-Bairro, inicialmente voltado para pequenas comunidades, cresceu por ter se proposto a interromper esse processo. Favelas seriam (e várias de fato o foram) transformadas em bairros exatamente porque sofreriam intervenções urbanísticas do poderpúblico. Um dos principais objetivos do programa era  estabelecer limites para a favela, evitando a expansão desordenada e a reocupação de áreas de risco. O Favela-Bairro sem dúvida melhorou a qualidade de vida das comunidades atendidas. Mas o poder público não tem conseguido evitar a expansão e o surgimento de favelas. Até mesmo áreas em que a prefeitura e o
estado removeram barracos foram novamente ocupadas.

Essa situação atinge todas as regiões da cidade, e é mais grave nos chamados subúrbios da Central e da Leopoldina (além dos atendidos pela linha 2 do metrô), como constatou reportagem publicada no GLOBO na edição de domingo.

Tal desordem aparentemente decorre do empobrecimento de uma parcela da população. Pode-se então culpar o modelo econômico e cruzar os braços, o que só agravará o problema, pois a desvalorização dos imóveis, o clima de insegurança e o fechamento de empresas não levam, de forma alguma, a uma melhora das condições de vida dos mais pobres.

Ou agir enquanto é tempo, com intervenções diretas e firmes para as quais só o poder público tem autoridade e legitimidade de fazê-las.

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Crise urbana

Jornal O Globo, Opinião, quarta-feira, 31 de outubro de 2003

 

CRISE URBANA


A grande maioria dos brasileiros (cerca de 91%) vive em cidades. E em boa parte (40%) nas capitais e suas  periferias. Esse processo de urbanização ocorreu de forma acelerada, praticamente em quatro décadas. As cidades, em especial as metrópoles, não se prepararam para receber tamanha massa humana, e o resultado foi que se disseminaram ocupações irregulares nas áreas urbanas.

Os esforços para reordenar essas ocupações são relativamente recentes. No passado foram feitas remoções de favelas, sem se restabelecer antigos laços de vizinhança. Além da desagregação social, as comunidades resultantes dessa remoção acabaram se transformando em novas favelas, às vezes pioradas.

Programas como o Favela Bairro, da prefeitura do Rio, ou o Projeto Cingapura, de São Paulo, assim como iniciativas de outras cidades, somente ganharam impulso nos anos 90. Certamente contribuíram para diminuir o ritmo da favelização ou até contê-lo. No entanto, estamos ainda muito longe de resolver o problema. O déficit habitacional no Brasil passa de seis milhões e moradias. Mesmo nas faixas de renda alta, o número de imóveis é inferior ao de muitos países. E além disso, como acaba de mostrar o Censo de 2000, há enormes carências de infra-estrutura, principalmente saneamento: 54,1% dos domicílios são semi-adequados ou inadequados.

A eliminação do déficit habitacional caberá basicamente a iniciativas particulares, mas é o poder público que precisa ditar as regras para novas ocupações, além de fomentar construções por meio do crédito e de um regime tributário que estimule o mercado a buscar soluções. Cabe também ao poder público, e somente a ele, promover as intervenções necessárias para que áreas de risco e de proteção ambiental sejam desocupadas, além de avaliar se para as comunidades carentes é preferível fazer investimentos em urbanização ou se é melhor indenizá-las para que construam em locais mais apropriados.

Não se trata de tarefa fácil, mas que precisa ser encarada com urgência, pois as cidades correm o risco de se converter em grandes favelas.

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Favela Brasil

Jornal O Globo, Opinião, 14 de novembro de 2003

Favela Brasil


Basta visitar qualquer cidade grande ou média brasileira para se constatar que a favelização é uma doença urbana grave e em expansão por todo o país. O cenário desenhado pelos números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística não é desconhecido. O que não reduz a sua importância, pois chamam a atenção para a dimensão do problema. Longe de serem uma marca registrada do Rio - onde são mais visíveis por se misturarem com bairros abastados - os barracos tornaram-se um triste símbolo nacional.

Em 25% dos municípios existem favelas ou loteamentos irregulares - um dado subestimado, pois nem todas as prefeituras forneceram informações. O total desses domicílios precários passou de 921,7 mil para 2.362 mil, entre 1991 e 2001 ---- um salto dramático de 156%, indicador do agravamento da situação. E mesmo assim, 47% das prefeituras declararam não ter qualquer programa ou ação habitacional para as famílias pobres.

É previsível, portanto, que no próximo levantamento a chaga da favelização esteja maior. Mas culpar exclusivamente as prefeituras é simplificar a questão. Há inércia administrativa e manipulações populistas por trás desse processo de degradação das cidades. Mas não só.

Pressionadas pela mais avassaladora migração do campo para as cidades ocorrida no Ocidente no século XX, as regiões metropolitanas brasileiras foram invadidas por milhões de pessoas no espaço de tempo de pouco mais de uma geração sem que houvesse infra-estrutura para abrigá-las. Tentaram-se programas habitacionais, o maior deles centrado no BNH, que ruiu soterrado numa montanha de subsídios, grande parte deles apropriada pelas classes médias. A crise fiscal do Estado e a disparada da inflação acabaram por
soterrar as políticas habitacionais para a baixa renda. É preciso fazer o caminho de volta, sem cometer os mesmos erros, por óbvio.

A maioria dessa população, por insuficiência de renda, precisa de subsídio. Mas a batalha da habitação tem de ser travada com várias armas. A do crédito é apenas uma delas, necessária também para ajudar a formalizar a expansão imobiliária nessas áreas (pouco mais de 80% das construções no país são feitos sem controle, normas, à margem dos financiamentos).

Instrumentos como o Programa Favela-Bairro são indicados para resgatar da marginalidade as favelas já existentes. Urbanizar essas comunidades, formalizar a propriedade significa trazer amplas regiões das cidades para o mundo legal. E aqui o problema urbanístico se mistura com o da segurança. Pela dimensão dessa enorme e crescente favela nacional, o assunto precisa ser tratado como de emergência. Repete-se na habitação o que ocorre na segurança: o problema explode na frente de prefeitos, encurrala governadores, mas só com a participação do Executivo federal será possível formular e executar planos com a abrangência necessária.

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Os brasileiros da riqueza invisível

                                  Retirado do site: http://www.nominimo.com.br

Segunda-feira, 24 de novembro de 2003

Os brasileiros da riqueza invisível

XICO VARGAS

24.Nov.2003 |  Mais que o arrebatamento a que o presidente Lula leva platéias mundo afora, o sucesso brasileiro mede-se nesses últimos tempos pelos dólares que transbordam da balança comercial:  quase 24 bilhões de dólares de saldo.  São números estonteantes para um país que acostumou seu povo a ouvir-lhe o nome associado à pobreza. O resultado das exportações em 2003 cresceu quase 30% sobre 2002.  É o maior dos últimos 14 anos.  Já imaginou?  Há gerações que nunca ouviram falar nisso. 
  • Somos campeões mundiais na soja. 
  • O comércio com a China opera em altíssima velocidade: 
    • cresceu 82% sobre 2002 ou 160% em relação a 2001. 
    • Não há mais o que vender aos chineses. 
  • Fomos os maiores exportadores de carne bovina do mundo este ano, batendo os Estados Unidos e a Austrália; 
  • 70% do suco de laranja consumido no planeta é plantado e industrializado por brasileiros;
  • a próxima safra de algodão deverá chegar a 1 milhão de toneladas e antes de estar toda plantada já vendemos 240 mil toneladas;
  • aumentamos em 44% as vendas de papel e celulose;
  • o frango bateu 1,5 milhão de toneladas vendidas em 2003. Quase 26% acima de 2002.
Parece piada, mas diz-se até que, se cada chinês que come frango resolver consumir mais um por mês, os brasileiros não voltarão a enxergar no prato o velho herói do Plano Real.  São os melhores das últimas duas décadas, os números que o país conheceu este ano.  Mas conheceu também os piores.

Os construtores dessa riqueza, que forrou o bolso da elite, na hora da ceia foram retirados da mesa e mandados dormir na favela. As contas que o IBGE serviu aos brasileiros neste fim de ano mostram que mais de 10 milhões de trabalhadores vivem em quase 2,5 milhões de barracos de 19.631 favelas cadastradas no país.  São os donos de um patrimônio invisível, como os moradores de Rio das Pedras, favela das que mais crescem no Rio de Janeiro. Ali, há dois anos, a arquiteta Lu Petersen, funcionária da prefeitura, tentava negociar com moradores instalados à margem da lagoa da Tijuca indenização pelos barracos e transferência para lugar próximo e melhor.  Na discussão, um impasse:  como o terreno não tinha consistência, era normal que as construções afundassem na lama.  Assim, podiam-se encontrar barracos que, na verdade, tinham dois, três andares chão adentro, como se fossem alicerces.  “Na hora de acertar o preço, o morador queria cobrar pelo barraco e pelos andares que estavam enterrados na lama”, conta Lu.  Não havia dinheiro que chegasse.

Esses são os brasileiros do movimento a esperança-é-a-última-que-morre.  Puseram gerações no mundo e as ensinaram a trabalhar. Tudo o que botam de pé torna-se acerto de políticas governamentais, como se a nação fosse o governo e não o seu povo. O que levam para casa, além de não entrar na conta, às vezes, desaparece na lama.  Com sorte, sobra-lhes a cama onde descansam o esqueleto. Ensurdeceram na ditadura ouvindo que deveriam bater a massa para ganhar uma fatia do bolo crescido.  Quando cresceu não receberam nem biscoito. Pior: foram empurrados para os mocambos, palafitas e barracos que se amontoam em 80% das cidades nas regiões metropolitanas do país. Na prática, não há cidade brasileira com mais de 500 mil habitantes sem um portentoso conjunto de favelas.

Em São Paulo e no Rio de Janeiro, nessa ordem, mora o maior contingente favelado.  Mas o IBGE encontrou no Sul a maior concentração de favelas (mais de 7 mil).  Justamente na região onde o poder público oferece as maiores facilidades para investimento na produção de bens e serviços.  Ou seja:  é ali que a elite proporcionalmente mais ganha e menos leva a mão ao bolso para distribuir.  A extraordinária riqueza de São Paulo também não alcança as 700 mil pessoas que se amontoam em cortiços, na capital, nem os 2 milhões que vivem nas favelas em 31 das 39 cidades da Região Metropolitana.  Nada muito diferente do Rio de Janeiro, onde só não há favela em um dos 19 municípios da Região Metropolitana. 

O Rio ganhou uma favela por mês nos últimos 10 anos. A Rocinha, uma das grandes da cidade, cresce à média de 300 famílias a cada dois anos, segundo levantamentos da Light. Em outra grande, a do Rio das Pedras, em Jacarepaguá, a associação de moradores avalia a expansão em cinco barracos por semana.   Ali, nos últimos anos, a prefeitura desenvolve em ritmo lento um programa chamado Favela Bairro, conjunto de iniciativas destinado a corrigir distorções e conter o crescimento das favelas cariocas. Segundo moradores, porém, a parte relativa a “conter o crescimento” está suspensa até as eleições.  São assim também as favelas brasileiras:  bolsões de votos administrados pelos governantes. “Há sempre uma troca de favores a serviço do interesse político”, como diz o sociólogo Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, professor da UFRJ e autor de “O futuro das metrópoles”, um dos textos mais competentes já produzidos sobre o assunto.

Como não param de crescer e multiplicar-se, as favelas brasileiras tendem a confirmar a previsão do relatório da ONU, segundo o qual essa população no mundo dobrará de tamanho nos próximos 25 anos.  Em São Paulo, na última década, 1,5 milhão de pessoas tornou-se morador de loteamentos ilegais, áreas desprovidas de qualquer sinal de infra-estrutura básica.  No Rio, o bairro do Itanhangá é bom exemplo desse ritmo.  Em 10 anos ganhou 11 favelas.  No bairro ao lado, Jacarepaguá, o maior símbolo de degradação urbana é Rio das Pedras.  Há 10 anos era um modesto aglomerado de casas de funcionários e aposentados de um clube de golfe e do Jockey Club.  Deitou braços sobre terrenos privados num morro e sobre as margens da lagoa da Tijuca. Em duas administrações municipais tornou-se um conglomerado de pobreza predominantemente nordestina. 

Por uma construção de tijolos sem revestimento, de 4x5 metros, 20 metros quadrados, portanto, paga-se em Rio das Pedras R$ 320,00 mensais.  Se for para o lado da lagoa, são grandes as possibilidades de afundar na lama. Nesse espaço, geralmente um quadrilátero de cortinas isola o vaso sanitário e o que sobra acomoda a vida de quatro pessoas.  Na Rocinha um quarto-e-sala chega a R$ 550,00.  Nos cortiços da rua da Abolição, no Centro de São Paulo, o aluguel não sai por menos de R$ 300,00, mais R$ 60,00 de “condomínio” que cobrem as despesas de água e luz (quando existe) nas áreas comuns.  Na favela do Vidigal, no Rio, a passagem do Favela-Bairro valorizou os imóveis e alargou a trilha da especulação imobiliária.  Como na favela do Jacarezinho, onde os aluguéis subiram de R$ 170,00 para R$ 220,00, ali romperam o teto de R$ 300,00 para R$ 350,00, mesmo preço de um apartamento de quarto-e-sala no condomínio Parque dos Passarinhos, na estrada de Jacarepaguá, bairro do Anil.

Aluguéis são o cravo final no calvário desses brasileiros.  É o item do orçamento que a cada ano amplia a leva de excluídos dos excluídos.  No Rio das Pedras criou o “pessoal do charco”, localizado ano passado por uma pesquisa da PUC vivendo em barracos de papelão e madeira junto ao canal que despeja os esgotos da favela na lagoa da Tijuca. Nas favelas da Zona Sul, quem já não consegue pagar aluguel mora nas areias das praias, sob as marquises ou nos buracos e cavernas da avenida Niemeyer.  Em São Paulo, a Companhia de desenvolvimento Habitacional e Urbano calcula em 13,5% o percentual de imóveis alugados nas favelas.  No Rio, o Instituto Pereira Passos, ligado à prefeitura, acredita que não ultrapasse 12%.  Há cinco anos, quando a prefeitura passou o trator na favela Roque Santeiro, construída sobre a pista de uma avenida, em Jacarepaguá, dos 86 barracos derrubados 29 pertenciam a Manoela Paes, moradora da rua Hilário de Gouvêa, Copacabana.  A propósito, foi a única que obteve uma liminar na Justiça e ficou com seus barracos em pé por mais 15 dias.

Sem solução à vista, a saída talvez esteja na defesa veemente que faz do jeito favelado de morar o arquiteto Sérgio Magalhães.  Gaúcho, instalado numa rua do Jardim Botânico, bairro da Zona Sul do Rio onde não resta espaço à favelização, Magalhães foi secretário de Urbanismo na administração Luiz Paulo Conde. De sua cadeira assistiu à degração de Rio das Pedras.  Recentemente escreveu um livro ("Sobre a cidade: habitação e democracia no Rio de Janeiro") em que declara a falência de todos os programas governamentais que até hoje tentaram dar casa digna ao brasileiro pobre. Magalhães defende o “protagonismo da família na decisão sobre a moradia”. Segundo ele, caberá a cada família a decisão sobre como, onde e em que condições morar.  Ao poder público restará seguir atrás, “para construir cidade onde as famílias já construíram suas casas, mesmo que precárias”.  Na prática, Magalhães prega a destruição das cidades tal como as conhecemos.  À primeira vista, pode parecer insanidade.  Quando teve a oportunidade de fazer algo pelo Rio, não fez muito mais do que dar passagem ao caos urbano que ainda hoje se vê.  Mas talvez valha a pena prestar atenção no que ele diz.  Nessa área a sabedoria popular é pródiga em frases e exemplos.  Uma delas diz:  “Maluco e relógio parado duas vezes por dia estão certos”.  

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O século da favela

Jornal O Globo, Opinião,  Segunda-feira, 3 de novembro de 2003

O século da favela
Sergio Magalhães


Com a divulgação dos dados brasileiros do século XX, o IBGE confirmou a derrota das políticas de habitação da República. Nesses cem anos, o Brasil tratou a habitação popular segundo dois modelos. Um absenteísta, outro autoritário. Ambos fracassaram.

Na República Velha (até 1930), o entendimento hegemônico era o de que a produção da moradia popular cabia aos capitalistas, que construíam para aluguel; cabia aos governos, regular e estimular essa produção. As moradias feitas pelo povo — favelas e cortiços — eram percebidas como “chagas sociais”, que precisavam ser “cauterizadas”, como disse Alfred Agache. Ao findar esse período, as favelas cariocas abrigavam 200 mil moradores.

A crítica política a esse modelo absenteísta levou o Estado Novo a defender o papel oposto: o governo é que deveria construir as moradias que o povo precisava. Com a Lei do Inquilinato (1942), que congelou os aluguéis, desestimulou a iniciativa privada a continuar produzindo para renda.

Através dos Institutos de Previdência e outros organismos, o governo ergueu grandes conjuntos residenciais, obedecendo a padrões arquitetônicos que distinguiam o país no pós-guerra. Permanecia a idéia de que o governo e os arquitetos é que sabiam como o povo deveria morar e, para ensiná-lo, expediam normas sobre como viver em um apartamento, como usar o vaso sanitário, quantos quilos de roupa poderiam ser lavados por dia nas lavanderias coletivas. Enfim, tudo perfeito.

Mas esse belo modelo produziu parte mínima das novas moradias necessárias. Coube ao povo continuar construindo do jeito que dava, nas favelas e sobretudo nos loteamentos irregulares da periferia.

O regime militar criou o BNH (1964), que passou a construir não mais para aluguel, mas para venda. Mas o modelo continuou o mesmo: os governos é que decidiam sobre a moradia popular. A tônica foram as remoções compulsórias de favelas e a construção de gigantescos conjuntos residenciais — agora sem a mesma qualidade. São desse período a Cidade de Deus e a Vila Kennedy.

Extinto o Banco, a Constituição de 88 reconhece o direito à cidade e à habitação, mas não constrói um novo modelo. Ao findar essa década, um milhão de cariocas morava em favelas.

Não obstante, desde o Estado Novo, o Brasil urbano construiu 35 milhões de novos domicílios. É uma fabulosa produção. Todavia, o modelo oficial constituiu fragoroso fracasso: somando-se todas as moradias construídas por todos os governos — federais, estaduais e municipais — todos os financiamentos dos Institutos e do BNH, toda a produção financiada pela Caixa e pelos bancos privados, somando todas as unidades produzidas pelos construtores com financiamento, resulta em menos de um quarto do que o Brasil urbano construiu. Isto é: 3 em cada 4 moradias foram responsabilidade exclusiva das famílias, sem crédito, localizadas, é óbvio, principalmente nas favelas e nos loteamentos da periferia. É por isso que, hoje, mais de metade da cidade é constituída por habitação na irregularidade.

O país continuará construindo 1,2 milhão de moradias urbanas por ano — independentemente dos planos governamentais. Será um investimento anual de R$ 30 bilhões, no mínimo.

Para alcançarmos um resultado em que todas essas novas moradias sejam legais, regulares, será preciso mudar o modelo que vigora desde o Estado Novo, paternalista e autoritário; tampouco serve o que vigorou nesta última década, quase tão absenteísta quanto o foi a República Velha.

Um novo modelo, republicano e democrático, precisará ser construído, que atenda ao interesse geral dos cidadãos e que esteja comprometido com a distribuição eqüitativa da condição urbana. Por certo, reconhecerá tanto o protagonismo da família na decisão sobre a moradia quanto a responsabilidade coletiva na produção da cidade.

O protagonismo das famílias significa crédito universalizado, elas decidindo onde, como e em que condições morar. (Não são os governos ou os empreendedores, que, monopolizando os financiamentos, devam decidir, como vigorou ao longo do século.) É claro, os recursos para o crédito serão coletivos, mas não serão públicos.

No entanto, os recursos públicos serão insubstituíveis no combate ao déficit urbano, isto é, para construir cidade onde as famílias já construíram suas casas, mesmo que precárias, mas não têm como construir as infra-estruturas e os serviços; logo, na urbanização dos assentamentos populares, favelas e loteamentos; nas redes de transporte de massa; na expansão dos serviços públicos, inclusive o de segurança, a todos os territórios urbanos, muitos deles verdadeiros territórios da anomia.

Não há milagres, como a utopia modernista acreditou, ao desejar uma cidade toda nova, perfeita, “revolucionária”, resultado de um gesto, da associação entre prancheta e governo.

Uma política habitacional que queira enfrentar os desafios do novo século necessariamente será múltipla, em resposta à complexidade da vida urbana. Não poderá mais ser decisão autoritária, centralizada, com os mesmos programas para todo o país.

A viabilidade de novos modelos está demonstrada empiricamente pela experiência da política habitacional do Rio, construída nos anos 90, reconhecida internacionalmente, com programas como Morar Legal (urbanização de loteamentos), Morar Carioca (cartas de crédito para as famílias), Favela-Bairro (urbanização de favelas consolidadas) e Morar Sem Risco (reassentamento).

Se o século XX viu a favela e o loteamento da periferia ser a solução que o pobre encontrou para participar da vida urbana, será que o século XXI alcançará a cidade com qualidade de vida bem distribuída? A 110 anos de República, saberemos construir um modelo republicano e democrático?

SÉRGIO MAGALHÃES é subsecretário estadual do Desenvolvimento Urbano do Rio de Janeiro.

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Entrevista com Sergio Magalhães

http://www.vitruvius.com.br/entrevista/magalhaes/magalhaes.asp

 
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