Artigos 2000, 2001

 logotipo de: Reinaldo Pinto

Página Inicial      Exercício de Cidadania       Manifesto    Plano Lucio Costa      Legislação    
  Ações Judiciais        Pareceres       Documentos      Denúncias      E-mails     Plantas      Fotos       Filmes        Artigos       Reportagens         Cartas          Propostas        Links                         Deixe sua mensagem 

 

ARTIGOS (2ª parte)
 

 Artigos de 2000

 
Tópico 1  Porque o Rio melhora
Tópico 2  Em defesa do Plano Lucio Costa
Tópico 3 Num novo panoramo urbano para o Brasil
Tópico 4 Miséria só acaba quando parar de dar lucro
Tópico 5 Um problema social
Tópico 6 Hiprocrisia - o mito da cidadania no Brasil
Tópico 7 A favela invisível se debruça sobre o Rio
Tópico 8 Que favelas são essas?
Tópico 9 Lugar para morar
Tópico 10 O nó da Questão
Tópico 11 Hanôver
Tópico 12 Novas tentativas
Tópico 13 TEMA EM DEBATE - Favela-Bairro
Tópico 14 Outras respostas
Tópico 15 Relatório do BIRD
Tópico 16 A Barra do futuro
Tópico 17 TEMA EM DEBATE - Favelas do Recreio
Tópico 18 Arquitetura para pensar
Tópico 19 A Cidade Ordenada
Tópico 20 Déficit Habitacional do Estado do Rio de Janeiro
Tópico 21 Problema nº 1
Tópico 22 Casas e justiça

 Artigos de 2001

 
Tópico 23  Loteamentos clandestinos
Tópico 24 Especulação, Desmatamento e Favelas
Tópico 25 Por quê?
Tópico 26 A carga tributária Incidento no Preço de Habitações Populares em São Paulo
Tópico 27 A invasão das favelasl
Tópico 28 A Responsabilidade Civil da Administração Pública
Tópico 29  Inchaço urbano
Tópico 30 Leis urbanas
Tópico 31  O Rio e a favelização
Tópico 32 Favelas: Existe solução?
Tópico 33 A urgência de uma reforma urbana
Tópico 34 Recreio dos Bandeirantes - Um bairro sustentável
Tópico 35 Impostos para quê?
 

Artigos 2002, 2003

Artigos 2004

Artigos 2005, 2006

Artigos 2007

Voltar ao Topo       TÓPICO 1

 

Porque o Rio melhora

Jornal do Brasil, Opinião, segunda-feira, 10 de janeiro de 2000

 

     Um conjunto de fatores é responsável pela recuperação da cidade nos últimos anos. Entre eles, por certo, se incluem as políticas para promover a integração urbanística e social. Isto é, para democratizar a cidade.

     O Rio é a cidade, entre as capitais metropolitanas, que apresenta o menor índice de desemprego desde 1995, segundo dados recentemente divulgados pelo IBGE. A propósito, a Gazeta Mercantil atribuiu responsabilidade por esses resultados aos investimentos públicos em obras, em especial às da política habitacional, sobretudo com o programa Favela-Bairro. Investindo no espaço público, a política habitacional da cidade estimula as famílias a melhorarem suas casas. A reportagem destacou, entre outros indicadores, o grande consumo de cimento a varejo, característico da produção de moradias por autoconstrução.

     O caso é corroborado por outra pesquisa de autoria de Paulo Borba encomendada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que estudou o valor dos imóveis em favelas sem intervenção e com intervenção do Favela-Bairro. Estimou a diferença em 97% a mais onde há o programa.

     Outra pesquisa socioeconômica em comunidades de baixa renda, realizada pela Science, em 1998, indicou que nas favelas estudadas integrantes do programa o número de estabelecimentos com atividades econômicas aumentou de 1.163 para 2.250.

     Hoje, estão participando do programa Favela-Bairro 115 comunidades, envolvendo aproximadamente 450 mil moradores, incluindo aquelas com obras já concluídas, em andamento e com ação de projeto em desenvolvimento. Se agregarmos os demais programas da política habitacional desenvolvida pela prefeitura desde 1994, tais como o Morar sem Risco, o Morar Legal e o Morar Carioca, o número de cariocas diretamente beneficiados alcança mais de 700 mil. Setecentas mil pessoas diretamente atendidas, e justamente entre as mais carentes.

     Esses programas não são de obras - embora as obras sejam vitais. São de obras e de integração, onde assumem relevo as políticas de desenvolvimento social, tais como a construção de creches, implantação de equipamentos para a geração de renda e de capa- citação profissional, de saúde, esporte e lazer.

     O inovador nessa política foi o conceito que a estruturou: reconhecendo as experiências anteriores, a diversidade morfológica e ambiental do Rio de Janeiro, deu prioridade ao investimento público nas ações próprias da coletividade. Diferentemente das políticas habitacionais precedentes, que privilegiavam a construção de moradias, agora a prioridade é construir "cidade" onde as famílias já investiram nas casas. E que, não obstante, vivendo por gerações no mesmo sítio, mesmo assim não dispunham do mínimo necessário à vida urbana moderna: infra- estruturas, acessos e equipamentos públicos.

     Esse entendimento conformou o conceito de "déficit urbano" em oposição ao de "déficit habitacional" , canalizando prioritariamente os investimentos da cidade na superação do primeiro. Os recursos públicos aí investidos beneficiam um número de famílias cinco a seis vezes maior em comparação ao número de famílias que poderiam ser atendidas com produção de moradias.

     É claro que construir casas legais na dimensão da demanda é condição indispensável para a sustentabilidade urbana. A cidade constrói o seu futuro, tornando acessível a  todos o morar integrado. Mas as novas moradias têm que ser construídas através de  crédito, onde as famílias detêm o protagonismo sobre onde e como morar. É assim, aliás, que se desenvolvem os programas de financiamento da Caixa Econômica (CEF) e o de Cartas de Crédito do Previ-Rio. Construir na dimensão da demanda - que se amplia com a diminuição do tamanho médio da família - é um grande desafio programas de crédito, não necessariamente através de recursos públicos.
     Nesse caso, o ano de 1999 também foi promissor: utilizando os programas CEF, a prefeitura foi parceira incentivando a promoção de novas moradias. Unindo os  esforços do Executivo, da Câmara de Vereadores e de empreendedores privados, concluiremos o ano aprovando só no âmbito da moradia popular um número equivalente ao que a cidade aprovou para todas as faixas de renda em 1998. Isto é, deveremos dobrar o número de novas aprovações de 1998 para 1999!  Nesse caso não são investimentos da municipalidade, mas são investimentos na cidade, possibilitados pela ação pública.
     Investir os recursos públicos na área pública e incentivar a construção de através do crédito são dois fatores dentre os responsáveis pela recuperação que o Rio de Janeiro experimenta nos últimos anos. A democratização da cidade é, com certeza, o  grande fator da melhora do Rio de nesses últimos anos.


SÉRGIO MAGALHÃES
Secretário Municipal de Habitação

Voltar ao Topo   TÓPICO 2

Em defesa do Plano Lucio Costa

Jornal O Globo, Opinião, sexta-feira, 28 de janeiro de 2000

CESAR MAIA

     

     A maior homenagem a Lúcio Costa, a melhor maneira de honrar sua memória, não é mudar o nome da Avenida Sernambetiba. Aliás, ele também teria preferido preservar o nome do porto que ali, nos idos de 1700, permitia escoar a produção dos engenhos de açúcar de Jacarepaguá e fluir o comércio de farinha, milho, carne seca e arroz, manufaturas, vinhos e sal estocado em depósitos. Certamente, Lúcio Costa, com quem tive a honra de contar como assessor especial da Prefeitura, teria preferido ver a preservação do Plano que desenhou para a região da Barra da Tijuca.

     Infelizmente, nos últimos meses, decisões frouxas das autoridades públicas, sejam elas passivas ou ativas, estão colocando em risco - um sério risco - o Plano Lúcio Costa. As decisões soltas e esparsas, que hoje já se cristalizam perigosamente, exigem um amplo e aberto debate público sobre a região da Barra da Tijuca e o Plano Lúcio Costa. As intervenções desviantes do planejamento original têm caráter urbanístico, ambiental, fundiário, paisagístico, viário, patrimonial e logístico. Autorizações de construções, sejam elas respaldadas por operações interligadas ou de discutível legalidade urbanística, afetam ocupação do solo através de novos gabaritos, nova volumetria, impacto populacional concentrado, impacto ambiental imprevisto ou avanços que deformam a paisagem urbana. Isto ocorre tanto na Avenida Sernambetiba quanto na periferia da Avenida das Américas, da Barra ao Recreio dos Bandeirantes.

     O afunilamento visual da Avenida das Américas, na área de bifurcação para Jacarepaguá e Recreio, onde foi autorizado um shopping de entretenimento com fachada de gosto duvidoso, é apenas um exemplo de descuido em relação à paisagem urbana. A tentativa de transformar uma rua de serviços, a Via Parque, em avenida, com canteiro central e seus insuportáveis postos de gasolina, afetando o valor patrimonial dos condomínios limítrofes e o equilíbrio ambiental das margens da Lagoa, é outro exemplo. Esta decisão, pelo menos, está sustada pela Justiça.

     A autorização para postos de gasolina e painéis publicitários tornou-se uma verdadeira orgia. Não se respeitam mais sequer os elementos de segurança das pessoas quanto à localização e as distâncias previstas na legislação. Num trecho linear de menos de dois quilômetros de raio já surgiu uma dúzia de postos de gasolina de todos os tipos e tamanhos. Os painéis publicitários entram por todos os lados, sem regras paisagísticas. Um painel gigantesco estimula o fumo na margem da lagoa, logo na entrada da Barra. Perto, um outro, verdadeira muralha que enaltece famosa marca de automóveis, fecha o alcance visual dos shoppings. Para concretizar estes painéis, surgem empresas lastreadas em curiosos parentescos políticos.

     Os loteamentos e construções irregulares na região de Vargem Grande e Vargem Pequena proliferam como coelhos, sob o olhar omisso das autoridades. As invasões, no Recreio dos Bandeirantes, nas áreas do Terreirão-Canal das Tachas, quintuplicaram nos últimos dois anos. No final de 1996, os levantamentos registravam a presença de duas mil pessoas e as intervenções governamentais procuravam estabilizar este número. Um estudo recente mostra que aquele número se transformou em dez mil pessoas. Nenhum cuidado é adotado nos acessos, transformando a Avenida das Américas, na região do Recreio, num engarrafamento paulistano tanto no trecho onde diminui o número de pistas quanto na entrada e saída de um parque de entretenimento, cujos investidores teriam atendido facilmente as exigências que garantissem os fluxos de trânsito.

     Isto tudo para não falar em mais uma rodada de promessas quanto à licitação do sistema de saneamento da Barra da Tijuca e do emissário submarino, esperados ansiosamente por todos os moradores da região. O sistema lacustre da Baia já vive situação crítica. Diariamente são lançados nele 200 mil metros cúbicos de esgotos sem tratamento. A lâmina das águas, em vários trechos, é inferior a 20 centímetros. Enquanto isso, atrás do mercado do produtor, na Avenida Ayrton Senna, continuam estocados, deteriorando-se, as tubulações que deveriam ter sido destinadas à rede de esgoto.

     Certamente, são estas e outras questões de um longo rosário de lágrimas urbano-ambientais que incomodam o sono eterno de Lúcio Costa. Sua memória, sua imagem e seu anjo da guarda estão aflitos. E se todos nós, cariocas, moradores ou não da área, que vemos a Barra da Tijuca como uma estratégica e decisiva região de nossa cidade, não nos mobilizarmos já, um dia, inexoravelmente, seremos obrigados a retomar este tema. Só que, aí, a situação será irreversível.

CESAR MAIA é ex-prefeito do Rio.

Voltar ao Topo   TÓPICO 3

Num novo panorama urbano para o Brasil

     O Estado de São Paulo, Sábado, 19 de fevereiro de 2000
JAIME LERNER
 
Há uma idéia mais ou menos generalizada de que as nossas grandes cidades são na maioria palco de uma guerra contínua, caóticas e violentas, sem qualidade e perigosas demais para cidadãos acostumados a um padrão mínimo de civilidade.
 
Confirmar nas ruas essa impressão não será possibilidade remota, mas entender a real dimensão dos nossos problemas urbanos e vislumbrar soluções plausíveis demandam uma observação mais demorada e criteriosa, que às vezes foge até mesmo aos moradores, quase sempre assustados demais com o cotidiano que os cerca e, por isso mesmo, excessivamente céticos quanto a cenários mais positivos.
A primeira questão é que há muito temos nos entregado a uma visão por demais pessimista acerca de nossas cidades.
 
Isso se explica, em grande parte, pela brutal supremacia do noticiário acerca das mazelas das cidades - que é, por natureza, massificado - sobre o debate das questões urbanas, que é restrito, rarefeito e, muitas vezes, turvado por interesses imediatistas. É o que quase sempre tem ocorrido nas eleições municipais, quando é comum a matéria ganhar um enfoque mais emocional e menos produtivo. Isso acarreta grande efeito cumulativo sobre a opinião pública e potencializa as suas impressões desfavoráveis no relacionamento cotidiano com a cidade, freqüentemente pontuado por dificuldades e, não raro, por traumas.
 
Some-se a isso uma certa carência de gestores urbanos capazes de desenhar cenários positivos e plausíveis, que a população possa abraçar com objetividade, e tem-se um agravamento do quadro, com os desafios urbanos parecendo maiores do que realmente o são, o que fatalmente induz a uma sensação de impotência e a uma perniciosa complacência diante dos erros da administração pública.
 
Há, no entanto, um claro sinal de estresse nesse processo. Tendência não é destino! Quando a sociedade detecta uma tendência indesejável é a hora de revertê-la. Olhando bem, é possível identificar claramente isso em nossas maiores cidades, onde há uma crescente percepção coletiva a respeito dos problemas urbanos. O que falta é concentrar mais o foco nas soluções, mas isso pode ser esperado como um passo seguinte natural.
 
As duas maiores cidades do País - São Paulo e Rio de Janeiro -, por exemplo, tiveram um crescimento demográfico na presente década bem próximo dos níveis ideais e muito longe da problemática explosão vivida em décadas anteriores, sobretudo nos anos 60 e 70. Isso é uma clara reversão de tendência, com inequívocos benefícios para a qualidade de vida nessas cidades, ou pelo menos um elemento fundamental para reduzir a velocidade do agravamento de seus problemas. A mesma reversão se deu na maioria das capitais e dos grandes centros, posto que a partir dos anos 80 o País começou a transitar dos altos para os baixos índices de fertilidade, ao mesmo tempo em que declina o êxodo rural.
 
Outro fator positivo dos últimos anos é a questão do ar - item essencial na aferição da qualidade de vida nas cidades -, que melhorou consideravelmente, afastando em muito o velho e apregoado temor de cidades literalmente irrespiráveis. Maior consciência ecológica das autoridades e da população e avanço da tecnologia são os responsáveis pela melhoria do ar, notadamente no caso dos automóveis modernos, cuja emissão de gases caiu brutalmente.
 
Tivéssemos um melhor transporte coletivo nessas cidades, as diferenças seriam melhor percebidas pela população. Aí vai, seguramente, uma diferença essencial entre as grandes cidades brasileiras e as americanas. Enquanto São Paulo dispõe de 40 quilômetros de metrô e o Rio de Janeiro de apenas 26, Nova York conta com nada menos que 368 quilômetros.
 
Mas não convém ressaltar por demais esse tipo de comparação. Nova York e a maioria das cidades do mundo que dispõem de vasta rede de metrô são muito mais ricas e, mesmo assim, construíram os seus sistemas na virada do século, quando isso era possível a um custo mais baixo. Sonhar com soluções tradicionais é um luxo que as cidades brasileiras não se podem dar. É preciso perseguir soluções compatíveis com a nossa realidade, mas sem abrir mão da criatividade - que é a característica essencial e virtuosa dos brasileiros. Curitiba, por exemplo, criou um sistema de transporte coletivo a partir do modal ônibus, que nos últimos 25 anos experimentou um aperfeiçoamento contínuo, ao ponto de hoje transportar 2 milhões de passageiros por dia, quase cem vezes o número registrado no início de sua operação, em 1974.
 
O que Curitiba fez foi potencializar a capacidade do ônibus, passando sucessivamente do veículo convencional para os articulados e biarticulados, estes com capacidade para 300 passageiros. Além disso, a cidade priorizou a circulação do transporte coletivo sobre o individual, integrando todo o sistema e criando estações que tornam o embarque tão rápido quanto o que ocorre num metrô tradicional.
 
Isso tudo conferiu dignidade ao transporte coletivo, que, juntamente com uma visão de hierarquia do sistema viário e de uma nova política de ocupação do solo, foi fundamental no domínio de processo de crescimento da cidade. De 1970 até hoje, Curitiba triplicou sua população, sem com isso perder qualidade. Ao contrário, a cidade viveu um crescimento o mais harmonioso possível, especialmente dentro dos parâmetros brasileiros, e ganhou muito em qualidade, embora não tenha fugido integralmente dos problemas que afligem o País. Se ficasse sonhando com o sistema ideal, sem coragem de iniciar um processo novo e baseado na simplicidade, hoje a cidade sofreria dos mesmos males que castigam boa parte de nossos centros urbanos.
 
Depois de trabalhar por cerca de 30 anos com a questão urbana e tendo vivido experiências gratificantes em Curitiba, tenho renovada convicção de que nós podemos, em espaço de tempo relativamente curto, provocar uma virtuosa transformação em nossas cidades, tanto nas grandes como nas pequenas e médias.
 
Mas para isso algumas premissas se impõem.
 
Primeiro há que se levar em consideração alguns fatores históricos.
A despeito do vaticínio dos profetas do caos, o Brasil viveu neste século uma transformação notável, ainda que tenha vivido também terríveis distorções. Para entender o que aconteceu com nossas cidades, é necessário que se entenda o que ocorreu neste período.
 
Nos Estados Unidos, por exemplo, o processo de urbanização se acentuou a partir dos anos 20, com a maior parte dos homens do campo encontrando em pequenas cidades a oportunidade de sobrevivência, o que proporcionou uma transição do rural para o urbano mais suave, menos traumática. Além disso, já naquela época os americanos experimentavam uma taxa decrescente de natalidade e seu crescimento econômico, que até o início dos anos 80 foi menor que o brasileiro em termos porcentuais, ocorria sobre uma base maior, muito maior. Ou seja, mesmo a taxa menores que no caso do Brasil, registrava um crescimento econômico capaz de aumentar em muito mais do que no nosso caso a renda per capita de sua população.
 
Em grandes linhas, isso resultou num índice de desenvolvimento muito mais elevado e harmonioso do que o nosso, com melhores oportunidades de educação e menores deformações urbanas. Basta lembrar que os Estados Unidos têm nada menos que 19.262 cidades, contra 5.507 brasileiras. Daí que a média de habitantes por cidade é de 14 mil lá, ante 27 mil aqui. Considerando-se que somente as dez maiores cidades brasileiras concentram um quarto de toda a população do País fica mais nítida a diferença entre a questão urbana dos dois países.
 
No caso brasileiro, o processo de urbanização é mais patente a partir dos anos 40 e explode literalmente a partir de meados de 60 até o fim dos anos 70. Diferentemente do caso americano, no Brasil o êxodo rural conviveu ainda com altas taxas de natalidade e com um direcionamento predominante aos grandes centros urbanos. É que, também contrariamente ao que ocorreu nos Estados Unidos, aqui o crescimento econômico se deu de maneira muito concentrada, notadamente na Região Sudeste, enquanto na maioria dos Estados o processo se afunilou nas capitais e nos centros maiores. Isso fez com que o migrante rural, especialmente a partir dos anos 70 - quando a agricultura se modernizou rapidamente, limitando bruscamente a perspectiva dos pequenos agricultores - não encontrasse oportunidades nas pequenas cidades, com as quais tinha razoável nível de convivência e onde poderia fazer uma transição mais suave para a vida urbana.
 
O resultado foi que esse migrante acorreu em massa para os grandes centros, que lhe eram hostis mas ao menos lhe permitiam a sobrevivência, ainda que marginal. Daí decorreu, essencialmente, o inchaço vivido pelos grandes centros, que repentinamente se viram sem recursos para atender ao crescimento da demanda social.
 
Ou seja, enquanto nos Estados Unidos as pequenas cidades experimentavam uma contínua consolidação de qualidade de vida e oportunidades e os centros maiores viviam um crescimento controlado, aqui as grandes cidades explodiam, acumulando demandas, ao mesmo tempo que as pequenas definhavam.
 
Evidentemente não foram apenas esses aspectos que comprometeram a vida de nossas cidades. Houve o excesso de centralismo, que por longo tempo limitou as possibilidades das cidades, e houve também incontáveis gestores, maus ou equivocados, que agravaram contenciosos e sacrificaram perspectivas.
 
O centralismo governamental parece ter acabado, ao mesmo tempo que o nível dos gestores urbanos tem melhorado consideravelmente, o que renova a esperança, mas é preciso atentar para o fato de que a questão urbana merece um olhar mais generoso por parte da sociedade e do governo central.
 
A sociedade precisa ser despertada para as novas possibilidades que se abrem, e o governo central precisa criar novos mecanismos de apoio às cidades, capazes de melhorar a produtividade das gestões e oferecer respostas mais rápidas à população, especialmente sobre as suas necessidades básicas.
 
Nesse sentido, é essencial que o País vença mais rapidamente o desafio fiscal e reforme sua legislação econômica, de modo a torná-la compatível com a comunidade internacional, na qual precisa se inserir com mais competitividade, com isso abrindo perspectivas para a retomada do crescimento econômico, o que ocasionaria um ciclo virtuoso sobre as cidades, reduzindo o desemprego e aumentando o poder de investimento por parte dos municípios.
 
Isso é o óbvio, mas é também o essencial, visto que possibilitaria pensar com mais consistência numa política de descentralização do desenvolvimento, que vem a ser outra premissa básica para equacionar a questão urbana no País.
 
Igualmente, não se poderá desatrelar das questões urbanas a questão do campo, envolto num clima de crescente tensão.
A descentralização do desenvolvimento tem esse condão de decompor grandemente as tensões sociais, abrindo novas fronteiras de oportunidade, porque demandará um grande volume de obras, com efeito multiplicador sobre a economia.
 
Acrescente-se que, ao contrário do que muitos imaginavam até há pouco, o Brasil tem ainda um vasto e promissor caminho a percorrer na cadeia produtiva do agribusiness, com a possibilidade de incorporar um número crescente de produtores ao mercado consumidor e de absorver um contingente significativo de novos trabalhadores, dos mais variados graus de qualificação, o que pressupõe uma alvissareira revitalização das pequenas cidades e, até mesmo, das pequenas comunidades situadas entre o campo e o meio urbano.
 
Esse processo, plenamente plausível num Brasil ainda passível de enorme mobilidade social, será naturalmente potencializado pelas novas conquistas da tecnologia, que pressupõem a possibilidade de viver com qualidade, e conectado com o mundo, mesmo nos lugares mais distantes.
 
Daí decorre que muitos dos traumas urbanos vividos hoje nos nossos grandes centros e muito do marasmo das pequenas cidades poderão ser coisa do passado dentro de pouco tempo.
 
O que se desenha é a possibilidade de uma transformação positiva com uma velocidade que até há pouco não poderíamos imaginar. A equação viciosa do passado - acelerado crescimento demográfico, intensa migração para os grandes centros, atraso tecnológico, excessiva dependência dos governos centrais e falta de perspectivas no interior - pode estar prestes a ceder para uma equação virtuosa, de florescimento do interior, estabilidade nos grandes centros, avanço tecnológico, sensível melhoria da infra-estrutura e taxas menores de fertilidade, estas já uma realidade.
 
Mas é necessário que a sociedade seja crescentemente despertada para as novas possibilidades e que os gestores urbanos tenham uma visão estratégica sobre suas cidades.
 
É preciso um balanceamento entre o esforço para atender às demandas cotidianas e o olhar atento sobre as questões essenciais que irão determinar o futuro. O gestor que se ativer apenas ao cotidiano deixará passar em branco as possibilidades de crescimento e desenvolvimento, enquanto que aquele que exaurir suas energias somente com o futuro acabará se distanciando da população e conseqüentemente perderá o aval indispensável para realizar as transformações que propugna.
 
É preciso levar em conta, também, que na raiz de toda grande transformação está a pequena transformação. Ou seja, uma pequena mudança pode ser o começo de uma grande. Assim, os gestores devem desprezar os vendedores de complexidade, pois nada é tão complexo quanto eles querem fazer crer. O mundo está cheio de vendedores de complexidade. É preciso não temer as soluções simples e ter a coragem de começar um processo sem esperar que se tenha em mãos todas as respostas.
 
Simples são a maioria das questões urbanas, e as equações complexas só servem para postergar as soluções.
O excesso de diagnóstico é o melhor caminho para imobilizar uma cidade.
 
É preciso pensar no ideal, sim. Mas é preciso fazer o possível já.
Propostas para daqui a 20 ou 30 anos não servem para nada, pois até lá possivelmente os problemas serão outros e muitos maiores, porque passou a oportunidade da intervenção possível.
 
Muitas cidades se perderam no planejamento do ideal, adiando ações que poderiam evitar a dimensão do caos que vivem hoje.
 
Isso não quer dizer que devamos ter uma visão simplista sobre as questões urbanas.
 
Antes quer dizer que devemos ter uma visão estratégica.
 
Essencialmente, devemos ter a coragem de propor. Para cada problema há uma equação de co-responsabilidade. É isso que os candidatos que se apresentarão ao eleitorado agora, em 2000, precisam ter em mente. É essencial que eles apresentem à população propostas assentadas na realidade, soluções que possam ser entendidas e desejadas pela maioria. Pois será esta maioria que poderá contribuir decisivamente para levantar os bons cenários que, espera-se, os candidatos possam desenhar nesta campanha. E boa parte dos que se disporão a concorrer nas nossas 5.507 cidades certamente se apresentará com um discurso mais compatível com o novo milênio. Outros insistirão nas velhas demagogias, contribuindo mais para deturpar do que para clarear o debate sobre o destino das cidades.
Seja como for, o certo é que a maioria da população parece mais permeável hoje a um entendimento correto de sua realidade do que poderia ter há alguns anos, e isso é também um fator positivo a nos dizer que podemos dar um grande salto de qualidade em nossas cidades, independentemente de seu tamanho.
Quanto mais conseguirmos mostrar à população a cidade como maior invenção do homem, como espaço do encontro, mais poderemos induzir a uma transformação positiva.
 
Para isso, é necessário que recuperemos alguns dos valores tradicionais, a começar por entender a rua como síntese da cidade, a rua como integração de funções, a rua que sempre existiu na vida de qualquer bairro.
 
Um rua não pode ser apenas o espaço da circulação, mas tem de ser também o cenário do encontro, onde a voz do cidadão possa ser ouvida e onde as atividades urbanas se desenrolem normalmente, em harmonia com o homem. Isso acontece em grandes e pequenas cidades européias e americanas. Poderá acontecer novamente nas grandes cidades brasileiras quanto mais rapidamente quisermos, quanto antes os seus gestores concentrarem esforços na prevalência e qualidade do transporte coletivo, quanto mais cedo se criar um ambiente em que as pequenas iniciativas para solucionar os problemas possam se multiplicar.
 
Quem imaginou o caos como tendência irreversível de nossas cidades errou. As novas condições estão-se desenhando. Quanto mais rápido agirmos, e quanto mais criatividade agregarmos ao nosso esforço, mais rapidamente iremos usufruir de seus benefícios. E, bem antes que muitos imaginam, a maioria das nossas cidades poderá se transformar em cenários de harmonia e crescimento do homem.

Voltar ao Topo   TÓPICO 4

Miséria só acaba quando parar de dar lucro

 

Jornal O Globo, março de 2000

Arnaldo Jabor

Salário-mínimo. Todo ano ele nos faz lembrar da miséria. Tanto falamos da miséria, que ela deve ter algumas vantagens. Quais serão?

Bem... a miséria é uma indústria. Por exemplo - quanto lucra a indústria da seca? Quanto faturam as igrejas evangélicas com a miséria, quantos milhões de dízimos pingam nos bolsos daqueles oportunistas de terno e gravata que não acreditam em Deus? (Edir Macedo não acredita em Deus; só no diabo, que ele usa como um competidor de mercado). É uma indústria milionária, a exploração do desespero. Gera estações de TV, casas em Miami. Quanto se ganha no Brasil faturando a merda? Merda também é mercado. A miséria produz a maravilhosa ignorância, a bendita estupidez popular que fazem a delícia dos produtores culturais do lixo, na música, na TV, no jornalismo. Quanto vale um Ratinho sem miséria?

A miséria dá lucro político. Para os demagogos, a miséria tem a vantagem de ser "insolúvel". Assim, pode-se condená-la sem perigo e sugerir simplismos. Falar na miséria denota preocupação humanitária, traz votos. Mais: falar dela com horror é lucrativo porque é um jeito esperto de esconder a raiz dos problemas e manter intactas as causas. É uma maneira prática de mentir e dizer a verdade ao mesmo tempo. Outro dia, o Departamento de Estado americano fez a grave acusação de que "somos um país de miseráveis". Verdade e mentira. Habilmente, os americanos se excluem do problema, tratando a miséria como causa e não como conseqüência. Assim, posam de bacaninhas, continuando a nos ajudar a produzir mais miséria, sobretaxando nossos produtos.

Depois do socialismo, caiu a ilusão de que éramos úteis em pensamento e palavras (não em obras...), acabou o tempo em que torcíamos por Cuba como por um time. Hoje, caímos na fossa pela ausência de formas de luta contra a injustiça. No início, essa depressão nos angustiava mas, aos poucos, deu lugar a um secreto cinismo, quase doce. O fim da ilusão de que éramos úteis traz um grande alívio, pois, já que não adianta fazer nada, podemos nos dedicar à elegância, à arte pessoal de bem-viver. O fim das ideologias é um bálsamo para a culpa.

Há também o lucro dos "sinceros", que acreditam na caridade, melancólico sentimento cristão que tem a vantagem de manter a miséria como algo "fora" do capitalismo, como fruto da maldade humana, como um erro de percurso e não como uma produção concreta do sistema. Podemos mantê-la como exceção, quando ela é a regra. A grande vantagem da caridade é que ela segura os pobres em seu lugar e ainda nos dá o brinde de um sorriso triste e grato.

Os patrões também gostam da pobreza, porque ela diminui os salários. Podem pagar 200 paus a um desgraçado limpador de fossas porque o mercado de mão-de-obra é imenso. Se ele não quiser a graninha, outros virão... Nossa felicidade cotidiana usa muito a miséria para serviços úteis, desde as empregadas até os mendigos que aliviam nossa consciência. Se não fossem esses assaltos, ninguém estaria preocupado... Nossas elites não querem democracia social, querem o privilégio. Nem pensar em incluir essas massas no mundo do consumo e dos direitos. A pobreza é nossa principal riqueza. Não são nem as bundas nem o futebol; são os pobres...

A miséria já deu muito lucro a artistas e intelectuais. Com a miséria, já ganhamos dinheiro fazendo poesia, filmes, até artigos como este. Os miseráveis eram úteis para nos justificar e absolver existencialmente. Os miseráveis já tiveram um grande "glamour" político. Eles eram a bandeira do futuro, o símbolo da revolução. Eles não sabiam, mas eram nosso tema e esperança. Os miseráveis eram nossa salvação. Hoje perderam esta função; nos decepcionaram, pois não sabemos mais para que servem.

A miséria tem também uma vantagem filosófica, pois é uma categoria que leva a "aporias", a becos-sem-saída reflexivos. A miséria faz mais fáceis os raciocínios filosóficos muito complicados. O mundo anda, apesar da miséria que fica como um detrito sob as rodas de um carro, uma lata velha que rola presa no chassis. Estamos à porta de uma sinistra e fascinante revolução tecnológica. Talvez a maior da História, para o bem ou para o mal. Ninguém sabe o que vai acontecer. E então, a categoria "miséria" é um grande álibi para a impossibilidade de "sínteses", o pau-para-toda obra, para a falta de sentido. Para muitos acadêmicos, a miséria é usada como uma espécie de fim-da-história ao avesso, como uma âncora para desconstruir qualquer novidade: "Nada importa... pois, há a miséria!". É o uso anti-iluminista da miséria, para esconder falta de estudo ou de imaginação

E por fim a miséria tem a vantagem também de nos ajudar a entender o tempo atual. Nossos doces miseráveis têm uma sabedoria nova, fatalista, muito de acordo com os tempos pós-utópicos. Eles são tão generosos que nos ensinam, por exemplo, que a idéia de continuidade histórica, de evolução do espírito é errada. Um país pode andar para frente ou para trás. Os miseráveis não podem se dar ao luxo (há há!) de serem humanistas, como os ricos. Os miseráveis têm uma sabedoria cínica, como os alemães. São pragmáticos como os americanos. Os miseráveis não gostam de abstrações; não se pode falar em "opção" ou "projeto" com eles. São também desesperançados, mas não são niilistas; são materialistas, mas não dialéticos (graças a Deus!). Só pensam em coisas substantivas como casa e comida.

Até existencialmente, os miseráveis nos são superiores: são mais corajosos que nós, no crime. E têm uma paz no sofrimento e na solidão que nos humilha e até nos dá inveja. Eles sabem que a miséria só vai acabar quando parar de dar lucro.

Voltar ao Topo   TÓPICO 5

Um problema social

Jornal do Brasil, Opinião, terça-feira, 11 de abril de 2000

As manifestações comunitárias, quando responsavelmente organizadas, respeitando o direito de todos, são bem-vindas, pois representam uma das janelas do sistema democrático. No último domingo o Rio teve três dessas manifestações, todas elas à beira da praia. Os participantes, em todos os casos, sacrificavam seu lazer dominical pelo direito sagrado de participar de seus próprios destinos, que é, em uma palavra, o direito de fazer política. Até etimologicamente política é isso: lutar em benefício da pólis, isto é, de sua cidade e, por extensão, do país.

Há coisas, porém, que os organizadores dessas manifestações não podem perder de vista.

Uma, é que os governos municipais, estaduais e o federal, eleitos tão democraticamente quanto a organização da passeata, respeitam as reivindicações dos manifestantes, mas têm todo o direito de discordar delas. Outra coisa é que, às vezes puramente românticas, essas manifestações esvaziam-se em si mesmas.

Vejamos por exemplo o caso da Praia de Ramos, onde se deu uma das belas manifestações de domingo. A velha Praia de Maria Angu não é um problema isolado. Despoluí-la só será possível se for resolvido o problema de que ela é parte: a poluição da Baía de Guanabara. Que, por sua vez, só será resolvido, quando se resolver o problema das favelas à beira dela.

Digamos que tudo caminhe bem e em breve seja resolvido o problema da poluição da Baía de Guanabara. Se restarem, porém, as favelas - um problema social, muito diferente, portanto -, no dia seguinte recomeçará inevitavelmente a poluição. E não porque o queiram os favelados, que certamente preferem a limpeza. Mas porque é impossível manter alguém morando à beira da baía, sem esgotos nem coleta de lixo, e não ter de novo a baía poluída - e muito - a cada dia.

O abraço à Praia de Ramos dado por 10 mil pessoas foi bonito, teve toda a boa vontade de Frei Moacir, pároco de Santa Rita, ao benzer-lhe as águas, a bateria da bicampeã Imperatriz, que é da região, animou tudo com enorme brilho. Mas o secretário estadual de Meio Ambiente, André Correia, pôs os pingos nos ii: a despoluição demorará no mínimo uns 30 anos para chegar, a praia recebe esgoto in natura e é preciso formar um cordão sanitário em torno dela. Pergunta-se: só em torno da Praia de Ramos? Em torno das favelas da baía, não?

Voltar ao Topo   TÓPICO 6

Hipocrisia - o mito da cidadania no Brasil

Retirado do site: http://www.solar.com.br/~amatra/hipocrisia.html

Gladston Mamede
Doutor em Filosofia do Direito
Professor da Faculdade de Ciências Humanas da
Fundação Mineira de Educação e Cultura - FUMEC

Cidadão. Cidadania.

Se fosse possível "gastar" palavras, estas seriam palavras gastas. Desde quando se começou o afastamento dos militares do comando de Estado, muito se falou - e ainda muito se fala - em cidadania; colocou-se "o cidadão" no centro de todo e qualquer discurso político. Resta, contudo, questionar o que significa e o que pode significar cidadania para que possamos dizer se somos ou não cidadãos e qual a amplitude desta qualificação.

1. A Estrutura de Estado

Em Semiologia e Direito, procurei reconstruir um certo enfoque para a sociedade, tal qual a conhecemos. Permito-me resumir o que afirmei então: é possível compreender o termo "Estado" como um adjetivo - não um substantivo -, indicando uma característica da organização socio-política humana, determinada ao longo da evolução histórica da humanidade. Cuida-se de um valor institucional e uma estrutura de organização social (com mecanismos protetores). Esta estrutura social e todos os instrumentos que a asseguram revestem-se de uma significação específica: significam "Estado". Uma organização de indivíduos (o aparelho de Estado) controla esta estrutura social, correspondendo-lhe um poder de Estado, isto é, uma capacidade institucional de ação reguladora sobre a estrutura social, a partir do manejo e do emprego de instrumentos repressivos, ou coercitivos, de Estado (1995: 87).

Conquanto vivamos em uma sociedade de palavras, este poder de Estado exerce-se por normas, ou seja, "enunciados do aparelho de Estado (ou seja, dos detentores do poder de Estado, a elite política organizada e institucionalizada - em suas estreitas relações com a elite econômica da sociedade) que visam regular a existência e convivência social pelo estabelecimento de modelos hipotéticos de comportamentos (e situações devidas), revestindo-lhes de uma significação e um valor autorizado (jurídico), dispostos em um sistema imposto (que é o Direito), de onde cada unidade retira a sua imperatividade. A norma jurídica deve ser cumprida voluntariamente pelos súditos de Estado ou poderá ser aplicada a sanção que lhe corresponde (em sentido lato sensu, quer dizer, tanto a pena prevista, quanto a execução forçada da obrigação normativa, ou a anulação do ato etc), usados os poderes repressivos da estrutura organizada de Estado" (Idem: 86). Por tais razões, denuncio que "o fim último do Direito é manter a estrutura de Estado o mais estável possível, com o que culmina por garantir que um modelo de vida e organização social (e, por conseqüência, um modelo econômico) se perpetue, referenciado pelos interesses dos que detêm o poder necessário para validá-los e efetivá-los" (Idem: 87).

Pode-se argumentar que vivemos em um tempo de democracia, não havendo muitos ditadores e ditaduras pelo mundo. Muito se evoluiu, reconheço, mas muito há por evoluir. O objetivo deste trabalho é justamente demonstrar a existência de falhas no modelo político vigente. Nossas estruturas políticas estão viciadas na centralização de poder e no desrespeito ao interesse público. SOUZA, a propósito, refere-se a "uma elite de empresários, políticos e servidores públicos dos três Poderes" que "compõem uma cúpula privilegiada por uma legislação elaborada meticulosamente para manter esse estado de vantagens e opressões" (apud MUNIZ, 1994: p. 12).

Não foram consolidadas formas efetivas para o exercício de cidadania, permitindo a participação real dos indivíduos na determinação dos destinos da sociedade (e democracia pressupõe sociedade civil forte, consciente e participativa. Assim a proposta de um "Estado Democrático de Direito" fica estéril, carente de instrumentos que permitam limitar o poder e as ações dos administradores. Não denuncio - vê-se - ditaduras; alerto para o poder que é inerente às estruturas de Estado, passível de ser exercido arbitrariamente, o que cria a necessidade de que cada indivíduo (e, coletivamente, a sociedade) esteja atento e participe .

Este poder sublinhado não se restringe ao controle central da estrutura de Estado: ele transborda por "n" níveis de agentes de Estado (todos aqueles que ocupam funções na organização de Estado), que o rateiam. A porção de poder de cada um desses agentes é determinada não apenas pelo nível hierárquico ocupado, mas também pelas funções desempenháveis (sua competência funcional) e desempenhadas (seu trabalho, o "espaço" que ocupa); acresça-se a capacidade de influenciar outras esferas administrativas (próximas ou distantes). Tais agentes de Estado, demonstra AGUIAR, funcionam como "microlegisladores", isto é, "legislador para pequenos grupos, para parcelas da comunidade atingidas pelo preceito originário". Sua característica essencial "é a de ser destinatário do mandamento legal originário" o que "lhe confere obrigações e direitos que balizam o âmbito de sua liberdade na questão regulamentada pela norma geral." (1984: 30-31)

Destarte, os súditos de Estado não estão apenas à mercê de um poder central (das cúpulas dos três poderes), mas submetidos a níveis de poder estratificado, em muitos dos quais as normas jurídicas não assumem formas clássicas (Constituição, leis, decretos etc); ex.: por normas verbais, policiais, carcereiros etc exercem sua parcela de poder. Porém, o exercício deste poder fragmentado pode realizar-se sob a forma de agressão ao direito de administrados, em proveito de outros interesses; segundo AGUIAR, tais agentes, enquanto microlegisladores, via de regra, confirmam pela exegese que concretizam os parâmetros que orientam "a norma original, adaptando-a, interpretando-a em função das características do grupo e da correlação de forças que o compõem. [...] Mas dentro dos parâmetros estabelecidos, o microlegislador pode desenvolver uma tarefa normativa que chega a desfigurar o teor normativo original, ultrapassando os parâmetros estabelecidos." (Idem: 31)

A situação é lamentavelmente notória: um agente de Estado, investido de uma porção de poder e encarregado de determinadas atribuições específicas (e devendo respeitar o conjunto normativo vigente), utiliza-se dessa parcela de poder para obter uma vantagem indevida de qualquer natureza (uma "comissão", uma recompensa etc), desvirtuando o sentido das normas que deve aplicar ou simplesmente desconhecendo-o e desrespeitando-o. Um exemplo simples: o sem número de exigências e dificuldades que funcionários (mesmo os mais desqualificados) podem impor ao exercício de um direito, problema endêmico de muitas de nossas repartições públicas.

Mais: há atos que não são propriamente ilegais, mas que subvertem o fim das normas, lesionando parcelas da sociedade. O agente de Estado utiliza a atribuição de poder e competência que lhe foi atribuída para negar (total ou parcialmente) a vigência da norma a aplicar. As omissões constituem hábito endêmico entre nós, face à prática de legislar retoricamente (sem visar a implementação das hipóteses definidas); o art. 3°, III, da Constituição afirma constituir objetivo fundamental da República "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais"; convive, porém, com um quadro de mortalidade infantil e de miséria. DRUMOND, refere-se ao contraste entre a Constituição, consagrando "a saúde como direito do cidadão e dever do Estado" e a entrada do Brasil "na década de 90 com um inventário na área da saúde que bem espelha o acentuado desarranjo do tecido social brasileiro que, é bom enfatizar, beira a tragédia" (1993: 135). Some-se a omissão no poder/dever de proteger (quer legislando eficazmente, quer processando e julgando) os bens e interesses públicos, o que já determinou uma generalizada descrença pública diante de tantos escândalos financeiros, políticos etc .

Aqui, impossível não reproduzir a pertinente análise de FARIA, apontando para a divisão do aparelho de Estado brasileiro em "anéis burocráticos", cada um deles: "(a) agindo em função dos interesses e particularismos de sua clientela específica, visando a manutençao e a expansão de suas prerrogativas e reforçando com isso seus traços neocorporativistas; (b) distorcendo os programas sociais, mediante o sistemático desvio dos recursos e subsídios de projetos destinados originariamente aos segmentos mais carentes da população para os próprios setores estatais, para vários grupos empresariais e para as próprias classes médias; (c) produzindo uma distribuição desigual e perversa dos direitos e deveres consagrados pelas leis, uma vez que os grupos mais articulados conquistaram não só acesso a foros decisórios privilegiados mas, igualmente, mais prerrogativas do que obrigações, sob a forma de incentivos fiscais, créditos facilitados, juros subsidiados, reservas de mercado etc.; (d) tornando o jogo político-institucional dependente da ‘jurisprudência’ interna de cada um desses ‘anéis’, pois os programas sociais foram convertidos em recursos de poder, razão pela qual a importância de cada ‘anel’ passou a decorrer de seu orçamento interno e/ou de seu poder regulamentar; (e) descaracterizando ideologicamente os partidos e obscurecendo a transparência do jogo político e das ações públicas, na medida em que a retórica parlamentar e sua ambigüidade programática jamais explicitaram critérios e prioridades em termos de gastos públicos." (1992: 22-23)

Sem dúvida, o exame das práticas de Estado revela incontáveis situações desconformes ao Direito, ou, no mínimo, contrárias à ética e à moral (balizas do processo de interpretação/aplicação das normas), bem como lesivas aos fins declarados para a República. Estas situações demonstram a opressão da estrutura (e do poder) de Estado. Revelam, ademais, que a estrutura de Estado é manejada para beneficiamento de alguns. SOUZA ressalta que "a legislação mentirosamente acena com justiça social, direitos humanos, desenvolvimento, mas tudo não passa de letra morta diante da inversão cultural que levou ao desconhecimento dos princípios éticos e dos mais elementares ditames do Direito, afastando-o do cidadão para tratá-lo como número em estatísticas quase sempre manipuladas." (Op. cit.: 12) Também BASTOS já teve a oportunidade de frisar que "as leis são rasgadas num momento político de imposição da força pela força; ou são contornadas, elegantemente contornadas na conduta administrativa ou nas sentenças e acórdãos" (apud ENCARNAÇÃO, 1995: 52). CARVALHO NETTO, por seu turno, refere-se a uma "subversão efetiva dos significados possíveis, originais e primeiros dos textos legais que, ao serem atualizados por práticas tradicionais inerentes à ordem anterior, asseguram a continuidade desta" (1992: 207).

Em resumo: estamos submetidos a um poder de Estado: somos súditos (em maior ou menor grau) daqueles que o controlam (política ou economicamente); num segundo nível, somos reféns potenciais de incontáveis "agentes públicos". Neste quadro, a cidadania deveria ser uma verdadeira possibilidade de limitação deste poder, diluindo-o entre toda a sociedade: o indivíduo deixaria a condição de mero sujeito de direitos e deveres e tornar-se-ía cidadão, ou seja, tornar-se-ía uma célula consciente de participação social.

2. A possibilidade de participação

Enquanto possibilidade de efetiva participação nos desígnios de Estado (determinadores do destino da sociedade), será o próprio conjunto normativo que definirá o que seja cidadania, bem como seu (maior ou menor) alcance. Em circunstâncias tais, pode-se dizer, como lê-se em AGUIAR, que as Constituições dos regimes modernos tendem a estabelecer uma "autolimitação do Estado" (1984: 40). Ou seja, os sistemas jurídicos contemporâneos, em sua maioria, exibem um conjunto (maior ou menor, dependendo da evolução histórico-política das respectivas sociedades) de previsões normativas que criam limites para o exercício do poder de Estado, em lugar de obrigações para os súditos. Porém, para haver, de fato, maior distribuição de poder (ou seja, democracia) não bastam normas jurídicas definindo limites para a atuação dos agentes de Estado ou direitos para os súditos (individualmente ou coletivamente considerados). Faz-se necessário, isto sim, uma profunda revisão das relações sociais, que tendem à exploração desmesurada das massas em benefício de poucos, e dos fins da estrutura de Estado, tradicionalmente manipulada para conservação da exploração intrínseca àquelas relações sociais.

Já neste ponto, desenha-se o "mito da cidadania", fenômeno presente em diversos ordenamentos jurídicos, dentre os quais destaco o brasileiro. Poucas transformações (geralmente superficiais, cênicas ou retóricas) imitam concessões, mas apenas falseiam a conservação do poder de Estado. No Brasil, os mais variados textos (normas, discursos políticos, publicidade "oficial" etc) ressaltam a importância da cidadania para a concretização de um "Estado Democrático de Direito" (Constituição Federal, art. 1°); no entanto, por mais que os brasileiros queiram se acreditar partícipes, por mais que se valorize o poder de cidadania, conservam-se problemas crônicos, como truculência policial, abusos de autoridades administrativas, inoperalidade, corrupção, impunidade, dentre outros .

O exercício da cidadania no Brasil possui três grandes obstáculos: 1º) o sistema jurídico brasileiro não possui uma ampla definição de possibilidades para uma efetiva participação popular consciente; 2º) a postura excessivamente conservadora de parcelas do Judiciário, apegando-se a interpretações que limitam absurdamente o alcance dos dispositivos legais que permitiriam uma efetiva democratização do poder; por fim, 3º) uma profunda ignorância do Direito: a esmagadora maioria dos brasileiros não possui conhecimentos mínimos sobre quais são os seus direitos e como defendê-los. Desta forma, o poder continua preservado, como preservados continuam os benefícios desfrutados por aqueles que podem determinar (ou influenciar), de fato, os desígnios de Estado.

Neste sentido, para além do poder de votar e ser votado, os brasileiros dispõem de poucas e limitadas possibilidades de fazer valer a lei (menos ainda de fazer valer a sua vontade na lei); e não se olvide que as eleições são jogos marcados por retórica, teatralidade e publicidade, onde vendem-se imagens nem sempre verdadeiras e honestas. Para além desse "poder" de eleger e ser elegido (com todas as limitações que o jogo político lhe impõe), são poucos os espaços para a participação popular. BELLO, em artigo ainda inédito, destaca o problema justamente sob o ângulo da cidadania, tomando tal conceito "ante uma perspectiva ampla", ou seja, "como uma célula ou unidade mínima do Estado de Direito (participativo), que não tem, unicamente, a capacidade de votar e ser votado" (1996) ou, ainda, como definição de CLÉVE, encarando o cidadão como "sujeito ativo na cena política, sujeito reivindicante ou provocador da mutação do direito." (apud BELLO, op. cit.)

Segundo BELLO, a partir do art. 1°, parágrafo único (dispondo que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição), a vigente Lei Maior "estabeleceu hipóteses de participação popular na Administração Pública: na educação (art. 206, VI), na proteção do patrimônio cultural (art. 216, § 1°), na fixação da política agrícola (art. 187), no planejamento municipal (art. 29, X), no controle das contas municipais (art. 31, § 3°), na seguridade social (art. 194, VII) etc." (Idem). Entretanto, reconhece, "embora seja uma grande conquista o elenco dessas normas na Constituição Federal, elas são normas programáticas e dependem de regulamentação legal para terem ampla aplicação." É uma concessão periférica : alude, mas não garante a participação popular na Administração Pública, o que seria, segundo FERRAZ, um dos "instrumentos cogitáveis para o desmantelamento do aparato autoritário da administração pública brasileira e do direito administrativo brasileiro" (apud BELLO, op. cit.). E, se pequenas brechas foram abertas pela legislação, não houve ainda uma mobilização para ocupar tais espaços; "o cidadão também precisa compreender - que a participação é boa para si mesmo e para a coletividade. A falta de tradição do Brasil neste aspecto não inviabiliza a concretitude de tal proposta" (BELLO, op. cit).

Para além da possibilidade (ou impossibilidade) de participação, resta a questão da defesa do Direito estabelecido, da busca de efetivação das normas limitadoras do poder de Estado, normas moralizadoras e disciplinadoras da ação pública etc. BARROSO, apoiando-se em JELLINEK, destaca: "as diversas situações jurídicas subjetivas criadas pela Constituição seriam de ínfima valia se não houvesse meios adequados para garantir a concretização de seus efeitos. É preciso que existam órgãos, instrumentos e procedimentos capazes de fazer com que as normas jurídicas transformem, de exigências abstratas dirigidas à vontade humana, em ações concretas" (1993: 115).

De fato, a previsão normativa de um direito, ou de uma garantia individual ou coletiva, não exaure, por si só, o embate entre dominadores e dominados, entre exploradores e explorados. Não basta a Constituição dizer, em seu art. 1°, III, que o Estado Brasileiro possui como fundamento "a dignidade da pessoa humana"; a tal previsão não corresponde um meio pelo qual um cidadão possa impedir a degradação de uma família (conduzida pelo desemprego para a mendigância), a prostituição infantil, a exploração de trabalho em carvoarias etc.; o texto normativo, assim, não é mais que retórica. Aliás, a Constituição Brasileira é um amplo discurso retórico: repleta de previsões normativas não implementadas. O art. 3° da Constituição Federal afirma constituirem objetivos fundamentais da República "construir uma sociedade livre, justa e solidária", "garantir o desenvolvimento nacional", "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais", e "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação". Como um cidadão pode exigir a sua concretização? Mesmo munido da comprovação estatística de que a pobreza, a marginalização e as desigualdades sociais e regionais estão se ampliando, um cidadão não pode exigir o cumprimento da norma constitucional (base de todo o sistema jurídico pátrio).

Aliás, nosso sistema jurídico (normas e jurisprudência) é extremamente injusto e elitista: estimula, quer pelo processo (previsto e praticado), quer pelo estabelecimento de penas (em abstrado e em concreto), a impunidade dos mais abastados (empresários, administradores públicos, parlamentares, entre outros). Assim, pune-se de forma basicamente igual aquele que lesa o patrimônio público (subtraindo-o, apropriando-se, desviando, superfaturando etc) em milhões e aquele que lesa o patrimônio público e/ou privado em pequenos valores. Note: desviar milhões de reais, destinados a programas de saúde, é fato que provavelmente não será apenado (via de regra, há prescrição da pretensão punitiva, quando não há absolvição face à precariedade da instrução probatória), e se o for, merecerá condenação inferior a de um roubo com ameaça de violência e concurso de agentes), face à primariedade, bons antecedentes, etc. O absurdo está em não agravar a pena de acordo com a gravidade da lesão (chegando a décadas de privação da liberdade quando o dano for de grande monta, o que incentivaria a reposição do patrimônio público).

Existem alguns instrumentos processuais previstos para a defesa de alguns dos direitos elencados. Apenas possibilidade, já que, como dito, restam dois grandes embaraços para o manejo amplo e irrestrito de tais caminhos procedimentais: despreparo jurídico (desinformação) da população (ignorante de seus direitos, bem como dos deveres de seus concidadãos e dos agentes públicos) e uma endêmica resistência de parte da magistratura em concretizar os avanços sócio-políticos, insistindo em posturas (inclusive hermenêutica) excessivamente conservadoras, formalistas, contribuindo para a impunidade (não apenas penal). Em defesa dessa postura, as hierarquias superiores do Judiciário insistem em invocar uma desvirtuada necessidade de separação e harmonia dos poderes; vale dizer: obrigar os outros Poderes a cumprir normas estabelecidas constituiria risco à independência destes, atentando contra a separação e harmonia entre todos. Mesmo quando há uma evolução legal, verifica-se, ainda assim, uma resistência judiciária em aceitar o avanço. BARROSO, a respeito, apoia-se em BARBOSA MOREIRA para criticar uma tendência de "interpretação retrospectiva", ou seja, aquela que "lê o novo texto com espírito nostálgico, em o ímpeto de buscar novas soluções. Tanto a timidez como a eventual hostilidade do Poder Judiciário tirar-lhe-íam as honras de colaborador sincero e empenhado da restauração democrática, para transformá-lo em coadjuvante do fracasso, como sabotador voluntário ou involuntário." (Idem: 120)

Exemplo desta "timidez judiciária" é o Mandado de Injunção (art. 5º, LXXI, da Constituição). Foi previsto para que a ausência de normas regulamentadoras não impedisse a aplicação de normas constitucionais: o Judiciário poderia suprir a lacuna para o requerente, permitindo a efetivação do dispositivo constitucional. Entretanto, como lê-se no Mandado de Injunção 288-6/DF, "a jurisprudência dominante no Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de atribuir ao mandado de injunção a finalidade específica de ensejar o reconhecimento formal da inércia do Poder Público em dar concreção à norma constitucional positivadora do direito postulado, buscando-se, com essa exortação ao legislador, a plena integração normativa do preceito fundamental invocado pelo impetrante do writ como fundamento da prerrogativa que lhe foi outorgada pela Carta Política."(rel.: Min. CELSO DE MELLO; DJU de 3.mai.95, p. 11.629)

O Supremo Tribunal Federal transformou o Mandado de Injunção numa mera ação declaratória de "mora legislativa": em lugar de suprir a ausência de regulamentação de um dispositivo constitucional, garantindo sua eficácia plena, limita-se a declarar a existência da lacuna, reconhecendo a inadimplência do Poder Legislativo no cumprimento de seu dever de regulamentar os direitos e as garantias previstas na Lei Básica. Via de conseqüência, exterminou-se a possibilidade de dar eficácia imediata às normas constitucionais; mesmo notificado de sua mora, o Legislativo pode não suprir a lacuna. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 192, § 3º, da Constituição Federal, norma que, há muito, o STF já declarou carecer de regulamentação (cf. ADIn 4/DF); a interposição de Mandado de Injunção sobre a matéria, a exemplo do nº 457-9/SP, merece apenas o reconhecimento da inadimplência, mas não o suprimento da lacuna: o mandado é "deferido em parte, para que se comunique ao Poder Legislativo a mora em que se encontra, a fim de que adote as providências necessárias para suprir a omissão" (cf. DJU de 4.ago.95, p. 22.440).

A mesma timidez (ou resistência) envolve certos aspectos da Ação Direta de Inconstitucionalidade. Como já tive ocasião de analisar alhures, "tal como posto em nossa legislação, essa - efetiva - participação de Estado é praticamente impossível de ser exercida: o ordenamento jurídico brasileiro cria, assim, uma cidadania parcial, na medida em que retira do cidadão o poder de agir para a preservação dos interesses sociais (depois de já ter retirado, da grande maioria da população, o poder de compreensão, não lhe fornecendo condições para uma formação educacional, minimamente satisfatória que fosse). A isto acresça-se uma exegese judicial que dificulta ainda mais o exercício da cidadania: o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, erige todas as dificuldades possíveis para o exercício das ações diretas de constitucionalidade." (1995b: 153, nota 2)

Entre as dificuldades erigidas, pode-se exemplificar com a definição e compreensão do que seja "entidade de classe de âmbito nacional" (cf. ADIn 334-8; DJU de 31.mar.95, p. 7.772), bem como a exigência de que haja uma "relação de pertinência entre o interesse específico da classe" defendida por tal entidade e "o ato normativo que é argüido como inconstitucional" (cf. ADIn 913-3; DJU de 5.mai.95, p. 11.904). O Supremo Tribunal Federal transformou tais requisitos em elementos mais importantes do que o próprio exame da pertinência da alegação de inconstitucionalidade. Destarte, mais do que requisitos procedimentais, tais elementos cumprem a função de entraves colocados justamente para dificultar o exame da inconstitucionalidade, passando a questão de mérito a ocupar posição secundária, justamente em função do formalismo exacerbado que impede o seu conhecimento.

Outros instrumentos processuais do Direito vigente dirigem-se à defesa de direitos e interesses coletivos e difusos ou seja, respectivamente: (a) interesses e direitos de um grupo de indivíduos que se pode determinar, ligados entre si por elemento comum; ex.: profissionais de uma mesma área - associados em entidade profissional -, empresas de uma região ou área econômica - organizadas em entidade representativa -, alunos ou pais de alunos de uma instituição de ensino, condôminos etc.; (b) interesses e direitos que dizem respeito a um conjunto não enumerável de indivíduos - não identificados ou identificáveis -, como "a sociedade", os moradores de uma região, os consumidores de um certo produto etc.. A proteção destas duas ordens de direitos e interesses (destacada a difusão) constitui tema inegavelmente central no debate jurídico contemporâneo. Infelizmente, no Brasil, não se consolidou ainda uma legislação, e muito menos uma tradição judiciária adequadas a uma ampla defesa de interesses e direitos dessas naturezas (uma lamentável falta de amplitude democrática).

A Constituição Federal de 1988 (art. 5°, XXI) avançou ao permitir que as entidades associativas pudessem buscar a defesa dos direitos de seus membros, judicial ou extrajudicialmente. O texto da norma, contudo, refere-se à necessidade de "autorização expressa" dos membros, o que, em conjunto com a disposição do inciso XX, do mesmo art. 5° (prevendo que "ninguém poderá ser compelido a associar-se ou permanecer associado"), tem sido utilizado como argumento para limitar o âmbito de atuação das associações. O argumento impeditivo deve ser analisado com seriedade, mas, principalmente, com razoabilidade, certo que em inúmeras situações esta autorização chega a se presumir (ex.: associação de pais e mestres em procedimentos que dizem respeito à administração de unidade escolar, preço de mensalidade, prestação de contas; associações de aposentados, em procedimentos que visem a melhoria de pecúlios ou serviços assistenciais etc). Sem este bom senso na interpretação do dispositivo constitucional, fugir-se-á aos fins visados pela norma, um inegável retrocesso na busca da consolidação de um Estado Democrático de Direito.

Ainda para a defesa dos interesses difusos, pode-se listar a ação civil pública, pretendendo determinar a responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e turístico. A capacidade de aforamento da ação civil pública é limitada pelo texto legal (Lei 7.347/85): o Ministério Público, os entes políticos e seus órgãos descentralizados, as associações velhas de um ano, cujos estatutos prevejam a tutela do interesse cogitado in concreto. Um inegável instrumento para a proteção dos bens e dos interesses públicos. Entretanto, como anota BARROSO, a legislação que a disciplina já está a comportar uma evolução: "extensão da legitimidade ativa a particulares, agindo em nome da coletividade", assim como a ampliação dos "interesses tutelados", "não havendo razão para restringir as ações coletivas aos temas que a lei, numerus clausus, delimita" (Op. cit.: 140-141).

O art. 5°, LXXIII, do Texto Constitucional de 1988 lista a "ação popular" que pode ser proposta por "qualquer cidadão", visando "a anular ato lesivo ao patrimônio público ou entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência". Destaca BARROSO que "a legislação ordinária que disciplina a ação popular ampliou-lhe largamente a área de incidência", tutelando não apenas as "pessoas estatais, mas também autarquias, as sociedades de economia mista, as empresas públicas, as fundações instituídas pelo poder público e os serviços sociais autônomos, dentre outras (Lei n° 4.717/65, art. 1°). Além disso, ao fixar o conceito de patrimônio público, dilatou-o para abranger os bens e direitos de valor econômico, artístico, histórico ou turístico (art. 2°)." (Op. cit.: 134)

O mandado de segurança, atualmente previsto no art. 5°, LXIX, da Constituição, é instrumento que surgiu já na Carta de 1934, estando regulamentado pela Lei 1.533/51. O art. 5°, LXX, da vigente Constituição, criou a figura do manejo coletivo do mandado de segurança, determinando uma "ampliação da legitimação ativa", "uma hipótese de substituição processual", com o que "poderá uma entidade de classe intervir em nome da coletividade como um todo, na defesa de um interesse geral, que apenas se reflete, sem com ele confundir-se, no interesse individual de cada um dos seus membros", o que implica em uma "grande simplificação e economia de tempo e trabalho", assim como suprime a "possibilidade de decisões logicamente conflitantes" (Idem: 136-137). Mas também quanto ao mandado de segurança coletivo paira a sombra de uma interpretação limitadora que poderia ser impingida a partir da invocação do inciso XX, do mesmo art. 5° (cf. supra), exigindo seriedade e razoabilidade do Judiciário, certo que pode-se limitar em excesso o emprego do mandamus coletivo com uma exegese ortodoxa, lamentavelmente reiterada por certa parcela da magistratura.

No âmbito dos direitos individuais, há o habeas-corpus, cuja presença no direito brasileiro (hábil à proteção da liberdade de locomoção - art. 5°, LXVIII) é clássica, não merecendo, no âmbito deste trabalho, maiores considerações. A Constituição de 1988, em seu art. 5°, LXXII, criou uma nova ação, qual seja o habeas-data, permitindo o "conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público", bem como a retificação destes dados. Para a interpretação deste art. 5°, LXXII, é indispensável que se lance atenção para outro direito e garantia individual, anotado no art. 5°, XXXIII, da vigente Constituição Republicana: "todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado."

O constituinte procurou sepultar uma antiga prática de Estado no Brasil, onde os administradores insistem em práticas abusivas. Já "ao tempo do Império, havia expedientes em que a simples afirmativa ‘Consta que’ era suficiente para a cassação até de direitos políticos dos cidadãos, demonstrando com isso o arbítrio que havia, no tocante ao fornecimento de dados pessoais comprometedores da honorabilidade do cidadão, utilizados por terceiros, sem que o prejudicado tivesse ciência do fato ou pudesse corrigir eventuais abusos, por lhe serem negadas informações referentes à sua pessoa. Na atualidade, ocorrem abusos semelhantes, que o preceito em tela procura evitar, facultando o acesso do interessado às informações de que necessite." (SOARES,1990: 136)

3. Cidadania: participação consciente

Para além da questão relativa à definição normativa das possibilidades de participação nos desígnios da sociedade e sua organização em Estado, restam as condições sócio-políticas em que se insere o tema cidadania. Parte do problema já foi analisada: refiro-me à uma postura conservadora de parte do Poder Judiciário, limitando a evolução social do país (e o quadro de miséria vigente entre nós aponta a necessidade urgente de reformas sociais). FARIA confessa desapontamento semelhante: "à medida que surgem novos tipos de conflitos, a maioria das leis vai envelhecendo. Embora os legisladores respondam ao desafio da modernização das instituições de direito com a criação de novas leis, a cultura técnico-profissional da magistratura parece defasada, insensível, portanto, aos problemas inerentes à aplicação de leis mais modernas em sua concepção" (1992: 9)

A posição assumida pelo Judiciário constitui um dado forte nas mazelas da máquina estatal brasileira. Era inevitável, portanto, que, mais cedo ou mais tarde, o Judiciário fosse colocado nos debates nacionais, o que aos poucos vem ocorrendo. Durante anos, foi um Poder intocado, como que posto para além do bem e do mal. Houve, contudo, excessos. Por certo, garantir independência aos juízes é um princípio de democracia; mas não expô-los à opinião pública é permitir o exercício do arbítrio de quem, possuindo o poder de interpretar as normas, pode até mesmo negá-las. Este debate, contudo, deve ser criterioso: a muitos interessa apenas garantir que o Judiciário não obstaculizará suas ações ilegítimas. Permiti-lo seria um enorme retrocesso. Mas esquecer-se que também no Judiciário se praticam atos reprováveis constitui, no mínimo, ingenuidade. A discussão, portanto, exige bom senso e respeito à primazia dos interesses da sociedade sobre os interesses individuais.

Há também o problema do acesso dos pobres à Justiça. CARNEIRO, pretendendo analisar "a pobreza crítica de milhões de latinoamericanos", refere-se a uma correlata "pobreza política", vale dizer, não há "nenhum acesso ao poder político e nenhuma oportunidade de participação" (apud OLIVEIRA F°, 1995: 23). É o terceiro obstáculo, já referido: como se pode ter cidadania (participação consciente nos desígnios de Estado) com indivíduos que não possuem condições mínimas de compreender seus direitos e deveres? Afinal, como diz CARNEIRO, "para exercitar direitos e cumprir obrigações pessoais e sociais, para participar de uma democracia sólida, madura e ativa, é necessário que as pessoas tenham a possibilidade de informar-se, de conhecer, quer dizer, de participar." Porém, na realidade, os pobres "não tem oportunidade de conhecer seus direitos, não possuem acesso aos serviços apropriados e disponíveis. Para eles, a lei, o Direito, é algo inacessível, amedrontador, olhado com bastante reserva, pois sempre que os pobres tem contato com a lei e a justiça, é em geral no campo do direito penal, e sempre para sancioná-lo, coibi-lo; em nenhum momento o pobre encara a justiça como um serviço social capaz de outorgar-lhe benefícios - as experiências pessoais, os abusos de autoridades mostram a realidade expressada."(Idem: 25)

Milhões de brasileiros vivem em pobreza política: não se lhes permitiu uma educação apta a desenvolver um senso político e crítico. Especificamente quanto ao Direito, este enorme contingente populacional vive em ignorância jurídica, desconhecendo informações elementares que lhes tocam o cotidiano, como a Lei do Inquilinato, normas sobre o poder de prisão, direitos trabalhistas etc. Chamar-lhes de cidadão, neste contexto, é pura retórica dentro de um mito de democracia participativa que não possui condições mínimas de ser implementada por não estar alicerçada em uma efetiva (possibilidade de) participação popular. Curiosamente, os "esforços de redemocratização" (denominandos assim os atos e processos de transição entre os regimes militares, autoritários, para regimes civis, pretensamente democráticos) pelos quais passaram - e/ou passam - os países da América Latina, não foram acompanhados por uma popularização do conhecimento jurídico, permitindo a formação de cidadãos conscientes de seus poderes, suas faculdades, e de suas obrigações. Ao contrário, este conhecimento continua sendo um privilégio daqueles que podem pagar a assessoria de qualificados profissionais do Direito (e quanto mais qualificados, mais bem remunerados).

Como se só não bastasse, CARNEIRO também reconhece que "existem em nossas instituições judiciais inegáveis dificuldades que impedem o acesso dos mais despossuídos ao sistema judicial. As experiências demostram que os processos são lentos, burocráticos, gerando decisões inoperantes, e que terminam por causar frustrações e ressentimento a tais setores" (Op. cit.: 26) Há que se acrescer, por óbvio, o problema do custo de estar em juízo, principalmente no que se refere à possibilidade de se fazer representar por um bom advogado, capacidade que, justamente em razão da limitação econômica, os pobres rarissimamente podem exercitar. CARNEIRO, assevera que a atenção para as demandas dos pobres, por parte de advogados nomeados pela Ordem dos Advogados ou pelos Tribunais para defender gratuitamente as pessoas pobres, por parte dos Defensores Públicos, escrivães, funcionários do judiciário, é "escassa, negligente e descuidada" (Idem: 29-31).

4. O MITO DA CIDADANIA

A cidadania entre nós, vê-se, não é uma realidade: é uma promessa. E se não temos cidadania (e, por conseqüência, cidadãos), se não temos participação consciente (um amplo contingente de pessoas conscientes e dispostas a participar da e) na condução da sociedade organizada em Estado, não temos democracia.

Destaque o elemento humano. É preciso não esquecer que, para além da definição jurídica de "cidadão", estamos nos referindo a seres humanos (e a uma sociedade). É a qualidade política de cada um desses indivíduos que marca a qualidade política da sociedade (num somatório não aritmético). ALTHUSSER, escorando-se em MARX, adverte que "a sociedade não é composta de indivíduos"; "o que a constitui é o sistema de suas relações sociais, onde vivem, trabalham e lutam seus indivíduos". Realça-se a questão da formação do ser humano pela e na sociedade ; afinal "cada sociedade tem seus indivíduos, histórica e socialmente determinados" (1978: 30; grifei) .

A questão da cidadania não é apenas normativa e doutrinária, mas sociológica: apura-se também no plano dos fatos que compõem (e afetam) a vida dos seres humanos. Assim, importa também verificar a cidadania efetivamente experienciada pela sociedade, pois, para além das teorias e das normas, está a vida de cada ser humano que constitui a sociedade. De pouco adianta propagar que cada um é um agente de seus destinos político, social, econômico, jurídico (o mito da cidadania), se não há condições jurídicas e mesmo pessoais para que isto ocorra. Este ser humano que se crê agente é, antes de mais nada, um objeto de cultura: ela o precede e o forma. Pensamos agir com liberdade, mas agimos segundo parâmetros de "normalidade" desse tempo histórico (repetindo atos e pensamentos que nos são anteriores e podendo influenciar a história apenas em certos limites - variáveis de caso a caso, mas, via de regra, extremamente reduzidos). Confira-se FIGUEIREDO (1994): o tempo histórico forma o indivíduo, constrói seu pensamento, marca a tendência de seus comportamentos, seus desejos principais, suas "necessidades". Sob o enfoque da psicologia, FIGUEIREDO demonstra o acerto das afirmações de MARX sobre as influências das condições materiais, econômicas, sociais sobre o o ser humano.

Assim, o ser humano medieval (europeu) acreditava em (vivia com) fadas, feiticeiros, magos, maldições etc: um tempo de luta religiosa (contraste de seitas em um mundo que crescia) e de forte influência da Igreja Católica: a vida como mera provação, entre Deus e o diabo (luta marcada pelo sacrifício e pelo sofrimento; o prêmio: a salvação eterna; o castigo: o inferno). O agnosticismo de nosso tempo, por sua vez, segue também a história: a religião foi substituída do centro das atenções e referências pela ciência e pela economia (e a vida eterna pelo conforto, riqueza, sucesso). Sim! Somos seres feitos de história , formados em um tempo e lugar, em uma sociedade e sua prática social; não só nosso comportamento, mas nossa visão de mundo (a forma como a realidade se manifesta em nós) nos são anteriores em suas linhas mestras. Cada ser humano compreende a si e à realidade em que se insere (na forma como crê que seja esta realidade e esta inserção) a partir de referenciais que lhe são exteriores e anteriores (que lhes foram dados).

No caso brasileiro, deixando de dar formação educacional (crítica e política) a parte da população, mantém-se a prática espoliatória que beneficia uma elite (narcísica, incompetente, inconseqüente) em desproveito de milhões de pessoas (miseráveis e trabalhadores das classes baixas). Permite-se uma certa ordem de privilégios para uma classe intermediária (classe média), que, na estrutura social, funciona como suporte para as classes dominantes: fornece-lhe profissionais que administram seus interesses (nestes incluídos tanto os negócios particulares, quanto os "negócios de Estado", ou seja, a administração do aparelho de Estado, sempre no estrito respeito à conservação de seus benefícios), assim como assimila (motivada pelo desejo de conservar sua própria parcela - ainda que limitada - de benefícios) a fobia - e a luta - contra um possível "levante" das massas exploradas.

A este quadro de dominação e a exploração serve o "mito da cidadania": nossa sociedade é induzida a crer-se democrática e os indivíduos a crerem-se cidadãos; segundo este discurso (falso, nos termos vistos), haveria entre nós respeito ao Direito (não só às normas estabelecidas, como aos "elevados princípios de justiça") e oportunidades de participação. Mas examinando-se os indivíduos isoladamente, encontrar-se-á apenas uma pequena minoria que possui condições pessoais e sociais de, efetivamente, conhecer e utilizar-se das possibilidades (limitadas, como viu-se) de participação consciente nos desígnios de Estado. A consolidação do (verdadeiro) Estado Democrático de Direito, em contraste, exige muito mais. Há que repensar nossas posturas: a pretensa inocência da alienação política provou, durante anos, ser uma irresponsável adesão à continuidade do sistema espoliativo que polvilhou nosso país de miseráveis, despreparados, até mesmo, para perceberem que o trabalho e a organização das iniciativas poderia ser uma possibilidade de superação do estado em que se encontram. Assim, muitos se entregam às seduções do vício (que aliviaria) e da criminalidade (onde crêem poder exercitar algum poder).

Os que possuem uma visão crítica precisam posicionar-se e buscar conquistas que efetivem a democracia. Trabalhar quer no plano político (na luta pela construção de um sistema educacional capaz de criar seres humanos aptos a compreender, de forma crítica e participativa, a realidade social e política; a alteração das legislações que cuidam da participação popular na Administração Pública e da defesa dos direitos previstos etc), quer no plano jurídico (criando organizações não governamentais para o exercício dos meios processuais disponíveis, concretizando uma defesa dos direitos individuais, coletivos ou difusos previstos, bem como defesa dos bens e interesses públicos; alteração das práticas judiciárias e administrativas de Estado, onde a busca de formalismo determina que se tratem de forma igual fracos e fortes, espoliados e espoliadores).

Este o desafio que se coloca diante de nós; assumí-lo é uma opção de justiça, opção humanista, evolucionária (em lugar de revolucionária).


.Referências Bibliográficas

AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Alfa-Omega, 1984.

ALTHUSSER, Louis. Posições I. Trad. Carlos Nelson Coutinho et alli. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Trad. Maia L. V. Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucinal e a Efetividade de suas Normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1993.

BELLO, Raquel Discacciati. "A Participação Popular na Administração Pública". [artigo ainda não publicado]

CARVALHO NETTO, Menelick. A Sanção no Procedimento Legislativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992.

DRUMOND, José Geraldo de Freitas. O Cidadão e o seu Compromisso Social. Belo Horizonte, Cuatiara, 1993.

ENCARNAÇÃO, João Bosco da (coord.) Seis Temas sobre o Ensino Jurídico. São Paulo: Cabral: Robe, 1995)

FARIA, José Eduardo. Justiça e Conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.

FIGUEIREDO, Luís Cláudio. A Invenção do Psicológico: quatro séculos de subjetivação (1500-1900). São Paulo: EDUC: Escuta, 1994.

MAMEDE, Gladston. Semiologia e Direito: tópicos para um debate referenciado pela animalidade e pela cultura. Belo Horizonte: Editora 786, 1995.

MAMEDE, Gladston. Neoliberalismo e desadministrativização. Revista de Informação Legislativa. Nº 81, p. 151-159, jul./set. 1995(b).

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.

MUNIZ, Marco Antônio (org.). Direito e Processo Inflacionário. Belo Horizonte, Del Rey, 1994.

OLIVEIRA Fº, Paulo de (org.). Parolagem: ensaio e crítica. São Paulo: Editorial Livros, 1995.

SOARES, Orlando. Comentários à Constituição da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1990.


(Publicado na Revista de Informação Legislativa. Brasília, n° 134, páginas 219-229, abr./jun. 1997.)

Voltar ao Topo   TÓPICO 7

A favela invisível se debruça sobre o Rio

 

Revista Época, 24 de fevereiro de 2000

Marcos Sá Corrêa

Além da pobreza, o morro deu vez ao mercado

Como a floresta tropical, a favela é um laboratório de biodiversidade nas encostas do Rio de Janeiro. A Rocinha tem estacionamento rotativo, balcão do McDonald's, casa de vinhos, rede própria de televisão a cabo, clínica privada com UTI e cadeia de pastelarias, novidade trazida por imigrantes chineses que se espalhou por cinco pontos-de-venda em quatro meses.

Viva-Cred, programa de crédito para negócios domésticos, banca involuntariamente a consolidação do senhorio: investidores locais pegam o dinheiro, constroem prédios e alugam quartos para viver de renda. Brotam nos morros cariocas franquias de supérfluos, como a De Plá, que vende e revela material fotográfico para amadores. São inumeráveis as academias de ginástica, as locadoras de vídeo e os cursos de informática. Há lugares carentes que necessitam até de vagas para automóveis.

Puxada pelo mercado, a favela esgarçou-se. A palavra só serve agora para igualar o que é cada vez mais desigual. Favelada é, por exemplo, a vice-governadora Benedita da Silva, cujo difícil começo no Morro Chapéu Mangueira está há muitos anos soterrado pelas compensações e vantagens da vida pública.

A olho nu, é visível que no Rio a favelização não é mais uma exclusividade da miséria. Multiplica também as casas vazias, às vezes com mato saindo pela janela, para mostrar que nelas a pressa dos especuladores superou a urgência dos problemas habitacionais. Mas, como toda essa evidência ainda não é reconhecida por políticos, jornalistas, líderes comunitários e cineastas, recomenda-se a leitura do artigo da socióloga Licia do Prado Valladares na revista Inteligência, publicação trimestral editada pelo professor Wanderley Guilherme dos Santos.

Ela conseguiu empacotar em cinco páginas todas as transformações que esperavam havia décadas um convite para descer ao asfalto, escondidas "na neblina de um tempo mítico". Para começar, as 604 favelas cariocas são em geral áreas pobres, mas não "necessariamente mais pobres do que os outros bairros". Existem na cidade "áreas onde a concentração dos muito pobres é maior e onde a presença do equipamento urbano é menor".

São, além disso, heterogêneas. Nos dados do censo de 1991, velhos de quase uma década, já havia sinais de excessiva diversidade social para que se defina o favelado por renda, educação, infra-estrutura ou mesmo pela propriedade irregular da casa em que mora.

Diga-se de passagem que Licia Valladares sabe o que está dizendo. Estuda o assunto há mais de 30 anos. Em 1978, encurralou os programas de erradicação de favelas então em voga no livro Passa-se uma Casa. Removidos a muque para conjuntos populares, os favelados negociavam suas vagas nos programas habitacionais do governo e voltavam ao mercado informal de tetos. Não era pura teoria. Durante a pesquisa, ela morou na Rocinha.

Atualmente, dá aulas na Universidade de Créteil, na França, mas deixou no forno Desigualdade entre os Pobres, um estudo feito para o Ipea. Sobra-lhe experiência para abrir alas ao milhão de favelados que têm um novo enredo para desfilar. Ei-lo: "Enormes e modernos mercados de consumo".

Voltar ao Topo   TÓPICO 8

Que favelas são essas?

 

Retirado do site: http://www.informe.com.br/inteligencia/index.html  

AGOSTO/ SETEMBRO/OUTUBRO 1999
Licia do Prado Valladares
Socióloga

     No coração da Rocinha, em apenas quatro meses, imigrantes chineses abriram cinco pastelarias; em inúmeras outras favelas a cadeia de material fotográfico De Plá compra cada vez mais pontos; as lojas de colchões Ortobom abrem sucursais; academias de ginástica, com equipamento moderno, se multiplicam; cursos de informática e de inglês sediados nas próprias favelas atraem cada vez mais moradores; empresas de mototáxi e de motoboys, dotadas de modernas motocicletas, levam rapidamente passageiros a qualquer lugar; pizzarias entregam em casa; restaurantes a quilo atraem enorme clientela; imobiliárias começam a organizar o mercado de aluguel antes restrito aos proprietários; alguns prédios já chegam ao 4° andar; lojas de eletrodomésticos vendem a prestação e no cartão de crédito modernas lavadoras, aparelhos de vídeo e fornos de microondas; empresas privadas de seguro-saúde agregam cada vez mais clientes nesses locais; as locadoras de vídeo se multiplicam, concorrendo agora com as tevês a cabo que descobriram nas favelas um mercado seguro e promissor. Tudo isso para não falar do telefone celular cada vez mais popularizado... e dos automóveis, que em inúmeras favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro disputam vagas com caminhões, ônibus e táxis...

    No entanto, às vésperas do século XXI, não é esta a representação da favela que nos chega, entre outros, através do cinema nacional que tem levado às telas -  em documentários, ficção e clipes -  a vida dos moradores dos morros cariocas resumida a "pó, tristeza, camaradagem, miséria, amor e realidade", segundo o Jornal do Brasil. Chocantes e belas imagens parecem ultrapassadas, insistindo no barraco de madeira, na birosca que vende fiado, nos porcos e galinhas perambulando pelos becos imundos, nos terreiros de umbanda e na preparação da escola de samba para o desfile na Avenida, apenas recobertas pelas novidades da violência, do rap e da substituição do Estado pelo narcotráfico.

    Convenhamos, porém, que já não é mais possível manter o mesmo e velho discurso sobre a favela carioca, no qual ela aparece como o território-mor da pobreza e da cultura popular, como um enclave dentro da cidade excluído dos processos econômicos gerais, como a outra metade de uma Cidade Partida onde a vida local se reduz à violência e à pobreza...

     Por que, no entanto, as imagens diluídas na neblina de um tempo mítico, ainda se fazem tão presentes? Por que se insiste tanto em representações da antiga favela? No Rio de Janeiro quem pensa favela pensa pobreza, pensa precariedade, associação tão velha quanto a própria favela e muito presente no imaginário social. A quem interessaria enfatizar essa visão?

     Antes de tentar responder a tais indagações, será necessário examinarmos os "dogmas" que parecem inspirar quem pensa, quem age e quem olha de fora as favelas.

OS  DOGMAS

O primeiro "dogma" se refere à especificidade da favela. Desde sempre considerada diferente, com história e padrão de crescimento percebidos como distintos dos outros bairros da cidade, sua marca seria a especificidade. Os geógrafos chamam a atenção para um tipo de ocupação do espaço inusitado no tecido urbano, ou seja, totalmente irregular, sem o arruamento de um bairro, e subequipado em termos de serviços e equipamentos coletivos. Os arquitetos ressaltam a diferença através da existência de um hábitat, um urbanismo e uma estética mirabolantes que fogem aos padrões da racionalidade arquitetônica. Os órgãos oficiais vêm insistindo há décadas na irregularidade e na ilegalidade da ocupação, justificando com isso um tratamento específico para as favelas. Indicadores demográficos ainda mostram ali que o perfil de sua população é mais jovem, com grande número de migrantes, que a densidade por domicílio é mais acentuada, e que o crescimento das áreas de favela apresenta taxas maiores que o crescimento geral da cidade.

     Coroando essa diferença está a concepção do IBGE que considera as favelas como aglomerados subnormais, com um mínimo de cinqüenta domicílios...

     Pesquisas realizadas por sociólogos e antropólogos também acabam desembocando nessa especificidade, quando identificam uma cultura da favela. O último livro sobre o assunto, Um Século de Favela, organizado por Alba Zaluar e Marcos Alvito, dentre doze textos, quatro tratam da cultura popular -  samba, carnaval, capoeira, bailes e galeras funk; cinco tratam de crime, medo, drogas e delinqüência, ou seja, da violência na favela; e apenas três tratam de mudanças na política e na estrutura social da favela.

     A academia vem insistindo em que, a favela, inicialmente berço do samba, é hoje, também, o coração do funk e do rap. Território-mor do jogo do bicho no passado, é hoje identificada como a central do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Espaço propício às diferentes formas de religiosidade popular, é vista como terreno fértil onde floresceram a macumba, a umbanda, e mais recentemente uma multiplicidade de cultos protestantes e pentecostais. Lugar onde até mesmo a política seria diferente, com associações de moradores originalmente presas do clientelismo político passando ao controle do tráfico que hoje representa o papel de um Estado ausente. Em suma: o que se defende é a forte identidade desses espaços, marcada não apenas por uma geografia própria, como também pela condição ilegal da ocupação do solo, pela sua persistência em permanecer favela (conforme a música Opinião, de Zé Keti, popularizada por Nara Leão) e por um modus vivendi cotidiano não encontrado em outras áreas que levaria, por exemplo, o jovem pobre frente ao fracasso escolar e ao fascínio do tráfico -  poder, dinheiro - a ingressar no chamado movimento. Sendo diferente, a favela também condicionaria o comportamento de seus moradores: à diferença na favela corresponderia uma diferença da favela. Os fenômenos sociais ali acontecendo apresentariam teor e coloração distintos que lhes seriam particulares. Uma versão nova do meio condicionando o homem?

O segundo "dogma" corresponde à idéia amplamente compartilhada da favela enquanto o locus da pobreza. Espaço "número um", território da cidade por excelência onde residem os pobres. A idéia de um espaço que lhes seria próprio vem de longe, desde que os cortiços da Avenida Central, postos abaixo pelo prefeito Pereira Passos, forçaram a população pobre a subir os morros dando início ao processo de favelização. A lenda aponta o Morro da Favela, ocupado por ex-combatentes da guerra de Canudos em 1897, como origem desse nome que acabou passando de próprio a substantivo. A partir dos anos 20, com o crescimento desmedido da cidade do Rio de Janeiro as ocupações se multiplicaram, assim como se multiplicaram as tentativas de acabar com as favelas e conseqüentemente... com os pobres. Sob a inspiração dos meios acadêmicos, a favela começou a ser defendida como solução de moradia barata e plausível, gratuita como convém a quem tem renda irregular ou simplesmente não tem renda e não pode pagar aluguel. À medida que passou a reunir uma proporção cada vez maior de quem não tinha acesso ao mercado imobiliário regular, não tinha acesso à cidade legal, acabou adquirindo a categoria de enclave. Enclave abandonado pelos poderes públicos, entregue à própria sorte, território da partição, pobre, marcado intramuros por leis próprias, por códigos próprios, símbolo mesmo da segregação sócio-espacial, imagem muito bem sintetizada no livro Cidade Partida do jornalista Zuenir Ventura.

     Elegendo a favela como local privilegiado para realizar suas pesquisas ou dissertações, a academia, por sua vez, dá fortes sinais de que partilha da crença nesse "dogma". Aluno ou pesquisador interessado nos temas da pobreza ou das desigualdades sociais não pensa duas vezes, e vai para a favela atrás da empiria. O pressuposto inconteste da favela enquanto área de moradia dos pobres, espaço popular, tem levado à utilização cada vez maior da favela como "campo" para o estudo de todos os fenômenos associados à pobreza e ao universo popular: religião, saúde, política, associativismo, setor informal, mulher, criança, juventude, escola, violência etc.

     Enquanto território da pobreza a favela passou a simbolizar o território dos problemas sociais, numa associação do espaço físico ao tecido social, que assim passa a ser precário também. Sem normas ou, melhor dizendo, com outras normas, a sociedade local além de diferente é também qualificada como problemática. Sobre isso não faltam evidências quanto à marginalidade em geral e ao fascínio do tráfico em particular. A denominação de favelado, originalmente qualificativo de lugar geográfico, passou a representar também um lugar social na pobreza, e morar na favela é sinônimo não apenas de ser pobre e pertencer ao mundo popular, mas também ao mundo dos problemas. Com a crescente difusão da idéia de favela como enclave ou "guetto", como espaço social territorializado, parece reafirmada a idéia da pobreza que gera pobreza e da pobreza que gera problemas. Um circulo vicioso que estigmatiza?

O terceiro "dogma" se refere tanto ao tratamento analítico quanto político da favela enquanto unidade. Sobre a favela se fala, se escreve e sobretudo se age e pensa no singular. Muito embora todos reconheçam estar diante de uma realidade vária - diversas partes populacionais, antigas e recentes, consolidadas e precárias, de morro e do plano, do Centro, da Zona Sul, Zona Norte, Zona Oeste ou periferia -  o hábito nos leva a transformar um universo plural em categoria única. Nós mesmos, até agora, neste texto, falamos da favela nos reportando ao universo das favelas.

     Uma das implicações do tratamento da favela no singular deve ser ressaltada. O parâmetro de referência para pensar sobre ela passa a ser aquele da homogeneidade e não o da diversidade, tornando secundárias as diferenças internas desse universo. Desse modo a linguagem oral, escrita, visual, utilizada pelos atores mais variados acaba sendo aquela que trata o universo das favelas como um universo homogêneo onde as dessemelhanças praticamente não teriam vez. O apelo sistemático a um "tipo ideal", ou a um arquétipo, é a melhor expressão desse tipo de retórica em que a favela se torna sinônimo de morro, de área de ocupação irregular, de zona ilegal, de espaço da precariedade dos serviços e equipamentos urbanos, de lugar onde estão concentrados os pobres urbanos. Unificando sob uma mesma denominação genérica situações muito diferentes frente às características tanto dos espaços, quanto de suas populações.

O PORQUÊ DOS DOGMAS

     Em dois trabalhos anteriores em co-autoria com Edmond Preteceille (A desigualdade entre os pobres: favela, favelas, IPEA, 1999; e Favelas no Plural, ANPOCS, 1999) a partir de dados do Questionário 1 do Censo de 1991, mostramos que, contrariamente à visão dominante, hoje existem fortes sinais da heterogeneidade física, espacial e social das favelas sendo quase impossível, e até mesmo incorreto, tratar a favela como uma categoria única e distinta. Trabalhando com o conjunto dos 10.542 setores censitários correspondentes à Região Metropolitana do Rio de Janeiro, isolamos aqueles que o IBGE considerou como de favelas em um total de 1.291 setores (12% do total) para poder compará-los aos setores censitários que não correspondiam às favelas mas sim ao restante da metrópole. Construímos tipologias referentes às condições de urbanização dos domicílios (grau de acesso aos serviços de água, esgoto, lixo), condição de ocupação dos domicílios (propriedade ou não da construção e/ou do terreno), e nível educacional e nível de renda dos chefes dos domicílios. Comparando os setores censitários de favela e não-favela, verificamos que aqueles que correspondem às favelas se distribuem em cada uma das três tipologias por praticamente todos os tipos -  exceto os superiores -  o que indica uma diversidade entre os setores de favela tanto no que se refere às condições de urbanização, quanto de ocupação do domicílio, quanto ao nível de educação e renda do chefe. O resultado é que não apenas a suposta homogeneidade das favelas cariocas foi contestada. Mas também a comparação dos setores onde existem favelas com aqueles onde elas não existem revelou que os setores de favela não são necessariamente os piores equipados da metrópole, os únicos onde aparece a "propriedade só da construção", ou aqueles onde residem a grande maioria dos chefes de domicílio mais pobres e com nível educacional mais baixo.

     Muito embora nosso trabalho tenha apenas se pautado em alguns indicadores do Censo, ele sugere uma grande diversidade dentro de um mesmo universo. Aponta, por outro lado, para um must metodológico: a necessidade de comparar sempre as áreas de favela com as demais áreas da cidade, ou seja, com o restante do território urbanizado. Somente através desse procedimento temos condições para discutir a especificidade ou não desses espaços.

     No presente artigo queremos responder a uma outra pergunta. Como explicar a persistência dos "dogmas"? Afinal de contas por que existe interesse em que eles perdurem? E até que ponto sua permanência no imaginário coletivo e social reverte em benefícios para as favelas e suas populações?

     Ao longo da história das favelas cariocas três grupos de atores sociais têm tido papel de destaque: o governo, as associações de moradores e, na década de 90, as ONGs. A defesa da especificidade da favela, de sua concepção enquanto território por excelência onde residem os pobres e do seu tratamento enquanto universo homogêneo tem interessado, por razões diferentes, a esses três grupos.

      Comecemos pelas políticas públicas, lembrando que elas sempre sustentaram a especificidade do universo das favelas. Propostas muito diversas e até mesmo opostas como a remoção e a urbanização, partiram do pressuposto de que essas áreas - ilegais, irregulares e subequipadas - deveriam receber tratamento especial. Caso contrário, como justificar uma política para a favela?

     Como justificar a parafernália de instrumentos e procedimentos técnicos, a legislação especializada, as medidas e "soluções" alternativas que em diferentes momentos foram sendo concebidos por distintos órgãos públicos? Arriscaríamos responder que, para justificar a política pública, é necessário defender a especificidade da favela.

     Quando se trata de políticas operando em larga escala, trabalhar com a unidade - "a" favela -  também tem se mostrado muito mais "lógico", "adequado" ou "eficaz". Normas gerais, critérios comuns, definições básicas, parecem necessários para garantir uma operacionalização eficiente, qualquer que seja o tipo de programa implementado. Muito embora as diferenças entre favelas e dentro delas existam -  e o poder público sabe muito bem disto -  para as políticas e os programas especiais é sempre mais simples que o alvo seja definido como uniforme, e não heterogêneo. A operacionalização de qualquer política ou medida fica simplificada quando se dirige para "a" favela, para um tipo único de espaço que corresponderia a um tipo único de realidade social.

     Por conseguinte, o público-alvo também é visto e entendido como único, com as diferenças zeradas, e as características gerais e dominantes salientadas. Não se trata apenas de uma população igualada por residir na favela mas por ser toda ela constituída de pessoas de baixa renda. Uns e outros podem se inserir de forma diferenciada no mercado de trabalho, dispor de renda irregular ou fixa, baixa ou até mesmo bastante elevada morar de aluguel ou ser proprietário de uma ou várias moradias, não saber ler nem escrever, ter o secundário completo ou ser doutor. Serão sempre referidos como os pobres. Para fins políticos e operacionais o que vale é ressaltar o grupo enquanto categoria una, enquanto um todo.

     Mas não é só a política pública que, para se justificar e tirar proveito político, necessita continuar defendendo o discurso da especificidade da favela e da homogeneidade da pobreza. As associações de moradores, apesar de uma história de atuação diversificada ao longo do tempo, ora em oposição ora cooptadas pelo governo, também batem na mesma tecla. Hoje em dia é pelo termo comunidade, que as lideranças se referem ao conjunto que representam. Esta noção, utilizada como substituto do termo favela, considerado pejorativo, escamoteia as diferenças e os conflitos presentes seja no universo das favelas, seja no interior dos seus espaços, seja entre seus moradores. Além de supor uma idéia de união, nem sempre aparente na história dessas associações e de seus respectivos territórios, a noção de comunidade esconde uma grande diversidade de situações sociais e de interesses, presentes no interior de uma estrutura que tende mais para atomística do que para comunitária.

     Vale lembrar que na tradição carioca ajudar o pobre sempre deu voto, e que as associações de moradores sempre tiveram parte ativa nesse jogo. A política na favela tanto tem um pé na tradição clientelista da bica d'água, em que votos são trocados por recursos pessoais ou destinados à unidade de vizinhança, quanto nos programas mais modernos e contemporâneos como o Favela-Bairro que atende à reivindicação do direito de morar nas favelas. As associações de moradores tratam assim de reafirmar a idéia de que os espaços que representam são específicos, marcados por uma precariedade que vai desde a situação jurídica do terreno até o equipamento urbano e a qualidade dos serviços públicos.  

      Se quiserem continuar carreando ajuda e recebendo apoio de que sem dúvida necessitam, as associações precisam insistir nesse discurso da "comunidade carente". As favelas sempre carecem de tudo. Inacabadas, incompletas, espaços em construção, dependem da ajuda dos outros e dos órgãos do Estado, aos quais têm que necessariamente recorrer. Sozinhas não resolverão seus problemas, deixadas à própria sorte jamais conseguirão resolver suas carências e pendências. Será que o aspecto geral de uma paisagem precária e insólita não corrobora uma imagem que interessa manter?

      As ONGs também se constituem como um outro ator social que defende e sustenta diante do imaginário coletivo o mesmo tipo de representação da favela. Mais próximas dos pobres do que qualquer outro agente social, com sedes ou filiais funcionando nas próprias favelas, partilham do mesmo tipo de discurso das associações de moradores insistindo na "comunidade", na idéia de união, de solidariedade e de coesão. Essas organizações têm clientelas específicas - entre outros, mulheres, crianças, jovens e negros -  mas a insistência é sobre os despossuídos, os excluídos, as vítimas da violência etc., todos segmentos de uma pobreza uniformizada por um discurso de tendência globalizante que acaba opondo os "pobres" ao resto. Muito embora constituindo um conjunto heterogêneo, já que não são todas filiadas à mesma crença nem à mesma ideologia, insistem todas na pobreza como forma de justificar sua própria existência. No caso das organizações estrangeiras, sobretudo dos países europeus que querem ajudar o "Terceiro Mundo", a ênfase no miserabilismo é central para continuar garantindo o fluxo de recursos necessários à continuidade da atuação da ONG no Brasil e mais especificamente no Rio de Janeiro. À medida que representam a sociedade civil que se mostra engajada e tecem alianças com segmentos do setor público, elas sem dúvida alguma prestam um valioso serviço às "comunidades carentes". Não temos aqui a intenção de negligenciar seu papel e contribuição, muito pelo contrário, queremos apenas chamar a atenção para o fato de as ONGs reforçarem esta visão da favela enquanto locus da pobreza e enquanto espaço social dotado de grande especificidade.

À GUISA DE CONCLUSÃO:

FAVELAS NO PLURAL

     Toda regra tem exceção e não são todos, absolutamente todos, que defendem os "dogmas" aqui enunciados. Queremos deixar bem claro a nossa preocupação maior com a força de um consenso que cada vez mais se propaga através da mídia, notadamente as telas de cinema e tevê. Até onde esse consenso nos ajudaria a compreender a pobreza em sua dinâmica e relação com a estrutura social? Tais imagens, além de pragmáticas, não corresponderiam à visão simplista de uma realidade muito mais complexa?

     A ênfase na "especificidade" e na "diferença" acabou por se transformar em uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo em que deu destaque e chamou a atenção para as favelas, colocando-as em evidência, fez com que parecessem mais pobres do que qualquer outro espaço pobre da cidade, ofuscando outras áreas urbanas tão ou mais carentes, igualmente necessitadas de apoio e investimentos públicos, de programas "especiais" como, por exemplo, os loteamento irregulares ou certas áreas centrais decadentes. Concentrando e focalizando sobre si mais políticas, programas e iniciativas do que quaisquer outras zonas, as favelas não apenas se tornaram pólos de atenção como pólos de atração. Segundo o Instituto Pereira Passos, antigo IPLAN-RIO, em abril de 1999, haviam 604 favelas cadastradas no município, enquanto os loteamentos irregulares e clandestinos eram 783 e os conjuntos habitacionais populares 508. Os dois últimos espaços populares juntos somam muito mais do que o total de favelas existente no município do Rio de Janeiro. No entanto, tudo que é estudado, promovido e filmado sobre a pobreza, está nas favelas. Exceção feita ao conjunto habitacional Cidade de Deus, reiteradamente pesquisado e filmado, mas que reina sozinho entre mais de 500 unidades que é suposto representar!

      A escolha da favela, enquanto prioridade, conferiu-lhe uma posição que só se sustenta a partir de um ponto de vista político e simbólico. De um ponto de vista sociológico, quando a favela é comparada aos demais espaços da cidade, sobretudo às outras áreas também carentes além de pouco e/ou mal equipadas, desaparecem os sinais de distinção.  Na academia e no jornalismo ocorre uma grande mistura entre aquilo que acontece na favela e aquilo que pertence à favela, em uma operação truncada que distingue mal o que lhe é específico como fenômeno ou processo social, e o que se passa na favela mas também se passa alhures. Como a prática tem sido recortar a favela, fazendo um zoom, situações consideradas específicas certamente não o seriam em se tratando de uma panorâmica. Concluir sobre a especificidade de um caso implica  necessariamente adotar uma perspectiva comparativa e holística. 

      A idéia da unidade - "a favela" -  só faz sentido quando ela é entendida como símbolo de pobreza. Vista como uniforme, homogênea, ela esconde uma dupla diversidade, primeiramente as enormes diferenças presentes no universo das 604 favelas, e em seguida as diferenças substanciais presentes no interior de inúmeras favelas, sobretudo as mais populosas ou resultantes de sucessivos e diversos processos de ocupação.

      Não reconhecer hoje as diferenças cada vez mais importantes em áreas que juntas reúnem mais de um milhão de habitantes, representando enormes e modernos mercados de consumo corresponde, de fato, a querer negar processos econômicos e sociais que apontam as favelas como parte integrante de um mundo igualmente capitalista, entrecortado pelas mesmas globalização e desigualdades. Insistimos que as favelas são áreas pobres, mas não são as únicas áreas pobres da cidade pois é inquestionável a existência de pobreza fora das favelas. Tampouco são, necessariamente, mais pobres do que todos os outros bairros, pois existem áreas onde a concentração dos muito pobres é maior do que nas favelas e onde a presença de equipamento urbano é menor. Ainda é bom lembrar que as favelas não mais reúnem, exclusivamente, uma população pobre nem os mais pobres entre os pobres, os sem-teto. Segmentos médios e algumas vezes até mesmo altos, podem ser ali encontrados, apontando uma estrutura social onde já podemos identificar fortes sinais de segmentação e mobilidade social.

      Reduzir as favelas à pobreza nos parece uma afirmação indevida. Falar da favela como a outra metade da cidade é cair em uma visão dualista, é desconhecer a cidade como uma, e as diversas partes da engrenagem urbana como interdependentes e indissociáveis, remetendo a um todo que, embora desigual, é, indubitavelmente, uma totalidade.

Voltar ao Topo   TÓPICO 9

Lugar para morar

Jornal O Globo, Opinião, terça-feira, 2 de maio de 2000

O déficit habitacional no Brasil é hoje estimado em pouco mais de cinco milhões de domicílios. O Governo tem um programa para a construção de dois milhões de novas habitações até 2002 que, se for cumprido, será o mais importante passo em direção à eliminação total deste que é um dos mais graves problemas sociais do país.

Para que sejam construídas habitações na escala de milhões em tempo tão curto não bastam os planos tradicionais. Os mecanismos de mercado têm de ser acionados para se adequarem às condições das famílias de renda baixa. Neste sentido, está indo bem o PAR (Programa de Arrendamento Residencial), destinado a famílias com renda de até seis salários-mínimos. Para dar resultado, o PAR exige empenho das prefeituras e espírito empreendedor de construtoras.

O preço unitário de cada habitação no PAR não pode ultrapassar R$ 20 mil. Assim, as prefeituras geralmente entram com parte do custo dos terrenos ou da infraestrutura de urbanização. As construtoras fazem as casas e/ou apartamentos e têm um lucro referente à obra, já que os candidatos às casas são cadastrados diretamente pelas prefeituras, e não há despesas de venda. O financiamento é concedido pela Caixa Econômica Federal.

As famílias que em breve se mudarão para as primeiras casas construídas por meio desse sistema reduzirão pela metade seus gastos com habitação.

O Rio de Janeiro é o estado onde está sendo construído o maior número de habitações através do PAR.

A construção civil é o segmento da indústria que mais empregos pode gerar a curto prazo. As habitações financiadas pelo PAR são edificadas em áreas com oferta de mão-de-obra. Assim, o programa atinge vários objetivos, pois acaba gerando também emprego e renda direta e indiretamente para as famílias que têm poucos recursos e precisam de uma casa. Como os empreendimentos não são necessariamente gigantescos, firmas de pequeno e médio portes podem se habilitar a construir as residências.

Se essa experiência se multiplicar, de fato será possível alcançar a meta de dois milhões de novas habitações até 2002.

Voltar ao Topo   TÓPICO 10

O Nó da Questão

Jornal do Brasil, Opinião, quinta-feira, 18 de maio de 2000

     Depois de Santa Teresa e Copacabana, tumultos em favela Laranjeiras. A insegurança, com foco nas favelas, tomou-se crônica. Armamentos pesados, trazidos pelos traficantes, anulam a ação policial que no entanto deveria ser permanente, com base sólida, e não temporária, corno se exerce hoje em dia. É evidente que a falta de ocupação policial das favelas é a grande falha do sistema de segurança.

     Estourado algum conflito, em ritmo cada vez mais amiudado,a polícia dá combate e depois se retira, deixando atrás de si um vácuo que toma a ser preenchido pelas quadrilhas. A favelização bate sempre seus próprios recordes. Da noite para o dia surgem novas favelas, como cogumelos. De 500 elas saltaram para mais de 600, considerando apenas informações oficiais, sem falar das favelas que brotam das próprias favelas, nem minifavelas que avançam por baixo dos viadutos ou se aboletam nas margens dos rios. Dos 180 morros cariocas, 68 já foram devastados pela ocupação irregular que abate a vegetação e permite que a água das chuvas escorra mais facilmente para a planície, com seu cortejo de lixo e lama, a entupir bueiros e a destruir calçamentos.

     A inversão de valores se origina daí. Com a polícia ausente, os traficantes seguem suas trilhas de morro para morro, atualmente imersos em guerra por controle de territórios. No restam-, te da cidade, as famílias se trancam em suas casas enquanto os traficantes andam à vontade nas ruas. Depois de certa hora, à noite, não se sai mais de casa. O crescimento das favelas causa perturbação urbana incalculável, transformando em incomodados os cidadãos das regiões circunvizinhas, acossados pela violência dos marginais e a indiferença das autoridades. Tudo se enquadra em equação fatal para o Rio: não há plano para as favelas e as tentativas tímidas feitas nos últimos anos, tipo Favela Bairro, apenas sublinham a impotência de conter o crescimento desvairado delas, de uma forma que as maiores convergem para uma fusão monumental.

    Nelas ocorre até cacoete de especulação imobiliária, provocando o extravasamento de favelados mais desfavorecidos para outros locais, reiniciando-se assim o ciclo da favelização contínua. Mesmo os urbanistas sensíveis à condição existencial das favelas concordam que elas devem ser limitadas em seu crescimento, para que o poder público enfim garanta os serviços básicos. Do ponto de vista urbano, o rolo compressor das favelas se expandindo em todos os bairros é a antevisão da anarquia em seu estágio mais explosivo.

    O verdadeiro nó da questão é: ou o Rio se reurbaniza e se policia ou caí na decadência. O tráfico de drogas percebeu há muito que poderia tirar proveito dessa ambigüidade e. dominou as favelas com mão de ferro. Exemplo dessa ocupação está na Linha Vermelha - 21 quilômetros de rodovia cercados de ambos os lados por 10 favelas, entre elas a Nova Holanda e o Complexo da Maré, controladas pelos traficantes.

     No início dos anos 90 o professor Mário Henrique Simonsen expressou a convicção de que "a crise econômica e social do Rio é caso de polícia; quando a polícia cumprir sua obrigação, a economia voltará a funcionar" . O diagnóstico continua atual.

Voltar ao Topo   TÓPICO 11

Hanôver

Jornal do Brasil, quinta-feira, 1º de junho de 2000


Fritz Utzeri


Os alemães passaram meses paparicando os americanos e para que participassem da Feira de Hanôver. Reservaram-lhes o melhor terreno e o pavilhão americano, com cerca de 30 mil metros quadrados, seria monumental, todo construído em madeira. Custo da empreitada? US$38 milhões. Barato, se comparado à nossa participação, sem qualquer construção, sem licitação, por "notória especialização , e que custou US$ 10 milhões, num momento em que o governo anuncia austeridade e corta programas sociais.

Mais uma vez, vamos mostrar ao mundo nossa pujança, e que somos - nas palavras do primeiro-filho, Paulo Henrique Cardoso - "um país biodiversificado, tecnodiversificado e cultidiversificado . Num trecho de longo artigo, publicado. ontem no JB, PH diz: "É dever do Estado garantir a toda a população, água potável, saneamento básico, ar limpo, habitação condizente com a dignidade humana, lazer, educação, emprego, etc . Ouviram? Garantir emprego é DEVER DO ESTADO. LSN nele Malan!

Os Estados Unidos que, como todos sabem, são um país sem qualquer visão, chegaram à conclusão de que não valia a pena ir à feira. O Congresso americano, depois do prejuízo da exposição internacional de Sevilha, em 1992, resolveu que os Estados Unidos não participam mais de exposições internacionais com dinheiro público. Estranho país os EUA, onde o Congresso se preocupa com essas ninharias...

O Executivo americano (lá se diz administração Clinton), não conseguiu convencer os parlamentares e decidiu-se que se os EUA quisessem ir a Hanôver, a conta teria que ser paga pela iniciativa privada e os empresários, por sua vez, concluíram que não valia a pena. Nós, os ricos, gastamos US$ 10 milhões para mostrar nossa biodiversidade a alemães e europeus. Se aplicássemos o dinheiro em programas de educação ambiental nas escolas daqui mesmo, atingiríamos milhões de crianças brasileiras e prestaríamos um serviço muito melhor à causa da ecologia e do desenvolvimento sustentável do que apostar numa feira que já se anuncia como um fracasso.

Voltar ao Topo   TÓPICO 12

Novas tentativas

Jornal O Globo, Caderno Rio, quarta-feira, 31 de maio de 2000

OPINIÃO

PODE-SE TENTAR de diferentes maneiras a integração de uma favela ao resto da cidade. O conjunto Pavão-Pavãozinho,Cantagalo conhece praticamente todas as que não deram certo.

NO GOVERNO Brizola, anunciou-se como obra redentora o plano inclinado construído no Cantagalo. Desacompanhado de outras medidas no plano social, o plano Inclinado se revelou apenas um meio de transporte - mas não uma forma de aproximação social.

OUTRAS INICIATIVAS, desde creches comunitárias amparadas pelo empresariado a bolsas de emprego, frustraram-se pela falta de persistência. Não faltaram também, nos últimos anos, incursões e ocupações pela Polícia Militar. Até hoje, no entanto, o tráfico de drogas não perdeu sua força no conjunto de favelas.

AGORA, O Governo Garotinho faz a sua investida. Ela inclui, no universo social, cursos oferecidos em centros comunitários e iniciativas como o Mutirão pela Paz (banco de empregos, bolsas para estudantes trabalharem como agentes comunitários, atendimento jurídico).

A EXPERIÊNCIA marginal - e impecável na intenção será a estréia do Batalhão de Áreas Especiais da PM, que está sendo treinado para agir em duas frentes: a defesa da população e o combate ao traficante. Certamente não é impossível conciliar os dois objetivos; com alguma simplificação, pode-se dizer que quase tudo dependerá da relação entre tiros certeiros e balas perdidas.

Voltar ao Topo   TÓPICO 13

TEMA EM DEBATE - Favela-Bairro

Jornal O Globo, Opinião, terça-feira, 6 de julho de 2000

Já indispensável
FRANCIS BOGOSSIAN

"O ambiente está saneado, há praças com crianças brincando"

Quando se lançou a idéia. de urbanizar as favelas da cidade do Rio de Janeiro para transformá-las em bairros, pensou-se que era mais um daqueles projetos que não sairiam das pranchetas. Era um sonho de arquitetos e sociólogos que a engenharia considerava em princípio inviável, não apenas em face das dificuldades executivas como pelos custos delas decorrentes.

Isso sem falar nas questões políticas e fundiárias. Era a aceitação de se legalizar as invasões,  na maioria, de morros e áreas de mangue, e a antítese da solução lacerdista de remoção dos favelados para sítios afastados dos centros urbanos da cidade.

Um ponto, porém, era incontestável: o gigantismo que já haviam assumido muitas dessas ocupações ilegais elevava a índices astronômicos os custos materiais e sociais de uma erradicação.

Também não era mais possível a convivência do Rio urbanizado com os desconfortos e riscos sanitários dos esgotos a céu aberto, da água racionada, transportada e armazenada sem qualquer higiene, da falta de coleta de lixo, dos "gatos de toda a sorte para se dispor de energia nas habitações.

As favelas já não eram mais poéticas como nas canções de Ari Barroso, Orestes Barbosa, Herivelto Martins, dentre outros. Já não havia mais barracos de tábuas ou de pau-a-pique e telhados de zinco furados, com a lua salpicando estrelas pelo chão.

Eram, sim, habitações simples, com estrutura de concreto armado, alvenaria e telhados convencionais, esquadrias de madeira ou alumínio, porém construídas ilegalmente e longe das posturas, através dos mutirões familiares e comunitários. Cada casa  já há muitos anos representa um patrimônio cuja construção seguramente consumiu trabalho, dinheiro e muito suor de cada núcleo.

A despeito da insalubridade e falta de conforto, o acesso ao mercado de trabalho facilitado pela proximidade do coração da cidade é trunfo considerável para uma população que, além de não poder pagar aluguel, não dispõe de recursos para se transportar ao local do emprego.

Há muitos anos as favelas são realidades tão absolutas quanto insofismáveis. Nas comunidades estabelecidas com atividades comerciais instaladas, os problemas de água, de esgotos, de iluminação pública, com carência de creches e áreas de lazer, bem como de estruturas viárias, já estavam beirando o caos. Sem acessos para coleta de lixo, assistência médica e bombeiros e também para a polícia, as favelas se tornaram o abrigo de focos da marginalidade e o lugar ideal para se estabelecerem as chamadas fortalezas do tráfico de drogas.

As intervenções de engenharia nas favelas localizadas nas encostas dos morros, através de obras de contenção, primeiramente como ação corretiva dos muitos acidentes e posteriormente como ações preventivas nas áreas com potencial de risco, foram uma primeira melhoria que atingia pontos localizados mas nem de longe pretendia enfocar os aspectos habitacionais e urbanísticos de cada favela como um todo.

O sucesso, hoje em nível internacional, do projeto Favela Bairro deve ser creditado à coragem dos que o conceberam e acreditaram possível sua Implantação.

Como presidente da Associação das Empresas de Engenharia do Rio de Janeiro, tenho tido oportunidade de conhecer projetos e visitar obras já concluídas ou em adiantada fase de execução.

Quem conheceu qualquer favela antes e depois das intervenções do Favela Bairro, mesmo com todas as limitações geográficas, pode aquilatar a importância do projeto. O ambiente hoje está saneado, há praças com crianças brincando e dotadas de um mobiliário urbano sem luxo, mas adequado. Não há mais cheiro de lixo ou de esgotos, as vias estão convenientemente pavimentadas e drenadas, as creches e as associações de moradores são ativas, o comércio foi melhorado nos níveis do novo ambiente, enfim são bairros simples e  pobres, mas dignos.

Quem poderia hoje imaginar o  Rio sem o Parque do Flamengo sem os túneis Santa Bárbara r Rebouças, sem a Auto-estrada Lagoa-Barra, sem o alargamento e urbanização da Av. Atlântica, sem o Metrô, sem a Linha Vermelha,  sem a Linha Amarela, sem os Rio-Cidades, etc...etc...? Com toda a tranqüilidade eu acrescentaria, nesse rol os Favela Bairros. E, desafio os incrédulos a visitarem os que já estão entregues às comunidades.
__________________________________________________________________________________
FRANCIS BOGOSSIAN é presidente da Associação de Empresas de Engenharia do Rio de Janeiro.


Uma unanimidade?
EDUARDO DANTAS

"A integração da favela pode acarretar erros estratégicos"

Ao ler o artigo do arquiteto Paulo Casé - "Finalmente, uma unanimidade - senti impulso imediato de levantar-me da cadeira para manifestar outra opinião, menos pela condução do projeto e seus reflexos para os favelados, que são muito positivos, mais pelo tom excessivamente vitorioso que a pretensa unanimide possa conceber.

O caminho da integração da favela à cidade formal pode, à luz da unanimidade, acarretar erros estratégicos, visto que existem outras soluções que não podem ser desprezadas.

Olho para o Parque da Catacumba, que com toda a sua beleza transforma aquela região da Lagoa em um dos metros quadrados caros da cidade, gerando um belíssimo cartão-postal para ser visto por todo o mundo, trazendo riqueza para nossa cidade, que pode e deve ser distribuída para os cariocas, em especial os subcidadãos, e penso que, felizmente, a Catacumba hoje não precisa de Favela-Bairro. Mas, e se a favela ainda estivesse lá? 

Com toda a mortandade de peixes, é inegável que muitos turistas vêm ao Brasil, porque o Rio de Janeiro é sua porta de entrada, para ver a Lagoa Rodrigo de Freitas em festa, e o turismo é, sem dúvida nenhuma, nossa maior vocação natural. Mas, e se a favela ainda estivesse lá? 

Com todos os cocôs do mar poluído de Copacabana, os turistas em peso a visitam, porque 70% da rede hoteleira da cidade estão lá. Mas, e se as favelas não estivessem lá? E se as pessoas do Cantagalo e do Pavão-Pavãozínbo tivessem a oportunidade de se integrar à sociedade formal de forma imediata e não gradual? E se elas pudessem escolher onde morar, com os recursos que receberiam pela venda do solo que ocupam pelo valor que o mesmo teria se estivesse "limpo"? E se elas pudessem de um dia para o outro desfrutar da liberdade das leis da sociedade, com direitos e obrigações que a lei da droga não pode conceder?

Há muito a se ganhar com a erradicação daquelas favelas, se considerarmos o mundo do valor, o mundo da qualidade de vida, o mundo das oportunidades.

Por tudo isso é que me sinto inquieto, pela perspectiva de que o programa Favela-Bairro, cujo valor é inquestionável, merecendo nosso total apoio para continuidade, venha a produzir o conforto da missão cumprida, pois não "redime os discursos por justiça social, e não "repara a enunciação de conceitos de difícil comprovação", limitando-se a traduzir ações concretas e visíveis que arquitetura pode produzir para saciar as necessidades básicas infra-estrutura que as pessoas favela têm que ter atendidas.

Espero, honestamente, que somatório de erros que nossa elite vem cometendo possa resultar, por outro lado, na maturada vontade política de produzir programa ainda melhor do que o Favela-Bairro, envolvendo a cidade como um todo:

O programa Subcidadão-Cidadão.

__________________________________________________________________________________
EDUARDO DANTAS é engenheiro, compositor e professor de matemática financeira.

Voltar ao Topo   TÓPICO 14

Outras respostas

Jornal O Globo, Opinião, terça-feira, 13 de junho 2000

Fora de Duque de Caxias, a Favela Beira-Mar praticamente só é conhecida pela associação com o nome de guerra do traficante Fernandinho Beira-Mar, que iniciou lá a sua caminhada para a má fama.

Mas essa comunidade de quatro mil moradores pode dentro de pouco tempo tornar-se notável mais do que notória. No próximo dia 18, ela decidirá em plebiscito se aceita uma proposta do prefeito Zito dos Santos para mudar de endereço.

A Prefeitura se propõe a construir casas de dois e três quartos em ponto próximo do município para abrigar todos os moradores. Aceito o plano e prontas as novas casas, a atual Favela Beira-Mar será demolida. Do ponto de vista da segurança pública, a idéia tem a considerável vantagem de destruir a base logística do traficante (que também perderá os 50 imóveis de que é proprietário na atual Beira- Mar). Mas a grande importância está na questão social. Ao depender da vontade dos moradores, a idéia da remoção deixa de ter os aspectos antipáticos, mesmo cruéis, a que sempre foi associada. E passa a ser alternativa legitima para a urbanização, desde que vá além da casa nova: é indispensável a infra-estrura de serviços públicos e apoio que impeça a favelização do conjunto e a invasão por traficantes.

O êxito do projeto Favela-Bairro é internacionalmente proclamado. Não fosse isso verdade - e como, em política, o fracasso é órfão - sua paternidade não estaria sendo arduamente disputada por candidatos nas próximas eleições. Mas salta aos olhos que não pode ser uma solução universal.. Cada favela tem seu perfil social, suas dimensões, suas características topográficas. É simplesmente ilógico que uma única solução sirva para todas. Só precisará ser único, na verdade, o objetivo final: moradia decente, com todos os benefícios da cidadania plena ao alcance da comunidade, que terá, entre outros, o direito de se sentir a salvo da tutela de bandidos ou demagogos.

O que se fizer bem-feito em relação à favela nunca será, por definição, agressivo em relação ao resto da cidade. Com outras palavras, boa parte desses argumentos está em artigo do engenheiro Eduardo Dantas, na página 7 do GLOBO de terça-feira passada. Ele fala do encanto do carioca e do turista pela Lagoa Rodrigo de Freitas e deixa no ar pergunta de difícil resposta: seria assim, se a Catacumba ainda estivesse lá? A consciência social de hoje não admitiria a remoção forçada dos favelados (com a possível exceção das situações de sério risco de vida). Mas o que estaria errado com a solução que está sendo oferecida aos moradores da Beira-Mar?

O desafio proposto pela diversidade das favelas cariocas tem uma de suas respostas no Favela-Bairro, com sua admirável combinação de soluções urbanísticas e sociais. É esse o padrão: igualmente admiráveis têm de ser as outras respostas, como se espera que seja o caso do projeto apresentado em Caxias.

Voltar ao Topo   TÓPICO 15

Relatório do BIRD

 

Retirado do site: http://www.insidebrasil.com.br/b_mundial1.htm

INSIDEBRASIL - Revista de Informação - EDIÇÃO ONLINE

O relatório do Banco Mundial - Parte 1

Uma análise de conjuntura do Brasil e América Latina com projeções para até 2003

O documento do Banco Mundial "Perspectivas para Crescimento e Redução da Pobreza nos Países em Desenvolvimento - 2000" faz diagnósticos e projeções sobre a realidade global. A população mundial em estado de miséria - sobrevive com menos de US$ 1 per capita por dia - é de 1,5 bilhão. O Bird considera que o aumento da miséria no mundo é decorrência da crise econômica na Ásia . Pacotes internacionais de ajuda financeira para os países asiáticos impuseram medidas recessivas que acabaram atingindo duramente as camadas mais baixas da população. "Hoje, os países que ainda recentemente acreditavam estar ganhando a luta contra a pobreza estão testemunhando a reemergência da miséria, com a fome e o sofrimento humano", comenta o presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn.

No Leste Asiático, a Indonésia, Tailândia e Coréia do Sul estão sofrendo "aumentos significativos da pobreza". Há também uma tendência acentuada para declínios do crescimento e aumento da pobreza na Rússia, Ucrânia e Romênia, e também no Oriente Médio, Norte da África e América Latina.

As crises econômicas da Ásia e da Rússia tiveram um impacto no Brasil. Se entre 1994 e 1996, a pobreza diminuiu 30% no Brasil esse resultado foi desfeito em um terço em seguida. O relatório do Bird mostra que "um terço dos ganhos obtidos com o Plano Real, no que diz respeito à redução de pobreza, foram perdidos" a partir da crise financeira internacional. E o Brasil foi atingido pela crise em janeiro de 1999 em decorrência, em parte, de seu desequilíbrio fiscal. O atraso na realização das reformas poderá tierar o fôlego da recuperação dos países em desenvolvimento a partir de 2002.

O número de pobres nas áreas metropolitanas do país aumentou 10% até fevereiro de 1999. A desigualdade de renda aumentou no Brasil nesse período, apesar de uma exitosa defesa dos salários no setor formal e o pequeno aumento do desemprego. Pelas estimativas do Bird, é improvável que o país consiga cumprir a meta de reduzir a pobreza à metade até 2015.

Para o Brasil o Bird projeta um crescimento de 2,5% do PIB no ano 2000 - bem abaixo dos 4% estimados pela equipe econômica do Governo Federal - e 3,5% em 2001. De 2002 a 2008, o crescimento anual projetado é de 4%. O resultado previsto é quase o dobro da média alcançada entre 1991 e 1998, que foi de 2,6%. Mas é menor do que a estimativa que o Bird fez para o Brasil em 1998, de 4,2%. Para o Bird os números mais otimistas do crescimento econômico em 1999 e 2000, salientou, escondem a fragilidade dos países em desenvolvimento.

Uma ameaça que pode potencializar a fragilidade são os os fatores externos que afetam o crescimento futuro dos países. A perspectiva de desaquecimento da economia dos Estados Unidos é o principal risco. A economia dos EUA com a expansão do nível de atividade e o dinamismo tem ajudado a reduzir os efeitos da crise, o aumento dos preços de petróleo (para importadores como o Brasil) e a queda dos preços das commodities (que têm um peso importante na pauta de exportações do Brasil e de outros países em desenvolvimento.

Uri Dadush, o principal responsável pelo relatório alerta para os perigos da inércia no Brasil. "O déficit orçamentário brasileiro é o resultado da falta de reformas e o governo do País infelizmente não tem outra opção: precisa fazer o ajuste fiscal, mesmo que as reformas tenham um custo social", explicou. "Caso contrário, as conseqüências serão mais graves."

As análises de conjuntura e projeções a seguir tem como base o Documento 2000 do Bird.

O impacto inicial da crise do leste asiático nos países da América Latina não foi grande. A maioria das economias estavam no pico dos ciclos de negócios. Todavia, o impacto adverso da crise do leste asiático no mundo - pela queda dos volumes e preços das exportações, e redução do fluxo de capital para países desenvolvidos - eventualmente teve sua maior repercussão negativa nos países da América Latina. Em 1998, as transações comerciais da região cairam cerca de 4% (uma perda equivalente a 0,6% do PIB) e o crescimento do volume de exportações cairam de 11,5% em 1997 para 5,6%, aumentando o déficit em conta corrente da região em US$ 22 bilhões.

O México, que se beneficiou do forte crescimento da demanda de importação dos Estados Unidos e que teve uma flexível taxa de câmbio, foi o menos afetado pelo refreamento no comércio internacional. Excetuando-se o México, o crescimento do volume de exportações da América Latina caiu de 9,5% em 1997 para 3,3% em 1998 devido ao agravamento da competitividade. Os países viram suas taxas de câmbio efetivas aumentarem numa média de 17% acima dos níveis do período de 1990-96 (antes da crise do leste asiático), comparada ao declínio de 25% nos países em crise do leste asiático.

Os fluxos de capital dos mercados internacionais secaram no despertar da crise da Rússia em agosto de 1998, levando a novos fluxos caírem 25% em 1998 comparado aos níveis de 1997. Isto precipitou uma compressão de crédito massiva e uma forte redução de déficites em conta corrente em muitos países. O efeito contagioso da crise russa tornou impossível para os países financiarem a parte do impacto nas transações comerciais que poderia ser tratado como temporário. Até o Chile, um país com níveis de crédito sólidos, experimentou um ataque especulativo e foi eventualmente forçado a flutuar sua moeda.

A combinação de uma deterioração no ambiente externo, níveis de débito iniciais altos, grande dependência de poupanças externas, e rígidas políticas monetária com o objetivo de preservar os regimes de taxas de câmbio existentes durante um ano eleitoral para a maioria dos grandes países, incluindo o Brasil - causaram uma queda no crescimento do PIB da região de 5,4% em 1997 para 2,1% em 1998. No último trimestre de 1998, Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela estavam todos experimentando recessão. No Brasil, Colômbia, Equador, e Venezuela fortes interesses domésticos na segunda metade de 1998 - a mairia marcados por campanhas eleitorais como o caso da Reeleição no Brasil - somaram ao governo serviço de débito e, juntamente com a volta de taxas mais baixas no início do refreamento da economia, ampliaram déficits fiscais e pressionaram as taxas de câmbio. Com exceção da Venezuela, esses países foram forçados a abandonar uma política de taxa de câmbio estável - mas potencialmente insolvente -, sendo a brasileira e a do Equador as mais agudas, após perdas massivas de reservas cambiais.

No caso da Colômbia e Chile, a decisão de flutuar a moeda não foi acompanhada de uma grande desvalorização porque as reservas ainda estavam em níveis razoáveis. Como em outros casos, Rússia e Turquia, a crise do leste asiático pode não ter sido a causa principal do declínio que se sucedeu, mas foi um fator que contribuiu e acionou uma reação a problemas que estavam subjacentes. Os países onde as políticas estão mais aprofundadas - Chile e talvez o México - evitaram o pior.

A desvalorização no Brasil, incertezas na corrida eleitoral, e uma política monetária americana mais rígida ajudaram espalhar o declínio econômico na região em 1999. A desvalorização cambial no Brasil piorou o ambiente externo para muitos países na região, apesar de isso ter se dado numa extensão muito menor do que na crise russa. Os preços dos commodities chaves exportados pelo Brasil - café, soja, e açúcar - caíram drasticamente no primeiro semestre do ano, ao mesmo tempo em que a demanda de importação brasileira entrou em colapso, reduzindo significativamente a arrecadação com exportações em vários países.

O relatório do Banco Mundial - Parte 2

Prospecções a curto prazo para a América Latina

Uma recuperação econômica em 2000 e 2001 é provável que seja gradual na medida em que, mais adiante, um ajuste fiscal é necessário em muitos países. A recuperação para muitos países que experimentaram recessão em 1999 deve começar por volta do quarto trimestre entrando em 2000. Fatores externos por trás da reação incluem: uma aceleração do comércio internacional; a estabilização dos preços dos commodities e a alta de outros (por exemplo, óleo e metais); uma lenta recuperação do fluxo de capital, uma maior flexibilidade nas taxas de câmbio em muitos países; e menos amortizações de dívidas externas em 2000. Domesticamente, fatores como avaliações mais elevadas no mercado de ações devem dar suporte à estabilização e uma conseqüente ascensão da produção. Todavia, existem um número de razões pelas quais a recuperação econômica em 2000 é esperada ser modesta comparada com a de 1996 (pós crise do México). Primeiro, o ajuste fiscal é necessário em um número de países para dar sustentação à confiança do investidor e ajudar a estabilidade da taxa de câmbio (Argentina, Colômbia, Equador, Venezuela e Brasil). A implementação do ajuste fiscal pode encontrar resistência, especialmente porque os níveis de desemprego estão altos.

Segundo, indefinições políticas devem persistir em 2000 já que México e Peru elegem novos presidentes e muitos novos administradores carecem de maiorias claras em seus respectivos congressos - Brasil, Colômbia e Equador. Estas incertezas resultam, provavelmente, na cautela dos investidores. Além disso, a esperada desaceleração na economia norte-americana em 2000-2001 deve limitar o crescimento das exportações da América Latina. A combinação desses fatores provavelmente leva a uma recuperação econômica moderada, com o PIB da região crescendo entre 2,7% em 2000 antes de acelerar para 3,5% em 2001. O atual déficit em conta corrente durante os próximos dois anos é esperado crescer a níveis de US$ 60 a US$ 70.

INCERTEZAS A CURTO PRAZO

Se o ingresso de capital privado se mantém fraco em 2000, ou a saída deste aumenta de forma aguda em resposta aos desdobramentos políticos, pressões sobre algumas moedas devem aumentar. Apesar do cenário tomado como base pressupor que a Argentina implementará o ajuste fiscal e obterá suporte externo suficiente para financiar seu déficit fiscal e o pagamento de suas obrigações externas, ainda assim continuam os riscos de que o processo não seja suave. As condições monetárias mais apertadas nos países industriais devem manter o custo de capital da Argentina relativamente alto e o volume de entrada de capital modesto. Venezuela tem insistido em manter rasteira a banda da taxa de câmbio, apesar da taxa de câmbio real efetiva do país ser agora 50% mais alta do que sua média de 1990-96. Apesar da Venezuela ter sido capaz de resistir a ataques especulativos à taxa de câmbio no passado, e a alta nos preços do óleo ajudarem com potenciais episódios futuros, incertezas nas políticas podem levar à fuga de capital além da habilidade administrativa de contra-atacar. Ambos Chile e Colômbia, com uma historia de gerenciamento macroeconômico muito melhor, foram forçados a se moverem em direção a taxa flutuante em 1999.

PROSPECÇÕES A LONGO PRAZO

O crscimento da produção para a América Latina a longo prazo é projetado agora para a média de 4,2% (2,8% em termos per capta), o que representa uma redução de pontos percentuais (0,2%) comparada às Prospecções da Economia Global 1998/1999. Isso devido a vários fatores os quais, embora característicos da região por vários anos, tornaram-se mais evidentes em 1999. As taxas de poupança nacional em muitos grandes países não cresceram na década de 90 e muitos continuam se confiando em poupança externa para acomodar aumentos em investimento. Endividamentos externos altos aumentaram a confiança no mercado de capital internacional para financiar o pagamento de débitos. No Brasil, o grande aumento do débito doméstico entre 1997-1999 e uma continuada baixa taxa de poupança exigirá um forte ajuste fiscal, o qual vem enfrentando resistência. Situação semelhante acontece na Argentina, onde a poupança permanece insuficiente para o crescimento sustentável. O crescimento do GDP per capta para os países do Caribe provavelmente ficarão na média de 2,5% ao ano refletindo a difícil transição estrutural pela qual esses países terão que passar face ao aumento da competição global das exportações de commodities para mercados tradicionais.

Apesar das incertezas, as prospecções de crescimento a mais longo prazo - contrastadas com as das décadas de 80 e 90 - são favoráveis à medida que sejam realizados ganhos de eficiência por reformas feitas. Crescimento em produtividade, na região, é provável continuar sua tendência ascendente na medida em que o Brasil, a última das grandes economias na região a embarcar na liberalização, supere as atuais dificuldades. A privatização das grandes empresas de água, energia elétrica, transportes e telecomunicações deve começar a dar frutos na primeira década de 2000. Privatização, combinada com o aumento da poder do mercado dos países do Cone Sul, através do Mercosul, devem encorajar investimentos do FDI, e a natureza do FDI deve mudar da aquisição de bolsa de capital através de privatização, para investimento em setores de serviços e manufatura.

Voltar ao Topo   TÓPICO 16

A Barra do futuro

Jornal do Brasil, Opinião, sexta-feira, 14 de julho de 2000

AFONSO KUENERZ - arquiteto

     A Barra é um fenômeno extraordinário, testemunho da capacidade empreendedora dos brasileiros. Em meio a essa ocupação vertiginosa, temos de nos perguntar: qual será o amanhã dessa região?

     O primeiro homem a vislumbrar o verdadeiro destino da Barra foi Lúcio Costa, seu idealizador. A Auto-Estrada Lagoa-Barra estava prestes a escancarar o acesso a essa planície providencialmente preservada. Contratado para estabelecer os parâmetros de ocupação da Baixada de Jacarepaguá, Lúcio divulgava, em 1969, o seu plano piloto, definindo magistralmente as potencialidades e diretrizes urbanísticas das diversas regiões e reconhecendo sua grandiosa vocação: a metrópole, novo pólo estadual de convergência e irradiação. O Centro Metropolitano, no coração da planície, situado entre o que é hoje é o Rio-2 e a Avenida Ayrton Senna, foi destinado a ser o centro nervoso da nova metrópole, a ser inter1igado por metrô, monotrilho e via livre aos núcleos principais do Rio. Essa área, de 4 milhões de metro quadrados, cujos edifícios terão até 35 andares, está prestes a realizar seu destino, atraindo hoje o interesse das grandes incorporadoras. Lúcio, urbanista genial, previra, há 31 anos, que é evidente que a ocupação dela não será para tão cedo. Durante muito tempo ainda, deixe-se á várzea tal como está, com o gado solto, pastando. E só quando a urbanização da parte restante, da Barra a Sernambetiba, se adensar; quando a infra-estrutura, organizada nas bases civilizadas e generosas que se impõem, existir; e a força viva da expansão o impuser - aí então sim, terá chegado o momento de implantar o novo centro que, parceladamente embora, já deverá nascer na sua escala definitiva.

     Essa visão da Barra como o centro nervoso do Rio de Janeiro já é mais perceptível nos dias de hoje. Inicialmente limitada ao lazer, à moradia e aos hipermercados como pólo de atração, a atual migração de empresas e serviços começa a deslocar o eixo de negócios para a Barra, processo que tende a se intensificar nos próximos anos. Do ponto de vista urbanístico - já o previa Lúcio Costa -, esse processo é altamente benéfico para a cidade, pois elimina o bipartismo Zona Norte-Zona Sul, formando assim um triângulo de convergência, desde que, é claro, se estabeleçam as ligações viárias adequadas.

     Lúcio vislumbrou não apenas a metrópole. Homem sensível, adepto do belo, setorizou a imensa planície, deu-lhe volumetria e sentido. .A Barra de hoje é, em grande parte, decorrência direta das idéias de Lúcio. No que tange à volumetria, por exemplo, ele estabeleceu núcleos, espaçados de quilômetro a quilômetro ao longo da Avenida das Américas, para dar-lhe ritmo e balizamento. Isso já está realizado: Nova Ipanema, Mandais, Barra Bali etc. Como contraponto ao Norte, o Centro Metropolitano e a Pedra da Panela. Com a verticalização, criaram-se amplos espaços abertos e perspectivas grandiosas e diferenciadas.

     Outro aspecto crucial é o aproveitamento do espetacular sistema lacustre, hoje poluído e praticamente inaproveitado. A Barra pode se tomar um paraíso dos barcos e lanchas, com marinas e condomínios de deixar Miami de água na boca. Para tanto, além de promover a despoluição e elevar algumas pontes, basta executar as ligações com o mar preconizadas por Lúcio em 1969: deve-se prever a possibilidade de dois ancoradouros, um na própria Barra, protegido pelo morro da Joatinga, outro no extremo oposto, na embocadura do Canal de Sernambetiba. Também importante é a implantação em nível adequado das vias marginais das lagoas, para que dessa forma o paraíso aquático seja visível pela população - o que hoje mal acontece.

     Lúcio Costa dizia que o urbanismo da Barra deveria ser como um laboratório: com muita flexibilidade para adaptar, inovar, enfim, um organismo vivo de interação entre as iniciativas e o planejamento global. Com seu afastamento do processo decisório, na década de 70, criou-se um esquema rígido, consolidado através do Decreto 3046 de 1981, que até hoje perdura com poucas alterações. Com o Plano Diretor de 1990, que remete ao Legislativo a decisão sobre assuntos urbanísticos, a cidade ficou "engessada . Diversos projetos de lei enviados pelo Executivo ao Legislativo estão lá encalhados há anos. Isso está causando graves prejuízos à cidade, e poderá comprometer o porvir da Barra. Em Vargem Grande, por exemplo, Lúcio Costa previu a localização de sítios com área mínima de 5.000 metros quadrados. Hoje essa área é muito cobiçada para moradia. A legislação permanece inalterada, inibindo qualquer iniciativa dentro da lei. Com isso, proliferam os  loteamentos clandestinos, com lotes em torno de 100 metros quadrados, muitas vezes sem qualquer infra-estrutura. Recentemente, o Executivo enviou à Câmara Municipal projeto de lei reduzindo de 5.000 para 600 metros quadrados a área do lote mínimo, o que permitirá reverter o quadro atual. Contudo, se a Câmara demorar vários anos para aprovar o projeto
- o que tem ocorrido em vários casos semelhantes - a solução chegará tarde demais.

     Na mesma linha de falta de adaptação da legislação, há o problema de proliferação explosiva das comunidades carentes, das quais Rio das Pedras é o maior exemplo. Como a legislação da Barra não contempla a população carente, a esta não resta alternativa senão o assentamento desordenado, geralmente em absoluta insalubridade, com valas negras conduzindo às lagoas.

      Se adequarmos a legislação, realizarmos as obras de infra-estrutura e aproveitarmos a riqueza lacustre, o futuro da Barra tem tudo para ser espetacular, realizando, assim, o sonho e as bases lançadas por Lúcio Costa. E nossa nova metrópole refletirá a beleza de seu idealizador: um ser humano em toda a acepção da palavra, amante do belo, entusiasta das iniciativas, protetor da natureza, e, acima de tudo, um homem simples e despreocupado com honrarias é bens materiais - marcas claras daqueles que são verdadeiramente grandiosos.

Voltar ao Topo   TÓPICO 17

TEMA EM DEBATE - Favelas do Recreio

Jornal O Globo, Opinião, domingo 13 de agosto de 2000

TEMA EM DISCUSSÃO: Favelas do Recreio

NOSSA OPINIÃO


Bairro ameaçado

Há muitas explicações para o crescimento desordenado do Recreio dos Bandeirantes, mas nenhuma exime a Prefeitura de suas responsabilidades.

Alega a Secretaria municipal de Urbanismo que as construções ilegais na Gleba Finch começaram em 1954, quando não havia um plano organizado de ocupação do solo - o que é uma razão histórica para a desordem atual, mas não serve como desculpa para a inércia das autoridades.

A falta de respeito por planos de urbanização e de alinhamento das construções pode ser verificada em toda parte, a qualquer momento. Nas Ruas 13 e 14, e na Praça 8, áreas de lazer e de ventilação foram tomadas por imóveis. No lugar destinado ao centro comercial, mais de cem construções irregulares fecham a Rua Ernesto Trotta. A Rua A-3 simplesmente desapareceu.

Espaços públicos - como avenidas, praças, áreas de lazer e canteiros - são rotineiramente invadidos, sem que ninguém tome providências; favelas surgem de uma hora para outra onde deveria haver pistas arborizadas; e, o que é mais absurdo, constrói-se no meio da rua.

Mesmo em lugares onde a Prefeitura conseguiu impedir a farra da ocupação ilegal, as irregularidades continuam. Seguros da Impunidade, muitos moradores ignoram os gabaritos permitidos pela legislação e, acrescentando à vontade novos pavimentos, vão cometendo uma irregularidade em cima de outra.

Peculiaridades da geografia do Rio tornam difícil impor limites, ou algum tipo de disciplina, às favelas que nascem nas encostas, em áreas remotas e de fiscalização problemática. Nesses locais, a natureza do terreno favorece as invasões.- às vezes comandadas por especuladores. Mas há processos de favelização em áreas nobres de bairros residenciais, a bem dizer no meio da rua - como é o caso do Recreio. Esses são indesculpáveis.


OUTRA OPINIÃO

Conter e criar

FRANCISCO SAMPAIO

Estão enganados os que pensam que o município tolera as invasões de terra na cidade do Rio de Janeiro. Na verdade, há muitos anos a administração municipal promove a desocupação de áreas ilegalmente loteadas e construídas, apelando para alternativas em conformidade com a lei e em condições satisfatórias de habitação, saneamento e proteção do meio ambiente. 

Ao implementar a política desocupação daquelas áreas, como ocorre no Recreio dos Bandeirantes, o município se defronta, porém, com forte oposição da Defensoria Pública que, no legítimo o exercício de sua missão constitucional, postula, assim como outros advogados, a permanência a dos ocupantes irregulares, por meio de medidas liminares, muitas vezes concedidas pelo Judiciário do estado. Ou seja: é o município sozinho contra todos

Bom exemplo é a ocupação da área conhecida como Vila Autódromo. Naquele caso, há anos
permanece vigente medida liminar que assegura o prosseguimento da ocupação irregular às margens da Lagoa de Jacarepaguá. Ali há, inclusive, edificações que revelam elevado poder aquisitivo de parte dos ocupantes, aspecto que, até o momento, não sensibilizou o Judiciário.

Desocupar áreas invadidas é trabalho difícil que deve ser complementado com políticas de moradia. O mais importante programa do setor, no município, é o Favela-Bairro, que leva a cidadania às comunidades carentes. Copiando por várias cidades do país e da América Latina, foi apontado pelo BID como projeto "estrela". Até agora, o Favela-Bairro está beneficiando 40 comunidades e 550 mil pessoas.

Com o Morar sem Risco, o município transfere famílias que residem em áreas sujeitas a inundações e desabamentos para lugares seguros. Já foram atendida 56.720 pessoas, A urbanização e regularização de loteamentos si efetivadas pelo Morar Legal. Entre as áreas já regularizadas e a em processo de regularização, a com obras em andamento e concluídas, e as em licitação, já são 123 as beneficiadas, no total de 135 mil pessoas.

O programa Morar Carioca oferta terrenos já com infra-estrutura urbana. Estimula a construção de casas e seleciona por sorteio os interessados. Integrado o Morar Carioca há o Programa de Requalificação de Conjuntos Residenciais, que recupera áreas públicas e comuns e organiza comunidades. Já foram investidos em cinco conjuntos R$ 4.429.083.

Há, ainda, o Programa Novas Alternativas, que tem no Centro da cidade 35 projetos de reabilitação de cortiços, prédios históricos e em ruínas. Eles serão transformados em moradias.


FRANCISCO SAMPAIO é procurador-geral do município do Rio de Janeiro

Voltar ao Topo   TÓPICO 18

Arquitetura para pensar

(entrevista com Henri-Pierre Jeudy)

Jornal do Brasil, Caderno B, terça-feira, 12 de setembro de 2000

Sociólogo e filósofo do Centre National de la Recerche Scientifique ,CNRS, e co-diretor do Laboratoire d’Anthropologie des Instituitions et des Organisations Sociales, LAIOS, o francês Henri-Pierre Jeudy se dedica ao estudo de diversas questões relacionadas ao patrimônio cultural, espaços públicos, arquitetura e urbanismo. Jeudy é também o atual curador (com Jean Nouvel, Humbert Tonka e François Geindre) do pavilhão francês da 7ª mostra de arquitetura da Bienal de Veneza (junho a outubro de 2000), que ganhou o Leão de Ouro pela melhor interpretação do tema geral da mostra, Menos Estética, Mais Ética. Árduo questionador dos valores contemporâneos, Henri-Pierre Jeudy levantou, recentemente, grandes polêmicas em Veneza, a começar pela contestação do próprio tema da Bienal. "Por que opor ética à estética?", se pergunta o sociólogo, autor de diversos livros, dois deles traduzidos para o português, Memória do social (Forense) e Ardis da Comunicação (Imago). No Rio para palestra Ética e globalização : o futuro das cidades, que faz hoje no Instituto Arquitetos do Brasil (Rua do Pinheiro, 10, Flamengo), às 19h, Jeudy falou ao JORNAL DO BRASIL sobre questões emergentes da arquitetura mundial, a influência da globalização sobre os projetos arquitetônicos e a realidade brasileira.

ANA CECÍLIA MARTINS

- Por que um sociólogo e filósofo se preocupa com arquitetura?

- O que interessa ao filósofo é o pensamento do sistema e sua confrontação imediata com a existência humana. Para o sociólogo, o que interessa é a questão da construção e da reprodução da sociedade. O arquiteto está sempre tratando do conjunto dessas questões. Uns e outro dividem o mesmo defeito (ou a mesma virtude), o gosto pela soberania absoluta. Os primeiros pensa que são sábios e o segundo que é um Deus.

- A estética pode suscitar questões políticas?

- Nós vivemos atualmente em meio a uma estetização generalizada e esse olhar estetizante para a cidade oculta a questão política. A estética é política somente quando ela não pode ser aplicada a qualquer coisa. Por exemplo, se a violência de conflitos urbanos é um puro espetáculo estético, a questão política desaparece.

- O que devemos levar em conta quando pensamos no futuro das cidades?

- É deplorável a ausência de um pensamento sobre a cidade. Esse pensamento foi substituído por um totalitarismo da gestão urbana. Os políticos estão cada vez mais preocupados em produzir sua própria imagem, sua grife. E não se pode duvidar que estes políticos saibam usar como ninguém os arquitetos para figurar sua própria monumentalidade.

- Já existe uma influência da globalização na arquitetura mundial?

- O que é importante acima de tudo é a resistência à globalização. O liberalismo da globalização se satisfaz tanto da grande obra arquitetônica, como símbolo de tempos futuros, quanto da obra arquitetônica efêmera, como autoconstrução local, as favelas cariocas, por exemplo. Dentro da globalização, a singularidade estética dos ricos coexiste com a singularidade dos pobres. A crença em uma autonomia local e precária acaba fazendo promoção das grandes obras arquitetônicas mundiais. É o círculo vicioso da globalização.

- A Bienal de Arquitetura de Veneza, em junho, utilizou como tema menos estética e mais ética. Qual problema que envolve tal afirmação?

- É bem verdade que é um jargão moralista e com náuseas humanitárias. Essa fórmula é uma injunção moral lançada aos arquitetos. Toda atitude estética passa a ser escandalosa diante da miséria do mundo. O arquiteto é obrigado a ter consciência do exagero de suas intenções estéticas. A inovação moral da ética tem como função liquidar o político. Quando triunfa o culto da transparência, o dever da cidadania se traduz por uma demonstração de um compromisso moral e humanitário que permite de se estar acima de qualquer suspeita.

- Por que a reflexão da arquitetura desempenha um importante papel no debate cultural contemporâneo?

- O arquiteto não ocupa o mesmo lugar do artista na dinâmica cultural das sociedades. Sua obra compromete a vida das pessoas, ele cria maneiras de se habitar, ele define implicitamente modos de vida urbanos, ele é obrigado a representar uma necessidade social. Ele não pode então, como o artista, impor o puro arbítrio de sua criação. O arquiteto não pode evitar seu próprio comprometimento político e social no futuro cultural das cidades.

- Como se caracteriza o espaço público contemporâneo?

- O que transforma hoje a representação comum do espaço público é a mídia. Não podemos mais considerar o espaço público de uma forma somente concreta. As pessoas ocupam o espaço público já como uma imagem deles próprios. Não existe de um lado a televisão e do outro o espaço público vivenciado. Como prova disso, o que cada um defende a todo preço hoje é o seu espaço vital, sua intimidade, sempre ameaçada. Mas não é ela própria cada vez mais violada? É o exibicionismo que passa a ser uma qualidade usual do espaço urbano contemporâneo.

- Como podemos falar em arquitetura num país como o Brasil, com total falta de infra-estrutura?

- Não se pode mais pensar o urbanismo como se pensava no pós-guerra, construindo conjuntos habitacionais gigantescos que eram chamados na França de cabanas para coelhos. Os políticos e os urbanistas são cada vez mais obrigados a respeitar o que já existe, tanto do ponto de vista do patrimônio, quanto do ponto de vista das habitações efêmeras realizadas pelos próprios habitantes, como o caso da atual urbanização nas favelas do Rio.

- Podemos dizer que existe ética na arquitetura brasileira, que convive com o contraste entre grandes obras e as favelas?

- Será o reconhecimento do valor estético das construções das favelas um valor moral? Será que os arquitetos das grandes obras reconhecem a qualidade da estética da autoconstrução por pura condescendência? Mais parece que existem duas tendências diferentes em arquitetura que comprometem posições políticas mais engajadas da parte dos defensores da arquitetura das favelas.

- Qual será o futuro das cidades e como a estética, a ética e a globalização agem dentro desta reflexão?

- Nada parece se opor ao processo de globalização. As questões éticas, estéticas e políticas não abrem nenhuma brecha crítica nesse sentido. Toda a sociedade, no mundo inteiro, se acha capaz de se ver no próprio espelho para poder se gerenciar melhor. Não existe mais posição exterior à própria globalização.

- Qual o grande desafio da arquitetura contemporânea?

- Se tornar uma arquitetura do pensamento urbano. Mas isso é muita pretensão.

Voltar ao Topo   TÓPICO 19

A Cidade Ordenada

Jornal do Brasil, Editorial, domingo, 10 de setembro de 2000

Construir nas zonas mais valorizadas é uma tendência natural da especulação imobiliária. Assim como é tendência normal do comprador decidir-se por um imóvel residencial na área que aos seus olhos apresente mais encanto, comodidade e serviços. Mas por trás desses desejos comerciais ou humanos é preciso haver ordenação e equilíbrio, pois a cidade, a urbis, vai virar um caos se não houver uma ampla visão de conjunto e uma pitada de bom senso. Os responsáveis por essa avaliação de conjunto são as autoridades municipais, executivas ou legislativas, que, claro, só funcionam com o concurso de técnicos qualificados (arquitetos, engenheiros, urbanistas, sociólogos, etc) e de políticos.

No momento, voltam a ser discutidos pontos com ampla repercussão popular sobre o Plano Diretor do Rio. E o item mais quente são os apart-hótéis, cuja construção foi suspensa na cidade há 16 anos. O Rio não pode deixar de ter apart-hotéis: esse tipo de moradia é uma tendência mundial crescente nas grandes cidades à qual não se pode fugir. Outra tendência mundial é que os apart-hotéis sejam dirigidos por grandes empresas hoteleiras internacionais, que adquiriram grande experiência no setor. Os próprios compradores preferem contar com empresas altamente capitalizadas na direção, que consideram uma garantia.

O desentendimento em torno dos apart-hotéis já dura quatro anos. A cidade precisa contar outra vez com eles, ninguém contesta. Mas os apart-hotéis têm de estar dentro de certos padrões. Segundo alguns, 30 metros quadrados bastam. Segundo outros, 40 metros quadrados é o mínimo ideal. Cada apartamento deve ter uma vaga na garagem ou basta uma vaga para cada dois apartamentos? Tudo ficou resolvido agora com a aprovação do novo projeto de lei complementar: 40 metros quadrados e uma vaga por apartamento. A votação final da lei será dia 19. O projeto dos vereadores exige a manutenção dos serviços de hotelaria, proíbe a mudança de destinação. E determina que os apart-hotéis construídos nas praias tenham altura tal que não projetem sombra sobre a areia.

Para onde a cidade deve crescer é outro ponto a ser discutido no Plano Diretor. Certamente, o crescimento não pode ir todo para a Barra e arredores, tendência maior há algum tempo. Uma revitalização do Centro é pouco quanto à criação de novos espaços residenciais, mas muito importante para a vida da cidade. A solução para o Centro, a partir da própria arquitetura da área, é a criação de pólos de arte e cultura que representam oxigênio novo. A integração entre os bairros também é receita indispensável, antes tida como única. Está aí a Linha Amarela, exemplo admirável. Vários bairros suburbanos, antes distantes de tudo,.com ela ficaram mais próximos do Centro, do conjunto Barra-Jacarepaguá e mais próximos uns dos outros. A cidade tem de ser voltada para quem nela mora, seja ordenando o caos com regras exigentes para a construção, seja dando vida nova a algumas áreas e integrando os bairros. Difícil é discutir isso em época eleitoral, sempre propícia à demagogia. Mas logo depois o Rio precisa parar para tratar de si com seriedade. Ou a cidade será paralisada por um nó que ninguém mais desata.

Voltar ao Topo   TÓPICO 20

Déficit Habitacional do Estado do Rio de Janeiro

     Retirado do site: http://www.ippur.ufrj.br/observatorio/index.html
Déficit Habitacional do Estado do Rio de Janeiro
Apresentação  
Introdução
Metodologia
  Notas Metodológicas
  Composição do Déficit e da Inadequação
  Critérios de Inadequação
Considerações
Estimativa Déficit Habitacional - 2000
Tabelas

Apresentação

A Segunda Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos - Habitat II - realizada em Istambul, em 1996, consolidou um plano internacional de ação, onde foram priorizadas as políticas mundiais com foco no desenvolvimento social e erradicação da pobreza, gestão ambiental, desenvolvimento econômico, governança e cooperação internacional.

Considerado um marco do debate social na década de noventa, esse evento colocou em evidência a necessidade de reestruturação dos mecanismos institucionais de promoção do bem- estar social dos Estados compromissados com a AGENDA HABITAT, no sentido de transformá-los ou ajustá-los para o cumprimento dos novos compromissos exigidos pela sociedade.

No Brasil, o rebatimento deste processo veio a se somar a um intenso movimento político e social, que já vinha ocorrendo desde a década de oitenta, quando se iniciou uma reformulação das políticas públicas com ênfase no campo urbano-habitacional. A Constituição de 88 incorporou parte das propostas que emergiram deste debate, que reuniu setores da sociedade civil organizada, órgãos de classe, instituições acadêmicas e segmentos políticos. Entre as inúmeras inovações introduzidas nesta Constituição, cabe aqui ressaltar a reforma tributária e a municipalização das políticas habitacionais. Tais inovações, frente às demais transformações em curso nos cenários nacional e internacional, suscitaram uma revisão geral de atribuições e funções desempenhadas pelas diversas instâncias do poder público.

Tornou-se evidente também a necessidade de elaboração de um sistema de indicadores que auxiliasse na construção de parâmetros homogêneos, com o objetivo de viabilizar comparações, elencar prioridades, identificar padrões e tendências para subsidiar o processo decisório de planejamento e alocação de recursos.

Assim sendo, a Fundação CIDE, tanto quanto outras instituições de estatística, pesquisa e planejamento, está sendo instada a participar ainda mais desse processo, no sentido de contribuir com aquilo que estiver compatível com sua missão: a produção e a disseminação da informação, sintonizada com os mais diversos e importantes segmentos da sociedade.

A divulgação do quadro de Necessidades Habitacionais do Estado do Rio de Janeiro, apresentadas aqui por município, representa um avanço nessa direção, pois veio ao encontro de uma carência de parâmetros homogêneos e confiáveis, que pudessem balizar minimamente a discussão de temas tão relevantes.

Para cumprir essa função, o CIDE firmou um convênio com o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - IPPUR, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, que, através do Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal, havia recém-concluído estudo sobre o assunto. Desenvolvida com o apoio da FINEP e com base no censo de 91, a pesquisa foi inicialmente programada para a Região Metropolitana, tendo sido agora concluída para todo o Estado. Seus resultados já foram atualizados para 2000, a partir de estimativas feitas com base nas PNADs.

Abordando o conceito de déficit de maneira mais abrangente, o presente estudo incorpora algumas inovações metodológicas, que avançam na caracterização qualitativa das carências. Analisando tanto as condições físicas da moradia quanto o acesso aos serviços urbanos, o conceito de necessidades habitacionais está mais afinado com o perfil atual das políticas habitacionais, permitindo a mensuração da demanda social não só pela produção de novas unidades, como também por investimentos em infra-estrutura básica em todo o Estado.

Como desdobramento deste projeto, está prevista uma publicação conjunta, com a análise dos resultados desta pesquisa, além da constante atualização deste "site" com diversas informações e "links" relacionados à temática habitacional.
TOPO


Introdução

O debate sobre as necessidades sociais em termos de moradia surgiu em meados do século passado, no âmbito do pensamento e das práticas de médicos e engenheiros, que buscaram instituir critérios básicos de normalidade - a moradia higiênica, a partir dos quais se poderia, então, classificar parte do estoque habitacional existente como "sub-normal". Este conceito, implementado como política, implicou numa enorme operação de demolição dos bairros populares, classificados como "degradados", anti-higiênicos, insalubres etc.. Tratava-se de uma ação de "limpeza", cujo propósito básico era a demolição dos bairros ou quarteirões inadequados, considerados como focos de transmissão de doenças epidêmicas.

Logo se verificou, porém, que não bastava demolir, como fez Haussmann, em Paris, e Pereira Passos, no Rio de Janeiro, mas que também era necessária uma intervenção de regulação do mercado habitacional, com base nos padrões mínimos estabelecidos para a habitação higiênica. Os primeiros regulamentos de edificações e leis de zoneamento cumpriram, então, essa finalidade.

Todavia, com a constatação de que mesmo a ação regulatória era insuficiente, passou-se a discutir e implementar políticas de provisão da moradia para setores da população que, se deixados por sua própria conta, não conseguiriam acesso ao mercado habitacional formal.

Foi nesse momento que surgiu a noção de déficit, ou seja, uma insuficiência do parque domiciliar construído, não suprida pela oferta de novas moradias ou suprida por uma oferta de baixa qualidade, criando uma lacuna de atendimento à demanda pela via do mercado. Todas as demais formas alternativas de acesso à moradia eram desconsideradas. Com base nesses princípios, os números do déficit tinham como fundamento a substituição de todas as moradias identificadas como sub-normais, mais o atendimento à demanda não solvável, isto é, a parcela da população sem capacidade de endividamento para adquirir uma moradia no mercado.

Com a evolução na concepção das políticas habitacionais, ocorrida ao longo dos últimos 40 anos, o conceito de déficit passou a ser alvo de críticas no âmbito de uma forte contestação às políticas tradicionais de construção de grandes conjuntos habitacionais padronizados, nas periferias das cidades, tidos por algum tempo como solução para o habitat sub-normal. A este modelo se contrapôs a idéia de "habitat evolutivo e autoconstruído".

A autoconstrução em favelas e periferias passou, então, a ser vista não mais como um "problema", mas como a "solução" para as necessidades habitacionais da população. A resistência ao processo de remoção de favelas uniu moradores, lideranças políticas e parte dos setores técnicos, levando a que, a partir do início dos anos 80, a política de urbanização passasse a prevalecer, em substituição às remoções.

Essa nova visão acrescenta outros elementos à discussão sobre o déficit, cuja definição muda, sendo influenciada, por um lado, pelas mudanças culturais, históricas e políticas, a partir de um redimensionamento das aspirações e necessidades da população e, por outro, pelas novas alternativas para as políticas de moradia desenvolvidas pelo poder público. Isso implica na necessidade de se tratarem de forma diferenciada as carências da população, deixando de lado a idéia de déficit como um conceito global que possa dar conta dessas carências de forma abrangente e sistemática.
TOPO


Metodologia

Notas Metodológicas

Para o estudo das necessidades da população em termos de moradia, em um território tão amplo e diversificado como o Estado do Rio de Janeiro, é fundamental que se disponha de informações da mesma natureza, obtidas através da mesma metodologia, que possam ser comparáveis. É também importante que apresentem um elevado grau de confiabilidade.

Nesse sentido, as informações do IBGE, principalmente o Censo Demográfico e as PNADs - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - mostram-se como as melhores fontes de informação disponíveis. As PNADs tem, como limite, a impossibilidade de sua desagregação espacial e, como virtude, a sua atualidade. Já o Censo permite a desagregação até em níveis intramunicipais, mas a sua periodicidade é decenal, sendo 1991 o último ano para o qual se conta com informações censitárias completas. Em 96, foi realizada uma contagem populacional, mas as informações são limitadas.

A presente avaliação partiu de informações básicas do Censo Demográfico de 1991, cujos valores foram tabulados para a produção dos indicadores que compõem o déficit e a inadequação habitacional, conforme a metodologia a ser apresentada. Esses indicadores foram agregados, em nível geográfico, segundo a base municipal de 1997 e a divisão em Regiões de Governo vigente.

 

Como ocorreram diversas emancipações de municípios entre 1991 e 1997, os dados básicos, tomados por setor censitário, foram reagrupados para se adaptarem à nova malha municipal.

 

Mesmo considerando que se tratam das melhores informações disponíveis, os dados do Censo apresentam alguns limites, não permitindo a identificação de alguns problemas habitacionais sérios, como, por exemplo, o das habitações localizadas em áreas de risco.

Para que se calculem as necessidades habitacionais, é preciso que sejam estabelecidos parâmetros mínimos de habitabilidade, a partir dos quais possam ser mensurados o tamanho e a natureza do problema habitacional local. Para esta questão, entretanto, pode-se chegar a uma solução plausível, desde que se tenha em conta que a cada padrão definido corresponderá uma opção de olhar a problemática da população.

Este estudo toma como referência analítica o trabalho desenvolvido pela Fundação João Pinheiro ("O Deficit Habitacional no Brasil", Belo Horizonte, 1995), onde se busca estabelecer parâmetros de habitabilidade, tomando como base as variáveis censitárias.

Propõe-se aqui o conceito de necessidades habitacionais, que tem um caráter mais amplo, incluindo 3 dimensões:

· O déficit habitacional, correspondendo à necessidade de reposição total de unidades precárias e ao atendimento à demanda não solvável nas condições dadas de mercado;

· A demanda demográfica, compreendendo a necessidade de construção de novas unidades, para atender ao crescimento demográfico;

· A inadequação, que aponta para a necessidade de melhoria de unidades habitacionais com determinados tipos de carências. O conjunto das necessidades habitacionais seria estabelecido, portanto, pelo somatório:

  déficit + demanda demográfica + inadequação  

Em última instância, pode-se dizer que a diferenciação entre déficit e inadequação é a expressão das diferenças entre as soluções técnicas e políticas adotadas para o tipo de precariedade habitacional identificado.

 

EQUAÇÃO

 

Necessidades Habitacionais = déficit + demanda demográfica + inadequação


 

PERFIL DA NECESSIDADE

PERFIL DA POLÍTICA HABITACIONAL INDICADA

 
Déficit Construção de novas unidades para atender à necessidadede reposição do estoque de moradias considerado totalmente inadequado para se viver.
Construção de novas unidades (ou oferta de lotes) para atender à demanda reprimida (ou seja, atender àqueles que não conseguem comprar através do mercado).
Demanda Demográfica Oferta de moradias (ou lotes) para atender às necessidades novas geradas pelo crescimento futuro da população.
Inadequação Melhoramentos das unidades habitacionais existentes precárias em relação a um padrão mínimo estabelecido.

 

COMPOSIÇÃO DO DÉFICIT E DA INADEQUAÇÃO

 
Déficit domicílios improvisados
domicílios rústicos
coabitação familiar
famílias conviventes
quartos/cômodos alugados
famílias pobres com aluguel excessivo
Inadequação infra-estrutura
água
esgoto
luz
lixo
adensamento domiciliar excessivo
irregularidade da propriedade da terra
risco ambiental

Cabe ressaltar que, embora tomando como ponto de partida o trabalho da Fundação João Pinheiro, foram feitas algumas pequenas modificações na classificação dos problemas habitacionais e em alguns parâmetros de habitabilidade mínimos.

Considerou-se também que as informações relativas à regularidade da propriedade da terra e às situações de risco ambiental seriam fundamentais para a avaliação do quadro habitacional. Estas informações, porém, são raramente coletadas ou produzidas e, mesmo existindo, não são obtidas de forma sistemática para todo o Estado.
TOPO


Composição do Déficit e da Inadequação

- Déficit Habitacional:

Tomando como referência a base de informações do IBGE (Censos e PNADs), o déficit habitacional, no que se refere às condições de moradia, é composto por 3 elementos

     

  1. domicílios improvisados – construções para fins não residenciais, mas que estavam servindo de moradia por ocasião do Censo

  2. domicílios rústicos – domicílios permanentes, cuja construção é feita, predominantemente, por material improvisado* e que correspondem à parcela da necessidade de reposição que pode ser definida como os domicílios a serem restaurados, substituídos ou repostos.

  3. coabitação familiar – representa a insuficiência do estoque habitacional para atender à demanda, compreendendo a convivência de mais de uma família no mesmo domicílio (famílias conviventes**) ou o aluguel de quartos ou cômodos para moradia de outras famílias.

 

  * Paredes de taipa não revestida, madeira aproveitada ou material de vasilhame;
cobertura de madeira aproveitada, palha, sapé ou material de vasilhame.
 
** O pressuposto do conceito de famílias conviventes é o de que, para cada família, deve haver a disponibilidade de pelo menos uma unidade habitacional. Esse pressuposto poderia ser criticado, tendo em vista a sobrevivência, principalmente nos meios populares, das famílias ampliadas. Isso implicaria na necessidade de se investigar em que medida a coabitação é uma opção voluntária ou um constrangimento gerado pela limitação do mercado de moradias. Dada a impossibilidade de se estabelecer parâmetros quantitativos que estabelecessem essa diferenciação, sem o recurso a uma pesquisa de campo, decidiu-se manter esse indicador, conforme estabelecido pela Fundação João Pinheiro.

 

- Déficit por Aluguel:

Uma outra categoria de déficit habitacional é aquela que engloba as famílias que pagam um aluguel excessivo, comprometendo assim grande parte de sua renda familiar. Optou-se por apresentar as informações para todas as faixas de renda, considerando como excessivo o comprometimento acima de 30% da renda familiar. Não obstante, a situação mais crítica refere-se ao caso das famílias com faixa de renda até 2 SM. Estas famílias compõem uma parcela da população em situação de carência extrema e, portanto, mais vulneráveis a esse tipo de problema. Neste caso, o acesso à moradia tem importância crucial na manutenção das condições básicas de vida, o que aponta para uma demanda por novas moradias em condições especiais, na ausência de políticas de controle de aluguéis ou de complementação de renda.

 

 

Os dados referentes ao aluguel maior que 30% da renda familiar são apresentados em separado, para evitar a sobreposição com os outros componentes do déficit habitacional.

 

- Inadequação:

As moradias classificadas como inadequadas são aquelas que necessitam de melhoramentos para que alcancem um padrão mínimo de habitabilidade, definido a partir de critérios de qualidade da infra-estrutura de serviços, relacionados ao ambiente em que a moradia está inserida, e de quantidade de cômodos do domicílio, em relação ao tamanho da família.

As moradias classificadas como inadequadas podem ter problemas relacionados ao adensamento excessivo ou ao acesso à infra-estrutura:

  • Para caracterizar as habitações com adensamento excessivo foi considerada a densidade de moradores por domicílio urbano, excluindo-se aqueles com presença de famílias conviventes ou quartos/cômodos alugados, para não haver sobreposição com a coabitação familiar, componente do déficit. Tomou-se como suportável o limite de até 3 moradores por dormitório, nas casas e apartamentos urbanos com família única.

     

  • Os problemas de acesso à infra-estrutura, por sua vez, podem estar vinculados à carência ou deficiência de alguma de suas modalidades (iluminação, abastecimento de água, instalação sanitária ou destino do lixo) como está demonstrado no quadro a seguir:

Quadro - Critérios de Inadequação
Para visualização on-line, do formato PDF, é necessária a instalação do Adobe Acrobat Reader 4.05 (gratuito 5,41Mb), clique aqui para baixar direto do FTP do CIDE.

  Após visualizar o arquivo PDF, pressione ALT+Seta Esquerda para retornar à página.  
 

TABELA - Período

On-line

Download

 
 

     

Critérios de Inadequação de Infra-Estrutura para Faixas de Renda

PDF

Excel

TOPO


Considerações

O Déficit Habitacional no Estado, em 1991, foi estimado em 360.703 unidades. Esse número corresponde ao que poderíamos chamar de "déficit primário", abrangendo as famílias em maior grau de precariedade habitacional. Já o "déficit por aluguel" corresponde a 213.420 unidades, considerando-se todas as faixas de renda. Se tomarmos como referência, porém, apenas as famílias que comprometem mais de 30% de seus rendimentos em pagamento de aluguel, na faixa de renda familiar até 2 SM, esse valor cai para 114.594 unidades. Poderíamos, assim, considerar que o déficit total (correspondendo à soma do déficit primário com o déficit por aluguel das famílias até 2 SM) atingiria o total de 474.895 unidades. Esse valor apresenta uma magnitude não desprezível, já que significa 63% do total do acréscimo domiciliar no Estado, na década de 80 (que foi de 750.150 novos domicílios).

Um outro indicador importante é o que relaciona o déficit à situação já existente ("déficit relativo"), ou seja, a relação entre o déficit estimado e o parque domiciliar total. Para o déficit primário, chega-se a 10,3% do total de domicílios, em 1991. Tomando como referência os dados da Fundação João Pinheiro, este número é inferior à média nacional de 14,3%, mas é idêntico à média da Região Sudeste.

Cerca de 63% do déficit primário (aproximadamente 227.000 unidades) correspondem à faixa de até 2 SM de renda familiar (enquanto essa faixa corresponde a 33% do total de domicílios). Cabe ressaltar que essa população tende a ser desatendida pela maioria dos programas habitacionais, já que não se constitui como demanda solvável, mesmo para programas públicos, necessitando de forte subsídio. 25% das famílias estão na faixa de 2 a 5 SM e 8%, na faixa de 5 a 10. Se, agregarmos o déficit primário com o déficit por aluguel, na faixa até 2 SM, chegaremos a um total de 342.072 unidades, que correspondem a 31% do respectivo parque domiciliar.

Para termos uma idéia do esforço necessário para atender a essa demanda, que deveria ser priorizada no desenho das políticas habitacionais, é importante considerar que a produção total de unidades em conjuntos habitacionais (para todas as faixas de renda) da CEHAB-RJ, na década de 70, foi de 34.274 unidades e, na década de 80, de 36.215 unidades. Ou seja, toda a produção da CEHAB-RJ nas décadas de 70 e 80 atingiu apenas 21% do déficit habitacional total, na faixa de até 2 SM.

Nas áreas urbanas, pode-se constatar que 71% do déficit primário correspondem ao componente "famílias conviventes" e 19%, aos "domicílios rústicos". Já nas áreas rurais, esses últimos correspondem a 61%.

O déficit se distribui entre as Regiões de forma relativamente proporcional à distribuição da população: 76% estão na RMRJ (contra 77% dos domicílios). Entre as outras Regiões, destacam-se a Serrana, o Médio Paraíba e o Norte Fluminense, variando entre 5 e 6% , aproximadamente, do total do déficit primário. É importante destacar, do ponto de vista regional, o déficit relativo. Enquanto a média geral é 10,7%, a Região da Baía da Ilha Grande apresenta um índice de 14,8% e o Centro-Sul Fluminense, 12,4%. Isso significa que, se do ponto de vista macro, essas Regiões apresentam números relativamente pequenos, do ponto de vista local, a situação é grave. Essa variação do déficit relativo também é forte no nível municipal, como se pode ver nas tabelas gerais.

Em síntese, pode-se dizer que o problema a ser enfrentado no Estado do Rio de Janeiro é significativo, tornando necessário um esforço governamental e social amplo, de forma a buscar soluções adequadas e eficientes. O problema maior é que, desde a extinção do BNH, o que se verifica é a adoção de programas limitados que não conseguem ter impacto quantitativo significativo sobre os números aqui apresentados. É importante ressaltar que, sem a adoção de programas de oferta de novas moradias, a população continuará a buscar soluções precárias, como ocupações de áreas de risco, favelas, cortiços ou loteamentos clandestinos, criando situações cuja solução técnica, pode ser muito mais difícil. Esses programas deverão buscar alternativas inovadoras, com participação popular e de Organizações Não Governamentais e em parceria com os governos locais, compondo um leque de iniciativas diversificado, abrangendo financiamento, oferta de terras, novas unidades etc.. Os números apresentados podem servir como sinalizadores de prioridades para a ação dos governos (estadual e municipais) ou da sociedade organizada. De qualquer forma, o mais relevante é que soluções permanentes e consistentes possam ser desenvolvidas, buscando, a longo prazo, reverter o quadro aqui apresentado.
TOPO


Estimativas Déficit Habitacional - 2000

A estimativa do déficit habitacional entre 1992 e 1997 foi elaborada a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD. Esta pesquisa, realizada anualmente pelo IBGE, atualiza a maioria das informações levantadas nos Censos Demográficos, com foco maior na área de trabalho e renda. Infelizmente, algumas informações e os cruzamentos utilizados na composição da inadequação, não constam destes levantamentos anuais impossibilitando com isso, a estimativa desta categoria de necessidade habitacionais.
Com relação ao déficit, utilizando os dados da renda familiar e das características dos domicílios foi possível calcular os números para a Região Metropolitana e para o restante do Estado, isto é, das áreas para as quais a amostra é significativa.
Para o período de 1998 a 2000, como não são disponíveis todos os resultados necessários da PNAD que permitem este cálculo, foi elaborado um modelo de projeção que considera as tendências de crescimento do número de domicílios e de variação do déficit por faixa de renda familiar verificadas na década. As etapas intermediárias do cálculo incluíram:
1. Projeção do número total de domicílios - com base nos dados do Censo Demográfico de 1991 e da Contagem da População de 1996 é possível estimar os valores para cada município do Estado.
2. Projeção do déficit relativo, por faixa de renda - determinado como sendo médias móveis trienais, para a Região Metropolitana e Demais Regiões.
3. Aplicação dos percentuais projetados ao total de domicílios, obtendo o déficit absoluto, por faixa de renda para as áreas citadas. Estes valores não foram divulgados visto que o método adotado não garante as estimativas com tal grau de desagregação.
4. Soma dos déficits absolutos obtidos no item 3 para obtenção do déficit total para as áreas de interesse. De acordo com esta metodologia, obteve-se os resultados indicados na tabela a seguir:

 

Estimativa do Déficit Habitacional - 2000
Estado do Rio de Janeiro

 
Local

Déficit Absoluto

Déficit Relativo(%)

Região Metropolitana

286.951

9,22

Demais Regiões

92.326

9,75

Estado

379.277

9,35

Fonte: CIDE
TOPO

Na variação do déficit entre 1992 e 2000, verifica-se um leve declínio representado pelo decréscimo de 12,6 % no déficit relativo médio do Estado que era de 10,70% em 1991. No acompanhamento, pelas PNADs, da variação entre 1992 e 1997, verificou-se uma acentuação do declínio no ano de 1994, voltando a subir e estabilizar de novo em 95. Esta alteração verificada em 1994, fortemente associada ao impacto do plano real na economia, ocorre em função da diminuição do número de famílias com até dois salários mínimos, faixa de renda onde se concentra o déficit habitacional. A partir de 1997 o percentual de domicílios em situação de déficit em relação ao total de famílias com até 2SM, aumentou. Ou seja, se em 94 houve uma melhoria do perfil de renda da população do Estado do Rio de Janeiro, a partir de 97 verificou-se um achatamento geral do poder aquisitivo, acarretando um novo aumento do déficit relativo ,ainda que num patamar mais baixo. Os gráficos a seguir, demonstram esta variação até 1997.
TOPO

Gráficos
Para visualização on-line, do formato PDF, é necessária a instalação do Adobe Acrobat Reader 4.05 (gratuito 5,41Mb), clique aqui para baixar direto do FTP do CIDE.

  Após visualizar o arquivo PDF, pressione ALT+Seta Esquerda para retornar à página.  
 

Gráficos

On-line

 
  Total de Domicílios
Estado do Rio de Janeiro

PDF

 

Déficit Habitacional
Estado do Rio de Janeiro

PDF

TOPO


Tabelas
Para visualização on-line, do formato PDF, é necessária a instalação do Adobe Acrobat Reader 4.05 (gratuito 5,41Mb), clique aqui para baixar direto do FTP do CIDE.

  Após visualizar o arquivo PDF, pressione ALT+Seta Esquerda para retornar à página.  
 

Inadequação Habitacional e Total de Domicílos por Regiões

On-line

Download

 
  Estado do Rio de Janeiro - Geral

PDF

Excel/Zip

- arquivo
contendo
todas as
tabelas.

  Região Metropolitana

PDF

  Região Noroeste Fluminense

PDF

  Região Norte Fluminense

PDF

  Região Serrana

PDF

  Região das Baixadas Litorâneas

PDF

  Região do Médio Paraíba

PDF

  Região Centro-Sul Fluminense

PDF

  Região da Baía da Ilha Grande

PDF

TOPO


  Após visualizar o arquivo PDF, pressione ALT+Seta Esquerda para retornar à página.  
 

Déficit Habitacional

On-line

Download

 
  Estado do Rio de Janeiro - Geral

PDF

Excel/Zip

- arquivo
contendo
todas as
tabelas.

  Região Metropolitana

PDF

  Região Noroeste Fluminense

PDF

  Região Norte Fluminense

PDF

  Região Serrana

PDF

  Região das Baixadas Litorâneas

PDF

  Região do Médio Paraíba

PDF

  Região Centro-Sul Fluminense

PDF

  Região da Baía da Ilha Grande

PDF

TOPO

  Observatório - IPPUR/UFRJ - Fase
Observatório de Políticas Públicas e Gestão Municipal
IPPUR - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional
 
 

Voltar ao Topo   TÓPICO 21

Problema nº 1

 

Jornal do Brasil, Editorial, domingo 29 de outubro de 2000

     Mais uma campanha eleitoral se passa sem a que os políticos cariocas enfrentem a fundo o problema urbano nº 1 do Rio: a favelização. A discussão sobre a paternidade do Favela Bairro sequer arranha a questão. Desvinculam-se insegurança e expansão das favelas, embora uma questão esteja relacionada à outra como cordão umbilical difícil de cortar. Os tiroteios das favelas demonstram que o tráfico de drogas ganha terreno, no alto dos morros e nas ruas circunvizinhas.

     Cada vez com mais freqüência os traficantes abrigados nos morros tomam conta das ruas, determinam abusivamente quem pode transitar por elas, não raro forçando o comércio de determinados bairros a fechar as portas quando um de seus dirigentes é abatido. Seria uma conseqüência do mito - já desmascarado - da inexpugnabilidade dos morros, onde a lei e o governo não entravam. Criaram-se verdadeiros "estados paralelos", preenchendo a ausência da autoridade.

     Origina-se daí uma inversão de valores. Com a polícia ausente, traficantes seguem suas trilhas de morro para morro. No restante da cidade, famílias se trancam em suas casas enquanto os traficantes circulam à vontade pelas mas. Depois de certa hora, à noite, não se saí mais de casa. O crescimento das favelas causa perturbação urbana incalculável, transformando em incomodados os outros cidadãos, acossados pela violência e a indiferença das autoridades. Tudo se enquadra em equação fatal para o Rio: não há plano geral para as favelas e as tentativas tímidas dos últimos Favela Bairro, apenas sublinham a impotência de conter o crescimento desvairado delas, de uma forma que as maiores convergem para uma fusão descomunal.

     Um estudo do IBGE divulgado há dois anos revelou que a população das maiores favelas cariocas está se multiplicando até 50 vezes mais rapidamente que a do município. Hoje em dia a prefeitura ignora até mesmo quantos são os favelados no Rio. Estatística antiga, de l2 anos atrás, fala em 1 milhão. A Secretaria de Habitação admite que os favelados dos morros, dos loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais degradados, sejam 2 milhões. A Federação das Favelas calcula-os, no entanto, por alto, em 2,5 milhões, com base nas 660 favelas filiadas a ela. Enfim, na dança dos números, não resta dúvida de que pelo menos um terço dos habitantes do Rio mora em favelas. E este terço em breve será maior: a rigor o Rio passará a ser uma grande favela cercada por cidadãos pagadores de impostos por todos os lados.

     Dos 180 morros cariocas, 68 já foram devastados pela ocupação irregular que abate a vegetação e permite que a água das chuvas escorra mais facilmente para a planície, com seu cortejo de lixo e lama, a entupir bueiros e a destruir o calçamento das ruas. Consolidou-se no Rio a idéia de que qualquer sem-teto pode morar debaixo do viaduto ou invadir terrenos, na margem dos rios, do mar e nos morros. O poder público perdeu a autoridade. Como não se tomam providências, as favelas pequenas, médias e grandes se estratificam geograficamente e passam a crescer populacionalmente. Prefeitos e governadores são assistencialistas... com a propriedade alheia e a pública. Remoção de favelas, mesmo daquelas praticamente deslizando dos morros íngremes, tornou-se palavrão. O poder público prefere fechar os olhos à ocupação irregular a enfrentar o problema de frente.

     Por sua vez, as favelas hoje se dão ao luxo da especulação imobiliária interna, o que provoca extravasamento de favelados mais desfavorecidos para outros locais, reiniciando-se assim o ciclo da favelização contínua. Mesmo os urbanistas sensíveis à condição existencial das favelas concordam que elas devem ser limitadas em seu crescimento, para que o poder público possa enfim garantir os serviços básicos. Tudo o que estoura os limites é anárquico, violento. Do ponto de vista urbano, o rolo compressor das favelas se expandindo em todos os bairros é a antevisão da anarquia em seu estágio mais explosivo.

     O verdadeiro nó da questão é: ou o Rio se urbaniza ou cai na decadência. O tráfico de drogas percebeu há muito que poderia tirar proveito dessa alternativa e caiu sobre as favelas com mão de ferro. Um exemplo dessa ocupação está na Linha Vermelha -21 quilômetros de rodovia cercados de ambos os lados por 10 favelas, entre elas a Nova Holanda e as do Complexo da Maré, controladas pelo tráfico de drogas.

     Antes de ser engolido pela favelas (e pelo tráfico de drogas) o Rio precisa reavivar antigos planos de urbanização das favelas urbanizáveis e remoção das favelas removíveis. Da última vez que se falou no assunto, de maneira abrangente, em 1988, um plano da Secretaria (municipal) de Desenvolvimento Social calculou que com 950 milhões de dólares se poderia urbanizar todas as favelas do Rio - o mesmo que o Moreira Franco destinou às obras de extensão do metrô até Ipanema. Inútil constatar que nem o metrô foi até Ipanema e nem as favelas pararam de crescer desordenadas. Uma décima parte desse dinheiro bastaria  para livrar a cidade de 223 áreas de risco que a cada verão amargam desabamentos e inundações. Há  favelas, como a Rocinha, em que a urbanização é a única saída, tal o estágio da área ocupada.  Mas uma favela como a do Morro Dona Marta deve ser erradicada, pois seus moradores correm eterno risco de vida. Como se não bastasse a natureza constantemente violada, os traficantes, com suas guerras internas, contribuem para a exacerbação dos riscos. 

     Na grande cidade, ameaçada pela violência de lados, não se pode continuar atribuindo as causas da criminalidade apenas aos problemas sociais. Por culpa da sociedade, no seu conjunto, desde os políticos assistencialistas aos meliantes entocados nos morros, criou-se enorme área de permissividade que está na base dos distúrbios urbanos. A multiplicação dos pequenos delitos e a tolerância aos maus hábitos abriram caminho para a grande criminalidade, em constante relação de influência mútua. O resultado está aí, nos tiroteios, nas balas perdidas, no medo da população de sair às ruas. Chegou a hora de enfrentar sem rodeios o problema nº 1 do Rio.

Voltar ao Topo   TÓPICO 22

Casas e justiça

Jornal O Globo, Opinião, domingo, 19 de novembro de 2000

O Brasil tem hoje um déficit habitacional estimado em mais de cinco milhões de domicílios. Esse dado fornece boa parte da explicação para o grande número de favelas existentes tanto nas grandes cidades como na periferia das regiões metropolitanas e mesmo em cidades médias.

O Governo federal estabeleceu como meta a construção de dois milhões de casas até 2002; a maior parte será destinada a famílias de baixa renda. Nesse esforço para redução do déficit habitacional devem estar presentes também governos estaduais e prefeituras. O município do Rio já tem um programa bem-sucedido na área de habitação que é o Favela- Bairro. Graças a investimentos em infra-estrutura e recuperação urbana, os próprios moradores se sentem estimulados a valorizar seu patrimônio, reformando ou reconstruindo com material mais apropriado as habitações onde vivem.

No entanto, seria um erro se as autoridades, embaladas pelas virtudes evidentes de um projeto que aqui nasceu, vissem nele a solução única, universal, para o problema da moradia popular. A Prefeitura precisa construir casas populares por conta própria. Em alguns lugares, como parte do Favela-Bairro, para eliminar pontos específicos de risco ou criar espaço para ruas ou praças. E também haverá lugares em que casas populares precisarão substituir inteiramente favelas - porque existem aquelas em que o Favela-Bairro seria um equívoco urbanístico e um desserviço à população carente. 

Em suma, embora o  programa tenha pleno  sucesso e mereça ser estendido a todas as comunidades carentes do município, é evidente que no Rio o déficit habitacional tem de ser enfrentado em várias frentes, o que inclui a construção de maior número de casas populares.

Essa atribuição já foi do Governo estadual; agora, se a próxima administração municipal tiver condições e meios de executar o seu próprio programa ambicioso de casas populares, melhor ainda.

Na verdade, tudo que se puder fazer para reduzir o déficit habitacional contribuirá para que o Brasil tenha menos desigualdade e mais justiça social.

Voltar ao Topo   TÓPICO 23

Loteamentos clandestinos

 
Retirado do site: http://www.aelo.com.br
  1. "A ação dos clandestinos é uma vergonha"

  2. Ameaçam, devastam, vendem o que não é seu e depois legalizam tudo

  3. Golpistas demonstram uma infinita capacidade de enganar as pessoas

  4. Invasões começam com uma chantagem

  5. Clandestinos são invisíveis?
    Quadrilhas intimam e ameaçam empresários

 

Voltar ao Topo   TÓPICO 24

Especulação, Desmatamento e Favelas

Retirado do site: http://www.alternativacarioca.org.br/site/sirkis/artigos.shtml#especulacao

Alfredo Sirkis

Especulação, Desmatamento e Favelas

Iniciado no governo anterior, fruto de uma discussão que vinha desde os ano 80, o programa Favela Bairro vem sendo apresentado como uma panacéia para o problema da "cidade partida", essa dicotomia entre o asfalto regulado e a o morro ou terreno baixo, sem lei. O Favela Bairro é essencialmente um bom programa pois leva à favela algumas intervenções urbanísticas, viárias, de saneamento e outras destinadas a melhorar sua acessibilidade, tratá-la como um bairro em situação especial e não mais um conglomerado de fato mas não de direito. Ele trabalha a autoestima das populações beneficiadas o que é muito importante. Mas tem problemas. Em algumas comunidades as obras são de má qualidade, noutras arrastam-se penosamente ao sabor de empreiteiras de baixo desempenho mas preço baratinho --como condiciona a lei 8 666-- ou ao capricho dos chefetes locais do tráfico de drogas. Mas os risco maiores para o Favela Bairro não estão relacionados ao seus eventuais problemas, paradoxalmente, ao seu eventual sucesso urbanístico desassociado de uma enérgica intervenção ambiental e de uma pactuação prevendo o futuro e instituindo regras do jogo lá onde hoje não existe lei.

O Favela Bairro pode efetivamente melhorar as condições de uma comunidade e faze-la aproximar-se da idéia de um bairro formal --com nome de rua, numeração, regularização fundiária, esgoto, coleta regular de lixo-- como no caso do Vidigal e da Rocinha. Mas esta melhoria pode redundar, perversamente, em novos booms da especulação imobiliária informal atraindo maiores contingentes de moradores para novas áreas precariamente construídas na mata acima das beneficiárias do Favela Bairro. Isto compromete o programa? Certamente, não! Mas ressalta que não bastam os projetos e as obras físicas. Eles constituem o hardware da integração da favela à cidade formal, mas é preciso também um software. A intervenção urbanística não pode dar-se desassociada da implementação de uma estratégia enérgica de limitação da expansão futura, da criação de mecanismos de regulação e licenciamento adptada à realidade específica da favela, de mecanismos de pactuação, geração de renda, dissuasão e repressão aos crimes ambientais.

Em primeiro lugar deve-se conter a subsequente expansão da favela sobre áreas verdes. E como se faz algo aparentemente tão complicado? Pactuando limites. Além das obras em si o poder público, sobretudo a prefeitura, dispõe de um poderoso mecanismo: os projetos geradores de renda como são os mutirões remunerados de reflorestamento, saneamento, catação e reciclagem de lixo. Pessoas da comunidade escolhidas passam a receber uma ajuda de custo regular, com quantias que correspondem a uma leque entre um e meio a três e meio salários mínimos, mais taxa de produtividade, pela realização de uma destas rotinas diárias de grande interesse ambiental e sanitário. Isso produz um afluxo de renda que beneficia direta ou indiretamente dezenas de moradores e cria uma base objetiva para um pacto de não expansão da comunidade sobre a área verde. Sua eventual violação engendraria a suspensão imediata dessa geração de renda.

Os resultados deste tipo de estratégia são comprovados. Na época em que tive sob minha responsabilidade os mutirões de reflorestamento, em 47 favelas, foi possível conter, em todas elas, os desmatamentos da área florestal contígua. Os moradores passavam a ser os fiscais e as raras ações repressivas necessárias tinham seu respaldo, provinham de seus próprios alertas. É preciso também construir muros, grades ou cercas para proteger a área verde. Por si só eles não garantem nada --é muito facil derrubá-los-- mas no contexto de uma pactuação comunitária ajudam bastante, funcionam como fronteiras visíveis. As famílias pobres que buscam um teto devem ser tratadas sempre com humanidade e respeito. Já o desmatador, o especulador, o construtor informal não pode permanecer impune. É preciso criar um grupo de trabalho especial reunindo o ministério público, a delegacia móvel de meio ambiente, a PM e a prefeitura para reprimir e instruir os processos contra os responsáveis pelo crime de parcelamento ilegal e delitos ambientais conexos.

Finalmente é preciso prever realisticamente uma margem de crescimento destas comunidades, regula-la e pactua-la. Neste sentido a verticalização, dentro de certos limites, sobretudo de segurança, é mais solução que problema. É preciso estabelecer reservas de área e definir critérios de acesso a elas. É sobretudo importante criar, em cada uma dessas comunidades, um código de obras e um código ambiental específicos, mediante um processo participativo e democrático, com os indispensáveis mecanismos de intervenção corretiva. Obras físicas representam apenas o primeiro passo para a efetiva integração da favela à cidade formal. A presença de bandos armados de traficantes é naturalmente um complicador imenso, mas o caminho, por mais difícil que seja, é um só: o do estabelecimento dos direitos e dos deveres de cidadania na favela como no bairro.


 

Desafio Urbano

Mais que embates políticos nacionais ou ideologias pensamos que serão algumas questões de gestão local as mais candentes nas eleições municipais de 1º de outubro. A sociedade despertou para nossas cidades doentes: engarrafamentos sem fim, ar poluído, praias contaminadas, águas sujas, inundações, desabamentos, áreas verdes e arborização de rua diariamente agredidas, lixo avolumando-se cada vez mais, poluição sonora, incivilidade, neuroses e paranóias que realimentam a violência. Estes problemas se articulam perversamente com nosso drama social: desemprego sobretudo dos jovens pobres --mais propensos a serem atraídos para a violência, as drogas e o tráfico; falta de moradia; fome ou alimentação de má qualidade; sistema de saúde precário sem ênfase na prevenção de doenças e acidentes; educação fraca e inadequada. O quadro é agravado pelos graves erros urbanísticos cometidos nos últimos 30 anos: a ocupação e impermeabilização de várzeas e outras áreas de acumulação de cheias, o desmatamento de encostas, o apartheid socio - urbanístico com aquela sua famosa tríade: condomínios isolados, shoppings e automóvel, por um lado, e seu avesso assimétrico: as favelas e periferias da informalidade, da exclusão.

Não é fortuito que nossa capital federal seja uma monumental não-cidade construída fora de escala humana, sem ruas, calçadas, esquinas e praças, esses espaços fundamentais de encontro e interação cidadã onde se forja um tecido social plural e integrado. Não é gratuito o abandono e o esvaziamento das áreas centrais de nossas megalóples: o centro do Rio de Janeiro, subutilizado, com suas oito ou nove horas de vida por dia, cinco dias por semana, e, depois, deserto compondo o reverso das cidades-dormitórios da baixada fluminense que vão se enchendo a medida em que ele se despovoa. Entre o downtown subaproveitado, sem moradias e o dormitório-depósito, sem vida econômica, personalidade ou cultura, uma longa viagem em ônibus apinhados. O centro de São Paulo, no passado mais equilibrado e plural, com usos múltiplos, hoje está abandonado por políticas urbanas criminosas.

Se nossas grandes cidades forem definitivamente partidas entre as torres paranóicas e as atrozes periferias, estaremos possivelmente cultivando guerras civis do futuro. Mas a leitura de nossas cidades não pode ser apenas a de suas mazelas e ameaças. As cidades são a forma mediante a qual a humanidade escolhe cada vez mais se agrupar, em todo o planeta, onde nossas necessidades podem melhor ser atendidas, em todos os níveis, onde podemos encontrar no outro aquilo que procuramos e vice-versa. A urbanização é um processo irreversível, no norte como no sul. Com ela, apesar dos traumas, cresce o conhecimento, a educação, a expectativa de vida, cai a mortalidade infantil, a explosão demográfica. As mais diferentes oportunidades de interatividade, de trabalho, de lazer, de prazer, de afirmação se esboçam, embora muitas vezes sem se potencializar. Nas cidades aparecem concentradas as bipolaridades da existência humana: a dor e o prazer, a esperança e a frustração, a inclusão e a exclusão, a riqueza e a pobreza, a vida e a morte concentradas.

O grande desafio verde do novo século não será de que maneira escapar das cidades, qual de Sodoma e Gomorra, sem poder olhar para trás, para viver em comunidades rurais alternativas, mas de como "esverdea-las" , fazendo delas aglomerações humanas social, cultural, urbanística e ambientalmente mais sadias, livres, justas para se viver. A noção de ecologia urbana não se prende à simples proteção de áreas verdes ou gestão de parques. Seu postulado é o entendimento de que o ambiente construído faz parte da natureza, interage com ela constantemente, para o bem ou para o mal, e de que ambos necessitam integrar-se com sabedoria. Também se relaciona com a idéia de que não podemos separar as questões ambientais das sociais. A recuperação do meio ambiente e sua proteção devem transformar-se em fontes geradoras de emprego, educação ambiental, cultura e cidadania para os setores mais pobres e excluídos das nossas cidades.

Por outro lado é preciso reinventar o próprio significado do ativismo político não pode mais continuar preso ao protesto, à denúncia, a interesses corporativos, à mera canalização de energias negativas contra o que está errado. Porque não haverá uma grande noite da revolução a partir da qual tudo será diferente. Explosões se houverem só produzirão estilhaços, lacerações. Nossa intervenção precisará ser cada vez mais a da construção, no dia-a-dia, dos projetos que de fato transformem a realidade, melhorem de alguma forma a vida das pessoas, articulem o poder público, a sociedade civil organizada e setores sensíveis da iniciativa privada para gerar ciclos virtuosos socioambientais e culturais. Do fundo do poço da repulsa hoje existente em relação aos políticos tradicionais --ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, o clientelismo e a distritalização se fortalecem cada vez mais-- pode surgir, em alternativa ao fisiologismo, ao sectarismo e também ao abatimento, àquela entropia niilista do "não tem jeito"; uma dimensão sonhadora mas realista da política, cujo mote deve ser, simplesmente: "vamos organizar as pessoas para melhorar as coisas". A começar pela nossa rua, pela nossa cidade.

Voltar ao Topo   TÓPICO 25

Por quê?

Jornal O Globo, quarta-feira, 17 de janeiro de 2001

CESAR MAIA

     Os primeiros dados do Censo 2000 nos trazem uma notícia inquietante. Ainda não diria preocupante. As taxas de crescimento das populações das maiores cidades brasileiras Rio e São Paulo - voltaram a crescer. E, provavelmente, este crescimento é semelhante ao do Início dos anos 80.

     Vejamos. Comparando apenas os censos demográficos nos anos 70, a população do Rio cresceu à taxa de 1,82% ao ano, enquanto a de São Paulo o fez à taxa de 3,67% em Igual período. Nos anos 80 - entre 1980 e 1991, quando ocorreu o censo - esta taxa caiu espantosamente para 0,67% ao ano, no Rio, e 1,16% ao ano em São Paulo. Na década de 90 - entre 1991 e 2000 - segundo dados divulgados este ano pelo IBGE, esta mesma taxa cresce para 0,73% ao ano, no Rio, e 1,41% ao ano em São Paulo. Poderia parecer um leve recrudescimento, talvez até explicável por ajustes estatísticos e imprecisões censitárias. Porém, os dados do IBGE relativos a ajustes populacionais, checados pelas amostragens que são feitas em períodos curtos, nos mostram que a partir de 1996 esta inflexão da curva de crescimento populacional é abrupta. Entre 1996 e 2000 a população do Rio teria crescido 1,32% ao ano, um valor que apresenta o dobro da taxa dos anos 80, enquanto na mesma década a de São Paulo teria crescido 1,41%, um aumento de cerca de 20%. E mais. Se os números de 1996 apresentados pelo IBGE são críveis, a taxa de crescimento populacional entre 1991 e 1996 foi de apenas 0,26% para o Rio e 0,40% para São Paulo. Mesmo que os ajustes feitos pelo IBGE em 1996 careçam de precisão, nota-se uma  clara inflexão nas taxas de crescimento demográfico durante os anos 90. No Rio, da primeira metade da década até a segunda, a taxa pode ter quintuplicado. Em São ti Paulo, ela pode ter mais do que triplicado.

     De qualquer forma, os números mostram um recrudescimento da explosão demográfica nas duas metrópoles. Isto tanto pode ter acontecido por fatores positivos, como atratividade econômica, quanto por fatores negativos, como desordem no solo urbano ou ausência de atratividade no entorno. E também pode ter sido ocasiona- da tanto pela atração principal de setores sociais médios, quanto pela atração de setores socialmente excluídos. Pode, ainda, ser um fenômeno da globalização, onde as cidades metropolitanas voltam a ser eixos do desenvolvimento.

     Poder, pode. Mas não sabemos por que isto ocorreu. É básico que os pesquisadores, professores, intelectuais se debrucem imediatamente sobre os detalhes destes números - detalhes sociais, econômicos, etários, sub-regionais - e ajudem ambas as cidades a compreender este fenômeno, para que as políticas públicas possam agir sobre as tendências, de forma a produzir, como conseqüência, os melhores desdobramentos em termos de qualidade de vida.

     Se tivermos estas análises e informações rapidamente, poderemos adotar medidas gerenciais de curto prazo. Se esperarmos saber o porquê através das teses que certamente virão daqui a dez anos, olharemos para trás contemplativos e começaremos um novo ciclo de intervenções de alto custo e baixo rendimento. Lembro que programas como o Favela-Bairro são possíveis e necessários em função da baixa taxa de crescimento demográfico existente no início dos anos 90. E que se o ocorrido na segunda metade dos anos 90 tiver relação com os fenômenos observáveis nos anos 70, e ainda na metade dos anos 80, alguns ajustes de política habitacional, tatu sensu, devem ser feitos. No entanto, se o fenômeno for um desdobramento do processo de globalização, então as intervenções terão outro caráter e serão de ajustes para a criação de condições capazes de gerar desenvolvimento local. Não sabemos nada. Não sabemos o porquê. São Paulo e Rio tiveram dinâmicas distintas nos anos 90 com São Paulo vivendo problemas crescentes. Mas os efeitos demográficos são semelhantes. Por quê? Precisamos que as universidades e os órgãos técnicos nos ajudem a entender esta nova dinâmica para que todos possamos agir.

CESAR MAIA é o prefeito do Rio de Janeiro

Voltar ao Topo   TÓPICO 26

A Carga Tributária Incidente no Preço de Habitações Populares em São Paulo

Retirado do site: http://www.sindusconsp.com.br/publica/sumario/cargatrib.htm

A Carga Tributária Incidente no Preço de Habitações Populares em São Paulo

Apresentação

  O adquirente de uma moradia popular paga em impostos 40% do valor do que custaria produzir este imóvel sem tributos. Esta é a conclusão do presente estudo feito pelo professor da Unip, Jorge Oliveira Pires, doutorando pela FGV-SP, em parceria com o Setor de Economia do SindusCon-SP.
O estudo mostra a incidência, no custo da habitação popular no município de São Paulo, de tributos e encargos específicos, tais como ITBI, ISS, IOF, IPTU, IPI, ICMS, INSS, Incra, Salário-Educação, Seguro de Riscos e Acidentes, além dos gerais – IRPJ, Cofins, CLS, PIS e CPMF.
O documento foi entregue recentemente ao presidente da Caixa Econômica Federal, Emilio Carazzai, com o objetivo de sensibilizar o governo federal para que promova uma redução de tributos e encargos na construção de habitação popular.
Com esse estudo, o SindusCon-SP dá sua contribuição, disponibilizando uma metodologia que demonstra a urgente necessidade de diminuir tributos e encargos, para impulsionar as políticas públicas de estímulo à aquisição de moradia pela população de baixa renda.

Sergio Porto
Presidente SindusCon-SP


 

Jorge Oliveira Pires é professor da Unip
e doutorando pela EAESP/FGV-SP.

1. Introdução

  O intuito deste estudo é identificar quanto do custo total de um empreendimento de habitações populares é composto por tributos recolhidos aos cofres públicos. Nesse sentido, são levados em conta tanto os impostos que são internalizados nos custos da atividade de construção civil, pela simples aquisição de material e serviços, como também os tributos oriundos da contratação de mão-de-obra. Há que se considerar ainda, além do custo tributário acima citado, a incidência de vários outros tributos sobre o faturamento das empresas do setor, o que eleva o custo final das unidades produzidas.
Este documento apresenta a metodologia, as hipóteses de trabalho utilizadas para estimar a incidência de impostos na atividade e, por fim, traz breves comentários sobre os resultados.

2. Metodologia

O custo da habitação popular pode ser decomposto em dois grandes grupos: (i) os de construção, nos quais estão inclusos o custo direto total, o BDI, o custo do equipamento comunitário, custo total de urbanização, e (ii) os demais, nos quais estão inclusos: o valor do terreno, as despesas de legalização e o seguro de término de obra.

preço = custo de construção + demais custos

Sobre esses componentes incidem diferentes impostos com distintas alíquotas, o que requer um tratamento diferenciado entre os grupos. Os custos de construção, por exemplo, podem ser subdivididos em despesas com material e despesas com mão-de-obra, as quais pagam impostos e contribuições distintos. A tabela 1 lista os componentes de custo e os respectivos tributos, específicos e gerais, incidentes sobre eles.

 

 
 

TABELA 1 - Composição dos Custos e Tributos Incidentes

 
    Custo da construção Demais custos
Componentes •  Custo unitário básico
- Material
- Mão-de-obra
• BDI
• Equipamento comunitário
• Urbanização
• Terreno
• Despesas de
legalização
• Seguro de
término de obra
Impostos específicos IPI, ICMS, INSS, INCRA,
Salário Educação,
Seg. Riscos e Acidentes
ITBI, ISS, IOF, IPTU
 
  Impostos Gerais       IRPJ, COFINS, CSL, PIS/PASEP, ISS,CPMF

 

2.1 Impostos sobre o consumo intermediário de material e serviços

Os custos de construção podem ser divididos em dois grandes blocos: aqueles referentes aos materiais utilizados ou serviços contratados e os que dizem respeito à mão-de-obra. Sobre esses dois blocos incidem tributos diversos que oneram os custos de produção.
Sobre os materiais utilizados na construção incidem o IPI e o ICMS. Buscou-se, assim, identificar os valores desses impostos embutidos em seu preço. O peso de cada grupo de material no custo por m2 construído é o empregado no cálculo do custo unitário básico de habitações populares realizado pelo SindusCon-SP.
A partir desses pesos e das alíquotas vigentes para os dois tributos em questão (IPI e ICMS) pôde-se estimar o quanto de imposto foi pago na compra dos materiais necessários na construção de um m2 de habitação popular. Para o IPI a alíquota varia bastante, conforme o tipo de material, enquanto para o ICMS a alíquota genérica de 18% vigora para a grande maioria dos produtos, salvo algumas exceções, que têm alíquota reduzida para 12% (ver tabela 2).
Para o cálculo dos impostos sobre a folha de pagamento adotou-se procedimento semelhante ao descrito acima. Sobre a folha de pagamento incidem três grupos de encargos:

Grupo I: composto pelos Encargos Básicos Tributários relativos a INSS, Salário Educação, INCRA e Seguro Obrigatório Contra Riscos e Acidentes, totalizando 25,7% da folha, que são efetivamente recolhidos aos cofres públicos.

Grupo II: composto pelos Demais Encargos Básicos, incluindo FGTS, SESI, SENAI e SEBRAE, SECONCI, totalizando outros 12,1% da folha, que no entanto não têm como destino o caixa do governo.

Grupo III: composto pelos Encargos Adicionais (Repouso semanal remunerado, Feriados, Férias + 1/3, Auxílio enfermidade e acidentes do trabalho, 13o Salário, Licença paternidade, Faltas justificadas por motivos diversos), os quais totalizam 52,55% da folha. Sobre este último grupo há incidência dos encargos descritos nos grupos I e II. Contudo, apenas aqueles relativos ao grupo I são de natureza tributária.
Como nosso interesse reside no cálculo do total de impostos recolhidos aos cofres públicos, os encargos do grupo III acima descritos (e que basicamente são benefícios adicionais auferidos pelo trabalhador) foram computados apenas na medida em que compõem a base de incidência dos encargos dos grupos I e II – como dissemos, apenas o do grupo constitui carga tributária. Desconsiderou-se, neste estudo, os encargos ligados às eventuais demissões de trabalhadores e outros, tais como: dias de chuva e outras dificuldades, café da manhã, almoço, jantar, equipamento de segurança e vale transporte.

2.2 Impostos sobre o valor da produção ou sobre componentes específicos

2.2.1 Impostos sobre o valor da produção (faturamento)

Além dos impostos sobre a folha de pagamento e aqueles embutidos no custo dos materiais, incidem sobre o faturamento da empresa: IRPJ, COFINS, PIS/PASEP, Contribuição Social sobre o Lucro (CSL) e a CPMF² . Com relação a esses tributos cabem as seguintes notas:

 

 

Grupos de produtos e alíquotas vigentes
no Estado de São Paulo

 
 
 

Família de produto

Código NBM

Custo unitário
preços de set/99

Alíquotas

 

IPI

ICMS

 
  Tábua pinho

4407.10.0399

0,09

10

18

 
Viga peroba

4407.99.0203

8,95

0

18

Chapa compens. plast.

4412.11

0,13

10

18

Portas

4418.20.0000

0,98

10

18

Concreto usinado

6810

13,19

10

18

Cimento

2523.2

7,63

4

18

Areia

2505

2,40

0

12

Brita

2517.10

1,58

0

12

Cal

2523.2

0,85

4

18

Bloco

6810.11.0000

22,03

10

18

Tijolos

6904.10

0,22

0

12

Telha Paulista

6905.10

5,69

0

12

Caixa d`água

6811.90.0101

1,55

10

18

Aço

7214.20.010

5,13

5

12

Prego

7317.00.02

0,23

15

18

Tintas

3208

2,52

10

18

Liq. Desmoldante

3403

0,15

15

18

Impermeab.Normal
(vedacit)

3823.40.0100

4,14

10

18

Vaso sanitário

6910.10

4,13

10

18

TUBO PVC (esgoto)

3917.2

1,55

10

18

Tubo PVC rígido
(soldável)

3917.2

1,36

10

18

Tubo ferro galvaniza.

7304.3

0,72

8

18

Torneira cromada p/
pia cozinha

8441

6,25

12

18

Fio termoplástico

8544.5

3,85

15

18

Eletroduto PVC rígido

3917

0,23

10

18

Caixa passagem

3925

30,25

15

18

Disjuntor

8535.2

1,00

15

18

Interruptor

8535.3

2,06

15

18

Vidro liso transparente

7004.90

3,70

10

18

Dobradiça em ferro
polido

8302.10

2,44

10

18

Caixilho de ferro

8302.4

39,75

10

18

  ² Alguns desses impostos incidem sobre o lucro, mas sua aferição estimativa é realizada tendo por base o faturamento.

O IRPJ foi calculado aplicando a alíquota de 15% sobre a base de incidência, representada por 8% do faturamento (i.é, do valor total do empreendimento), excluído o valor do terreno, e 10% adicionais sobre o que exceder R$ 20.000,00. Tudo se passa, pois, como se o empreendimento proporcionasse um lucro de 8%. Esse número é utilizado em razão de ser o valor usado para o cálculo da base de incidência do imposto das empresas de construção que optam pelo recolhimento mensal com base no lucro estimado.

• A COFINS recolhida na operação foi calculada usando-se a alíquota de 3% sobre o valor do empreendimento.

• A Contribuição Social sobre o Lucro (CSL) foi calculada utilizando-se como base de incidência 12% do faturamento, aos quais foram aplicados a alíquota de 12%. Como previsto em lei, há a possibilidade de se compensar neste tributo um terço do valor da COFINS paga. Esse valor (1/3) foi, portanto, aqui descontado.

• A CPMF recolhida foi calculada aplicando-se a alíquota de 0,38% sobre o valor total do empreendimento.

• O ISS recolhido sobre a atividade da construção foi calculado empregando-se a alíquota de 5% (vigente na cidade de São Paulo³ ) sobre o valor total do empreendimento, excluindo-se o valor do terreno e o valor do material utilizado. A alíquota foi aplicada sobre 42% da soma Custo Global de Edificações + Custo do Equipamento Comunitário + Custo Total de Urbanização. Os 42% acima referidos correspondem à participação da mão-de-obra no custo total por m² calculado para as edificações (os 58% restantes correspondem aos materiais). Supõe-se, assim, que a mesma composição vigora para o equipamento comunitário e a urbanização.

2.2.2 Outros Impostos sobre componentes específicos do custo

Sobre a transmissão de bens imóveis incide o ITBI. A alíquota de 2% sobre o valor do terreno foi utilizada para cálculo do imposto pago na operação de compra do mesmo4 . Sobre as despesas de legalização incide o ISS. A alíquota utilizada é a vigente no município de São Paulo: 5%.
Sobre o seguro de término de obra incide o IOF, com alíquota de 4%, conforme legislação vigente.

3 Essa alíquota varia bastante de cidade para cidade.
4 Essa alíquota varia de 2% a 6% de acordo com o valor do imóvel. No presente trabalho consideramos alíquota de 2% devido a uma liminar que assim determina.

 

Grupos de materiais e arrecadação
no Estado de São Paulo

 
 
  Família de produto  
 
 

 

Custo unit.
preços set/99

impostos

 

 

 

IPI

ICMS

Total

Alíq.

 
  Tábua pinho

0,09

0,007

0,016

0,024

26,2%

 
Viga peroba

8,95

-

1,611

1,611

18,0%

Chapa compen. plast.

0,13

0,011

0,023

0,034

26,2%

Portas

0,98

0,080

0,176

0,257

26,2%

Concreto usinado

13,19

1,082

2,374

3,456

26,2%

Cimento

7,63

0,250

1,373

1,624

21,3%

Areia

2,40

-

0,288

0,288

12,0%

Brita

1,58

-

0,190

0,190

12,0%

Cal

0,85

0,028

0,153

0,181

21,3%

Bloco

22,03

1,806

3,965

5,772

26,2%

Tijolos

0,22

-

0,026

0,026

12,0%

Telha Paulista

5,69

-

0,683

0683

12,0%

Caixa d`água

1,55

0,127

0,279

0,406

26,2%

Aço

5,13

0,226

0,616

0,841

16,4%

Prego

0,23

0,028

0,041

0,070

30,3%

Tintas

2,52

0,207

0,454

0,660

26,2%

Liq. Desmoldante

0,15

0,018

0,027

0,045

30,3%

Impermeab.Normal
(vedacit)

4,14

0,339

0,745

1,085

26,2%

Vaso sanitário

4,13

0,339

0,743

1,082

26,2%

TUBO PVC (esgoto)

1,55

0,127

0,279

0,406

26,2%

Tubo PVC rígido
(soldável)

1,36

0,112

0,245

0,356

26,2%

Tubo ferro galvaniza.

0,72

0,047

0,130

0,177

24,6%

Torneira cromada p/
pia cozinha

6,25

0,615

1,125

1,740

27,8%

Fio termoplástico

3,85

0,474

0,693

1,167

30,3%

Eletroduto PVC rígido

0,23

0,019

0,041

0,060

26,2%

Caixa passagem

30,25

3,721

5,445

9,166

30,3%

Disjuntor

1,00

0,123

0,180

0,303

30,3%

Interruptor

2,06

0,253

0,371

0,624

30,3%

Vidro liso transparente

3,70

0,303

0,666

0,969

26,2%

Dobradiça em ferro
polido

2,44

0,200

0,439

0,639

26,2%

Caixilho de ferro

39,75

3,260

7,155

210,415

26,2%

Total

174,75

13,802

30,554

44,356

25,4%

 

3. Estimativa do total de impostos pagos numa habitação popular

As estimativas do total de impostos pagos sobre o valor de uma habitação popular feitas neste estudo tomaram como base um empreendimento constituído por 10 edifícios com 5 pavimentos e 4 apartamentos por andar, totalizando 200 unidades residenciais. A área total equivalente de construção desse projeto, previsto para a cidade de São Paulo, é de 9.407,39 m2. O custo unitário básico apurado para este empreendimento é de R$276,09 por m2.
O primeiro passo dado foi calcular a alíquota média incidente sobre os custos de material e de mão-de-obra. Para tanto, utilizou-se o valor de R$301,09 por m2 equivalente ao custo unitário básico da habitação popular calculado pelo SindusCon-SP5 . Este procedimento foi adotado, pois permitiu que fossem: (i) discriminados os custos de cada tipo de material e de cada categoria de mão-de-obra, (ii) relacionadas as alíquotas de impostos incidentes sobre eles e (iii) calculado o respectivo imposto pago. Dessa forma, para se chegar à alíquota média, dividiu-se o valor total pago de tributos (IPI, ICMS, INSS e INCRA) em cima desses insumos pelo custo total do m2. Essa alíquota, de 22,6%, foi então aplicada sobre parte dos custos totais do empreendimento (i.é., sobre o custo global de edificações, o custo do equipamento comunitário, o custo total de urbanização). Abaixo se descreve o cálculo do imposto total pago sobre os custos de construção que possibilitou estimar da alíquota média acima citada.
A tabela 3 apresenta a listagem dos materiais usados na construção de habitações populares, o custo unitário por m2 de casas populares (calculado pelo Sinduscon-SP para setembro de 1999), as alíquotas do IPI e do ICMS e a arrecadação desses dois impostos. Dessa forma pôde-se computar uma totalização parcial IPI + ICMS, a qual gerou a alíquota média de 25,4%.

 

  Pag10.gif (4688 bytes)


Na tabela 4 procedeu-se ao cálculo dos impostos pagos sobre a folha aplicando-se a alíquota de 25,7% sobre o custo unitário de cada tipo de serviço, referente à soma das alíquotas parciais do INSS (20%), Salário Educação (2,5%), INCRA (0,2%) e Seguro Obrigatório Contra Riscos e Acidentes (3,0%). Para efeito do cálculo do custo unitário referente aos serviços da mão-de-obra contratada utilizou-se o peso de cada tipo de serviço executado no m2 de construção de habitações populares e o salário médio por hora correspondente (livre de encargos), ambos calculados pelo SindusCon-SP para setembro de 1999. O peso acima citado nada mais é que o número de horas de trabalho de cada tipo de profissional (servente, carpinteiro, etc.) empregadas em cada m2 construído (representa, portanto, uma medida física da quantidade de trabalho utilizada).
O valor obtido de impostos pagos por tipo de serviço executado está na coluna referente à arrecadação. A soma dos valores de todos os tipos de serviço nos dá um total parcial de impostos sobre a folha de R$15,45 por m2 construído. Porém, esse número não representa ainda o total geral de tributos sobre a folha de pagamento, uma vez que a alíquota de 25,7% deve incidir também sobre os encargos do grupo III e que representam benefícios auferidos diretamente pelo trabalhador (13o salário, férias etc.).
Os encargos do grupo III correspondem a um custo adicional de 52,55% da folha, e sobre estes 52,55% aplica-se novamente a alíquota de 25,7% (o que nos levaria a uma alíquota efetiva de 13,51% incidente diretamente sobre o total da folha de pagamento). Temos assim, R$8,12 por m2 construído adicionais de tributos relativos à reincidência dos impostos do grupo I sobre os encargos do grupo III. Podemos agora achar o total geral de imposto pago sobre a folha somando os primeiros R$15,45 aos R$8,12, o que nos dá um valor de R$23,57 por m2 construído; vale lembrar que esses valores monetários referem-se ao custo unitário básico de R$301,09 que aparece na tabela 4, e não ao custo efetivo do projeto em questão.
O valor de R$23,57 pode agora ser acrescido ao valor dos impostos pagos sobre os materiais utilizados – R$ 44,35 por m2 (R$ 13,80 de IPI e R$ 30,55 de ICMS), totalizando R$67,92 de impostos por m2. Esse valor corresponde a 22,6% do custo por m2, a alíquota média que será empregada para estimar a carga tributária sobre o projeto que serviu de base para este estudo.
Sobre os demais custos do empreendimento, a saber, valor do terreno, despesas de legalização, seguro de término de obra, incidem respectivamente, ITBI, ISS e IOF, devidamente computados conforme as alíquotas vigentes. Sobre o custo total do empreendimento incidem ainda, IRPJ, COFINS, PIS/PASEP, CSL e CPMF e ISS (conforme descrito no item 2.2). A soma desses impostos corresponde a 7,8% do custo total do empreendimento.
Dessa forma, estima-se que, no empreendimento popular, de cerca de R$3,9 milhões, considerado neste estudo, arrecada-se 28,6% em impostos. Isso significa que, do preço de R$ 19.624,46 de uma unidade habitacional, R$ 5.611,36 são impostos recolhidos pelo governo. Se levarmos em consideração a carga tributária calculada com base no preço de produção, excluídos os impostos, chegamos a uma alíquota média de aproximadamente 40%, ou seja, o preço para o consumidor é 40% maior que o custo de produção. O gráfico a seguir ilustra essa relação.

 

Pag14.gif (8387 bytes)

 

 

Pagb.gif (17769 bytes)


DIRETORIA

PRESIDENTE Sergio Porto

VICE-PRESIDENTE FINANCEIRO Sérgio Tiaki Watanabe

VICE-PRESIDENTES Artur   Quaresma Filho Eduardo Ribeiro Capobianco, Eduardo May Zaidan,  Fernando Silva Chaves Neto, João Claudio Robust,i João de Souza Coelho Filho, José Carlos Molina, José Romeu Ferraz Neto, Luiz Antonio Messias, Mario Cotrim Sartor,  Paulo Tadeu Rivalta de Barros Sérgio Renato Fernandes Novaes

DIRETORES REGIONAIS Carlos Guilherme R. Gargantini, Iskandar Aude, José Alberto Dias Martins, José Luiz G. Botelho, José Regino Jr. Lupércio Simão Conde Norton Guimarães de Carvalho Paulo Piagentini,  Sérgio Benedito Abibe Aranha

REPRESENTANTES JUNTO A FIESP: Eduardo Ribeiro Capobianco, José Romeu Ferraz Neto, Atushi Yamauchi,  Gianfranco Asdente

Voltar ao Topo   TÓPICO 27

A invasão das favelas

Jornal O Globo, Opinião, terça-feira, 20 de fevereiro de 2001

A invasão das favelas
SERGIO MAGALHÃES 

De tempos em tempos a imprensa noticia o crescimento das favelas no Rio. Causas estruturais da sociedade e da economia nacionais explicam essa ocorrência e sua expansão. No entanto, quase sempre, o assunto é tratado como se decorresse exclusivamente da vontade dos governantes _ seja a sua contenção, seja o seu crescimento.

A simplificação da questão, a sua glamourização ou a sua satanização pouco ajudam para compreendê-la. O inegável é que favela e asfalto constituem a cidade de hoje de um modo biunívoco; a cidade é partida na sua configuração mas é inteira na interdependência entre seus setores. 

Vivemos numa sociedade capitalista, onde os cidadãos vendem sua força de trabalho e recebem moeda em troca.

A economia urbana está totalmente monetarízada; já não há escambo. Os recursos que faltaram para o crédito às famílias mais pobres, com o qual teriam acesso à moradia em condições legais, são os mesmos que estiveram disponíveis para a  construção de shoppings e edifícios de luxo. 

Sem investimentos coletivos na construção das infra-estruturas urbanas, e sem crédito, abundante, democrático e em condições compatíveis com a renda das famílias, não é possível construir uma cidade sustentável e de moradias produzidas ao abrigo das leis. Mas tornar disponíveis os investimentos coletivos e os créditos necessários não é decisão voluntarista, de um ou outro dirigente. É trama mais complexa, de construção política. A recorrência do noticiário sobre crescimento das favelas pode reforçar em algumas áreas sociais o medo ou o desconforto perante a "favelização" da cidade. Mas também pode ajudar a situar o tema na pauta do debate, caminho para o seu equacionamento.

Assim, espero que frutifique matéria dominical recente do GLOBO ("A Invasão silenciosa das favelas"), embora seu embasamento estatístico seja discutível. Afirma, com dados do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que surgiu uma favela por mês na última década na cidade do Rio de Janeiro. Seriam 384 favelas com mais de 50 domicílios em 1991 e em 2000 contaram 513. 

Diferentes desses são os números publicados pelo Anuário Estatístico do Iplan-Rio de 1992-93, tendo como fontes o próprio censo do IBGE de 1991 e os dados do órgão municipal.

Segundo o Anuário, neste ano foram listadas 485 favelas com 50 ou mais domicílios. Moravam em favelas 962 mil pessoas, 24% das quais viviam nas 15 maiores favelas, de mais de 2.500 domicílios cada uma. Quinze por cento delas viviam em 362 favelas pequenas, de até 250 domicílios.

Por um ou outro estudo, quase um milhão de cariocas moravam em favelas em 1991. Número em si suficiente para atestar o acerto da política habitacional constituída a partir de 1994 na cidade, que deu ênfase à construção de infra-estruturas e à regularização do espaço urbano nas favelas consolidadas do município do Rio de Janeiro. Ao invés de desconhecê-las, ou esperar pela sua remoção, criou-se o programa Favela-Bairro, o qual, ao mesmo tempo em que as urbaniza, contém e limita sua área ocupada. Com outros sete programas de trabalho da política habitacional, ele veio a se constituir num exemplo de enfrentamento do problema, reconhecido mesmo fora das fronteiras brasileiras.

Mesmo assim, se os investimentos feitos são expressivos para centenas de milhares de cariocas, é inegável que a questão habitacional terá que ter suporte numa política nacional de garantia de crédito a todas as famílias. Investimentos públicos, massivos, na produção de infra-estruturas e serviços necessários à vida urbana nas condições que a modernidade nos impõe, de um lado, tornando democrático o acesso à cidade, e, de outro, a poupança coletiva permitindo a expansão da moradia legal a todo cidadão.

Se continuarmos trilhando o caminho apontado nesses últimos anos pela política habitacional desenvolvida no Rio, se construída uma política urbana nacional de valorização da cidade e garantido o protagonismo das famílias na decisão de onde e como morar, os próximos censos do IBGE nos indicarão números compatíveis com uma cidade que se democratiza.

SERGIO MAGALHÃES é secretário de Projetos Especiais do Rio de Janeiro.

Voltar ao Topo   TÓPICO 28

A Responsabilidade Civil da Administração Pública

Retirado do site: http://www.travelnet.com.br/juridica/art22c96.htm

Autor: *Marcílio Toscano Franca Filho
Data: 20/julho/96

SUMÁRIO: I) Abordagem inicial: noção de responsabilidade civil da Administração; responsabilidade civil da Administração e responsabilidade civil do Estado. II) As construções doutrinárias acerca da Responsabilidade Civil da Administração; o Estado Absoluto e o Estado de Direito sob o aspecto da responsabilidade civil da Administração Pública. III) O Direito brasileiro e a regulamentação da Responsabilidade Civil da Administração Pública; breve notícia histórica; a Constituição Federal de 1988; IV) Reparação do dano; a Ação de Indenização; a Ação Regressiva; excludentes de responsabilidade civil. V) À guisa de conclusão. VI) Bibliografia.



I. Tradicionalmente, entende-se por Responsabilidade Civil a obrigação que tem todo sujeito de direitos de reparar economicamente os danos por ele causados à esfera juridicamente protegida de outrem, independentemente de lei ou acordo de vontades. É princípio fundamental de justiça que, em se lesando qualquer dos direitos de outrem, há de se lhe indenizar, independentemente de prévio ajuste ou ato normativo, evitando-se, assim, enriquecimento sem causa de uns em detrimento de outros.


Desde o momento em que se reconheceu que todas as pessoas, quer físicas ou jurídicas, quer de direito público ou de direito privado, estão subordinadas à lei (positivados nos princípios constitucionais da legalidade e da isonomia) surgiu-lhes o dever de responder pela violação do direito alheio. O Estado portanto, como sujeito de direitos e obrigações, também está subordinado aos princípios da Responsabilidade Civil. Nasce, assim, a noção de responsabilidade Civil do Estado, por onde se entende a obrigação que se impõe à Fazenda Pública de compor financeiramente o dano causado ao particular por agentes públicos (lato sensu), no desempenho de suas funções estatais ou a pretexto de exercê-las, em decorrência de comportamentos lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou meramente jurídicos.


A ResponsabilidadeCivil da Administração Pública, o nosso objeto de reflexão, é pois uma espécie do gênero maior que é a Responsabilidade Civil do Estado, a quem se subordinam também a responsabilidade por atos judiciais e a responsabilidade por atos legislativos.


No afã de atender às necessidades públicas, a Administração Pública, através de seus agentes, presta serviços, levanta obras, proíbe comportamentos, delega poderes, policia atividades, concretiza atos administrativos... Todas as vezes em que destas ações ou omissões resultarem danos a bem juridicamente protegido do administrado (quer pessoa física ou jurídica) surge a obrigação de reparação deste dano, ou seja, a obrigação que se impõe à Fazenda Pública de compor financeiramente o dano causado ao administrado por agentes públicos, no desempenho de suas funções ou a pretexto de exercê-las, em decorrência de comportamentos lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou meramente jurídicos.


Resta notar que não se fala de Responsabilidade Civil da Administração Pública quando não se viola diretamente um direito alheio. Quando a Administração apenas debilita um direito do particular, por expressa ordem de um mandamento legal e em nome de um interesse público, não se fala em responsabilidade, mas tão só em sacrifício de direito. A responsabilidade pressupõe dano, sempre. Tal fato diferencia, p. ex., a obrigação de indenização decorrente de responsabilidade civil da decorrente de desapropriação (onde a própria norma constitucional prevê o sacrifício do direito individual da propriedade em nome do interesse público genérico).


II. A evolução doutrinária acerca da Responsabilidade Civil da Administração tem sido sempre um crescendo em direção à proteção dos Administrados, em decorrência das especificidades do ente estatal e da crescente ampliação dos afazeres do Estado. As construções teóricas acerca da ResponsabilidadeCivil da Administração, ao longo da história, evoluíram da total irresponsabilidade para um conceito de responsabilidade pública da Administração, diferente e mais rígida que a tradicional responsabilidade patrimonial civilística.


A mais antiga destas concepções teóricas é a da total irresponsabilidade da Administração, que é contemporânea do absolutismo e dos regimes despóticos. Neste período, devido à máxima da infalibilidade real (“o rei nunca erra”) e da identidade do monarca com o Poder/Estado (“o estado sou eu”), negou-se vigência à Responsabilidade Civil da Administração.


Com a instituição do Estado de Direito e de suas garantias de legalidade e igualdade como direitos fundamentais (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão -1789), deixaram de existir autoridades fora da abrangência da lei e conseqüentemente sujeitos irresponsáveis. Superada completamente a doutrina da irresponsabilidade da Administração, adveio, paralelamente à constituição do Estado Liberal (Estado Igualdade, no dizer de Paulo Bonavides), a doutrina da culpa civil comum, ou teoria subjetivista da responsabilidade. Segundo ela, o Estado/Administração equiparava-se ao cidadão em sede de Responsabilidade Civil e, por isso, deveria reger-se também por princípios do direito privado clássico. Assim, a obrigação de indenizar da Administração surgia da conjugação de QUATRO fatores: FATO + DANO + NEXO CAUSAL + CULPA OU DOLO do agente, onde as noções de dolo e culpa eram as mesmas da contemporaneidade - vontade consciente e intencional (dolo) e imprudência, negligência e imperícia (culpa).


Tal situação exigia muito do administrado, que além do dano teria que provar a conduta culposa ou dolosa da Administração Pública.


Em razão das peculiaridades da atividade administrativa, da privilegiada posição de superioridade de que dispõe a Administração e do desenvolvimento do Direito Público (sobretudo o Constitucional), a doutrina passou a resolver o problema da Responsabilidade Civil da Administração por critérios mais objetivos. Surgem, assim, as TEORIAS OBJETIVISTAS, representadas, em suma, por três correntes distintas: a teoria da culpa administrativa; a teoria do risco administrativo e a teoria do risco integral.


Pela teoria da culpa administrativa, o primeiro - e por isso ainda nebuloso - estágio para o objetivismo na responsabilidade civil, tem-se que a Administração é civilmente responsável desde que provada a falta do serviço - aqui entendida como inexistência, mau funcionamento ou retardo do serviço. As tradicionais noções de dolo e culpa do agente são substituídas pelo conceito um pouco menos subjetivo de falta do serviço da administração. Do mesmo modo que a doutrina subjetivista, esta teoria ainda exige em demasia da vítima já que, além da lesão injusta, fica ela no dever comprovar a falta do serviço - a sua inexistência, seu mau funcionamento ou retardo.


Posteriormente, advém a teoria do risco administrativo, consubstanciando a passagem definitiva para o objetivismo na doutrina sobre a Responsabilidade Civil da Administração. Por esta teoria a obrigação de indenização surge tão só da equação: FATO + DANO + NEXO CAUSAL. Não se indaga mais sobre qualquer intenção do agente ou ocorrência de serviço da Administração. Para a indenização basta que a vítima mostre que a lesão ocorreu sem o seu concurso e adveio de ato administrativo omissivo ou comissivo. A culpa da administração é presumida.


Tal teoria tem fundamento no próprio risco que a atividade administrativa gera para os administrados e na possibilidade de dano sobre certos indivíduos não suportado pelos demais. Daí porque o ressarcimento é integralizado por toda a coletividade através do tesouro público. RISCO e SOLIDARIEDADE são pois os pilares desta teoria.


Embora dispense a prova da culpa da Administração (por presumi-la), a teoria do risco administrativo admite a prova da culpa da vítima para eximir-se da responsabilidade ou atenuá-la, nos casos de culpa concorrente ou exclusiva. Este é o ponto chave que diferencia a teoria do risco administrativo da teoria do risco integral, que passamos a ver em seguida.


A última das teorias objetivistas é a do risco integral. Se, segundo a doutrina do risco administrativo a Administração Pública pode eximir-se da sua responsabilidade civil comprovando a culpa da vítima/administrado, tal não ocorre pela construção do risco integral, modalidade extrema de responsabilidade, segundo a qual a Administração é sempre culpada e responsável por toda lesão à esfera jurídica do particular. Por ser draconiana, a elaboração teórica do risco integral é uma rara exceção nos ordenamentos jurídicos atuais.


III. No ordenamento pátrio, o debate entre civilistas e publicistas (entre estes sobressaindo-se Amaro Cavalcanti) sobre a regulamentação da responsabilidade civil da Administração rendeu grandes e proveitosas discussões. Saliente-se que jamais se discutiu se havia ou não obrigatoriedade do Estado em responder civilmente por seus atos (necessidade fundamental do nosso Estado de Direito), mas tão só a maneira de ser exercida esta responsabilização: subjetiva ou objetivamente.


Inicialmente, ainda no Império, prevaleceu a tese da culpa civil, embasada nas categorias de dolo e culpa, conforme dispositivo constitucional da época (1824) e vastas construções doutrinárias e jurisprudenciais. Tal entendimento foi mantido no raiar da República e em sua Constituição de 1891. Este entendimento da responsabilidade subjetiva da Administração perdurou até mesmo quando da edição do Código Civil, em 1916, que em seu art. 15 estabelecia que as pessoas jurídicas de direito público eram civilmente responsáveis por atos de seus representantes, ressalvado o direito regressivo. Embora insatisfatória, como já visto anteriormente, a teoria subjetiva foi recepcionada e mantida nos textos constitucionais subseqüentes de 1934 e 1937.


Foi apenas no Texto Constitucional de 1946 que houve a radical mudança para a adoção da teoria do risco administrativo. Este dispositivo constitucional perdurou tanto na Carta de 1967 como na de 1969 (E.C. 1/69).


A atual Constituição, permanecendo na orientação objetivista do risco administrativo, de modo geral, trata do tema no seu art. 37, §6º, que assim estabelece:


Art. 37 - ....................


§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.


Do exame deste artigo resulta que todas as entidades estatais e seus desmembramentos (autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista, permissionários, concessionários e autorizatários de serviços públicos estão obrigados a indenizar os danos causados a terceiros por seus agentes, independentemente da prova de culpa no cometimento da lesão. Bastando portanto o fato, o dano e relação da causalidade entre ambos.


Ao se referir a agentes, o texto constitucional se refere não só a servidores públicos, mas também a funcionários (ocupantes de função pública), empregados (públicos ou privados com serviços delegados, concedidos ou permitidos), agentes políticos no exercício de funções administrativas e tantos outros executantes de atos e serviços administrativos. O essencial para caracterizar a obrigação indenizatória é que o ato ou omissão haja sido praticado no exercício de suas funções.Ressalte-se que é constitucionalmente irrelevante (desde 1946) se a atitude lesiva da Administração é omissiva ou comissiva, legal ou ilegal, legítima ou ilegítima, material ou jurídica. Observa-se sempre o lado do administrado, parte mais fraca na relação protegida. Do mesmo modo, o abuso e o desvio de poder não eximem a Administração de sua responsabilidade, já que deveria ser diligente na escolha de seus funcionários, evitando aqueles que se apresentem nocivos à comunidade. Neste sentido são as decisões:


RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ART. 107, DA CF/69. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO. 1. A CF/69, art. 107, adotou a teoria do risco administrativo e não a teoria do risco integral. 2. O ‘risco administrativo’ ao contrário do ‘integral’ não induz a que a Administração deva indenizar sempre e em qualquer caso o dano sofrido pelo particular, significa apenas que a vítima fica dispensada da prova da culpa da administração, podendo esta, todavia, demonstrar a culpa total ou parcial do lesado no evento danoso, com o que ficará eximida total ou parcialmente da responsabilidade de indenizar. 3. Remessa desprovida. (Remessa Ex-Oficio nº 116485/90-BA, TRF 1ª Região, Relator Juiz Gomes da Silva, DJU 02.04.91, p. 6135)


ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO. INEXISTÊNCIA DE CULPA POR PARTE DA VÍTIMA. PENSÃO VITALÍCIA. 1 - Inocorrência de culpa da vítima atropelada e morta por veículo oficial. Responsabilidade da Administração, segundo a teoria do risco administrativo, que não exige a culpa do seu agente, bastando o fato do serviço e o nexo de causalidade entre este e o evento danoso. 2 - Pensão vitalícia bem fixada. 3 - Remessa denegada. (Remessa Ex-Oficio nº 105031/90-BA, TRF 1ª Região, Rel. Juiz Tourinho Neto, DJU 06.08.90, p.16636)


A Constituição Federal de 1988, entretanto, cobriu apenas o risco administrativo, não a atividade predatória de terceiros ou fenômenos da natureza. Por tais fatos a Administração só pode ser responsável civilmente conforme a doutrina subjetiva, demonstrada a sua negligência, imperícia e imprudência. Nesses casos, a Administração Pública só responde pelos danos a que estivesse obrigada a impedir, como o alagamento de casas em decorrência de má conservação de galerias pluviais, a explosão de um paiol ainda que decorrente de raio ou no caso de omissão de um policial ao presenciar um assalto. Sobre responsabilidade administrativa por ato omissivo, veja-se:


ADMINISTRATIVO - RESPONSABILIDADE CIVIL DO BACEN - FALTA DO SERVIÇO DE FISCALIZAÇÃO NO MERCADO DE CAPITAIS - LEIS NS. 6.024/74 E 4.728/65 - PREJUIZO CAUSADO PELO GRUPO COROA S/A. 1. (...) 2. (...) 3. Superadas as preliminares de carência de ação, porque situada a controvérsia no campo da responsabilidade civil da autarquia, art. 159 do Código Civil e art. 37, § 6º da CF. 4. Prova documental comprobatória da falta de fiscalização pelo BACEN, em transgressão aos deveres funcionais - Lei nº 4.595/65. 5. Indenização dos valores desembolsados pela autora, inclusive pelo que foi obrigada a ressarcir aos seus clientes, devidamente atualiza dos, a partir da data da liquidação como pedido, recompondo-se, assim, os danos emergentes. 6. Nega-se a incidência de lucros cessantes pelas circunstâncias fáticas do investimento, de hipotética possibilidade de lucros, pelo risco do mercado. 7. Verba honorária criteriosamente fixada na sentença. 8. Agravo retido não conhecido. Apelo do BACEN improvido - provimento parcial ao recurso da autora. (Apelação Cível nº 108590/90-DF, TRF 1ª Região, Rel. Juíza Eliana Calmon, DJU 20.02.92, p. 3300)


ADMINISTRATIVO E CIVIL. REPARAÇÃO DE DANOS. FALTA DO SERVIÇO. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO. 1. A omissão da Administração em não promover as obras de captação e drenagem de águas pluviais nas vias públicas, onde se desenvolvia processo de erosão, traduz falta de serviço, justificadora da responsabilidade civil da Administração pela Teoria do risco administrativo. 2. Apelo improvido. (Apelação Cível nº 105074/89-MG, TRF 1ª Região, Rel. Juiz Gomes da Silva, DJU 15.08.94, p.43660)


Uma exceção à teoria do risco administrativo adotada constitucionalmente é a responsabilização por risco integral referente à exploração de serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e à lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e derivados, estabelecida no art. 21, XXIII, ‘c’, da Carta de 1988.


IV. Como já dito anteriormente, a responsabilidade civil é obrigação pecuniária e como tal extingue-se apenas com a indenização - a reparação do dano. Essa compensação pode ser obtida amigavelmente, por via administrativa, ou judicialmente, por via da Ação Indenizatória, contra a Fazenda Pública respectiva, sendo plenamente desnecessário o litisconsórcio passivo do agente administrativo causador do dano.


Neste procedimento judicial, como corolário lógico do risco administrativo adotado pela legislação, há de se provar apenas o fato, o dano e o nexo causal entre ambos.


Dois são os argumentos excludentes de responsabilidade civil da Administração. A defesa da Fazenda Pública deverá evidenciar que: 1) ou a vítima se houve com culpa ou dolo para o evento danoso (exclusiva ou concorrentemente); 2) ou inexiste nexo causal entre o fato praticado pelo agente administrarivo e o dano (a rigor, a força maior e o caso fortuito são exemplos de ausência de nexo causal).


A indenização abrangerá o que a vítima perdeu (danos emergentes), o que deixou de ganhar (lucros cessantes), honorários advocatícios, custas judiciais, correção monetária e juros de mora (12% a.a.). No caso de lesão pessoal ou morte da vítima, contemplará ainda o tratamento médico-hospitalar, o sepultamento e a prestação alimentícia a pessoas sob sua responsabilidade. Uma vez liquidado, o débito é pago através de precatório (art. 100 da CF/88).


A indenização por dano moral também é cabível (art. 5º, X, CF/88).


Uma vez indenizada a lesão da vítima, fica a Administração autorizada pelo texto constitucional - trata-se na verdade de um poder-dever - a voltar-se contra o seu agente através de Ação Regressiva, para exigir dele que reponha as despesas que causou ao erário. São necessários dois requisitos para legitimar a Ação Regressiva: 1) que já tenha havido a indenização ao particular/administrado, e 2) que o agente tenha agido com dolo ou culpa (para ele a responsabilidade há de ser comprovadamente subjetiva).


ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA. 1 - O nosso ordenamento jurídico adotou a responsabilidade objetiva da Administração, sob a modalidade do risco administrativo e não do risco integral. Havendo culpa exclusiva da vítima, o Estado não responde pela indenização do dano. 2 - Embargos acolhidos. (Embargos Infringentes na Apelação Cível nº 101078/89-MG, TRF 1ª Região, Relator Juiz Tourinho Neto, DJU 23.10.89)Como ação civil, a Ação Regressiva transmite-se aos herdeiros e sucessores (até o valor do quinhão) e pode ser executada até mesmo depois da cessação do exercício no cargo ou função, podendo também a Administração descontar até 10% da remuneração do seu agente.Note-se que as instâncias penal, civil e administrativa não se confundem. As únicas exceções ocorrem quando há sentença penal condenatória e sentença penal com negativa de autoria trânsitas em julgado (que fazem coisa julgada civil e administrativa). Em qualquer outro caso a responsabilidade civil independe da penal e da administrativa. Veja-se:


ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO. CF/88, ART. 37, PARAGRAFO 6. PREPOSTO. CULPABILIDADE. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA NO JUÍZO CRIMINAL. EFEITOS NO JUÍZO CÍVEL. COD. PROC. PENAL, ART. 66. COD. CIVIL ART. 1525. INDENIZAÇÃO. CORREÇÃO MONETÁRIA. JUROS. 1 - A ação civil poderá ser proposta ainda que tenha ocorrido sentença absolutória no juízo criminal, salvo se tiver sido reconhecida categoricamente a inexistência material do fato ou de ter ficado demonstrado não ter sido o réu o autor da infração. 2 - Fundamentando-se a responsabilidade civil na culpa, e tendo o réu sido absolvido no juízo criminal, cabível, mesmo assim, é a ação civil, desde que não negado o fato ou a sua autoria, pois pode não haver ilicitude penal e haver a civil, além de o juízo penal ser mais exigente em matéria de aferição da culpa para a condenação, enquanto no juízo cível a mais leve culpa obriga o agente a indenizar (Carlos Alberto Gonçalves, in Responsabilidade Civil). 3 - Na responsabilidade objetiva não se exige a culpa do agente da Administração, bastando o fato do serviço e o nexo de causalidade entre este e o evento danoso. 4 - A correção monetária deve incidir a partir da data em que se apurou o valor dos danos (precedentes da Turma - REO 90.01.16295-9 - DF). 5 - Os juros - 6% a.a. - devem ser contador a partir da citação. 6 - Apelação provida. (APELAÇÃO CIVEL nº 101981/91 -DF, TRF 1ª Região, Rel. Juiz Tourinho Neto, DJU 15.04.91, p .7363)


V. Ao concluir, temos que:


1. A Administração Pública é objetivamente responsável pelos atos danosos que seus agentes, nessa qualidade, venham a produzir, sendo esse um dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito (art. 37, § 6º, CF/88).


2. Contra o agente causador do dano, desde que tenha agido com dolo ou culpa, tem o Estado/Administração o poder-dever de exigir-lhe o ressarcimento dos prejuízos causados à Fazenda Pública através de ação regressiva.


3. À exceção de danos decorrentes de atividades nucleares (risco integral), a culpa da vítima e a inexistência de nexo causal entre o fato e o dano excluem a responsabilidade da Administração Pública.


VI. Bibliografia


CAVALCANTI, Amaro. Responsabilidade Civil do Estado. Rio de Janeiro, Borsoi Editor, 1957.

ENTERRÍA, Eduardo García de et FERNÁNDES, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. Trad. Arnaldo Setti. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1991.

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Responsabilidade dos Agentes Políticos e dos Servidores. In: Revista de Direito Administrativo, nº 196, Abril/Junho 1994, pp. 36-42.

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. São Paulo, Saraiva, 1989.

MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo, Malheiros, 1995.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo, Malheiros, 1995.

SILVA. José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo, Malheiros, 1995.



*O autor é Aluno do Curso de Mestrado em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, professor substituto de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da UFPB e assessor do Juiz Federal da 2ª Vara da Seção Judiciária da Paraíba.

e-mail: potsdam@openline.com.br

Voltar ao Topo   TÓPICO 29

Inchaço urbano

Jornal O GLOBO, Opinião, quarta-feira, 30 de maio de 2001

Inchaço urbano

Ainda não estão claras as  razões da forte aceleração do crescimento populacional do Rio de Janeiro na segunda metade da década de 1990, quando a média anual passou de 0,26% para 1,31%. O que já se sabe é que a cidade está crescendo  - ou, melhor dizendo, inchando - pelas favelas, principalmente na Zona Oeste.

Seja conseqüência de migração mais intensa ou de aumento da taxa de natalidade nas famílias de baixa renda, o fato é que, segundo estudo da prefeitura, baseado em dados do IBGE, a ocupação de áreas pelas comunidades carentes expandiu-se intensamente nos últimos anos - e bairros como os da Zona Sul continuaram a perder população.

Essa tendência, antes apenas perceptível, acentuou-se intensamente  Hoje, saber o que fazer com ela deve ser o capítulo principal de qualquer política de urbanismo do Rio. É  pelas necessário, antes de mais nada,  reconhecer a alta prioridade dessa forma perigosa de crescimento; a partir daí, descobrir como atingir três objetivos óbvios: contenção do crescimento em geral, - integração das comunidades estabelecidas em áreas não perigosas e preservação do meio ambiente em pontos violentados pela ocupação descontrolada.

Voltar ao Topo   TÓPICO 30

Leis urbanas

Jornal O Globo, Opinião, terça-feira, 17 de julho de 2001

Leis urbanas

A regulamentação do uso do solo urbano é necessidade universalmente reconhecida. Isso não significa que haja apoio unânime ao Estatuto da Cidade, sancionado há dias pelo presidente Fernando Henrique. Não há discussão sobre a necessidade de planos diretores e plurianuais nos níveis estadual e municipal. Mas existe debate acirrado sobre a regulamentação do usucapião e a criação do IPTU progressivo para áreas não construídas.

A sanção põe a lei em efeito, mas não a congela. Resta muita coisa a ser regulamentada, assim como a possibilidade de recursos ao Judiciário, O que importa é que um passo importante foi cada dado para conter o crescimento desordenado das cidades. Trata-se de uma verdadeira avalanche, a cada dia mais ameaçadora para a qualidade de vida e para a própria paz urbana.

Na guerra contra a explosão urbana, a propósito, é sempre mais animador falar de iniciativas concretas do que de textos legais. É o caso dos programas de limitação física da área ocupada por favelas do Rio. Segundo a Secretaria municipal de Meio Ambiente, numa etapa inicial serão instalados 24 quilômetros de delimitadores (trilhos, cabos de aço etc.) marcando as fronteiras intransponíveis de 31 favelas. A iniciativa impede a ocupação de áreas de risco, protege a área verde da cidade e possibilita a expansão do programa Favela-Bairro.

As duas primeiras vantagens dispensam explicação. A propósito da última, basta lembrar que é impossível planejar e orçar a reforma de uma favela que muda de tamanho a cada dia.
Os moradores sabem disso, e praticamente não há oposição ao estabelecimento de fronteiras: a posse do terreno (que o Estatuto da Cidade regulamenta, por meio da titularidade coletiva das favelas), passa a ser valorizada a partir da de limitação da área total.

Certamente, deter a expansão das favelas é meia solução: o Estado também precisa atender às necessidades de moradia daqueles que hoje buscam erguer seus barracos onde seriam os subúrbios das favelas. Nenhum candidato a invasor está lá por prazer: é necessário dar-lhe destino digno e teto adequado.

Voltar ao Topo   TÓPICO 31

O Rio e a favelização

Jornal O Globo, Opinião, quarta-feira, 24 de julho de 2001

O Rio e a favelização
RICARDO CRAVO ALBIN

Ao começo do século XX, quando o Rio assistia à expansão das primeiras e ainda tímidas favelas, cronistas do porte de Lima Barreto e João do Rio vociferavam contra os “cogumelos abjetos da desordem urbana”. É claro que não culpavam os pobres e desassistidos que nelas iam parar mas sim os governantes, responsáveis diretos pelo abastardamento da paisagem do Rio. Abastardamento também das condições de vida dos favelados, vítimas da política de avestruz dos dirigentes cariocas. De lá para cá a situação se deteriorou em alarmante progressão geométrica. Os últimos 25 anos foram especialmente trágicos. Segundo dados do IBGE (último censo de 2000), o Rio contabilizou mais 119 favelas a partir de 1991, uma por mês, fechando o número quase inacreditável de 513 comunidades faveladas na capital, isso sem contar a última, nascida da noite para o dia (21 de junho último) em Jacarepaguá, que ergueu 650 barracos em menos de 24 horas.

Quando me refiro às favelas, desordenado braço de explosão urbana e esvaziamento do campo, males que infelicitam o Brasil de 1950 para cá, devo logo esclarecer que a maioria delas está fora das vistas da Zona Sul da cidade, nossa área nobre. Na verdade, elas se concentram em Jacarepaguá (68 favelas), Bangu (21) e Realengo (14). A seguir vêm Itanhangá, Anchieta, Recreio dos Bandeirantes e Complexo do Alemão, com 11 favelas cada. Rio Comprido e Cordovil têm dez comunidades carentes dentro dos seus limites.

Essa realidade se torna escandalosa e inaceitável por várias razões. A primeira, clara como água, é a falta de planejamento a longo prazo por parte dos administradores do Rio, que deveriam prover, com apoio obrigatório dos governos do estado e federal, uma política minimamente decente para o problema habitacional da população de renda mínima, dos migrantes e dos desvalidos em geral — que gravitam em torno da antiga capital federal.

Há outros focos de tensão, afora o aflitivo problema humano — hordas de miseráveis (ou quase) que não têm como morar decentemente nesses núcleos favelizados, hoje também reféns da violência provocada pelo tráfico de drogas. O fato concreto é que a expansão das favelas vem provocando o maior desmatamento que as outrora verdejantes colinas do Rio jamais experimentaram.

O que fazer de imediato?

O Estatuto da Cidade — sancionado há pouco pelo presidente Fernando Henrique — percorre um caminho razoável para restabelecer o bom senso no caos urbano. Mas silencia sobre a necessidade de planos diretores e plurianuais (estaduais e municipais) para a solução definitiva do problema.

Várias alternativas de combate à favelização já foram imaginadas por urbanistas, sociólogos e até filósofos. Ultimamente o assunto chegou até a ser debatido na sede da ONU pela Conferência Habitat + 5, usando-se como exemplo a Rocinha, no Rio. De acordo com o conceito de welcoming (acolhimento), a contenção do crescimento da maior favela do Rio consistiria em identificar futuros moradores e, em vez de se admitirem novas construções, oferecer-lhes moradia temporária e gratuita, em comunidades populares dotadas de melhor infra-estrutura.

Outra idéia recente é a tentativa de delimitação das favelas cariocas, anunciada há poucos meses por organismos oficiais do município, preocupados em preservar o verde no Rio. Por que não começar esse cinturão de limite pelos corredores ecológicos que ligam os maciços da Tijuca e da Pedra Branca, já tão comprometidos pela desordem urbana consentida? O projeto-piloto que delimitará as favelas deverá, a meu ver, ser acompanhado por fiscais ambientais. Caberá às secretarias de Meio Ambiente (municipal e estadual) unirem esforços (e reforços) para que isso ocorra. E é bom não nos esquecermos de uma verdade cristalina: torna-se inútil planejar qualquer Favela-Bairro para uma comunidade que acrescenta novos barracos a cada dia.

Demarcar fronteiras para favelas, senhores administradores, é urgentíssimo. Aliás, vale reconfirmar alguns números que nos intimidam: quase metade dos morros cariocas (68 dos 180 existentes) já foi devastada pela ocupação canhestra. Isso significa um acúmulo de problemas que abate a cidade em cascata. O primeiro, claro, é desmatamento e aviltamento da paisagem turística do Rio, uma jóia preciosa que por séculos orgulhou tanto brasileiros quanto turistas do mundo inteiro que aqui sempre aportaram. De mais a mais, dos morros desnudos e ocupados sem qualquer infra-estrutura, desce a cada grande chuva uma escumalha de lama e lixo que entope os bueiros, alaga as ruas e ajuda a destruir as calçadas dos bairros abaixo.

Outro dia, flanando pelo Rio como me apetece, fui parar em Paquetá, onde não pisava há muitos anos. Qual não foi meu desapontamento ao verificar que a favela também se instalara no paraíso, o santuário dos amantes celebrado em canções célebres, o cenário de “A moreninha”, de Joaquim Manuel de Macedo. Quatro favelas brutalizam o antigo verde das colinas baixas e gentis da ilhota. E invadem área nobilíssima de preservação ambiental. Hoje — dramática realidade — para cada morador que paga imposto existe um favelado, que, no geral, agride os hábitos necessariamente conservadores de uma pequena classe média de aposentados. O que já começa a provocar, como é mesmo de se imaginar, o êxodo dessa população de velhinhos. Que ameaça bater em retirada pela chegada da sujeira que desce dos morros e pelo funk — suprema bofetada em ouvidos acostumados e serestas, violões e flauta, cultuados em Paquetá desde o pioneiro Anacleto Medeiros.

O filósofo espanhol Eduardo Subirats (professor da New York University), em seu novo livro “A penúltima visão do paraíso”, adverte que São Paulo e Rio, megalópoles do terceiro mundo, não são mais cidades. Transformaram-se em ruínas de cidades rodeadas por favelas descontroladas: um processo social, cultural e ecologicamente suicida. Ou seja, o descontrole e a vergonha da nossa deteriorada realidade urbana já chegaram aos fóruns internacionais e ao pensamento acadêmico do mundo.

Favelas? Melhor não tê-las. Mas se existem, em proporção tão avassaladora, que a elas se dêem soluções dignas, que possam defender a cidade e o ser humano. Por que os administradores não começam a admitir — sem hipocrisia e sem assistencialismo demagógico — a remoção de algumas delas, especialmente as que ficam em áreas de risco para os favelados, ou aquelas instaladas em área de preservação ecológica indispensável? A palavra “remoção” acabou por virar um tabu, um fetiche negativo, um palavrão. Confinar-se uma idéia por causa de uma palavra é preocupante sintoma de despreparo. Ou de pura burrice.
RICARDO CRAVO ALBIN é jornalista e escritor.

Voltar ao Topo   TÓPICO 32

Favelas: Existe solução?

Retirado do site: http://www.rberga.hpg.com.br/pia2.htm

Favelas: Existe solução?

Questão: temos competência e vontade real para resolver este problema social secular?

*Paulo Maurício Piá de Andrade

A exposição repetitiva a determinadas situações torna o ser humano resistente a enfrentá-las e insensível quanto ao fator emocional que elas carregam.

Um exemplo é a existência das favelas, estes aglomerados humanos caóticos e na maioria das vezes inadequado e indigno como local de moradia a seres humanos.

Nós nos acostumamos a vê-las como um fator "normal" no cotidiano das cidades onde vivemos, talvez inevitável.

Mas as favelas não são um fator "normal", se considerarmos que temos todos nós iguais direitos a ter moradia digna, e muito menos "inevitável", pois sabemos que o que causa indignação a uma Sociedade, geralmente tem neste fator a sua mola propulsora de mudança de determinada realidade.

As favelas surgem e se mantém por quatro motivos fundamentais:

1) êxodo rural para as cidades

2) falta de renda familiar adequada, que pode ter quatro causas:

2a) desemprego

2b) sub-emprego ou emprego informal com remuneração irregular

2c) emprego formal de baixa remuneração

2d) falta de planejamento e orientação familiar

3) opção pessoal pela exclusão social

4) Omissão do Estado:

a) por não possuir políticas habitacionais adequadas e dirigidas às causas da formação destes aglomerados sociais;

b) por não possuir política de segurança pública e permitir que o crime organizado preencha desta forma o vácuo de autoridade nestes locais, tornando-os refúgio ideal de criminosos e traficantes que passam a ser o "poder" na favela, fornecendo "emprego" aos desocupados e "proteção" aos demais habitantes em troca do seu silêncio, da sua conivência e cumplicidade implícita.

c) por não ter como prioridade uma política educacional abrangente e efetiva;

d) e, finalmente, por ter uma política tributária obtusa e incoerente, por tributar a produção e o investimento e não o consumo, como em qualquer país civilizado do mundo. Em decorrência, quem emprega uma pessoa tem que pagar tributos como se tivesse empregando duas, causando baixos salários sem que esta carga tributária tenha oferecido, em retorno, qualquer benefício efetivo ao trabalhador.

Portanto, tendo sido encontradas e definidas as causas da formação destes aglomerados populacionais chamados comumente de favelas, podemos inferir, com clareza e objetividade, as ações a serem implementadas para eliminá-las.

1) criar uma política agrícola que estimule o pequeno agricultor a permanecer em sua terra produzindo alimentos, o que significa uma política de financiamento ao produtor rural compatível e justa, para que o mesmo possa assumí-lo sem receio de perder seu patrimônio por inadimplência, como ocorre atualmente. Sem outra opção, este agricultor migra para as cidades a procura de emprego, geralmente indo morar justamente nas favelas.

Ainda com referência ao êxodo rural para as cidades, outro fator a ser analisado é o dos bóias-frias e os sem-terra.

Todos concordamos que é necessário uma reforma agrária séria, justa e que propicie não somente área para assentamento, mas também assistência técnica e fomentos para que o recém-assentado tenha reais e efetivas condições de tornar-se um novo produtor rural.

Para este objetivo se concretizar, é necessário :

# um cadastramento competente dos pretendentes às terras a serem negociadas, para se evitar falsos "sem-terra",

# um inventário nacional das terras disponíveis para reforma agrária, incluindo áreas públicas ou não, sem distinção, incluindo-se, portanto, terras pertencentes a empresas estatais, privadas, devolutas e também a instituições religiosas, tratadas até hoje no Brasil como se estivessem acima da lei, intocáveis,

# inclusão efetiva de terras desapropriadas por terem sido utilizadas para o plantio de maconha e outros alucinógenos, como é previsto em lei mas não aplicada por absoluta falta de pulso e competência das autoridades constituídas,

# a proteção efetiva de áreas produtivas, coibindo de forma vigorosa invasões e outros tipos de violência intimidatórias, quer sejam dos chamados "sem-terra" ou dos donos das áreas produtivas, apesar destes estarem defendendo seus direitos.

Estes conflitos ocorrem pela omissão das autoridades constituídas em saber inibir abusos e violações da lei, permitindo que pessoas queiram fazer a lei com suas próprias mãos.

# criar condições para que estes assentamentos tenham direito à Cidadania, através da criação de mais escolas rurais, postos de saúde e consultoria técnica adequada, tais como agrônomos e veterinários

# criar formas criativas de financiamento a estas pessoas, geralmente descapitalizadas e sem garantias além da própria terra recém-conquistada. Uma possibilidade é a do pagamento através da própria produção agrícola que será colhida.

# é necessário analisar aos olhos da Cidadania e dos Direitos Humanos o fenômeno dos bóias-frias, que é outro fator social que tem importância no aumento das populações faveladas nas cidades de médio e grande porte.

2) quanto à causa "falta de renda familiar adequada", várias ações governamentais multi-disciplinares são necessárias:

# criar condições macro-econômicas que permitam o investimento em novos empreendimentos geradores de empregos, dando especial ênfase à facilitar a criação de novas micro e pequenas empresas.

# realizar uma reforma tributária coerente pela primeira vez na História, tributando o consumo e não a produção, como ocorre atualmente.

Diminuir a carga tributária ( atualmente de 31% do PIB!! ) e aumentar a base de arrecadação.

Como esta deverá se basear na tributação do consumo ( e não da produção ), ao se fomentar a criação de novos empregos, através da simplificação na burocracia exigida atualmente para a criação de novas micro-empresas, estar-se-á aumentando automaticamente a base arrecadatória tributária.

# criar estímulos, através de incentivos fiscais, para a melhor escolarização dos empregados dentro das próprias empresas.

Já está provado que o nível de escolaridade influencia de forma benéfica na produtividade do funcionário.

# ampliar, melhorar e universalizar o acesso à informação e aos meios de planejamento familiar, propiciando um melhor esclarecimento aos casais sobre paternidade responsável, o que inclui a conscientização sobre o binômio "realidade econômica familiar" X "custos envolvidos na criação e na educação de um filho".

3) incrementar os serviços sociais que prestam atendimento a estas populações, de forma a identificar melhor as causas que levaram cada família a se instalar nas favelas, o que poderá levar a ações preventivas mais efetivas.

4) melhorar as condições de trabalho do serviço de segurança pública, o que implica em melhores salários aos policiais, melhor capacitação técnica, melhor seleção de pessoal e um efetivo setor de corregedoria, coibindo e eliminando policiais corruptos e que abusam de sua autoridade.

Desta forma, se poderá combater com melhor competência e eficiência o crime organizado, que é um dos fatores subversivos e prejudiciais à imensa maioria da população que vive nestes locais, que não é criminosa mas acaba convivendo com marginais e com a violência que os mesmos praticam inevitavelmente.

Devemos lembrar que onde existir ausência do Poder Estabelecido, que é o Estado, sempre surgirá uma forma alternativa de poder, a qual pode ser benéfica à comunidade local, como as associações comunitárias de bairros, ou maléfica, como ocorre quando o crime organizado e o tráfico de drogas preenchem o vácuo deixado pela ausência do Poder Constituído.

5) criar políticas habitacionais que permitam e estimulem as populações destes locais a trocarem seus casebres por condições dignas de moradia, em locais adequados, urbanizados e com infra-estrutura social, tal como posto de saúde, segurança pública, escola e transporte coletivo.

A conjuntura atual no Brasil, de crise econômica e desemprego, associada a um crônico déficit habitacional, possui uma oportunidade clara de minimização de ambos os problemas através de uma política de incentivo à indústria da construção civil, a qual, sabidamente, é uma das maiores empregadoras de mão de obra, portanto, de geração de empregos.

O que se faz atualmente em muitas favelas é a instalação desta infra-estrutura nestes locais, mesmo quando estes são ilegais ou inadequados à moradia humana.

Estas ações só incentivam para que estes aglomerados se perpetuem, através de tentativas irracionais de "urbanização" de áreas sem qualquer condição técnica ou legal para tal, como morros ( principalmente em cidades litorâneas ), matas ciliares de rios e invasões.

Os morros, particularmente, são áreas de difícil, senão inviável, urbanização, além de oferecer perigo constante aos moradores devido à possibilidade de deslizamentos de terra sempre que há chuva mais intensa.

A FALTA DE DETERMINAÇÃO E VONTADE POLÍTICA DE ENFRENTAR ESTA REALIDADE, DE FORMA SÉRIA E COMPETENTE, BASEADA EM ESTUDOS TÉCNICOS ADEQUADOS, SOMENTE AGRAVA O PROBLEMA PELO CONSTANTE AUMENTO DO CONTINGENTE POPULACIONAL NESTAS ÁREAS, TORNANDO A SOLUÇÃO CADA DIA MAIS COMPLEXA.

Portanto, acredito que deveríamos ter uma fiscalização mais efetiva e amparada em uma legislação coerente e moderna, que leve em consideração aspectos de proteção e de conservação ambiental e a possibilidade de execução de saneamento e de estrutura de urbanização básicos para a definição das áreas urbanas passíveis de serem ocupadas para habitação humana.

Áreas que não preenchessem estas normas, deveriam ser desocupadas, PARA A PRÓPRIA SEGURANÇA E BEM-ESTAR de seus habitantes!

Por outro lado, naquelas favelas onde há possibilidade de urbanização adequada, esta deve ser realizada sob supervisão da autoridade municipal, para que seja fornecido à população água tratada, esgoto, arruamento, escola, posto de saúde, telefone comunitário e posto avançado policial.

Deve ser dado especial atenção a ações preventivas para que a falta de ocupação das pessoas desempregadas e a evasão escolar não levem estas pessoas para ações criminais, primárias ( assaltos ) ou induzidas ( tráfico de drogas ).

Dentre estas ações, além das óbvias, como o combate à evasão escolar e ao desemprego, destacam-se a construção de quadras poliesportivas e escolinhas de esportes, como de futebol, para as crianças e adolescentes e a criação de hortas comunitárias.

Além de evitar que os desempregados ficassem desocupados, as hortas comunitárias auxiliariam a minimizar a fome e a desnutrição destas populações.

Tais ações poderiam ser supervisionadas por alunos de faculdades públicas, que assim, estariam indo ao encontro das comunidades, incutindo a mentalidade de ações voluntárias nestes estudantes, ações estas tão comuns em países desenvolvidos como os EUA.

Finalizando, em minha opinião, para se mudar este fenômeno social urbano que é a favela, é necessário, fundamentalmente, uma mudança de mentalidade.

Esta mudança de mentalidade implica em uma melhor objetividade e real vontade política de implementar massivamente a educação, estimular a geração de empregos e a melhoria dos salários, criar políticas agrícolas que incentivem a permanência do homem no campo e fazer cumprir a legislação de uso do solo urbano, que distingüe as áreas que podem ser usadas para construção de moradias daquelas que não podem.

O fenômeno social da favela é o retrato secular inequívoco da incompetência, do descaso e da iniqüidade com que as elites, salvo raras e honrosas exceções, sempre governaram este país.

Faz-se mister mudar este panorama através da mudança de mentalidade de todos nós, brasileiros que temos consciência desta triste realidade.

Portanto, as respostas às perguntas do título deste texto são:

1) Sim, existe solução para o problema das favelas

2) Sim, temos competência para tal, mas...

         3) não, não temos demonstrado vontade real de efetivar as mudanças sócio-econômicas necessárias para resolver o problema das favelas ( que na verdade é somente uma das conseqüências sociais desta falta de empenho para implementar as mudanças necessárias para o Brasil livrar-se das amarras que emperram seu desenvolvimento sócio-econômico ).

Também devemos aprender que as soluções dos problemas deste país devem ter sua parcela de implementação através de ações voluntárias oriundas da própria Sociedade Civil, sejam elas ações práticas individuais, como o auxílio pessoal a comunidades carentes, seja esta participação de que forma for, seja através da participação em ONGs, ou mesmo, simplesmente, através de contato com seus representantes políticos, manifestando seu apoio ou protesto diante de alguma medida ou ação do Governo ou do Legislativo.

Para esta cobrança junto aos políticos, precisamos ter mais consciência da necessidade de sermos mais críticos e participativos no processo decisório político e ao mesmo tempo exigir melhor representatividade política, como a criação do voto distrital, no qual se torna muito mais fácil o contato real entre o eleitor e seu representante eleito. E é justamente por este motivo, que alguns políticos entravam o trâmite legal para que o voto distrital seja criado...

Incluem-se entre estas medidas, o estímulo à criação de organizações comunitárias populares, como as associações de bairros, para representar os moradores locais junto aos vereadores eleitos pela região e ao prefeito local, para que trabalhem efetivamente por melhorias nas condições de vida da comunidade.

Nós, brasileiros conscientes da magnitude dos nossos problemas sociais, temos que escolher lideranças políticas ponderadas e lúcidas, não comprometidas com radicalismos de qualquer natureza, mas somente preocupadas em melhorar as condições de vida neste país.

O Brasil Social Atual é o nosso retrato.

E nós sabemos que somos melhores que isto.

Ou será que não somos??

É hora de provarmos!

 

* O autor é Médico Cardiologista em Curitiba, autor do Projeto para a Erradicação da Miséria no Brasil, exposto na Internet em <http://bbs2.sul.com.br/brasil/index.htm> <pia@sul.com.br>

Voltar ao Topo   TÓPICO 33

A urgência de uma reforma urbana

Jornal O Globo, Opinião, terça-feira, 25 de dezembro de 2001


PAULO HARTUNG

Ao longo dos últimos 50 anos, o Brasil transformou-se num país urbano. O fluxo migratório do campo para as cidades, em conseqüência da industrialização, provocou um crescimento desordenado das áreas urbanas, tornando-se um entrave ao nosso desenvolvimento.

Hoje, essa é a questão central de qualquer projeto nacional de crescimento econômico e social. Por isso, a nação está a exigir uma reforma urbana urgente e, para isso, o melhor caminho é o fortalecimento dos municípios. Essa, porém, não será tarefa fácil, uma vez que, segundo o IBGE, apenas 15% das nossas cidades são dotadas de plano diretor urbano, que é uma peça indispensável para tal.

Apesar do estado caótico de algumas metrópoles e o contágio que esse processo leva a cidades menores, ainda há tempo para o reordenamento urbano do país. O Estatuto da Cidade, por exemplo, aprovado pelo Congresso Nacional, em 2001, já mobiliza um grande número de municípios, que estão debatendo com a comunidade local os caminhos de adaptação à nova lei. Esse debate é uma excelente oportunidade para resgatarmos a necessidade de se definir a agenda de uma reforma urbana nacional. Três vertentes organizariam os trabalhos na perspectiva do desenvolvimento sustentável:

1. Pacto federativo e redesenho territorial e institucional das cidades brasileiras;

2. Fortalecimento da capacidade de gestão dos municípios;

3. Política urbana integrada no âmbito nacional.

Segundo o Censo 2000, divulgado pelo IBGE, 81,23% da nossa população habitam em cidades. E mesmo considerando que uma boa parcela deste percentual englobe sedes municipais profundamente vinculadas às atividades rurais, isso não reduz a importância da questão urbana, mas aumenta sua complexidade. São realidades muito heterogêneas.

É necessário, portanto, repensar o nosso desenho federativo. Em primeiro lugar, abrindo uma discussão sobre a necessidade de que em cada município, independentemente do tamanho de sua população, território e economia, reproduza-se uma idêntica estruturação, papel e presença dos três poderes e de representações dos estados e da Federação.

A estrutura do Judiciário e a organização dos órgãos de segurança pública podem ser revistas, tendo como base critérios logísticos que englobem desenhos regionais sem a obrigatoriedade de reproduzir sua presença em cada município, economizando recursos e simplificando a cadeia de decisões. Assim, os poderes Legislativo e Executivo seriam exercidos com base no conceito de voluntariado e gestão participativa da sociedade.

Para um conjunto de serviços e funções, tais como saneamento básico, transporte público, planejamento, promoção econômica, o estabelecimento de consórcios multimunicipais ou territoriais seria mais adequado que uma titularidade estadual ou municipal. Já nas grandes cidades e regiões metropolitanas, é perfeitamente possível se imaginar uma combinação de descentralização política e administrativa em nível submunicipal, simultânea ao estabelecimento de governos supramunicipais.

Não há uma solução pronta para esta vertente. O importante é abrir a discussão e estudar as experiências brasileiras e internacionais de gestão para se buscar um modelo adequado às nossas necessidades.

Apenas 16% de toda a arrecadação de impostos no país ficam com os municípios. Mesmo assim, eles são responsáveis por quase metade dos investimentos públicos. Se considerarmos que a maior parte desses recursos está dirigida para serviços essenciais à população, aumenta a importância da evolução da capacidade de gestão local.

Além de serem poucos os municípios que possuem instrumentos organizados de gestão urbana, é baixa a participação da sociedade na discussão do modelo de desenvolvimento urbano e na própria definição do uso social dos espaços públicos e privados. As experiências brasileiras de sucesso em gestão urbana, na qual se inclui a de Vitória (ES), ensinam-nos que a participação direta da população é o caminho para a maior eqüidade na distribuição dos investimentos públicos e na permanência de projetos e programas de sucesso ao longo de diferentes administrações.

No âmbito da reforma urbana, deve ser feito um esforço particular para que cada município desenvolva sua Agenda 21, numa ação nacional de criação das bases para o desenvolvimento sustentável das nossas cidades.

Apesar do avanço do poder local a partir da Constituição de 1988, ainda é muito forte a presença do Estado. Questões vinculadas ao cotidiano da administração local e a aspectos inseparáveis de realidades locais dependem de políticas setoriais. A reforma urbana deve ser o redesenho dessas políticas públicas, tendo como foco o planejamento local. Uma espécie de nova leitura dos problemas sociais do país e das suas respectivas políticas setoriais, do ponto de vista do munícipe.

Assim, o combate e a reversão da favelização das cidades, por exemplo, integrariam políticas de habitação, urbanização, saneamento, recuperação ambiental, geração de trabalho e renda, segurança, promoção social e de fortalecimento da identidade cultural em uma única iniciativa. O mesmo princípio serve para o tratamento dos municípios pobres, desprovidos de infra-estrutura urbana básica e para buscar soluções ao crescimento desenfreado das metrópoles.

No plano federal, o melhor caminho seria o da subordinação das políticas setoriais a um novo ministério, que desenvolveria, em conjunto com os municípios, uma política nacional integrada para o desenvolvimento sustentável das nossas cidades.


PAULO HARTUNG é senador pelo PSB/ES.

Voltar ao Topo   TÓPICO 34

Recreio dos Bandeirantes – Um bairro sustentável

FÓRUM 21 -DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

 EURICO PESSOA
(economista e morador do Recreio dos Bandeirantes )

I. - Introdução

         O propósito desta apresentação é o de contribuir para o aprimoramento da qualidade de vida dos moradores da região, ressaltando seus aspectos ambientais e a importância de sua preservação sem o que, um dos últimos bairros litorâneos desta cidade, ver-se-á mitigado pelas conseqüências do adensamento demográfico irregular e do binômio urbanização X lucro, natural das grandes metrópoles que não tiveram a oportunidade de elaborar uma gestão ambiental compatível com suas necessidades.

         Com esta finalidade, faremos uma pequena apreciação do Plano Lucio Costa precursor do ideal de urbanismo-ecológico da imensa Baixada de Jacarepaguá, com a planificação desta imensa área que perfaz 82 Km2. urbanizáveis, na época 1/5 do total da área urbanizável na cidade.  

         Em seguida teceremos alguns comentários a cerca de algumas convenções firmadas durante a ECO-92, na expectativa de correlacionar os fatos ali considerados com o Recreio dos Bandeirantes e, subseqüentemente detectar a situação atual do Bairro.

         E, finalmente, conjeturarmos em torno de propostas para a região.

II. - O PLANO LUCIO COSTA

II-1. O Ordenamento

         Lúcio Costa recebeu, em fins de 1.968, a incumbência do equacionamento da ocupação urbanística disciplinada da Baixada, resultando, então, no Plano Piloto da Baixada de Jacarepaguá (Plano Lúcio Costa); transformado no Decreto 42/69; posteriormente, incorporado ao Decreto “E” n.° 3800 de 20.04.1970, regulamento da Lei do Desenvolvimento Urbano e Regional do Estado da Guanabara, onde ficou ordenado que a região constituída pela Baixada de Jacarepaguá, nos limites definidos pelo P.A. 5.596 seria disciplinada pelo plano elaborado pelo arquiteto. Na mesma data, foi criado, pelo Decreto “E” n.° 2913, o grupo de trabalho encarregado de coordenar e dirigir as atividades de desenvolvimento e implantação desse plano. Em 25 de junho de 1.974, esse grupo de trabalho, através do Decreto “E” n.° 7.118, transforma-se na Superintendência de Desenvolvimento da Barra da Tijuca.

         A partir de 15 de março de 1.975, já na fase municipal da cidade, subordina-se a Secretaria Municipal de Planejamento e Coordenação Geral e, em 05 de março de 1.976, através do Decreto n.° 324, são aprovadas as instruções normativas de natureza comum a toda área da ZE-5 - Baixada de Jacarepaguá. Fica, então, institucionalizado, em termos definitivos, o plano piloto para a Baixada de Jacarepaguá.

II-2. O Pensamento de Lúcio Costa

         A grandiosidade prospectiva desse privilegiado profissional antecede, em trinta anos, todos os protocolos firmados durante o Fórum Ambientalista de 1.992. Sua motivação para a realização da incumbência que lhe foi entregue reflete-se na memória descritiva do projeto:

         “ O que atrai na região é o ar lavado e agreste, o tamanho - as praias e dunas parecem não ter fim - é aquela sensação inusitada de se estar num mundo intocado. Assim, o primeiro impulso, instintivo, há de ser sempre o de impedir que se faça lá seja o que for.

         Mas, por outro lado, parece evidente que um espaço de tais proporções e tão acessível não poderia continuar, indefinidamente, imune; teria mesmo de ser, mais cedo ou  mais tarde, urbanizado. A sua intensa ocupação é, já agora, irreversível.

         É pois natural que encare os aterros, os andaimes, as estruturas, o casario que se vai adensando e toda essa prevista poluição paisagística, gradativa e crescente, com certa dose de constrangimento e pesar -para não dizer com sentimento de culpa-, na esperança de que a futura definição dos núcleos devidamente espaçados, as áreas livres e o denso envolvimento arbóreo confiram ao conjunto coerência urbano-ambiental capaz de compensar, numa certa media, pelo agreste perdido.”

         Pode-se, portanto, constatar sua compreensão de que esse espaço teria que ser ocupado mas, que o fosse, então, de forma planejada, minimizando-se os impactos ambientais, bem como sua degradação, resultantes de uma urbanização desenfreada.

II-3.- O Plano Lúcio Costa

        Em seu plano, Lucio Costa definiu toda a infra-estrutura urbana da região, considerando áreas “non aedificandi”, áreas verdes, adensamentos populacionais, transportes (já previa a linha 3 do pré-metro, ligando o subúrbio ao Recreio), centros ecológicos, educacionais, turísticos, e comerciais.

         Em seu projeto, Lúcio Costa previa uma relação entre as áreas livres e as ocupadas de 2/3 para 1/3, respectivamente, com abundância de áreas verdes contínuas. Para detalhamento do plano urbanístico a região foi dividida em cerca de 45 sub-zonas, para as quais foram elaboradas condições de ocupação específicas, contemplando todas as atividades e camadas sociais.

         Utilizando-se de novos conceitos urbanísticos instituiu núcleos de áreas unifamiliares e multifamiliares. harmonizando a existência de edifícios, com gabarito limitado,com a de casas, dando ritmo espacial a paisagem urbanizada. Projetou para o interior do bairro centros comerciais e de serviços e, para a faixa litorânea limitou as construções a pequenos prédios, preservando-a do adensamento populacional e o impacto ambiental resultante das grandes edificações.

         Assim, face a sua percepção do amanhã e em vista da inevitável ocupação do bairro, preocupou-se em estabelecer condições de ocupação, que apesar de impactarem “o ar lavado e o agreste”, minimizassem a degradação ambiental que poderia ocorrer.

III- A PREOCUPAÇÃO AMBIENTALISTA - ECO 92

         A fonte motora para a realização de qualquer fórum ambientalista é o comportamento do próprio homem, principal agente no processo de degradação ambiental e, a imperiosa, necessidade de normatiza-lo a fim de, disciplinando-o, preservar as condições de vida sobre o planeta, assegurando as condições naturais da existência do solo, ar, da flora, fauna, hidrografia e demais recursos inerentes a própria vida.

         Parte, portanto, do princípio de que é necessário que haja uma mudança virtual em todos os aspectos da existência do ser humano: sócio-político, econômico, costumeiro, a fim de que se alcance a sustentabilidade sócio-ambiental, partindo da máxima: “ crescer sem destruir “.

         A Agenda 21 brasileira é, portanto, um processo participativo que diagnostica e analisa a situação do País, das Regiões, Estados e Municípios, para, em seguida, planejar seu futuro de modo sustentável; compreensão amplamente ratificada pelo Presidente da República que sinalizou sua determinação em redefinir o modelo de desenvolvimento brasileiro, que passa a ser fundamentado pelo conceito de sustentabilidade social e ambiental.

         Assim, considerando-se a íntima ligação do meio ambiente com a própria vida, bem maior e sujeito a tutela do Estado e mais, que a degradação de qualquer elemento do meio ambiente resulta na interação reflexa em qualquer outro, inclusive no homem, que dele faz parte, vamos nos utilizar da conceituação jurídica de meio ambiente defendida por Silva, com o propósito de salientar a responsabilidade e o direito de cada um com a manutenção da qualidade de vida.

         “Trata-se de um bem jurídico essencial à vida que integra um conjunto de elementos naturais (solo, ar, água, flora e fauna), culturais (patrimônio artístico, histórico, paisagístico, arqueológico  e espeleológico) e artificiais. Portanto, é a interação harmoniosa desse conjunto de elementos é que vai propiciar o desenvolvimento equilibrado da vida humana.”

III-1- Sustentabilidade   

         Da máxima  “crescer sem destruir” resulta que o desenvolvimento sustentável implica, de um lado, o crescimento do emprego, da produtividade, do nível de renda das camadas pobres, dos capitais (produtivo, humano e social), da informação, do conhecimento, da educação, da qualidade de vida nas cidades e, de outro, a diminuição das contaminações, do desperdício, da pobreza e das desigualdades. Os indicadores de progresso, deveriam, então,  confundir-se com a melhoria dos indicadores sócio-ambientais nos espaços urbanos.

         A Comissão Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento apresentou o conceito de Desenvolvimento Sustentável como: um modelo que busca satisfazer as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades. Utilizar os recursos naturais sem comprometer sua produção, fazer proveito da natureza sem devasta-la, com o propósito de melhorar a qualidade de vida da sociedade.

         Como podemos observar, a preocupação com a sustentabilidade implica diretamente com a degradação provocada pelo homem em decorrência de sua atividade produtiva e social, salientando a importância de planejarmos as práticas atuais para preservar a qualidade da habitabilidade do planeta amanhã.

III.2- Condicionantes Ambientais

         Na ocasião foram salientados itens de relevância para atingir a sustentabilidade, em especial a integração entre a sociedade, os poderes federais, estaduais, regionais e municipais, destacando dentre outros itens:

A- A necessidade de regulamentar o uso do solo urbano, promovendo a melhoria das condições de vida da população.

B- Buscar o equilíbrio dinâmico entre a população e sua base ecológica-territorial.

C- Ampliação da responsabilidade ecológica, ou seja, aumentar a capacidade dos agentes sociais na identificação das relações de inter-dependência entre os elementos ambientais, assim como também o reconhecimento de que o dano ambiental é um fato punível.

D- Promover a existência integrada de infra-estrutura ambiental: água, esgotamento sanitário, drenagem e manejo de resíduos sólidos.

E- Promover a produção e o consumo racional, com a redução de resíduos sólidos e menor utilização de produtos recicláveis.

F- Gestão participativa

G- Gestão eficaz dos recursos naturais

H- Recuperação de áreas degradadas.

I - Manutenção da biodiversidade.

III.3- Diagnóstico (RJ)

         De acordo com dados do Fundo Mundial para a Natureza, o desmatamento na Amazônia, no período 1.992-2.000, subiu 44%, sendo que 15% só entre 1.999 e 2.000. As águas também ficaram mais poluídas. A agência Nacional de Águas estima que 5.1 milhões de quilos de poluentes foram jogados nos rios brasileiros em 1.992, passando a 6.5 milhões de quilos em 2.001, levando seu presidente a salientar a importância do tratamento dos esgotos.

         Como um dos principais itens, e comum às principais metrópoles brasileiras, é o desenfreado adensamento demográfico, pois basicamente dele resultam todos os outros (desde a poluição atmosférica,  transporte ate ao saneamento ambiental), o grande vilão e o responsável pelos maiores impactos ambientais.

         Como  fator  predominante do referido adensamento,  foi assinalado o problema do acentuado crescimento da cidade ilegal, ocupações ilegais sem serviço de infra-estrutura urbana. A nível Brasil, o crescimento de moradores dessas comunidades foi de 2.248.336 habitantes em 1980 para 5.020.517 habitantes em 1.991.

         No Rio de Janeiro,  esse adensamento tem sido mais expressivo,  superior,  inclusive, ao crescimento populacional da cidade. (IBGE: 1.998).

         A principal conseqüência desse elemento é o elevadíssimo índice de poluição ambiental dos mananciais cariocas resultante da falta de atendimento, a essas comunidades,  de esgotamento sanitário, resultando no despejo doméstico (águas servidas e depósito de lixo) diretamente nas bacias hidrográficas.

         Cabendo salientar,  portanto,  que esta condição favorece a formação de  nutrientes indesejáveis que estimulam a procriação de micro-organismos indesejáveis a vida aquática, agravando a situação dos recursos hídricos. Além deste mal direto, resultam outros tais como a dificuldade ao combate de vetores  e doenças resultantes da utilização de águas poluídas; indo de doenças erradicadas (entre outras. a esquistossomose, o impaludismo e a dengue), hepatite e até o câncer de fígado.

         As doenças decorrentes da falta de saneamento são responsáveis por cerca de 65% das internações em hospitais públicos e conveniados no país, estimando-se que a cada R$ 4,00 investidos em saneamento representam R$ 10,00 economizados em internações.

         A situação é de alerta geral. A degradação ambiental atinge todos os cursos d’água urbanos, tanto pelo esgotamento sanitário como pelo lançamento de resíduos sólidos. De acordo com a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária-ABES, o custo de tratamento de 1.000 M3 de água de baixíssima contaminação é de R$ 2,00, enquanto passa a R$ 8,00 quando se trata de água muito contaminada.

IV.- O RECREIO DOS BANDEIRANTES

         Os problemas que se registram são inúmeros, entretanto, vamos nos deter, apenas, no da poluição hídrica, visto serem suas causas e suas resultantes as de maior expressão no momento; por conseguinte, podemos afirmar que o cenário retro-apresentado se confirma também no Recreio dos Bandeirantes, face as invasões de terras e a intensa favelização.

         A grande extensão de áreas livres e planas, a facilidade e o reduzido custo da construção de barracos, aliado a facilidade de acesso a outros bairros, bem como a proximidade do litoral e, porque não, a falta de fiscalização dos órgãos competentes, torna-se altamente favorável ao surgimento dessas comunidades. De acordo com o Instituto de planejamento da Cidade do Rio de Janeiro, em 1.986, existiam 6.906 domicílios em favelas, com uma população de 26.985 habitantes. Em 1.991, dados do mesmo Instituto, informavam a existência de 67 favelas com uma população de 73.871 habitantes, em toda a Baixada de Jacarepaguá.

        Como resultante, toda a Bacia Hidrográfica do bairro encontra-se com elevados níveis de poluição, fruto do despejo de esgotos sanitários, resíduos sólidos e toda espécie de lixo. Assim, desde os canais, passando pelas lagoas, até os rios estão com sua águas comprometidas; problema que, atingindo magnitude alarmante, chega a contaminar poços artesianos, tornando-os inutilizáveis. Em conseqüência, o mau cheiro e a proliferação de mosquitos alcança condições nunca verificadas, principalmente nas redondezas do Canal das Taxas e Rio Morto, onde o crescimento das gigogas esconde, totalmente,  o espelho da água, dificultando o combate aos focos de mosquitos.

         Atualmente, cerca de 12 mil toneladas de esgoto, sem tratamento, são lançados no complexo de lagoas da baixada (Lagoas de Marapendi, Camorim, Jacarepaguá e Tijuca), onde, prolifera a alga chamada de micricistis aeruginosa, que transmite hepatite e mesmo o  câncer de fígado se ingerida em grande quantidade. Os peixes, que ainda vivem ali, se alimentam destes organismo sendo, em seguida, pescados e consumidos pela população local, podendo provocar uma contaminação por hepatite de grandes proporções.

         Portanto, considerando-se os custos de tratamento da água com baixo nível de poluição e a economia em despesas hospitalares decorrente da melhoria de suas condições, confrontadas com situações adversas, bem como, se tomarmos em conta que, como todos os outros recursos naturais, a água é esgotável, e  estimando-se que apenas 0.85% da água existente no planeta seja consumível, verifica-se a importância de sua preservação, visto ser, ela, fundamental para a própria existência humana.

         Assim, torna-se primordial o combate as causas de degradação dos recursos hídricos.        

IV.1- Os Manguezais

         Os manguezais são ecossistemas de grande importância ecológica, sendo considerado um berçário natural. Em seu meio, e através dele, vivem variadas espécies. Destaque-se que são naturais desse ecossistema camarões, caranguejos, algumas espécies de mariscos e peixes,  além de uma variada gama de aves, répteis e mamíferos.

         Sua, rica, vegetação fornece matéria prima para a produção de inúmeros medicamentos, do tanino, para o adoçante, álcool e óleos. Desta potencialidade, resulta a importância econômica dos manguezais. No entanto, além dos agentes degradantes mencionados acima, os manguezais sofrem com a ação do homem que o desmata para a industrialização da vegetação dali retirada.

IV.2- Os Recursos Florestais

         Mapeamento realizado pelo Município do Rio de Janeiro registra que uma das áreas em que a cobertura vegetal nativa da Mata Atlântica sofreu maiores modificações, no período se 1.984/88, foram as adjacências do Maciço da Pedra Branca, sendo que, tais perdas foram confirmadas no período de 1.988/1.992, ai, incluindo as encostas do maciço da Tijuca. Nos últimos três anos do período analisado (1.992, 1.996, 1.999) verificou-se aumento da velocidade da redução da área de floresta; registrando-se também uma redução de 20.000 hectares para 16.000 hectares, em 1.999, da área em análise.

IV.3- Restingas

         Esta foi a categoria que apresentou maiores reduções percentuais em relação ao ano de 1.984, chegando a 30% de perda. As principais alterações foram no bairro de Grumari, onde cerca de 42 hectares foram substituídos por floresta alterada. logo nos dois primeiros anos da série. Pequenas modificações puderam ser detectadas em remanescentes constituídos por fragmentos menores nas proximidades das Lagoas de Marapendi e da Tijuca.

V. - RÁPIDAS RECOMENDAÇÕES

         Não pretendemos a presunção da verdade, portanto, por concordarmos, e visto, em sua maioria, estarem em consonância com o Plano Lucio Costa,  basearemos nossas recomendações em  proposições apresentadas ao longo do Fórum Ambiental realizado no Rio de Janeiro em 1.992, com pequenas adaptações ao contexto regional.

São elas:

A. A integração política entre as diversas esferas governamentais: Federal, Estadual e Municipal.

B. Ações democraticamente integradas com a população local.

C. A produção de normas ambientais que punam, de forma eficaz, as ações danosas ao meio ambiente.

D. A descentralização político-administrativa face as diversas características das sub-zonas, com a criação de organismos, aos moldes do antigo grupo de trabalho, visando o cumprimento de normativas urbanístico-ambientais setoriais.

E- A implementação de política que estimule o setor da construção civil a incrementar seus investimentos na região, visando sua ocupação ordenada.

F. Estímulo para o aproveitamento dos recursos humanos locais pela construção civil.

G. Redução dos bolsões de pobreza.

H. A implementação de uma política habitacional e urbana compatível com as características ambientais e sócio-culturais do bairro.

I. Revitalização do Plano Paralelo de Lucio Costa.

J. Implantação de currículo escolar que brinde os conceitos ambientalistas.

K. A eliminação das causas da degradação ambiental.

L. A recuperação de áreas degradadas

V.1- Justificativa

         a.) A construção civil, é um segmento produtivo de uso intenso da mão de obra não qualificada, que aufere recursos até quatro salários mínimos. Além disso, estimula outros segmentos produtivos - como siderurgia, cimento e acabamento -, por conseguinte é de grande interesse para a redução do desemprego.

         b.) A utilização de mão de obra local contribuiria para a elevação da renda familiar dos residentes na região, reduzindo os bolsões de pobreza, preservando a dignidade humana e, capacitando o indivíduo a exercer sua cidadania em toda a sua amplitude.

         c.) O implemento de políticas (que podem ser tributárias ou creditícias) que estimulem o investimento do setor da construção civil na região, visando sua ocupação ordenada, com o propósito de coibir a ocupação irregular das áreas livres.

         d.) A descentralização político-administrativa visando o cumprimento e a eficácia das normas ambientas definidas com o propósito de preservar as condições ecológicas com, inclusive, a aplicação de sanções, sociais, administrativas e penais

         e.) O implemento de uma política habitacional e urbana compatível com os padrões  verificados nas sub-zonas com o propósito de minimizar os impactos ambientais e conflitos sócio-culturais.

         f.) A implantação nos currículos escolares de disciplina que contemple a educação ambiental, face o poder disseminatório familiar do conhecimento e da reprovação  de costumes.

         g.) A eliminação das causas da degradação ambiental, porque só com sua eliminação eliminam-se os seus efeitos.

         h.) Revitalização do Plano Paralelo de Lucio Costa porque ele, de forma realística, e, junto com o emprego, re-estabelece a dignidade do povo humilde, preservando-lhes a identidade e a cultura, sem priva-los de qualquer conforto.

VI. - UMA PROPOSTA PARA O BAIRRO

         O bairro, de grandes dimensões e ainda pouco explorado, com grande extensão litorânea - o último da região metropolitana -, encontra-se, ainda em condições de obedecer uma planificação compatível com sua vocação ecológico-turística mantendo sua sustentabilidade. Já existem grandes investimentos  realizados na área hoteleira, em especial flats e hotéis-residência, clubes aquáticos, sítios ecológicos, shoppings, cinemas, teatros, um autódromo, um grande centro de convenções, além de um pólo gastronômico de reconhecimento nacional.

         Observando-se, ainda, seu relevo, os aspectos hídricos e lacustres da região, constata-se a sua tendência natural para o  ecológico. Na região situam-se os maciços da Pedra Branca e da Tijuca e uma grande bacia hídrica formada por rios, lagoas, lagos e canais. Além de sua bacia hidrográfica, encontram-se na região, grande quantidade de manguezais e restingas, sem contar com a significativa parcela de Mata Atlântica existente na encosta dos maciços retro-mencionados. São protegidos pela legislação ambiental:

* Bairro da Freguesia (Jacarepaguá) - Decreto Municipal 11.830 - 11.12.92

* Das Brisas (Pedra de Guaratiba) - Lei Municipal 1.918 - 05.10.92

* Grumari - Lei Municipal 944 - 30.12.68

* Orla Marítima - Lei Municipal 1.272 - 06.07.88

* Parque Municipal Ecológico de Marapendi - Decreto Municipal 10.368 - 15.08.91  

* Maciço da Pedra Branca - Lei Municipal 1.206 - 28.03.88

* Prainha - Lei Municipal 1.534 - 11.01.90

* Reserva Biológica e Arqueológica de Guaratiba - Decreto Estadual 7.549 - 20.11.74

* Reserva Biológica do Pau da Fome (Jacarepaguá) - Lei Municipal 1.540 - 15.01.90

* Bosque da Freguesia - Decreto Municipal 11.830 - 11.12.92

* Parque Arruda Câmara - Decreto Municipal 4.105 - 03.06.83

* Parque Ecológico Municipal Chico Mendes - Decreto Municipal 8.452 - 08.05.89

*Parque Municipal Bosque de Jerusalém - Lei Municipal 2.331 - 28.06.95

* Parque Municipal Ecológico de Marapendi - Lei Municipal 61 - 03.07.78

* Lagoa do Camorim

* Lagoa de Jacarepaguá

* Lagoa de Marapendi

* Lagoa da Tijuca

* Lagoinha

* Maciço da Tijuca

* Pedra de Itaúna

* Morro do Rangel   

VI-1- Algumas sugestões para exploração turística

(Colaboração de Cezar Liper/Maria Lucia Massot)

* Inclusão dos pontos turísticos da região, nos mapas oficiais da  cidade da Riotur e Embratur,tais  como:

- capela de Monserat;

- capela de Curicica;

- morro do Rangel e demais morros tombados pelo Departamento  de Patrimônio Histórico, onde terão mirantes e em alguns restaurantes;

- Parque Chico Mendes;

- Parque de Sernambetiba;

- Bosque da Barra;

- Cemitério indígena;

- Casa do Pontal;

- Pólo gastronômico de Vargem Grande;

- Parques aquáticos e outros;

- Shoppings Centers;

* Promoção de eventos

- Criação do Calendário Anual de concursos, com:

- Concurso de fotografia para o lançamento de cartões postais  da região;

- Concurso de  " O Recreio da Gata " e o  " O Recreio do gato ",  que  cederão a sua imagem aos cartões  postais dos pontos turísticos;

- Campeonatos esportivos:  surf, longboard, canoagem, wind-surf, natação, jet ski,  fisiculturismo, tênis,  futebol, pesca e outras modalidades...

- criados vários roteiros de passeios de barco, aproveitando as exuberantes lagoas, canais e oceano;

- Concurso de música:  rock, MPB, ritmos nacionais, etc...

- Calendário anual de feiras e congressos;

- Construção de trilhas para passeios ecológicos;

- Construção de mirantes;

- Construção de decks para pescaria;

* Poderão ser criados também:

- passeios ligando Itaipu ao Recreio, como forma de estimular a integração e o turismo  entre Rio de Janeiro  e Niterói.

- Criação de selos postais com as riquezas turísticas da região, fauna,  flora, etc...

- As margens das lagoas e rios poderiam ser exploradas comercialmente, como já acontece na orla, e instalados quiosques.

- Reativação e ampliação do antigo prédio da Fundação Parques e Jardins na  Via 9, na Reserva de Marapendi, para abrigar um Centro de Esportes Aquáticos, comportando o museu de várias modalidades esportivas, como o surf, do jet ski, dentre outras.

- Uma parte da reserva de Marapendi poderia ser reservada para criação de plantas nativas de manguezais e de restinga, sendo, então, utilizadas para a reposição das áreas que se encontram degradadas;

VII - NOSSAS CONCLUSÕES

         Ratificando nosso pensamento inicial, a preocupação mundial com a preservação do meio ambiente decorre do princípio natural da preservação da espécie humana, pois, inserido neste mesmo sistema ecológico e, dele também dependente, é o único agente racional que o habita, portanto, principal responsável por sua preservação.

         Assim, todo e qualquer esforço dedicado ao sucesso deste intento é justificável pelo benefício resultante para a espécie humana. É fundamental que nos conscientizemos que o horizonte da existência humana não se limite ao horizonte temporal individual, sendo muito maior, segundo a trilha de todos os nossos descendentes.

         Disto resulta a responsabilidade de cada um com meio em que habita, envidando o máximo empenho visando a preservação ambiental, protegendo-o da degradação. Assim, só com o efetivo comprometimento de todas as pessoas e do poder público, ambos, interagindo, poderá ser alcançada a sustentabilidade ambiental. E para isso precisamos dar um primeiro passo, sociedade e poder público.

         Assim, em consonância com as diretrizes traçadas durante a ECO-92, ratificadas na Conferência Preparatória Regional para a Cúpula Mundial de Desenvolvimento Sustentável da América Latina e Caribe, assim como, com os objetivos propostos na 2.° Conferência Estadual da Agenda 21 que espera maior participação das prefeituras na execução de programas que efetivem o desenvolvimento sustentável .

         E,  por tudo que foi exposto, propomos que o Recreio dos Bandeirantes seja transformado no primeiro bairro-ecológico do País, destacando-se nacionalmente e apresentado na Conferência de Joanesburgo, Rio +10, em set.2.002, como sinal de empenho para que a sustentabilidade seja alcançada.

Eurico Pessoa

Cidade Maravilhosa
Recreio dos Bandeirantes-Barra Bonita
18/12/2001

Voltar ao Topo   TÓPICO 35

Impostos para quê?

Jornal do Brasil, Editorial, sexta-feira, 28 de dezembro de 2001


A independência dos Estados Unidos baseou-se num princípio simples. Sem representação o povo não deve pagar impostos. Bom princípio que faz, até hoje, com que os cidadãos americanos tenham como uma das maiores preocupações o destino que o poder público dá ao dinheiro dos contribuintes. No Rio, hoje, os cidadãos não estão representados pelas autoridades, que se acusam pelas conseqüências das enchentes e dão triste espetáculo aos fluminenses, já tão castigados pelo clima e pela incúria.

Brigam prefeitos e o governador. Acusam-se de incompetência mútua. E (o que é pior), com razão. Enquanto brigam, parecem não ter tempo para cuidar dos recursos do Estado. Do orçamento da União, aprovado para o combate às enchentes no Rio - um total de R$ 66,3 milhões nos últimos seis anos - as autoridades só retiraram R$ 11,1 milhões, cerca de 17% do total destinado à desobstrução de rios e canais e construção de obras em encostas.

O mais novo bate-boca envolve o prefeito de Duque de Caxias, José Camilo, o Zito (PSDB), o governador Anthony Garotinho (PSB) e César Maia (PFL). Zito diz ter entregue, em vão, ao governador uma lista de rios que deveriam ser dragados há dois anos e que não são limpos há cinco. Garotinho responde que alertou os prefeitos, incluindo Zito, sobre as enchentes e recomendou que abastecessem seus depósitos com colchonetes, cobertores, equipamentos e comida. Acusa também o prefeito de Caxias e outros de construírem casas em lugares não autorizados e sujeitos a inundações. Cesar Maia ataca e acusa o governador de construir ''casinhas de papelão'' em Sepetiba, em área imprópria, onde a lama chegou ''até os joelhos''.

Os cidadãos/contribuintes/eleitores assistem, perplexos, à troca de baixarias sobre a situação na Baixada. Enquanto as autoridades permutam incompetências, muitos moradores sinistrados ainda tentam salvar algo da fúria das águas e da lama, contabilizam mortos e feridos e procuram sobreviver em meio ao caos urbano e administrativo.

Ao serem eleitos, os políticos devem parar de fazer política partidária, abandonar o palanque e passar a administrar para todos os cidadãos. O interesse comum de todos os políticos do Estado que estão no Poder Executivo (seja de que partido forem) é (ou deveria ser) o progresso e bem-estar dos cidadãos do Rio de Janeiro. Nisso, todos devem (ou deveriam) trabalhar em conjunto.

Oposição precisa existir. É fundamental. Mas sua expressão terá de ser feita através do canal próprio: o Legislativo. Prefeitos e governador do mesmo Estado em briga politica, acusando-se de omissão e incompetência - enquanto dinheiro posto à disposição para resolver problemas prioritários é esquecido - é, simplesmente, crime de lesa-cidadania.

Uma das razões por esse desinteresse deve-se ao fato de tratar-se de dinheiro ''carimbado'', isto é, que só pode ser usado para o fim a que foi destinado. Os governos, em geral, não têm grande entusiasmo por esse tipo de recurso. Ele não pode ser manipulado (afinal vivemos uma sucessão de anos de poucas chuvas), e, por isso, deixaram de programar e fazer várias obras que seriam possíveis caso os R$ 55,2 milhões, desprezados nos cofres de Brasília, tivessem sido usados.

Se o governador (socialista) não ajuda um prefeito (social-democrata), briga com outro (da frente liberal) e ninguém se entende no palanque em que transformaram a administração pública do Estado do Rio, seria muito justo que o cidadão - ao não se sentir representado pelas autoridades, ao perceber-se excluído desse jogo de políticos menores - passe a pleitear isenção de taxas e impostos. Afinal, os americanos preferiram jogar o chá dos navios ingleses ao mar a pagar pelo que não recebiam. E eles tinham tanta razão que a democracia deles funciona bem há mais de 200 anos.

Vota-se para escolher um governante mas, uma vez terminada a eleição, o escolhido deve lembrar que todos os cidadãos, independentemente de seu sufrágio, pagam impostos e são, portanto, responsáveis e patrões dos eleitos (ou pelo menos assim deveria ser numa verdadeira democracia). Omissões, conivência e disputas estéreis, como é comum ver-se no Brasil, deveriam ser duramente sancionadas pela população, através do voto e até da desobediência civil, e pelo Poder Judiciário, processando os responsáveis, por ação ou omissão, pelas calamidades que todos os anos se renovam quando chegam as chuvas de verão.

(continuação)

 
Free Web Hosting