Artigos 2004

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'O problema das favelas é a taxa de fertilidade'
Prefeito Cesar Maia

Artigos (4º parte)

                Artigos 2004

Tópico 1 Rio perde mais um pedaço
Tópico 2 Cidade dos Sem-teto
Tópico 3 A favela do futuro Rio
Tópico 4 Ouvidos de Mercador
Tópico 5 Realidade Literal
Tópico 6  A saída é cercar a favela 
Tópico 7 Uma questão nacional
Tópico 8  Raízes da crise
Tópico 9  Atrevimento e omissão
Tópico 10 A construção da desordem
Tópico 11  Que tal aplicar a Lei?
Tópico 12  Agonia urbana
Tópico 13  Favela e informalidade
Tópico 14  As favelas vão engolir tudo
Tópico 15  A favela premiou o asfalto
Tópico 16  Favela não é isso  que se pinta
Tópico 17 Vazio de poder facilita a favelização
Tópico 18  Falta planejamento urbano
Tópico 19  Coisas do Brasil: Os sem- teto e os sem- competência
Tópico 20 Favela-Bairro: um projeto populista
Tópico 21 Onde está a integração?
Tópico 22  Cidade à deriva
Tópico 23  Demagogia zero
Tópico 24  Favelas Upgrading. A cidade como integração dos bairros e espaço de habitação (1)
Tópico 25  Queremos violência
Tópico 26  A favelização das cidades
Tópico 27  O problema das favelas é a taxa de fertilidade
 

Voltar ao Topo       TÓPICO 1

 

Rio perde mais um pedaço

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Segunda-feira, 12 de janeiro de 2004

Xico Vargas

Já tínhamos no Rio de Janeiro o Triângulo das Bermudas, agora construímos a Faixa de Gaza. Como naquele pedaço do Atlântico entre Flórida, Porto Rico e Bermudas, na área que tem por fronteiras Vila do João, favela da Maré e Linha Vermelha desaparecem coisas e pessoas. Com diferenças: no Triângulo de lá, tenta-se há quase um século distinguir a realidade da lenda nos relatos das tragédias. Aqui, não: é tudo verdade. Quem já esqueceu dos quatro paulistas assassinados quando tentavam chegar à Linha Vermelha? Queriam tomar a via Dutra e voltar para casa, depois de uma tarde de domingo vendo o Corínthians no Maracanã, mas entraram na Vila do João. Ali mesmo, sem mais aquela, traficantes os julgaram e condenaram à morte pelo crime de errar o caminho. E ficou por isso mesmo.

Não é de hoje que a cidade formal sucumbe sob territórios cada vez maiores de amplo domínio do crime. A Faixa de Gaza, segundo o Globo assim chamada em referência ao lugar onde se repetem escaramuças entre israelenses e palestinos, é apenas a mais extensa dessas áreas. Há mais de 10 anos essa é uma discussão recorrente. Começou com a construção da Linha Vermelha, em 1991, quando o expediente das empreiteiras em cada trecho teve de ser discutido com o tráfico. O mesmo se repetiria anos depois na abertura da Linha Amarela. Não é segredo que, em todas as favelas dominadas por traficantes, as intervenções do programa Favela-Bairro são pacientemente negociadas com os chefes das quadrilhas através das associações de moradores. Foi assim no Vidigal, na Mangueira, na Mata Machado e em tantas outras. Quem quiser saber mais é só perguntar ao secretário Chiquinho da Mangueira, que tentou até fixar horário para a polícia subir o morro que lhe deu apelido. O tráfico manda e o poder público obedece.

O assustador, agora, é que a Faixa de Gaza materializa espaço maior que a área urbana de muitas das cidades brasileiras. Une dois bairros distantes entre si (São Cristóvão e Acari), corre pela avenida Brasil (principal via
de entrada do Rio), segue pelas linhas Vermelha e Amarela, e envolve as favelas do complexo da Maré. São Cristóvão já foi o bairro com maior arrecadação de ICMS no Rio. No final dos anos 1980 era tão importante que se chegou até a fundar por lá uma Associação Comercial. Mas ao engolir São Cristóvão, a cidade do crime mostra que esse domínio chegou à beira do Centro do Rio. Não à toa é o Centro a nova região dos mais variados crimes.
Guardas municipais e camelôs se espancam semanalmente, PMs achacam motoristas de táxi todos os dias, jóias roubadas são vendidas pelas calçadas, onde também se oferecem roupas, CDs e DVDs piratas, cargas roubadas, e cigarros e quinquilharias contrabandeadas.

Da mesma maneira que no território hoje ocupado pela Faixa de Gaza multiplicam-se prédios fechados por empreendimentos que bateram em retirada, no Centro da cidade já se registra a fuga de empresas. Umas tantas tomaram o rumo de São Paulo por acreditar que lá trata-se da segurança com mais seriedade. Outras, mudaram-se para a Barra da Tijuca, onde já brotam os primeiros sinais da deterioração urbana que já toma quase toda a cidade.

Prefeitos, vereadores, governadores e deputados costumam ter para esse fenômeno um universo de explicações. Nenhuma, porém, que revele o interesse eleitoral que os move. Nada que leve aos motivos por que fazem vista grossa para o avanço de todas as irregularidades até o ponto em que elas se cristalizam. A partir daí fica tudo mais tranqüilo. Na mesma sombra que serve ao avanço do crime, os legisladores produziram leis nas quais se escudam os administradores, para não devolver a cidade formal ao ir e vir dos que pagam a conta.

xicovargas@nominimo.ibest.com.br

Voltar ao Topo   TÓPICO 2

Cidade dos Sem-Teto

Revista Adusp Setembro 2000

Almir Teixeira e Pedro Estevam da Rocha Pomar

Políticas sociais excludentes, ausência de planejamento e acesso ao espaço habitacional ditado pelos interesses da indústria imobiliária são os motores do drama habitacional na maior cidade do país. Metade da população, ignorada ou deliberadamente excluída, resolveu o problema situando-se à margem da lei, habitando loteamentos irregulares, áreas de mananciais, qualquer nesga de terra ou abrigo disponível. Quase 20% dos paulistanos são favelados e 6% moram em cortiços

"Na questão habitacional, é importante saber que nem tudo é déficit de unidades habitacionais. O menor problema é a unidade habitacional. Se houver ajuda técnica e algum financiamento, isso é facilmente solúvel.

O problema é a construção de cidade, porque a pessoa não mora dentro de quatro paredes, ela mora na cidade", adverte a professora Ermínia Maricato, coordenadora do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (Lab- Hab) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e ex-secretária municipal da Habitação.

"Se a casa não tiver água, esgoto, acesso ao transporte, escola próxima, drenagem, ela não é viável, e São Paulo tem sido construída como uma soma de unidades habitacionais que forma um depósito de gente. Isso não é cidade.

Em São Paulo, parte do déficit é déficit de cidade, de infraestrutura urbana, de programas sociais, de área de lazer, de recuperação do meio ambiente, dos córregos, mananciais, de coleta de lixo — e parte é, se você não produz novas moradias, déficit habitacional."

No entender da professora, o crescimento de favelas em São Paulo é absolutamente exponencial.

"No começo da década de 70 tínhamos 1% da população morando em favelas; em 1987, 8%; em 1993, 19%, ou seja, nosso processo de urbanização é uma máquina de produzir favelas. É uma máquina de exclusão. Se não produzir novas moradias e só urbanizar favelas, é um processo de enxugar gelo."

Pesquisas realizadas pelo Lab- Hab e pela Escola Politécnica propõem soluções integradas, que são mais racionais, menos onerosas para os cofres públicos e mais justas socialmente. Entre as principais linhas de pesquisa, destinadas a subsidiar políticas habitacionais coerentes, estão a recuperação da região central da cidade, a avaliação da reurbanização de favelas, o problema da ocupação de áreas de proteção de mananciais e a questão do preço do solo urbano.

A revitalização do Centro por meio de sua requalificação como local de moradia é uma das mais instigantes propostas geradas pelo LabHab. Articular ações de defesa do patrimônio público, remodelação do espaço público e revitalização da atividade econômica com a questão habitacional é a saída apontada pela professora Helena Menna Barreto para o problema da degradação de toda a região central da cidade de São Paulo.

No documento Habitação no Centro de São Paulo: Como Viabilizar essa Idéia?, que preparou para

subsidiar seminário realizado em

agosto deste ano, Helena Menna

Barreto observa que não existe limite

definido para as chamadas

áreas centrais da Capital.

"Podemos dizer que são bairros

situados no Centro histórico e seu

entorno, caracterizados pela tradição

de uso misto, perda de atividades

e de população, desvalorização

imobiliária, presença de edifícios

abandonados e espaços públicos utilizados",

o que incluiria "os atuais

distritos censitários da Sé, República,

Santa Cecília, Liberdade, Parí,

Cambuci, Brás, parte do Bexiga,

Barra Funda, Belém e Mooca".

O chamado Centro Expandido

incorpora também a Aclimação,

Bela Vista, Cerqueira César, Consolação,

Indianópolis, Jardim

América, Jardim Paulista, Lapa,

Liberdade, Perdizes, Pinheiros,

Santa Cecília, Vila Madalena e Vila

Mariana. A Tabela 1 mostra o

decréscimo da população no Centro

Histórico e no Centro Expandido,

nas décadas de 70 e 80.

Helena entende que só a ação

do poder público pode reverter a situação

do Centro, defendendo que

é nessa região, e não na periferia,

que se devem aplicar os recursos

públicos que viabilizem a moradia

popular. "A política até agora foi de

sempre produzir conjuntos habitacionais

na periferia, e normalmente

fazia-se isso porque ficava mais barato

o terreno", diz a pesquisadora.

"Na verdade, é um engano, porque

acaba ficando tudo muito caro por

precisar se levar também a infraestrutura

para essas regiões".

Desse modelo desgastado de

política habitacional resulta a cria-

64

Setembro 2000 Revista Adusp

A construção

de conjuntos

habitacionais

na periferia é mais

cara e só resulta na

criação de bairros

dormitórios

65

Revista Adusp Setembro 2000

ção de "bairros dormitórios", desaparelhados

de equipamentos sociais,

repletos de problemas, e cuja

população é obrigada a deslocar-se

por longas distâncias para se dirigir

ao trabalho.

A idéia de reabilitação do Centro

para fins de localização de moradias

sociais foi testada pelo Laboratório

de Projeto Integrado e Participativo

para a Requalificação de

Cortiços, projeto interinstitucional

que estudou a possibilidade de revitalizar

prédios abandonados,

mantendo as pessoas que já estão

lá e incorporando um maior contingente

populacional.

Trata-se de garantir que famílias

de baixa e média renda possam adquirir

imóveis financiados no Centro,

e neles permaneçam. A pesquisadora

aponta a necessidade de um

plano de obras públicas na região,

com financiamento facilitado.

A Caixa Econômica Federal

(CEF) e a Companhia de Desenvolvimento

Habitacional e Urbano

do Estado de São Paulo (CDHU)

possuem recursos para aumentar o

financiamento. O Programa de Arrendamento

Residencial (PAR), da

CEF, por exemplo, financia imóveis

de até R$ 20 mil por um período

máximo de 15 anos para a quitação.

Para a professora, o programa

deveria ser flexibilizado para que

Na tese de mestrado "Rendimentos obtidos na

locação e sublocação de cortiços: estudo de casos

na área central da cidade de São Paulo" (Politécnica,

1999), baseada em pesquisa realizada em 1998

em sessenta imóveis encortiçados do Bom Retiro,

Luís Kohara fornece dados valiosos sobre o custo

da moradia em cortiços centrais

e suas condições de conforto.

A área média dos domicílios

encortiçados, sem considerar banheiros

e áreas comuns, é de

11,9m2. Entre as 120 famílias

pesquisadas, 78,9% residem em

espaços inferiores a 15m2 e

77,8% em apenas um cômodo. O

número de bacias sanitárias é de uma para cada

vinte e cinco pessoas.

"O cortiço se carateriza tanto pelas condições

precárias de moradia como pelas relações de locação,

geralmente marcadas por cobranças abusivas de

aluguéis e taxas", afirma Helena Menna Barreto em

seu texto Habitação no Centro de São Paulo: Como

Viabilizar essa Idéia?. "A ilegalidade dos contratos e

a convivência direta com a pressão dos proprietários

e seus prepostos deixa as famílias em situação extremamente

fragilizada."

O valor médio dos aluguéis encontrados na pesquisa

é de 191 reais, mas 42,9% das famílias pagam

aluguéis entre 196 reais e 260 reais. O comprometimento

da renda familiar com o aluguel é muito alto:

45,6% dos moradores comprometem entre 31% e

60%; e 23,3% comprometem mais de 60%. A pesquisa

comprova a predominância de relações informais

de locação: os que possuem contrato

apenas verbal representam

73,9%. A garantia exigida é normalmente

de um mês de aluguel.

Os empregados com registro

em carteira chegam a 28,9% das

pessoas maiores de 15 anos. Sem

registro, 22,9%; trabalhando por

conta própria, 18,2%; desempregados,

17,4%. Isso representa um total de 70% de

pessoas trabalhando.

"A comparação entre os valores de aluguel encontrados

nos cortiços e aqueles praticados no mercado

formal da área de estudo permitiu a Kohara

concluir que o valor do metro quadrado de cortiço é

78% superior ao de casas térreas, 41% superior ao

de apartamentos e 30% superior ao aluguel de sobrelojas

e salas comerciais", informa a professora

Helena. "O aluguel de imóveis encortiçados parece

mais rentável que o aluguel do imóvel inteiro para

usos residenciais ou outros".

NOS CORTIÇOS, ÁREA MÉDIA DOS

DOMICÍLIOS É INFERIOR A 12M2

A construção de

conjuntos habitacionais

na periferia é mais cara

e só resulta na criação

de bairros dormitórios

imóveis de valor um pouco mais alto

possam ser adquiridos na região.

A professora também defende a

necessidade de subsídio, pelo governo,

de parte dos custos da habitação

no Centro. Além de a habitação ser

uma dívida que o Estado tem com a

população de baixa renda, os benefícios

da conservação do patrimônio

público decorrentes da reabilitação

da região central já serão um resultado

muito compensador.

A presença de conjuntos habitacionais

populares no Centro terá

também o papel de impedir a valorização

exagerada dos imóveis nas

localidades próximas. "A idéia é

não mais fazer conjuntos habitacionais

isolados, mas integrar a habitação

social no tecido da cidade,

preenchendo os vazios do centro e

usando edifícios que hoje estão

abandonados", explica Helena.

"Se as pessoas empregadas no

Centro puderem morar perto do

trabalho e em boas condições, isso

vai melhorar muito as condições

da região até em termos de transporte

e segurança". A pesquisadora

aponta outra vantagem de um

programa de moradia social na região:

"É claro que a população que

vai morar lá não pode ser aquela

que tem um carro em casa e quer

ter dois. Tem que ser mais interessada

no transporte público, porque

aí será bom para a cidade".

Atualmente ocorre subutilização

habitacional do Centro: nele moram

somente 119 pessoas por hectare.

"Se outros 313 mil habitantes

viessem para o Centro Histórico, a

densidade ainda seria de apenas

238 habitantes por hectare. Para isso,

seriam necessários cerca de 150

mil novos domicílios. Parte deles já

existe, e está desocupada. A outra

poderia ser obtida mediante reciclagem

de edifícios e construção

nova", sustenta Helena. Na verdade,

a população atual poderia

ser mesmo triplicada com a execução

de um programa habitacional

de moradia social e adequação

dos equipamentos sociais:

a infraestrutura é suficiente.

Na Tabela 2 (p.71) nota-se a baixíssima

densidade habitacional nos

bairros de Pari, Bom Retiro, Cambuci

e Brás. "Aqui a oportunidade

de adensamento residencial é muito

grande. Para se ter uma idéia de

quanto essa densidade é baixa, o

distrito de Sapopemba tem densidade

de 188,8 habitantes por hectare;

São Miguel Paulista tem 138,2 habitantes

por hectare; o Itaim Paulista

tem 150,6 habitantes por hectare",

anota a pesquisadora do LabHab.

"Todo plano de revitalização e

renovação causa a expulsão da população

pobre. Estamos partindo

da questão da moradia social exatamente

para que o plano não nasça

com essa cunha e leve em consideração

que as pessoas que moram lá,

principalmente em cortiços, possam

permanecer", acrescenta Ermínia

Maricato. "Porque, por exemplo,

grande parte dos garçons moram

em cortiços no centro de São Paulo,

assim como todo o pessoal de faxina

dos prédios e toda uma população

que trabalha no terciário. Esta

questão depende de um programa

66

Setembro 2000 Revista Adusp

Projeto demonstrou ser

viável a recuperação

de prédios ociosos

do Centro da cidade

Maria Lúcia Refinetti

Daniel Garcia

Laura de Mello Bueno

Daniel Garcia

Alex Kenya Abiko

Daniel Garcia

67

Revista Adusp Setembro 2000

federal de financiamento e depende

muito de um plano municipal".

Em 1993, a Fipe, a pedido da

Prefeitura, realizou pesquisa amostral

que estimou em 6% do total

da população da cidade o contigente

que vive em cortiços típicos.

Segundo a pesquisa, a maior concentração

de população encortiçada,

20% ou 120 mil pessoas, encontrava-

se na região da Sé, que

corresponde aos distritos censitários

de Bom Retiro, Pari, Brás,

Cambuci, Liberdade, República,

Sé, Bela Vista, Consolação, Santa

Cecília. Esse número representava

aproximadamente um quarto da

população total dessa região.

"É bastante viável revitalizar as

áreas centrais da cidade com base

nos prédios abandonados", argumenta

o engenheiro Francisco Comaru,

um dos coordenadores do

Laboratório de Projeto Integrado e

Participativo para a Requalificação

de Cortiços, acima citado, que envolveu

cerca de cento e trinta partici-

Para quem vem do Viaduto da Bandeira e sai na

Rua do Ouvidor, é só um prédio sujo e bem trancado,

o de número 63. Fica ali, entre o povo passando

e os camelôs vendendo artigos importados. Nele

mora dona Maria, Maria Silva Mattias, mineira, catadora

de papel há quase cinqüenta anos. Tem também

Gegê, que dona Maria chama de pai, embora

seja mais novo do que ela. Por que "pai", dona Maria?

"Ah, filho, porque ele fez pra mim melhor que

um pai fizesse".

Dona Maria conta que Gegê é o chefe daquele

povo, que é ele quem está "na ponta" das manifestações,

que faz aquilo com muita coragem e o povo

vai junto. Gegê, ou Luiz Gonzaga, é um dos líderes

dos sem-teto paulistanos e integra a direção da Central

de Movimentos Populares (CMP).

Dona Maria está estendendo roupa lavada. É ela

quem faz seu horário e decide quando vai trabalhar

ou cuidar dos netos. Logo chegou o Paulo Henrique,

que não gosta muito de escola, e lá dentro estava o

Sidney, que esse gosta das aulas.

Ocupação bonita

"A gente ‘tá aqui faz quatro anos, meu filho, foi

uma ocupação muito bonita. Tinha mil e poucas pessoas",

relata dona Maria. "Eu nunca tinha participado

não. Primeiro foi o pai, né, que foi na frente e

quebrou a tranca. Aí foi aquele alvoroço. Muita gente

metendo a mão nas portas, entrando, eu ‘tava junto,

com um nenenzinho no colo".

A ocupação, diz Gegê, conscientiza, constrói cidadania

e dignidade. "Mas só constrói se o povo quiser."

Ele não sabe se conseguirão regularizar a situação

do prédio ocupado. "O governo diz que o prédio

é da Secretaria da Cultura e que não está disponibilizado

para moradia. A gente pode até ser ameaçado

de despejo."

Quem é essa gente? Você bate na porta (quando

existe porta) e eles estão lá, de sorrisão no rosto.

"Bom dia! Quem vocês ‘tão procurando?" A escada

é em espiral e perde-se a noção de em que andar se

está. No quarto andar fica o maior salão do prédio,

onde as crianças têm aulas de reforço escolar. A professora,

Tatiana, filha de uma das líderes do Movimento

de Moradia do Centro, tem mais de vinte alunos,

a maioria de primeira a quarta série. Setenta famílias

moram no prédio. Quase 90% dos adultos trabalham.

Aqui, o estereótipo das "classes perigosas"

cai por terra. (A.T.)

Cena paulistana

OS COM-DIGNIDADE DA OUVIDOR

Dona Maria no prédio da Ouvidor: ocupação no Centro

Daniel Garcia

pantes e diversas entidades. "Famílias

que não têm condições de moradia

adequadas podem se incluir

no sistema social e usar o investimento

que a cidade já tem, que é

toda a infraestrutura do centro".

Organizado pelo Escritório Piloto

do Grêmio Politécnico da

USP e pela Escola de Pós-Graduação

"Tecnologia, Arquitetura e Cidade

nos Países em Vias de Desenvolvimento",

do Politecnico de

Turim, Itália, o projeto foi concebido

pela arquiteta Letizia Vitale,

bolsista da Capes no Politecnico

de Turim.

Participaram do trabalho equipes

de professores e alunos da

Pontifícia Universidade Católica

(PUC-SP), da Universidade de

Taubaté (Unitau), da Universidade

São Francisco (USF) e da USP,

bem como integrantes de oito

ONGs brasileiras e uma italiana,

representantes de movimentos populares

(Movimento de Moradia

do Centro, Unificação das Lutas

de Cortiços e União dos Movimentos

de Moradia) etc.

Três unidades da USP colaboraram

com o projeto: Escola Politécnica,

FAU e Departamento de Terapia

Ocupacional da Faculdade de

Medicina. Além de Letizia e de Comaru,

que é pós-graduando da Faculdade

de Saúde Pública, a coordenação

ficou a cargo do professor

Andrea Piccini, da Politécnica, e de

Henrique Alfonsi, que coordenava

o Escritório Piloto quando o projeto

foi elaborado, em 1999.

"Existem vários prédios vazios,

pois o Centro acabou se degradando.

Ao mesmo tempo, existe muita

gente que mora em cortiço e tem

que trabalhar lá, estar próximo",

pontua o engenheiro Alfonsi. "Tivemos

de dar um enfoque interdisciplinar,

bem amplo", relembra.

"Olhar a questão como um todo,

não só nos aspectos de engenharia,

de arquitetura, mas também nos

aspectos econômico, jurídico, arquitetônico

e social".

A escolha do prédio a ser estudado

obedeceu a critérios que facilitaram

a análise. "Não podia ser

nem muito grande nem muito pequeno,

e tinha de ter um quadro

de famílias morando nele com algum

grau de organização para que

fosse facilitado o trabalho de pesquisa",

conta Comaru. "Fizemos

várias visitas a prédios ocupados e

escolhemos um na Rua do Ouvidor,

que foi ocupado em 1997".

Há dezessete prédios ocupados

por sem-teto no Centro.

Os resultados do projeto apontam

um custo de R$ 19.600,00 por

família para a requalificação do

prédio estudado. A cifra é bastante

inferior ao valor normalmente

destinado pela CDHU à construção

de moradias na periferia, em

torno de R$ 27.000,00. "Na periferia,

além de construir, você ainda

teria de colocar toda a infraestrutura,

mais os equipamentos urbanos:

escola, posto de saúde, e

que não entram na conta", analisa

Comaru.

"Nossa proposta é buscar uma

cidade mais democrática, que inclua

as pessoas, para não se fique

fazendo investimento só na polícia,

comprando mais armas, porque este

tipo de ação não atinge a raiz do

problema: a falta de emprego, de

moradia, de educação. Tudo isso

junto ajuda a gerar a violência".

Os nove projetos de urbanização

de favelas estudados pela equi-

68

Setembro 2000 Revista Adusp

Urbanização criativa

e barata de favelas

só depende da

integração física e

social com o entorno

TABELA 1 - Evolução da participação relativa das populações,

segundo zonas (1960, 1970 e 1980)

Zonas do município 1960 1970 1980

Centro Histórico 10,1 5,5 3,8

Centro Expandido 22,1 15,8 13,5

Oeste 1,9 3,0 3,7

Sul 8,1 14,5 19,8

Sudeste 17,2 15,2 13,0

Leste 1 14,9 14,4 12,9

Leste 2 3,3 8,4 11,9

Norte 1 2,5 3,2 3,4

Norte 2 19,9 20,0 18,0

Município de São Paulo 100,0 100,0 100,0

Fonte: Emplasa. Fonte dos dados básicos: IBGE

69

Revista Adusp Setembro 2000

pe do LabHab mostraram possuir

parâmetros urbanísticos diferenciados,

com soluções urbanísticas

criativas e eficientes. Para a arquiteta

Laura de Mello Bueno, pósgraduanda

da USP e professora da

Pontifícia Universidade de Campinas

(Puccamp), isso foi possível

porque os responsáveis tiveram liberdade

para projetar além das

restrições impostas pelas leis urbanas,

que às vezes limitam os projetos

e não podem ser aplicadas em

situações específicas, como acontece

em algumas favelas. Outro elemento

que contribuiu para as soluções

foi a decisão de interferir o

mínimo possível nas estruturas urbanísticas

existentes.

Foram estudadas as favelas

Santa Lúcia II e Jardim Esmeralda,

em São Paulo, e Núcleo Barão

de Uruguaiana e Vila Olinda, em

Diadema, além de outras cinco no

Rio de Janeiro, em Fortaleza e

Goiânia. Em todos os casos estudados

a urbanização modificou somente

aquilo que era imprescindível,

por exemplo, removendo barracos

em áreas de risco ou abrindo

espaço quando não havia outra

forma de passar a rede de esgoto.

A pesquisa concluiu que os métodos

de drenagem e escoamento

de esgoto implantados nas localidades

seguiram padrões bem próximos

dos tradicionais. Isso é bastante

positivo, explica a professora,

porque facilita a integração da favela

urbanizada com o resto da cidade,

pois as equipes da Prefeitura

podem aplicar na manutenção da

rede as mesmas ferramentas e métodos

usados nos outros bairros.

Entre as recomendações feitas

no relatório final das pequisas,

destaca-se que a intervenção em

favelas deve coadunar-se às políticas

públicas de acesso à cidade, ou

seja, ela deve estar vinculada às

políticas de desenvolvimento urbano,

política fundiária, política de

meio ambiente e de planejamento

urbano. As obras de urbanização

não devem ser intervenções pontuais,

mas integrar-se nos projetos

de um conjunto de intervenções

1Somente a articulação das ações de defesa do patrimônio

histórico e arquitetônico, remodelação

do espaço público e revitalização da atividade econômica

com a questão habitacional permitirá superar os

impasses atuais do problema habitacional. Que modelo

de política habitacional o candidato defende?

2A revitalização do Centro, reformando e tornando

habitáveis dezenas de prédios abandonados,

integraria a habitação social no tecido da cidade e

preencheria vazios. Projeto coordenado pelo Lab-

Hab mostrou ser possível requalificar um prédio no

centro ao custo de R$ 19.600,00 por família, valor

bem inferior ao normalmente destinado pela CDHU

à construção de moradias na periferia, em torno de

R$ 27.000,00. A revitalização do centro da cidade

consta dos planos do candidato? Que projeto de revitalização

se pretende executar?

3A proteção da área de mananciais da represa

Guarapiranga seria atendida com a criação de

faixas contínuas de tratamento alternativo de esgoto,

paralelas às margens dos rios que a alimentam, para

evitar que as habitações continuem se expandindo

para mais perto da água. Isso permitiria preservar,

nos locais que ocupam hoje, a maior parte das 600

mil pessoas que moram no entorno da represa, relocalizando

somente os casos mais graves. A proposta

é detalhada no projeto Moradia Social e Meio Ambiente,

dos alunos da disciplina "Habitação para População

de Baixa Renda" da FAU. Idêntica solução

é proposta para a Billings, requerendo uma ação

conjunta com municípios do ABC. Como o candidato

pretende equacionar a ação de proteção dos mananciais

com a necessidade de garantir ou providenciar

moradia para os habitantes das ocupações irregulares

do entorno de Guarapiranga e de outras áreas?

4A urbanização de favelas requer soluções integradas,

de modo a garantir o funcionamento adequado

e coordenado dos sistemas de água, esgotos,

drenagem de águas pluviais e coleta de lixo. O candidato

tem planos de urbanização de favelas? Nesse caso,

quais as prioridades, as fontes de financiamento e

as diretrizes básicas da urbanização?

AS PERGUNTAS FEITAS AOS CANDIDATOS

70

Setembro 2000 Revista Adusp

Antonio Biondi

Os grupos de estudo do Laboratório de Geografia

Urbana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas da USP (Labur) vêm realizando diversas

discussões sobre a cidade de São Paulo. Recentemente,

o resultado de tais debates e reflexões

veio a público no livro intitulado O espaço no fim de

século — A nova raridade (Contexto, 1999). O tema

central do livro é a transformação do espaço em

mercadoria, propriedade das grandes corporações.

Em conversa solicitada pela Revista Adusp, os pesquisadores

do Labur explicaram como essa questão

se reflete na Capital paulista, além de discutir as formas

de atuação da Prefeitura.

Anselmo Alfredo, professor da Escola de Comunicações

e Artes e pesquisador do Labur, refere-se

ao espaço das favelas, que se transformaram em reservas

de terra com potencial de valorização. "Num

certo momento do processo, elas são removidas, para

dar lugar a grandes empreendimentos", explica. "As

famílias que antes viviam no local não são consideradas

no processo — exatamente como se viu nas regiões

das avenidas Berrini e Juscelino Kubitscheck—

e tornam-se migrantes em sua própria cidade."

O desafio de administrar São Paulo é agravado

pelo fato de os problemas não se restringirem à Capital,

mas serem compartilhados com as cidades vizinhas.

Transporte, lixo e água, por exemplo, dependem

de soluções e planejamento conjuntos. Francisco

Capuano Scarlato, professor de Geografia Urbana,

adverte que, com relação ao lixo, não há mais como

apenas fazer lixões e aterros. "A reciclagem tem

de ser melhor pensada, e não somente pelo viés dos

custos que ela representa de imediato."

O aparente caos urbano que envolve São Paulo é

outro ponto colocado em debate. No entender de

Amélia Luísa Damiani, docente de Geografia Urbana,

praticamente toda ação da Prefeitura atende a

uma lógica bastante clara, de acordo com os interesses

da iniciativa privada. O Centro seria um exemplo

dessa lógica. O trabalho da Prefeitura na região é

realizado preponderantemente por meio de parcerias

com comerciantes e empresários, numa ótica

que leva em consideração somente a funcionalidade

e a beleza da área.

De acordo com a professora Odete Carvalho de

Lima Seabra, também da FFLCH, a nova "higienização"

realizada no Centro reflete uma representação

da cidade tal como sonhada pela população. "A

burguesia busca apresentar um sonho, uma promessa,

da qual o povo, mesmo que teoricamente, se sinta

parte. Em São Paulo, porém, essa promessa não

se sustenta."

De acordo com Odete, o crescimento que a cidade

apresentou nos anos 70 e 80, quando 500 mil pessoas

chegavam por ano à Capital, faz com que o discurso

não cole com a realidade. "O crescimento fugiu

ao controle e o Centro tornou-se caótico", diz ela.

Amélia vai além, questionando a possibilidade de

São Paulo ser uma cidade realmente administrável.

"Qualquer política que vise administrá-la é pequena.

Para que não fosse, seria preciso enfrentar frontalmente

a capitalização da cidade." Na opinião de

Amélia, "o grande projeto é incompatível com a racionalidade

da Prefeitura".

REFLEXÕES SOBRE O ESPAÇO URBANO

Pesquisadores do Labur: espaço, a nova raridade

71

Revista Adusp Setembro 2000

nos bairros, buscando

uma integração física e

social com o entorno.

Deve haver maior integração

entre obras de

urbanização e as melhorias

na habitação, com

adequação das ligações

sanitárias e instalações

elétricas das casas. Também

é preciso que sejam

criados sistemas de fiscalização

do uso e ocupação

do solo após as obras concluídas,

para impedir que as reformas dos

imóveis tornem insalubres as quadras,

e em especial, sejam invadidos

os espaços de uso comum.

Alex Kenya Abiko, chefe do Departamento

de Engenharia de

Construção Civil da Escola Politécnica

da USP, explica que o modelo

de urbanização de favelas defendido

por Laura Bueno é uma tendência

internacional e está sendo usado

em países como Bolívia, Venezuela,

México e África do Sul. "Mas o fato

de os países resolverem urbanizar

suas favelas não quer dizer que todos

concordem com a existência delas",

alerta o professor. "O poder

público deveria trabalhar para que

elas não se formassem, mas como

elas estão presentes, é preciso urbanizar

para resolver um problema

que não deveria existir".

O grupo do professor Abiko estudou

quais os indicadores mais

precisos para medir-se o grau de salubridade

ambiental dos projetos de

urbanização. Nas favelas existe uma

forte relação de interdependência

entre os sistemas de água, esgoto,

drenagem de águas pluviais e coleta

de lixo, o que obriga sempre a uma

solução integrada no

processo de urbanização.

Qualquer problema

num dos sistemas acaba

interferindo no resto,

pois a densidade populacional

é muito alta e os

sistemas têm de estar

funcionando bem e

coordenadamente.

A criação de uma

"barreira verde" nas

margens dos rios que alimentam

as represas Guarapiranga

e Billings pode evitar que as habitações

continuem se expandindo para

cada vez mais perto da água. A

idéia é desenvolver faixas contínuas

de áreas de tratamento alternativo

de esgoto, paralelas às margens. As

faixas serviriam como uma separação

real e visual entre as áreas habitadas

e os rios, e ainda devolveriam

à represa uma água com um grau

aceitável de tratamento.

A proposta surgiu no projeto

Moradia social e meio ambiente, trabalhado

pelos alunos da disciplina

"Habitação para população de bai-

TABELA 2 - Evolução da população residente, segundo distritos, 1980, 1991 e 1996,

área e densidade demográfica dos distritos do centro (base distrital atual)

Distritos Censo % da Censo % da Contagem % da Tgca Tgca Área habit/

1980 (1) pop. total 1991 pop. total 1996 pop. total 80/91 91/96 (km2) hectare

Bom Retiro 47.542 0,56 36.136 0,37 27.788 0,28 -2,46 -5,20 4,0 69,5

Brás 38.592 0,45 33.536 0,35 26.665 0,27 -1,27 -4,56 3,5 76,2

Cambuci 44.807 0,53 37.069 0,38 32.089 0,33 -1,71 -2,89 3,9 82,3

Liberdade 82.392 0,97 76.245 0,79 64.349 0,65 -0,70 -3,39 3,7 173,9

Pari 26.942 0,32 21.299 0,22 15.434 0,16 -2,11 -6,34 2,9 53,2

República 60.940 0,72 57.797 0,60 49.666 0,50 -0,48 -3,04 2,3 215,9

Santa Cecília 94.451 1,11 85.829 0,89 75.826 0,77 -0,87 -2,49 3,9 194,4

Sé 32.933 0,39 27.186 0,28 21.255 0,22 -1,73 -4,88 2,1 101,2

Centro Histórico 428.599 5,05 375.097 3,89 313.072 3,18 -1,20 -3,55 26,3 119,0

Fonte dos dados básicos: FIBGE

(1) adaptação da Emplasa para os distritos de 1991

Ermínia Maricato e Helena Menna Barreto

Daniel Garcia

xa renda", da FAU. "Há uma quantidade

muito grande de loteamentos

irregulares no entorno das represas",

esclarece a professora Maria

Lúcia Refinette Martins, uma

das coordenadoras do projeto.

"Nossa preocupação é buscar soluções

ambientalmente adequadas e

que contemplem a questão social

que está colocada, pois ninguém

acredita que seja possível mudar as

600 mil pessoas que moram em volta

da Guarapiranga ou as 720 mil

que moram em volta da Billings".

A partir do estudo de um loteamento

às margens da Guarapiranga,

o grupo elaborou propostas

tanto para a parte de infraestrutura,

quanto para a relocalização de

algumas habitações que estavam

praticamente dentro do córrego,

caso em que não há outra alternativa.

"Estabelecemos algumas diretrizes,

no sentido de uma linha

possível de solução técnica e jurídica

para este tipo de caso, que vamos

apresentar ao Ministério Público",

conta a professora.

"O problema das habitações irregulares

à margem da represa é

mais preocupante do que em outros

lugares, porque a falta da rede de

esgotos leva a que tanto a água servida

quanto as águas de chuva e o

esgoto acabem parando na represa,

que é o manancial de água que alimenta

a cidade", alerta a professora.

Por conta disso, o Ministério Público

solicitou ao LabHab que fizesse

um estudo e apontasse soluções.

"Algumas moradias que estão

muito dentro dos córregos deveriam

ser removidas e relocadas nos

vazios das áreas de ocupação mais

distantes das margens", expõe Maria

Lúcia. Nos limites entre as

áreas ocupadas e os rios seria desenvolvido

o tratamento alternativo

de esgoto. "No loteamento que

estudamos, que tem cerca de 600

famílias, a parte de tratamento de

esgoto é algo que custa cerca de

R$ 45.000,00, que é um valor bastante

pequeno".

O tratamento indicado pelo projeto

não usa produtos químicos,

mas brita, pedra e raízes de plantas,

que filtrariam o esgoto. Ele requer

um acompanhamento que uma única

pessoa consegue fazer, gastando

somente meio período por semana.

Uma política de oferta de moradias

e o controle da expansão nessas

áreas de mananciais são de fundamental

importância para minimizar

o problema das ocupações em

zonas de mananciais. A lei de proteção

de mananciais de 1975, que

usa o critério de ocupação de baixíssima

densidade nessas áreas (lotes

grandes, chácaras), tornou-se

inócua. "A pressão por terra é muito

grande. Falta de oferta de moradias,

preço baixo do terreno e controle

precário pelo poder público

juntaram-se, e conseqüentemente

esta foi uma das áreas da cidade de

São Paulo que mais cresceu na década

de 70", resume Maria Lúcia.

O LabHab começa a investigar,

também, um dos fatores cruciais

de qualquer política habitacional:

os preços praticados nas desapropriações

de solo urbano. "Está em

desenvolvimento uma pesquisa em

colaboração com o Lincon Institute

of Land Police, que tem sede

em Boston, visando uma questão

que, embora específica, tem constituído

um obstáculo muito grande

às políticas sociais de transporte,

habitação e meio ambiente, que é

o preço de terras em desapropriações",

informa a pesquisadora Ermínia

Maricato.

"O Brasil não tem cadastros fidedignos

de propriedade fundiária,

e evidentemente existe uma lógica

72

Setembro 2000 Revista Adusp

"Barreira verde"

produz tratamento

alternativo de esgotos

em áreas de

mananciais como a

Guarapiranga

O LabHab, da FAU: estudos e propostas para a área de mananciais

Daniel Garcia

73

Revista Adusp Setembro 2000

na apropriação do patrimônio público,

uma facilitação da grilagem.

Estamos analisando o detalhe desse

processo todo, que são as desapropriações

que se tornaram absolutamente

milionárias, comprometendo

todo o orçamento de alguns

municípios", explica Ermínia.

"Em São Paulo podemos citar

as desapropriações na Avenida Faria

Lima, que se tornaram precatórios

milionários. Depois de anos e

anos de litígio, eles resultam 20 vezes

o preço de mercado. Então

queremos saber qual é a mágica.

Por que isso acontece? Estamos

estudando alguns casos para saber

por quê essas desapropriações

chegaram a esse preço".

As vítimas das desapropriações,

em geral os proprietários de

um único imóvel que, em virtude

da extensa lista de precatórios,

não recebem o pagamento no devido

tempo, também serão ouvidos

na pesquisa. "Mas o que temos

visto é que existe uma máfia

de advogados, que, ao que tudo

indica, atuariam comprando as

causas", revela a professora. Como

parte dos trabalhos, em dezembro

deste ano será realizado

um seminário com a participação

do Ministério Público, de peritos,

de procuradores da Prefeitura e

de vítimas de desapropriação. RA

Se a Prefeitura eliminar 90% dos obstáculos que

atrapalham o trânsito dos pedestres, como correntes,

floreiras, desníveis e escadas, e relocar mastros,

lixeiras e postes que se encontram em lugares

errados, o espaço público dará um salto de qualidade

sem precedentes na história de São Paulo.

Quem afirma é Eduardo Yázigi, professor de

planejamento na Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas da USP. De acordo com ele, as

calçadas da cidade em geral possuem tamanho adequado.

Por isso, uma limpeza generalizada é a principal

medida para desimpedir o caminho do

cidadão.

O primeiro passo para a mudança seria fazer um

microzoneamento do espaço público da cidade. O

objetivo: verificar quais são e onde estão os obstáculos

ao trânsito público, tendo em vista deixar o espaço

"limpo", levando-se em conta a movimentação

de transeuntes, a questão social e a própria questão

estética, como explica Yázigi.

O trabalho de restauração do espaço público

deve se calcar num processo de justiça social para

que tenha bons resultados, diz o professor. Os

camelôs, por exemplo, devem ser vistos não só como

obstáculos à circulação, mas como frutos da exclusão

social que não podem ser punidos por uma reforma

autoritária. "Sem recadastramento a pente fino, sem

pulso de ferro que afaste as máfias do comércio e do

tráfico de drogas, pensar em redesenho do espaço

público é uma doce ilusão", ironiza.

"O espaço público é o espaço por excelência para

o convívio social e para o movimento das pessoas".

CALÇADAS PARA O CONVÍVIO SOCIAL

"Mágica das

desapropriações"

permite surgimento de

precatórios milionários,

com valores 20 vezes

maiores que os

de mercado

Esgotos na Guarapiranga:

necessidade de controle

Arquivo do LabHab

 

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A favela do futuro Rio

http://www.nominimo.com.br

Quarta-feira, 17 de março de 2004

Xico Vargas

Está na rua um livrinho modesto, mas de grande utilidade para o carioca. Produziu-o a prefeitura do Rio, para responder a tudo o que você queria saber sobre o futuro das favelas que permeiam a cidade e não sabia a quem perguntar. “Das remoções à célula urbana – Evolução urbano-social das favelas do Rio de Janeiro” é continente de larga fatia da experiência da arquiteta Lu Petersen, 63 anos, 20 dos quais dedicados a favelas. Vem dela, portanto, o minucioso relato das intervenções do poder público municipal na acomodação da favela no conjunto urbano. Jovem moradora do Leblon, Petersen tira da memória desses dias o fracasso das remoções: “Morava na rua Cupertino Durão, que era a saída da Praia do Pinto, uma favela eminentemente negra. A rua dava acesso à praia e ao bonde. As pessoas que ali moravam prestavam serviço nas casas e no comércio do bairro”.

Levadas para a periferia, essas famílias perderam o trabalho perto de casa e a classe média da Zona Sul ficou sem a mão-de-obra para as tarefas domésticas. É nesse ponto que a política urbana se mistura com o ferro de engomar. “Quando as lavadeiras vinham da Cidade de Deus”, revela Lu Petersen, “a roupa estava toda amassada. Além disso, elas tinham que pagar transporte. Dar moradia isoladamente, quando se trabalha com a área de pobreza, não é uma solução de vida”. Não terá sido, então, apenas por iniciativa da pobreza que brotaram as ocupações de áreas valorizadas como Rocinha, Pavão-Pavãozinho e Vidigal, mas também para atender ao surto de construção que percorreu a Zona Sul da cidade na mesma época.

Mais do que pitoresco no resgate de pequenas histórias da favelização do Rio, o livro é esclarecedor sobre o futuro desse fenômeno urbano. Não está lá com todas as letras, mas fica bem claro ao longo de 90 páginas que a classe média alta pode esquecer o sonho de isolar-se da favela. O que as políticas públicas apontam como caminho é a integração, cada vez maior, com tudo o que isso carrega de bom e ruim. A descrição do Projeto Experimental Célula Urbana, iniciado na favela do Jacarezinho, em 2000, retrata um modelo revolucionário de intervenção numa – por assim dizer – cidade de 60 mil habitantes. Rico na documentação fotográfica, o livrinho de Lu Petersen registra detalhes nos levantamentos que precederam as mudanças. No Jacarezinho, depois de observar comportamentos e hábitos culturais, conclui que no comércio caótico da favela não só é possível construir e decorar uma casa inteira, como comprar alianças de noivado numa pequena joalheria. “Butiques existem para todos os tipos e gostos, oferecendo desde roupas das costureiras locais até ternos sob medida feitos por um alfaiate aposentado”.

Do Jacarezinho, o projeto está sendo replicado no morro da Providência, onde se encarapitou a primeira favela do Rio. Nessa área, repleta de marcos históricos, a operação é mais ambiciosa. Espalha-se sobre velhas casas da rua do Livramento, já no asfalto do bairro da Saúde, e alcança o projeto Revitalização do Cais do Porto, do qual muito já se ouviu falar, mas não há quem lhe tenha visto sinal.

À exceção do cais do porto, todo o resto é alinhavado pelo programa Favela-Bairro, fundamento efetivo do livro que o apresenta como “um das mais avançadas propostas mundiais de integração de áreas de pobreza”. Pode ser. Pelo menos assim o considera o BID, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, um dos seus financiadores. Mas nada há nas páginas sobre efeitos colaterais indesejáveis do Favela-Bairro, um dos quais é a já constatada especulação imobiliária que ocorre à sua passagem. Também não se encontram registros de dificuldades provocadas pelo clima de violência existente nas favelas e que obrigam o poder público a negociar suas intervenções.

Mas é um relato sincero, quando descortina o longo caminho da reforma urbana, iniciado na década de 80, e confessa o fracasso de projetos como o Mutirão Voluntário. Com ele pretendia-se arregimentar moradores para, de graça, mudar as condições de vida. Não só a tarefa era grande demais, como os candidatos à vida melhor estavam mais interessados em eventuais bicos de fim de semana. Foram salvos, administradores e administrados, pelo Mutirão Remunerado, projeto criado em 1985.

Nos registros fotográficos, os destaques em “Das remoções à célula urbana” estão nas favelas Parque Royal e Fernão Cardim. Na primeira, uma ciclovia tomou o lugar das palafitas espetadas sobre um canto fétido da baía de Guanabara. Na segunda, duas pistas de avenida e uma canalização botaram ordem na mixórdia insalubre que cercava um rio. Uma maravilha de ver.

A leitura vale a pena, para saber o que espera o carioca nos próximos anos. Só como registro, é bom ir sabendo que o verbo conter não freqüenta as páginas e muito menos associado ao substantivo favela. Apenas num anexo, no final do volume, há breve referência à limitação no tamanho das comunidades. É lá também que se encontra a única citação a pagamento de impostos e tarifas por serviços públicos, ainda que sociais. O texto, porém, é agradável e passa ao largo do burocratês que habita as repartições públicas. Talvez seja assim porque resulta da “memória viva da arquiteta e urbanista Lu Petersen”, como afirma o “epílogo”.

Hoje assessora do prefeito, ela trocou o o Brasil pelo Chile, em 1971, como exilada. De lá, tomou o rumo da Suíça e só voltou ao Rio em 84, quando os brasileiros se reencontraram com a democracia. Sua carreira na prefeitura começou na secretaria de Desenvolvimento Social do município, quando o patrão era Marcello Alencar. Dali, saltou para o Favela-Bairro, projeto que teve a paternidade longamente discutida entre Cesar Maia e o ex-prefeito Luiz Paulo Conde. Com o tempo, Conde foi convencido de que começou a executar o programa como empregado de Cesar e decidiu procurar outro filho. Não se sabe se já o encontrou. Ao contrário das paternidades, que sempre podem ser discutidas, a maternidade, não. Lu Petersen é considerada a mãe do Favela-Bairro.

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Ouvidos de Mercador

Publicado no Jornal O Globo em 21.11.03

Meu Deus! O que está acontecendo com o meu país? Onde estão os homens de bem? Está cada dia mais difícil encontrá-los nos jornais. A manchete do GLOBO de quinta-feira da semana passada é emblemática: o IBGE conta 16 mil favelas no país e as prefeituras não sabem o que fazer. Um pouco mais em cima, a irônica denúncia: juiz que vendia sentenças a traficantes é "condenado" a se aposentar com vencimentos integrais.

Será que não percebemos a relação entre as duas notícias? Estudo as questões da justiça, da miséria cultural brasileira e do nosso desamparo político há mais de dez anos. Nesse tempo, escrevi artigos, livros, criei um site,
www.avozdocidadao.com.br, escrevo e produzo boletins na rádio CBN, participo de debates, faço seminários de cultura de cidadania e campanhas às custas de minha própria agência. Mas sobretudo tento juntar os homens de bem. Provocá-los para que saiam de suas tocas! Porque sozinho ou acompanhado de uma dúzia de amigos abnegados não chegarei muito longe. Pois tudo o que estudei sobre a organização da cidadania na História da Humanidade me leva a esta inabalável crença de que a grande questão nacional é a reforma do Judiciário. Pois é a mais importante reforma política e a própria reforma cultural brasileira. E a miséria social é fruto da miséria cultural. A miséria de não entendermos que a fonte do poder é a cidadania organizada e não o mito do povo.

Se admitimos que a maioria dos brasileiros são homens de bem, por que permitir que a minoria dos delinqüentes esteja a nos pautar a mídia diariamente? Por que não enfrentar a minoria? Por que nos submetermos a
viver num ambiente onde parece que o crime compensa? Idealizei o projeto da Voz do Cidadão exatamente para isso. Mas pensei que fosse conseguir mobilizar os homens de bem de maneira muito mais rápida e eficiente. Fui
ingênuo! Uma idéia apenas não é suficiente, ela depende de um ambiente favorável. Mas quantos crimes torpes e hediondos como este do assassinato do casal de namorados serão precisos para nos fazer agir em coletivo? Terá de chegar a vez de nossas filhas, meu querido leitor de bem? Essa mal colocada questão sobre a maioridade penal resolve o problema? Por que continuamos acuados em nossas casas, ao som da algaravia "Tô nem aí..."?

Não podemos viver em sociedade fingindo que não ouvimos uns aos outros, fazendo ouvidos de mercador. Não conheço civilização no mundo digna deste nome que não tenha sobretudo organizado minimamente o seu sistema
judiciário.

Não bastam mais as ironias. A delinqüência de um colarinho-branco qualquer tem que ser punida com todo o rigor da lei. Mas a delinqüência de um juiz tem de ser punida com o rigor da lei e a sentença proferida aos quatro cantos da mídia. Com seriedade e a alto e bom som. Porque a delinqüência de um juiz representa a delinqüência da esperança de justiça, do próprio sentido e possibilidade da convivência social. Representa simplesmente a diferença entre barbárie e civilização, porque é a mais vil das traições. E é impossível conceber a vida social sem a possibilidade de apelar à Justiça ou encontrar apenas a sua omissão. Me perdoem meus queridos colegas da mídia, mas cobrir as mazelas do Judiciário brasileiro e lutar pela sua reforma, mais do que editoria política, passou a ser objetivo cívico nacional. Nada é mais urgente do que enfrentar a questão fundamental da instituição da Justiça que é a ontologia do próprio Estado. Não resolveremos nenhuma miséria social ou econômica enquanto não resolvermos a nossa miséria cultural de fingir que estamos a construir um país mais justo com esta ou aquela política paliativa de redistribuição de renda. A ênfase tem de se deslocar do econômico para o Judiciário, o cerne da coisa pública.

Vivo dizendo que educação é tudo e mais alguma coisa. Mais do que transmissão de conhecimento, deve ser transmissão de cultura de cidadania. Para além das escolas, da família e das igrejas, deve ser transmissão de
cultura de cidadania nos espaços do mercado, das empresas das associações civis, mas sobretudo nos espaços da opinião pública e da própria mídia. Só assim poderemos tirar os homens de bem de suas tocas, de seu justificável terror, e nos fazer ouvir de fato uns aos outros. O Estado não pode faltar com a sua primordial obrigação, que é a de produzir e distribuir justiça, até para nos resgatar a crença de que ela existe, mesmo sendo a mais falha e a mais sublime das criações humanas.

Quando o órgão especial de um tribunal finge que pune a delinqüência explícita de um de seus membros que mercadejava sentenças, está a dizer a toda a parte podre da delinqüência social que o crime compensa. Está a fazer ouvidos de mercador. E quando esta farsa, esta pantomima que seria engraçada se não fosse trágica, se repete, não há como sermos irônicos.

Sei disso por que nesses seis meses em que nosso site está no ar, tenho sentido a enorme indignação dos cidadãos de bem. Todos queremos fazer alguma coisa para construir, enfim, um país menos injusto e violento para os nossos filhos. Pois bem. Que ocupemos os espaços da mídia com a nossa ação de cidadania. Façamos manifestos. Que sejamos os fiscais de todos os fiscais. Tomemos conta de nossas próprias calçadas. Que isto é o começo de tomarmos conta do nosso próprio país. E não há outra alternativa a não ser o cidadão morador, eleitor, contribuinte e consumidor cobrar justiça do Judiciário e segurança dos executivos, tomar conta dos mandatos políticos, dos orçamentos públicos e vigiar a concorrência dos mercados. Que transformemos, enfim,
nossa indignação em ação!

JORGE MARANHÃO é publicitário e mestre em filosofia pela UFRJ.

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Realidade literal

Jornal O Globo, 12 de abril de 2004

Zuenir Ventura

E a Rocinha transformou em realidade literal o que era para ser apenas uma metáfora. Ali estavam as imagens, o som e a fúria da cidade partida: o barulho dos tiros, as balas traçantes, a fuga das pessoas em pânico, o terror. Há dez anos, quando publiquei o livro, a expressão foi utilizada para mostrar simbolicamente que havia no Rio um apartheid social, em conseqüência da opção que as políticas urbanas sempre fizeram pela segregação. “Do lado de cá”, como cantou a Mangueira, “luxo e riqueza; do lado de lá, lixo e pobreza”.

Também falava metaforicamente da invasão dos “bárbaros”, com duplo sentido: o que lhe davam os romanos, para designar os que viviam fora do império, e o que lhe é dado hoje, para definir os que praticam barbaridade. “Eles estão chegando ou já chegaram — com suas ‘vanguardas’ armadas, audazes e cruéis. Os nossos bárbaros já estão dentro das muralhas e suas tropas detêm as melhores armas e a melhor posição de tiro”.

A diferença é que há dez anos eles não sabiam muito bem disso. Agora sabem. Descobriram sua força e vantagem, enquanto nós nos tornamos reféns, sem saber como enfrentá-los.
ZUENIR VENTURA é colunista do GLOBO

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A saída é cercar a favela

Jornal O Globo, OPINIÃO, 13 de abril de 2004
A saída é cercar a favela

LUIZ PAULO CONDE E SÉRGIO MAGALHÃES

A Sexta-Feira Santa vestiu de roxo o Rio de Janeiro, com a violência de que foram palco a Rocinha e o Vidigal. O espírito de confiança do carioca ficou mais uma vez atingido. A perplexidade indaga se nossa cidade voltará a ser pacífica, como por gerações nos acostumamos a viver. E, estando os focos de violência identificados com as favelas, muitos se perguntam se não é possível contê-las ou pelo menos isolá-las.

Construir limites é uma providência indispensável para que as favelas não cresçam além da área urbanizada. Quando elas recebem infra-estrutura, é importante que se evite a expansão da área ocupada, sob pena de os investimentos ficarem prejudicados. Por isso o programa Favela-Bairro construiu limites claramente definidos em cada comunidade, de modo a evidenciar a área urbanizada, além da qual não se toleraria construir novas moradias.

Essa tarefa de controle é responsabilidade pública, tal como ocorre nos bairros da cidade. O governo precisa contar com a participação dos moradores mas sobretudo com disposição para agir contra interesses privados que forçarem a transposição desses limites. Falta de controle implica a perda de qualidade ambiental, que prejudica a favela e a cidade.

A favela de Santa Marta, em Botafogo, está limitada por muros altos, assim como Cerro-Corá, no Cosme Velho. Vigário Geral é também limitada por muro junto à via férrea. Todas, tristemente, são focos recorrentes de violência, provocada pelo banditismo de traficantes. Já Mata Machado, no Alto da Boa Vista, é uma comunidade pacífica, como também o são a Benjamin Constant, na Urca, e a Vila das Canoas, em São Conrado, todas contidas com muros. Muros altos não causam nem combatem a violência.

Urbanizar as favelas, limitá-las e impedir a sua expansão é uma responsabilidade governamental, que se ajusta às outras funções de Estado em garantia da vida cidadã e democrática.

Entre elas, encontram-se a segurança e o provimento da Justiça para o cumprimento das leis — inclusive a Lei do Inquilinato. (Os aluguéis nas favelas obedecem apenas à lei do mais poderoso, seja ele o senhorio cada vez mais selvagemente capitalizado, seja o seu braço armado, a impor restrições e constrangimentos absurdos.)

A situação inaceitável de desprezo pela vida — tal como presenciamos na Semana Santa — está construída em décadas de violência e de desconsideração pela habitação dos pobres. Políticas de absenteísmo, de remoção compulsória, de clientelismo explícito, promoveram um século de favelas e loteamentos periféricos onde faltam serviços, infra-estrutura, justiça, segurança e cidadania.

Mas elas não são causas remotas, apenas localizadas na História. Ainda hoje continuamos sem política urbana e sem política habitacional no Brasil. Não há investimentos nacionais para a urbanização das áreas pobres, para o saneamento e para o transporte público; não há crédito para as famílias terem acesso à moradia, nas condições em que a vida moderna exige e permite. O Brasil financiou na última década apenas 10% das habitações construídas! Uma política democrática precisa fazer da família a receptora do financiamento (em alguns casos subsidiado), ela decidindo onde e o que comprar — ou construir. Obtendo o crédito, como ocorre no mundo desenvolvido e capitalista, as famílias estarão comprometidas com os ônus de construir na legalidade. Casa financiada é condição para a família dispor de melhor saúde, de mais tempo para o estudo e para o trabalho.

As favelas são o lugar que a família pobre dispõe para permitir sua inserção na sociedade e no trabalho. As favelas cariocas não fabricam armamentos, tampouco plantam ou refinam cocaína. Armas e drogas chegam ao Rio pelas fronteiras nacionais desprotegidas, terrestres ou marítimas, assim como também chegam nas outras grandes cidades brasileiras, também elas palco da insegurança.

É preciso reconhecer que a violência instalada na cidade, mas especialmente nas áreas faveladas, resulta de causas amplas e complexas, e que seu combate não se dará por mágica. O governo do estado está cumprindo a sua parte. Todavia, precisamos reconhecer que os três níveis de governo — municipal, estadual e federal — têm papéis insubstituíveis a cumprir. O fraquejo de um deles compromete o resultado da construção de uma sociedade democrática.

A ressurreição do espírito de confiança e de paz é a grande esperança do carioca. Ela só resultará da união de esforços dos três níveis de governo, e contará com o apoio da sociedade.
LUIZ PAULO CONDE E SÉRGIO MAGALHÃES. Conde é vice-governador do Estado do Rio e Magalhães é subsecretário estadual do Desenvolvimento Urbano

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Uma questão nacional

Jornal O Globo, OPINIÃO, 13 de abril de 2004

CESAR MAIA

Mais um ciclo de violência no Rio de Janeiro. Outra vez se cometerá o mesmo equívoco de tratá-lo como sendo uma questão local. Assim tem sido nestas duas décadas. O autismo governamental — daqui e de Brasília — nos leva sempre pelos mesmos e inócuos caminhos das reflexões sobre remotas causas sociais e ações que nos conduzem para um longo prazo que não chega nunca. É verdade que a forma e os métodos adotados pelo varejo de drogas, no Rio de Janeiro, foram fundadores de uma violência que combina qualquer grau de brutalidade e anomia com áreas ocupadas e controladas por traficantes. Não há coincidência no fato de que estas sejam as áreas de desenho urbano irregular. Aqui, e em tantos outros lugares do mundo, elas têm sido escolhidas por organizações diversas para fincarem suas bases, devido às condições de ocultação e fuga que oferecem.

O Rio foi o espaço fundador. É fato. Em 1980, a taxa de homicídios de jovens entre 15 e 24 anos, em nossa cidade, já se destacava: algo próximo a 60 por cada 100 mil habitantes. São Paulo não chegava à metade. Recife e Vitória, a um terço disso. Cuiabá e Macapá, a 10%, se tanto. Vinte anos depois, as três primeiras já passavam o Rio e as duas últimas se aproximavam. Como o crime, especialmente ligado a drogas, é juvenil, este indicador é o que importa. Em vinte anos, ele tinha deixado de ser carioca, tornando-se cada vez mais nacional. Muito mais grave é o fato de que a metodologia inaugurada no Rio — os comandos desverticalizados em áreas definidas, as armas militares para defender/ocupar estes espaços, as referências nos presídios — foi sendo “exportada” a partir daqui e tornou-se, de forma progressiva, uma rotina em São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Vitória, Recife e tantas cidades metropolitanas pelo Brasil afora. Em proporções diferentes, é claro, às vezes até mais graves, mas com a mesma dinâmica.

No último lustro, pela inversão da relação causal entre drogas e armas, promovida por intelectuais, este processo ganhou formas novas: ocupação de espaços urbanos externos às bocas-de-fumo, “bondes”, fechamento do comércio, queima de ônibus... Outra vez, e progressivamente, estas formas foram sendo espalhadas por outras grandes cidades. E logo atingiram a mesma gravidade. Esta é uma questão nacional. Há muito deixou de ser local. Mas, no Rio, ela tem seu espaço fundador, tanto naquele quanto neste momento. Imaginar que pode ter solução regional, imaginar que os governadores — este ou outros, na lógica e no tempo políticos e com a volatilidade brasileira — imprimirão medidas continuadas e a longo prazo é ilusão. Cabe, e há exemplos pelo mundo afora, dar à Segurança Pública a condição de função de Estado, com um comissariado gestor cujo mandato rígido não seja coincidente com o de governador, e que se promova a substituição anual do quinto,

Simultaneamente, o governo federal — em entendimento e convergência com o governo estadual, reforçando e não debilitando a sua autoridade, hoje atingida pelo poder efetivo do crime organizado — poderia declarar, com o apoio do Congresso, o Estado de defesa, figura prevista constitucionalmente. Desta forma, se daria caráter de questão nacional ao varejo de drogas, se interviria num espaço permanentemente fundador de cada ciclo e se estaria dando o primeiro golpe sério na cabeça da serpente. Tentar as mesmas soluções de antes, voltar ao labirinto do emaranhado retórico — e teórico — que opõe e antagoniza os mesmos atores, dentro e fora da polícia e da universidade, é a garantia de que os ciclos de violência inaugurados aqui continuarão se expandindo, com os mesmos métodos, por outras cidades brasileiras até que o custo da reversão seja alto e por prazos dilatados. A crise de hoje nos oferece saídas pela gravidade exposta. Devemos aproveitá-las, antes que se sedimente


CESAR MAIA é prefeito do Rio.

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Raízes da crise

Jornal O Globo, OPINIÃO, 13 de abril de 2004


Talvez não haja cenário mais adequado para refletir a situação a que chegou a segurança pública do que o do conflito armado na Rocinha. A região, na principal ligação entre a Zona Sul e a Barra da Tijuca, é estratégica. Ao ter como cenário endereços nobres, uma área visitada por turistas e habitada por famílias de renda alta, uma região com índices de desenvolvimento humano comparáveis ao de cidades do Primeiro Mundo, mais essa batalha no que já se convencionou chamar tristemente de a Guerra do Rio significa a escalada em direção à violência sem controle.

A idéia de uma cidade partida, lançada com propriedade na década de 90 para designar um Rio dividido entre o morro e o asfalto, entre o crime e o cidadão de bem ----- como é a grande maioria dos favelados ----- começa a ser revogada. As duas bandas do Rio tendem a ser unificadas pela violência. Quando se esperava a inclusão do Rio sem lei e violento pelo Rio da legalidade e do bem, a população testemunha, assustada, o inverso.

A crise de segurança vivida pela região metropolitana carioca é obra construída com rara competência. A violência tem raízes múltiplas, fortalecidas durante vários governos, alguns deles adestrados em discursos e práticas demagógicas e populistas, dos quais o tráfico soube se aproveitar para consolidar-se em comunidades pobres; enquanto outros administradores contribuíram para a crise por simples e virulenta incompetência.

Por trás da justificada sensação de orfandade dos cariocas há uma crise institucional própria do estado fluminense, da qual o mais expressivo exemplo é a polícia. Poucas são tão violentas, sofrem tantas baixas e ao mesmo tempo demonstram tanta ineficácia quanto as forças policiais do estado. Há, ainda, provas contundentes de que parte da polícia foi contaminada pela corrupção, infiltrada em quartéis e delegacias pelo crime organizado. Os esforços louváveis empreendidos pelo governo para limpar a corporação policial até agora não se materializaram em mais segurança nas ruas. Dessa crise institucional não escapam o Executivo, o Legislativo e a Justiça, em que, volta e meia, são observados vestígios — mais evidentes ou mais sutis, a depender do caso — da presença de tentáculos da criminalidade.

Também é sócio da crise o Executivo federal. Em Brasília, existe quem saiba do caráter nacional da crise de segurança pública, mais visível no Rio por motivos históricos, sociais e até topográficos. Sem o combate às linhas de suprimento de armas e drogas, para o que a ação federal integrada com os estados é essencial, casos como o da Rocinha se repetirão. No Rio e em outras cidades. A consciência da dimensão da crise precisa, porém, converter-se em fatos.

As divergências político-partidárias têm de ser deixadas de lado na luta contra o crime. Manipular a deterioração da segurança pública com outros interesses significa decretar, já, a vitória do crime sobre o Estado de direito.

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Atrevimento e omissão

Jornal O Globo, sexta-feira, 16 de abril de 2004

 Newton Rodrigues
Jornalista

O país vem assistindo, estarrecido e atônito, à escalada da violência e à falta de controle da situação no Rio de Janeiro, sob o beneplácito e a irresponsabilidade dos governos estadual e federal, sem falar na prefeitura carioca, responsável por lei pela ocupação do solo. 

Tancredo Neves afirmava que não se deve, nunca, nomear alguém que, depois, não se possa demitir.  Mesmo que seja uma jogada política, como é, a manutenção de Anthony Matheus Garotinho, ex-governador e atual secretário de (in)Segurança do Rio de Janeiro, no cargo que ocupa faz parte dessa categoria. 

Ao nomear a quem chamou de Coronel Bolinha, a governadora Rosângela Matheus colocou-se em beco sem saída, pois demitir o cônjuge é tarefa quase impossível, sem causar uma hecatombe matrimonial e, no caso, política. 

Sabe-se que Garotinho está secretário de Segurança para se manter na mídia e ocupando algum espaço político, pois acha que fará no PMDB fluminense o que fez no PSB, passando a fazer parte da sigla com todo o seu entourage e forçando sua indicação para as eleições presidenciais, em 2006. 

O atrevimento do casal diante da nação preocupada e perplexa com a escalada da criminalidade na Cidade Maravilhosa é impressionante. 

Que a cidade está ao deus-dará, disso ninguém tem dúvidas, salvo o casal Matheus e o governo federal.  Conflitos armados explodem nos morros, nos subúrbios, nas ruas;  os criminosos estão mais bem armados do que a Polícia Militar e a Polícia Civil.  Foi lamentável assistir na televisão a soldados mostrando as armas que utilizavam contra metralhadoras e fuzis top:  revólveres 38 enferrujados, velhos e com pouca munição.  Soldados (e repórteres também, malgrado todas as promessas feitas depois do assassinato do jornalista Tim Lopes, em 2002) sem a proteção de coletes à prova de bala ou vestindo coletes obsoletos. 

Falta equilíbrio aos governantes do país e do Estado.  Será inesquecível o silêncio sepulcral vindo de Brasília durante o feriadão, quando houve a tentativa de retomada do tráfico da Rocinha por um bando e a guerra que se viu durante seis dias e noites. 

O casal Matheus estava de férias e de férias continuou.  Garotinho retornou ao Rio no sábado à noite e a governadora retomou suas funções apenas na segunda-feira, quando também não se pronunciou. 

O prefeito César Maia, bem a seu estilo, pediu logo o decretar do estado de defesa, que subtrai dos cidadãos o direito de reunião, entre outras coisas, mas nada faz para conter a ocupação das encostas e a expansão das favelas, responsabilidade municipal.  O governo federal também não compareceu, nos piores dias do confronto. 

Foram cinco dias de silêncio.  Quando todos os lados começaram a falar, foi o que se viu:  um secretário debochado e irresponsável, tripudiando sobre uma oferta pouco consistente do governo federal.  Este tem assistido à sufocação do Rio de Janeiro com desdém e aceita a provocação de Garotinho, que se utiliza do cargo para acuá-lo.  O governo federal, com pouco pulso e nenhuma experiência, tem topado qualquer tipo de provocação e entrado no jogo político que lhe é apresentado.  E a população que se dane. 

Só uma personalidade delirante e fora da realidade poderia achar que um pedido de tropas federais deva ser feito por um secretário, e não pela governadora (no caso) do Estado, sua autoridade maior.  E que o Exército ficaria sob suas ordens. 

A governadora, por sua vez, entre um remédio para emagrecer, quedas de pressão e falta de tino político, deixa claro que segue as diretrizes traçadas pelo marido e tem usado o cargo para alguns confrontos com o governo federal que, por sua vez, trata a cidade e o Estado como inimigos, pois considera inimigos ou adversários os seus governantes. 

O governo federal se utiliza daquilo que nos bastidores chamam de verba virtual:  toda a burocracia é cumprida e verbas são empenhadas, mas inexistem na realidade.  Pingam uns caraminguás a cada crise e os problemas, todos, vão sendo empurrados para depois. 

Só que, no Rio de Janeiro, o depois é agora e não dá mais para ficar assistindo a um embate político de baixa qualidade, enquanto a população é permanentemente mantida como refém.  Dos bandidos ou da incompetência governamental, como um todo.

Newton Rodrigues escreve nesta página às sextas-feiras

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A construção da desordem

Jornal O Estado de São Paulo, quinta-feira, 15 de abril de 2004

CESAR MAIA

Em seu livro "A Construção da Ordem", já clássico, o professor José Murilo de Carvalho desenvolve uma tipologia das elites políticas, suas relações com a economia, com a burocracia e suas formas de gestação em diversos casos, países e épocas.  O objetivo do livro é nos ajudar a entender a dinâmica da elite política imperial no Brasil.  É um livro intrigante, pois introduz uma metodologia geral que permite aos políticos e politólogos, num exercício devidamente contextualizado, buscar entender as razões da emergência de uma certa elite política num determinado período. 

O professor passeia pelos casos da Inglaterra e EUA, na passagem do século 18 ao 19, e mostra as classes proprietárias ocupando diretamente o poder e dando um caráter complementar à atividade política.  Ele analisa burocracias públicas homogêneas e heterogêneas. 

O primeiro caso mais eloqüente é o dos mandarins chineses, treinados por 35 anos e selecionados em 160 dias para o exercício da administração pública.  Depois, relata as semelhanças entre as elites políticas turca, de Ataturk, e brasileira imperial.  Sinaliza como referência de elites políticas burocráticas a Prússia de Bismarck e suas características.  Destaca a homogeneidade da elite imperial brasileira a partir da função nuclear de Coimbra e, depois, das faculdades de direito de São Paulo e Olinda, que a "nacionalizam" e que, por essa condição, ajudam a explicar a unidade nacional espacial conseguida. 

Não há mais método nem modelo.  De improvisação em improvisação, caminha-se para o caos.  É a construção da desordem

Afirma o papel central dos magistrados na construção de uma elite política imperial, com ampla margem de autonomia sobre as influências dos proprietários rurais e dos comerciantes.  Sem esquecer a dinâmica em direção ao final do século 19, com a flexibilização do Estado, a ascensão dos profissionais liberais, embora ainda com a hegemonia da formação jurídica, no caso, dos advogados.  E, finalmente, sublinha a diferença e as razões que ajudam a explicar o fatiamento da América hispânica devido à heterogeneidade das antigas elites e daquelas em ascensão nas guerras de independência. 

Nos desenhos dessa tipologia, logo no início, o autor aponta para a visão de Lênin ("O que Fazer?") e de sua vanguarda de revolucionários profissionais.  Esse é um desenho em que a condição de origem da elite política dominante é sua rigorosa homogeneidade ideológica, cuja formação independe do nível e do tipo de educação antes recebida e, claro, com autonomia radical das elites econômicas existentes em nome dos oprimidos que devem emergir, sempre através do canal dos revolucionários profissionais. 

Essa longa introdução, com as simplificações naturais, ajuda-nos a analisar a gestação da elite política hoje dominante no Brasil e as razões do impasse em que vivemos. 

O governo do PT foi empolgado por um grupo de profissionais da política -com um ramo de ex-sindicalistas há muito afastados de sua origem- de formação tipicamente leninista.  Uma vez no poder, sua natureza destacou-se, como seria natural.  Sua autonomia, de partida, em relação à burocracia e à economia era total.  Ascende carregando sua natureza e sua experiência limitada à atividade política.  Confronta-se com um mundo onde o Estado já não tem mais o poder de produzir desenvolvimento, reforçando sua autonomia.  Descola-se da burocracia profissional e deixa isso claro ao priorizar a reforma previdenciária e ir atrás de recursos para dar ao Estado a autonomia fiscal que não tem.  Precisa de tempo e teme a desestabilização econômica.  Para isso, faz gestos efetivos em relação à economia com medidas ortodoxas de estabilização.  Teme a desestabilização parlamentar e, para isso, compõe com vários partidos e lideranças parlamentares.  Mas, como a hegemonia em questões relevantes deve ser garantida ao grupo de revolucionários profissionais, aos aliados cabem as migalhas e a clientela, coisa que atende à lógica da reprodução dos mandatos individuais.  Esse modelo -quando puro e em outra época- não deu certo pela desarticulação com a burocracia pública e com a base econômica, tendo custado centenas de milhares de vidas em 20 anos de stalinismo. 

Hoje, num ambiente radicalmente diverso, a elite de profissionais revolucionários descolada da burocracia não consegue administrar.  Busca a estabilidade política por meio de sinais calmantes ao mercado.  Assim, perde sua referência e desarruma sua unidade ideológica, básica para esse tipo de elite.  Constrói uma maioria parlamentar à custa de nuclearizar em pouquíssimos quadros a condução política, única forma de manter o controle.  E retira o véu da prática revolucionária de "expropriação" da burguesia e do "fim justifica os meios", que tem seu DNA na captação de recursos para financiar o partido, em que a questão ética está lastreada nesse "compromisso matriz". 

O desnudamento de vários casos desmoraliza o discurso anterior e não há como separar, na sociedade de hoje, a ética política da ética pessoal, ou seja, a busca de recursos para a causa, e não para as pessoas. 

A dinâmica desse processo está construindo a desordem.  Acompanha-se no Brasil um desenho novo, não tipificado ainda, que, partindo de um tipo conhecido para um outro período, desintegra-se neste.  Articula-se para sobreviver e agrava a desintegração, afetando a administração, a política, a economia e a ética.  Não há mais método nem modelo.  De improvisação em improvisação, caminha-se para o caos.  É a construção da desordem.  Não há saída paliativa capaz de remendar a "estrutura Frankenstein" criada de fato. 

Há que repensar as razões e, com coragem, começar tudo de novo.  É o que todos desejam.
 
Cesar Maia, 58, economista, é prefeito, pelo PFL, do Rio de Janeiro.

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Que tal aplicar a Lei?

 
Domingo, 25 de abril de 2004
Marcos Sá Corrêa
No Brasil, nem todo problema insolúvel é complicado.  A Rocinha, por exemplo.   Ela até que parece simples, vista na moldura da ação civil pública, que há mais de dez anos obrigava a prefeitura carioca evitar que ela, para crescer sem parar, continuasse tirando fatias de um patrimônio público inalienável.  Ou seja, das florestas que ainda cobrem as encostas a seu redor.  No caso, bastaria uma sentença mandando cumprir a lei.

Mas, como o programa de despoluição da baía de Guanabara, que despejou cerca de 800 milhões de dólares em águas cada vez mais sujas, essa é prioridade do Rio de Janeiro que a cidade inteira esqueceu.  Ou pior, não esqueceu, mas resolveu deixar para lá.  E pelo menos esse favor os cariocas ficam devendo aos traficantes Dudu e Lulu.  Com o barulho que eles fizeram na Semana Santa, a tal ação está voltando aos jornais.

Ela foi proposta pela promotora Patrícia Silveira Rosa em 1991  – ou seja, antes da Rio-92 quando, animada por toda aquela conversa sobre desenvolvimento sustentável, um braço inteiro da Rocinha se estendeu sobre as matas de São Conrado.  E não estava só.  A ela se juntou em 1993 o processo para a delimitação do Vidigal, quando as duas favelas ainda estavam separadas uma da outra pelas encostas dos Dois Irmãos, morro que agora parece um convite para juntarem-se. 

As ações traziam uma receita quase completa para a legalização da Rocinha e do Vidigal.  Exigia que o município fizesse o cadastro geral de suas casas, que é o primeiro passo para se considerar a situação sob controle, ou pelo menos sob o olho das autoridades.  E teria criado dez anos atrás uma barreira judicial contra sua expansão permanente e desordenada.  “Quando essa história começou, eu estava na faculdade de Direito”, diz o promotor Carlos Frederico Saturnino de Oliveira.

Uma década depois, ele está no Ministério Público estadual, onde cuida do meio ambiente.  E lá encontrou o caso no ponto em que a promotora Patrícia Silveira Rosa havia deixado.  Emperra onde essas coisas geralmente emperram  – na perícia.  Esse é um serviço pago.  E o Ministério Público tem a prerrogativa de não pagá-lo no começo de um processo, deixando a conta espetada para que no fim a parte vencida a liquide.  E, com a perícia parada, as ações encalham.

O promotor Saturnino Oliveira fez o possível para tudo para desencantar a história da Rocinha e do Vidigal.  Recrutou peritos que já estão na folha do Ministério Público e com eles mapeou as favelas, localizou seus focos de expansão e os pontos onde novas construções haviam transbordado os cabos de aço postos pela prefeitura para demarcá-las.  Com isso, o processo ficou pronto.  Ou concluso, para usar o jargão da casa.  E em setembro do ano passado foi parar nas mãos do juiz Wanderley Carvalho Rego, da 5a Vara de Fazenda Pública.  Onde ele espera a sentença há sete meses. 

Por quê?  O promotor não sabe.  Presume que o juiz esteja ocupado demais com outras providências e não queira entregar a tarefa com um substituto.  Mas esse é um atraso que não se pode debitar exclusivamente à lerdeza do Judiciário, porque todo mundo, podendo, prefere fingir que ele não existe.  Nesse tipo de assunto em que ninguém tem pressa, a não ser os moradores da favela.  Defender os interesses difusos de uma floresta contra as necessidades concretas da Rocinha ou do Vidigal é mesmo uma coisa chata.  Lei é sempre uma coisa chata, sobretudo se precisa subir o morro em nome de uma sociedade envergonhada pela fama que merecidamente conquistou de ser desigual e injusta.  Etc. e tal.  Mas, se é assim, para informar aos favelados que no lugar onde eles moram a lei não entra a cidade não precisa do traficante. 

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Agonia urbana

Jornal O Globo, Rio, 03 de maio de 2004  


CHICO ALENCAR E MARCELO FREIXO

A urbanização brasileira no século XX, fenômeno no planeta, está revelando sua face perversa. O viver em cidades não tem mais como marca principal a pluralidade de idéias, a maior circulação de bens e a proteção social. Abandono, isolamento e brutalidade envolvem o cotidiano, produzindo uma crise civilizatória sem precedentes.

Os números assustam: entre 1980 e 2000, os homicídios aumentaram 130% no Brasil. Foram 600 mil assassinatos nas duas últimas décadas, a maioria absoluta de jovens e por armas de fogo, numa macabra média de 30 mil mortos por ano.

Alvos fáceis desse genocídio, 15% dos jovens, nas capitais e em seus entornos, não estudam e nem trabalham. Sem oportunidades, são eles que constituem o “exército” do tráfico varejista armado de drogas: só no Rio, somam 5 mil, com suas AR-15, AK-47 e granadas. Um arsenal estimado em 3 mil armas pesadas!

A disputa pelas lucrativas “bocas”, entre grupos rivais, ou com a polícia, quando ela se desvincula do esquema ilegal, não caracteriza uma “guerra civil”, no sentido clássico, apesar da letalidade superior à de países em conflito. Nessas facções criminosas não há ideologia nacional ou religiosa, nem pretensão de controle do poder político. O que existe é fúria e barbarismo pela dominação do mercado, com elementos psicossociais de desprezo a valores elementares, como o respeito à vida alheia.

Este poder só se torna paralelo quando o Estado, como acontece há décadas, apequena sua presença nas áreas desassistidas, renunciando às suas funções de gestor do bem-comum. Assim como o comércio de drogas e armas é regido pela lógica capitalista, a intervenção “política” do banditismo se dá pelo velho clientelismo praticado pelas nossas elites: os chefões, “donos do morro”, dão remédio na doença, assistência em troca de reconhecimento, paternalismo interessado. E até decretam luto ou arbitram questões locais, com a mesma agilidade despótica com que “julgam” e executam desafetos. Regresso à barbárie?

A violência pode ser atenuada. Para tanto, é preciso que os governos considerem prioritárias as políticas de Segurança Pública, importantes demais para serem implementadas apenas pelas polícias.

É urgente a criação, nas áreas segregadas, de programas de educação, cultura e esporte, formação profissional e geração de empregos, movidos a recursos captados para um fundo público não estatal, coordenado por instituições de credibilidade. Aos governantes, no que se refere às forças de segurança pública, impõe-se adotar uma nova postura, de humildade, colaboração e grandeza. As administrações e poderes precisam estar unidos contra o banditismo desagregador, combatendo inclusive a conivência dentro das instâncias públicas, que têm setores capturados pela criminalidade.

Outra inflexão urgente é na forma de atuação da polícia. A melhor não é a que mais mata, mas a que é mais competente na investigação e na prevenção. E que isola seus segmentos corrompidos. Isto vale para a Polícia Federal e para as polícias estaduais, Civil e Militar. Estas, particularmente, devem se reconstruir como comunitárias, controladas pela população.

É uma questão de concepção: o servidor policial, como o seu colega gari, médico ou professora, tem o seu trabalho permanentemente avaliado pelos moradores a quem ele tem a missão de proteger. É inaceitável que as ricas experiências de policiamento comunitário sejam descontínuas e dependentes da boa vontade — rara — da autoridade superior de ocasião.

As Forças Armadas, nesse mundo unipolar onde não há “inimigo externo” a eliminar, têm um papel de defesa a cumprir. À Guarda Costeira da Marinha cabe combater o contrabando nos mares e portos. A Aeronáutica pode e deve ter um sistema de vigilância do espaço aéreo, bem como o Exército, com sua logística de informação, desvendará os circuitos de tráfico e poderá ocupar, como força auxiliar, pontos estratégicos do cinturão rodoviário dos grandes centros.

Tudo isso está redigido como programa governamental: Sistema Único de Segurança, coordenado pelo Gabinete de Gestão Integrada. O desafio é efetivá-lo na vida real, já. Para derrotar as forças da morte. Para não perecermos como sociedade.
CHICO ALENCAR é deputado federal (PT/RJ). MARCELO FREIXO é presidente do Conselho da Comunidade do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro.

 

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Favela e informalidade

Veja - Edição 1853 . 12 de maio de 2004
 
Em foco: Gustavo Franco
 
"Não há dúvida de que, assim como a favela é o berço do traficante, a economia informal é a creche da corrupção, pública e privada"
Favela pode ter muitos significados.  Um dos mais interessantes diz respeito à reação das pessoas e empresas diante de dificuldades, freqüentemente impostas pelo próprio poder público, para o desempenho de suas atividades, inclusive a de morar.  Pode-se dizer, por exemplo, que nosso sistema tributário, bem como a legislação trabalhista, "faveliza" a economia, pois condena empresas e pessoas a permanecer à margem das regras.  A "favela", nessa acepção, é a expressão espacial da "economia informal", que adquire, na Rocinha como em qualquer parte do Brasil, uma feição concreta, a de uma "cidade precária", sem leis nem direitos, sobreposta à cidade "formal". 
 
A economia informal e a favela se confundem, ambas desenvolvendo uma relação de coexistência pacífica com a política, no âmbito da qual se formam certas reciprocidades.  Sucessivas gerações de políticos, cariocas em especial, foram tornando a favela intocável, reforçando a identidade dessas "comunidades", as quais, tal como as empresas informais, passam a não funcionar pelas mesmas regras que valem para o resto da cidade.  A começar pelo direito de propriedade, que permanece mal definido, e de propósito, para que o político "proteja" as comunidades.  Estas, dessa forma, se vêem cercadas de um "muro" invisível, que impede a entrada do Estado, com seus atestados, impostos, posturas, serviços, inclusive o de polícia.

Esse "muro", todavia, é instável, como a dualidade entre o formal e o informal, e tende à degeneração.  A favela e a cidade se repelem, embora dependam uma da outra.  Na cidade há desconforto, para não falar de tentações, em perceber-se que na favela, ou na "informalidade", tudo é permitido, não há tributos, encargos trabalhistas, restrições ambientais, nada disso. 

Na favela, por outro lado, a ausência de Estado resulta na ascensão de uma liderança "orgânica", capaz de exercer o chamado poder de polícia.  Ou seja, em razão do "muro", cria-se a situação ideal para o crime organizado "governar", cooptar e transformar essas comunidades em reféns ou apêndices de atividades ilegais porém muito rentáveis.

Na economia informal o processo é semelhante, também degenerativo, embora não tenha, por ora, no Brasil, alcançado os extremos a que chegou na Rússia, por exemplo.  O sujeito pode começar meio inocente, abandonando certas regrinhas tributárias e trabalhistas, mas, com o crescimento do "caixa dois", aparece a necessidade de "lavar" dinheiro, ou de estreitar relacionamentos com fornecedores "ilegais", contrabandistas ou receptadores, e transportadores ou distribuidores que podem se organizar como quadrilhas, e que garantem vantagens comerciais, e assim, aos pouquinhos, a empresa vai se enredando com toda sorte de criminosos.  Na Rússia, formaram-se gigantescos "grupos empresariais", associados a "máfias", que se embrenham nos mais variados setores onde, por motivos variados, prevalece a informalidade.

Na favela, o sujeito não investe no barraco porque a posse é duvidosa, daí o gasto em eletrodomésticos, antenas parabólicas e aparelhos de DVD, que se amontoam em barracos de péssima aparência.  Nas empresas "informais", a "propriedade" também é controversa, em razão de contingências tributárias e inadimplências, e o empresário investe fora da empresa, que também tem péssima aparência quando observada através de sua contabilidade formal.

Não há dúvida de que, assim como a favela é o berço do traficante, a economia informal é a creche da corrupção, pública e privada.  Sendo assim, é exasperante perceber que o poder público não reconhece a favela, ou a economia informal, como problema.  Episodicamente reage com violência diante do que considera abuso ou provocação, o que apenas agrava as coisas.  A atitude é semelhante à que prevalecia no tempo em que se achava que a inflação não era problema, e, quando se entendeu contrariamente, a primeira reação foi violenta e ineficaz:  congelamentos e confiscos.  Demoramos a compreender a abrangência do problema e a extensão do esforço intelectual e da mobilização para erradicá-lo.  O mesmo deve ocorrer com a informalidade. 

Gustavo Franco é economista da PUC-RJ e ex-presidente do Banco Central
 

 

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As favelas vão engolir tudo

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Segunda-feira, 10 de maio maio de 2004

Xico Vargas
   

10.05.2004 | 

Em 1950, havia no mundo 86 cidades com mais de um milhão de habitantes.  Hoje há 400.  Nos próximos 10 anos esse número deverá pular para, no mínimo, 550.  As favelas  – já inevitáveis –  continuarão crescendo.  Desorganizarão as capitais e cruzarão sobre as regiões metropolitanas, engolfando cidades e criando corredores contínuos que controlarão os fluxos de capital e informação.  Nessa marcha, aumentará também a desigualdade entre cidades de tamanhos e vocações diferentes.  E, mais:  95% dessa explosão populacional ocorrerão nas áreas urbanas de países em desenvolvimento, como o Brasil. 

Para quem acredita no que dizem prefeitos, governadores e ministros sobre integração e crescimento das cidades, ocupação do solo e contenção das favelas, há um achado na revista New left review, edição de março/abril passados.  É Planet of Slums, literalmente Planeta de favelas, artigo de Mike Davis (leitura gratuita ou impressão em PDF, em inglês, no endereço
www.newleftreview.net/NLR26001.shtml).  Davis é aplicado arquiteto e urbanista americano, professor de Teoria do Urbanismo do Instituto de Arquitetura do Sul da Califórnia e autor, entre outros livros, de Prisioneiro do sonho americano e Cidade de quartzo:  escavando o futuro em Los Angeles respeitadas obras sobre sua especialidade.  Apoiado em extenso e variado leque de fontes de consulta, ele traça um inédito, por amplo, e sombrio futuro para o universo urbano, tal como o conhecemos.

“O futuro muito próximo trará a marca de uma linha divisória na história da humanidade”, alerta ele.  “A população urbana do mundo superará a rural e é bem possível que isso já esteja acontecendo”.  Os números assustam:  só a população urbana hoje (3,2 bilhões de pessoas), já é maior do que a de todo o planeta em 1960.  Desde 1950, as cidades estão absorvendo cerca de 2/3 do crescimento populacional, o que hoje significa, no mundo, o acréscimo de um milhão de bebês e migrantes por semana.

Já não se trata, portanto, da cansativa discussão entre políticos e urbanistas do Rio e de São Paulo que tentam definir se as favelas crescem para os lados ou para o alto.  O que Davis extrai de pesquisas e conclusões de especialistas e organismos internacionais é que 95% dessa explosão populacional ocorrerão nas áreas urbanas de países em desenvolvimento.  “Nesses países, a população certamente somará mais de quatro bilhões de pessoas, já na próxima geração”.  Brasil, China e Índia, juntos, terão população equivalente à soma de toda a Europa com a América do Norte.  Como conseqüência, a maioria dos urbanistas sérios acredita que surgirão megacidades com oito milhões de habitantes construídas num inevitável rastro de degradação.

O que eles dizem:  esse crescimento tornará perfeitamente visível um conjunto de cidades e áreas urbanas no qual, como as pesquisas da ONU têm alertado, não haverá planejamento possível para acomodar ou atender tanta gente com serviços.  No Brasil, os sinais dessa explosão começaram a vir à tona com o Censo do IBGE, em 2000.  Descobriu-se que, apesar de São Paulo continuar tendo o maior número de favelas, durante 10 anos o Rio de Janeiro ganhou uma nova favela por mês.  É exemplo do que Davis considera urbanização sem desenvolvimento.  Fenômeno semelhante ocorre na África sub-saariana, na América Latina, em alguns países da Ásia e no Oriente Médio.  Para o autor esse “é o legado mais óbvio da globalização” e o resultado das políticas de arrocho de organismos internacionais como o FMI na reestruturação das economias.  “A explosão das cidades contrariou os modelos econômicos ortodoxos que chegaram a prever crescimento negativo das cidades, retardamento e até reversão no êxodo rural”.  Um fiasco que deixou de observar, por exemplo, casos como o de Lagos, na Nigéria, onde a população saltou de 300 mil em 1950 para 10 milhões hoje. 

Pode-se considerar politizado o artigo de Mike Davis, como acabam sendo  – para o bem ou para o mal –  as questões sociais, mas não se lhe pode negar riqueza de informação, da mais variada natureza, registrada em 106 notas-pé ao longo de 34 páginas.  É por elas que se descobre que o “surpreendente predomínio das favelas” no mundo é o principal tema do sombrio relatório da ONU O desafio das favelas.  Trata-se do primeiro censo realmente global da população miserável das cidades e carrega um alerta que deveria deixar todos os governantes de orelhas em pé:  cada vez mais, as favelas serão como vulcões.  Será que tem algo a ver com o que já se vê hoje no Rio de Janeiro?

Há outros dados surpreendentes, como a revelação segundo a qual islamismo e pentecostalismo ocupam hoje espaços análogos ao que socialismo e anarquismo ocuparam em séculos passados.  O islamismo seduziu populações na África prometendo o paraíso na Terra e oferecendo ajuda contra a brutalidade da vida diária, fraternidade e solidariedade.  O pentecostalismo encontrou terreno firme para crescer na América Latina (Brasil e Peru, principalmente).  Redes de auto-ajuda, mulheres pobres, fé capaz de curar como a medicina, recuperação de alcoólatras, retirar crianças das tentações do cotidiano, tudo isso ajudou as denominações religiosas a deitar raízes sobre as favelas e periferias urbanas.

Não só pelo inesgotável sortimento de novidades o artigo do urbanista Mike Davis torna-se atraente.  À medida que a leitura avança percebe-se o quanto governantes e administradores no Brasil não têm a menor idéia do que estão dizendo quando resolvem tratar de desenvolvimento das cidades e ocupação do solo urbano.  A ex-cidade-modelo Curitiba está aí para mostrar que Davis tem razão. 

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A favela premiou o asfalto

Segunda-feira, 17 de maio maio de 2004

no mínimo volta à primeira página
Xico Vargas  
Alguém já ouviu falar que a favela, um dia, daria prêmio em dinheiro ao asfalto?  Pois é, vai acontecer em junho, quando receberem seus cheques os vencedores do concurso de textos “Sexualidade, violência e justiça nos espaços populares do Rio de Janeiro” criado pelo Observatório de Favelas, ONG que tem sede no chamado Complexo da Maré e move céus e Terra para produzir estudos e informações sobre essas áreas informais da cidade e de outros estados.  Pelo título, poderia ser um longo e talvez enfadonho estudo sócio-antropológico sobre o cotidiano de gente pobre do Rio.  Anunciado como concurso de textos, provocou a manifestação de três dezenas de talentos e colheu numa banca julgadora qualificada o resultado inédito.  Paula Santos, Flávio Aniceto e Márcia Zanelatto, os vencedores, não integram faixa de renda alta da cidade, mas estão a léguas dos barracos da Maré.  Mais por escolha do que pelos fundos na conta bancária.

Paula, 22 anos, é uma negra de riso fácil que cursa o 7º período de Biomedicina na UFRJ e gosta tanto de histórias que decorava, quando criança, as que ouvia da mãe.  O texto que construiu em uma semana e meia para o concurso (Ouroboros), um conto, é o mais curto dos três vencedores.  Mas repleto de emoções em que predominam o desespero, a descrença e a baixa auto-estima da protagonista em cujo ponto de vista se alicerça a história, que tem traços fortes de realidade.  Paula nunca morou em favela, mas passou perto.  Adrelina, a avó, deixou 20 anos de vida no morro da Coroa, em Santa Teresa.

A neta já conheceu a vida morando na rua do Riachuelo, perto da Lapa.  Quando tinha dois anos o pai resolveu seguir em frente.  Deixou a família nos braços de Eliane, a mãe, uma pedagoga formada pela Universidade Federal Fluminense, com mestrado em Ciência da Arte.  Em 2000, a família tomou o rumo de São Cristóvão, na Zona Norte, onde ainda mora, e instalou-se numa casa de vila com 23 simpáticos gatos alimentados com ração comprada diretamente da fábrica.  Com um pé no laboratório de Bioquímica de Insetos, da UFRJ, e no Instituto Nacional do Câncer, estágios que cumpre por exigência da graduação, Paula tem o outro na arte:  toca piano, flauta, esculpe, desenha e, ufa!!, escreve.  O prêmio – R$ 1.500 –, em junho, se somará aos R$ 2.000 da renda familiar. 

Como Paula, Flávio Aniceto escreveu um conto.  Mais longo, mas certamente menos trabalhoso, já que em menos de três dias estava pronto e não que lhe sobre tempo para isso.  Flávio trabalha na assessoria de um vereador, pela manhã, e dedica suas tardes ao Canal Virtual, da Funarte, onde se digitalizam acervos para botar no ar uma emissora de rádio via Internet.  Nada, porém, que o tenha impedido de, nos últimos cinco anos, escrever cerca de 100 textos que tratam basicamente de cultura popular.  Sua história para o concurso (Faça a coisa certa) é menos dramática que a de Paula, tem amor adolescente e referência mais direta ao que a cidade acostumou-se a classificar como o dono do morro, o traficante que manda no pedaço e está formalmente dividida em capítulos.  Mas tem um final que se poderia acreditar feliz.

Flávio tem 30 anos, e nunca viveu em favela.  Nasceu no centro de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e há dez anos mora só, num quarto e sala da rua do Riachuelo, na borda da Lapa, no Rio, área onde Paula já viveu.  Ali deixa quase R$ 500 dos R$ 3 mil que ganha por mês nos dois empregos.  Daqui um ano, quando concluir o curso de produção cultural que faz na Universidade Cândido Mendes, vai tratar de botar na rua um livro com os textos que produz entre uma sessão e outra de cinema.  Em junho, com o prêmio que a favela lhe dará, bota no bolso mais mil pratas. 

O terceiro lugar no concurso é talvez o mais surpreendente.  Vem de uma mulher loura, olhos verdes, 33 anos, atriz, filha de um caminhoneiro e uma dona de casa.  Aos 16 anos, em 1987, Márcia Zanelatto (foto) surpreendeu a escola Martins Pena e a cidade serrana de Petrópolis, onde nasceu, ao declamar no palco de um concurso de poesia e interpretação poema que escrevera desancando a ditadura militar, que não vira nascer e da qual não conhecida os efeitos.  Seguia apenas a trajetória política que iniciara um ano antes, aos 15, quando vencera a eleição para a presidência do grêmio da escola, com 60% dos votos de quatro mil alunos.  Era a mais velha de seis irmãos e a família morava num apartamento minúsculo na serra.  Os filhos dormiam na sala, em beliches, e, pela manhã, acordavam cedo para arrumar tudo e botar em vigência, durante o dia, o ambiente social da casa.  Passou por fábricas de bijuterias e lojas de roupas da tradicional rua Teresa, enquanto apascentava o sonho de criar asas e cursar teatro.  Um dia, um amigo que já morava no Rio mandou-lhe o edital publicado pela Escola Estadual de Teatro anunciando o vestibular.  Fez, não passou e voltou para Petrópolis com a derrota estampada na testa.

Pouco depois, porém, recebeu um telegrama do ator Anselmo Vasconcelos, diretor da escola, que reconhecia seu talento e a convidava para ingressar num curso de atores que ele mantinha.  Foi a conta.  Com a conspiração financeira da avó desceu a serra e acomodou-se no Rio.  Como convém aos aventureiros passou uma semana de fome.  Um amigo a apresentou a uma pessoa que a acolheu, de graça e por longo tempo, no quarto de empregada do apartamento e por aí vai.  Casou, mas separou quando Gabriel, hoje com 9 anos, estava para nascer. 

Desde então sua vida oscila em dias de muito, períodos de pouco e tempos de nada.  Quando soube do concurso do Observatório decidiu que entraria nele com uma peça de teatro e a pôs de pé (Eles não usam tênis naique) no último dia do prazo para a inscrição.  Correu na chuva no Centro da cidade em busca de um lugar onde as cópias xerox fossem mais baratas, porque não tinha como pagar o preço cobrado em Laranjeiras, o bairro onde mora.  O resultado é uma paulada.  Um longo e desbocado diálogo entre pai e filha enfiados até o pescoço no universo do crime.  O título passa por “Eles não usam blak-tie”, de Guarnieri, e o ritmo roça “Dois perdidos numa noite suja”, a conhecida peça de Plínio Marcos.  O prêmio  – quinhentas pratas –  ajudará a tapar alguns buracos, já que o momento é de pouco.  Muito pouco. 

São esses os três moradores do asfalto que, na contra-mão do que a elite da cidade pensa, receberão uma erva de uma favela.  Mas não é só.  Semana passada, uma dúzia de homens armados com picaretas rasgava o asfalto ondulado de uma rua estreita e recheada de botequins e oficinas de serventia variada na favela Nova Holanda, uma das 13 que compõem a área conhecida como Complexo da Maré, no entroncamento das linhas expressas Vermelha e Amarela, na Zona Norte do Rio.  O movimento levou à pergunta:  o que é isso, água?  “Não, a Telemar está instalando o Velox”, informou Jailson de Souza, coordenador do Observatório de Favelas.  Era a segunda surpresa do dia:  no lugar que a cidade considera símbolo de miséria e violência, a demanda por um serviço caro e sofisticado de acesso à Internet por banda larga cresceu a ponto de encher os olhos de uma operadora privada de telefonia. 

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Favela não é isso que se pinta

Quinta-feira, 17 de junho junho de 2004

no mínimo volta à primeira página Xico Vargas

Dormita nos arquivos do Instituto Pereira Passos, entidade da prefeitura do Rio para estudos e pesquisas, um conjunto de informações que pode deitar terra no mito da intocabilidade das favelas da cidade.  O trabalho “Dinâmica do mercado de solo informal em favelas e a mobilidade residencial dos pobres” destrinchou o universo imobiliário de 15 favelas e foi concluído pelo economista Pedro Abramo.  Das 18 páginas de texto e tabelas que escreveu emerge um quadro tão interessante, quanto pouco oferecido ao conhecimento do asfalto.  Uma das revelações mais importantes reside no elevado percentual (27%) dos que gostariam, mesmo, é de uma casa maior em Bangu ou Campo Grande, com uma bela escritura lavrada em cartório

Brotam da pesquisa outros dados surpreendentes, como a constatação de que, na média, a cada três moradores de favela dois são donos do teto que lhes protege o sono.  Apesar de menor, 1/3 não deixa de ser número alto para a fatia dos explorados por aluguéis cada vez mais altos.  É o que faz lembrar dos últimos 28 barracos derrubados na já removida favela Roque Santeiro, em Jacarepaguá.  Pertenciam à respeitável moradora de Copacabana que, por unidade, embolsava um salário mínimo. 

Melhor do que isso é saber que nem tão miseráveis assim são os moradores das favelas, já que 66,5% dos negócios são feitos a vista e em 27% dos casos a origem do dinheiro está na venda de outro imóvel.  Ou seja, como no asfalto.  Alguém tem um imóvel, vende, junta o dinheirinho que guardou e parte para algo melhor.  Desses, 25% conseguem empréstimos com parentes e 18% lançam mão da poupança.  E mais:  só 11,5% dos entrevistados tinham usado o FGTS para integralizar a poupança.  Uma situação talvez algo melhor do que a da depauperada classe média.  Tanto é assim que 85% desses compradores sequer tentaram negociar o preço.  Pagaram o que era pedido pelo vendedor e pronto.  

Esse é o panorama médio na maioria das favelas examinadas (Borel, Cachoeira grande, Campinho, Divinéia, Grotão, Lagartixa, Tuiuti, Vigário Geral, Vila Rica do Irajá, Vila Vintém, Jacaré, Joaquim de Queiroz e Parque Acari).  As exceções ficam por conta de Tijuquinha, no Itanhangá, e Pavão-Pavãozinho, em Ipanema.  Nessas predomina o aluguel.  Na Tijuquinha, certamente, o preço dos imóveis (R$ 29,6 mil, em média, ano passado) inviabiliza um volume maior de negócios.  Na favela Pavão-Pavãozinho, como em áreas marcadamente violentas, o normal seria um mercado com grande número de ofertas, o que a pesquisa não encontrou.  Talvez tenha coincidido com a época em que por lá se instalou o Batalhão de Operações Especial da PM, que pacificou o morro sob o comando do major Carlos Carballo.

Nas demais, o valor médio de compra para um imóvel de dois quartos estava em R$ 11,5 mil, na época da pesquisa.  Para a venda, a média fica em torno de R$ 16 mil.  Parte de um mínimo de R$ 4,3 mil, em Vigário Geral, e chega a R$ 18 mil na Lagartixa. 

Não só pelo bolso, porém, a favela galga a escala social.  A pesquisa encontrou, entre os compradores, grau de instrução mais alto do que o dos vendedores:  40% dos compradores tinham o curso secundário (13,9% completo e 26,23% incompleto).  Os vendedores com instrução secundária chegavam a 30,58% (11,03% completo e 19,55% incompleto).  São assalariados, na maioria (64,75%) os compradores, enquanto os autônomos não passam de 32,25%.  E nas áreas que foram atendidas pelo Favela-Bairro os assalariados chegam a 70%. 

É forte também a presença feminina nesse mercado.  Nas favelas pesquisadas os compradores em mulheres em sua maior parte (62,3%) e chegavam a 85,7% em comunidades como Borel e Parque Acari.  Também eram maioria entre os vendedores, mas, curiosamente, nos lugares reformados pelo Favela-Bairro e teoricamente mais valorizados o percentual de mulheres cai para 58%.  A predominância feminina nesse mercado de imóveis, segundo a pesquisa, tem explicação “na importância das redes sociais na vida cotidiana das comunidades de favela”.  Em português e comparado ao que ocorre no asfalto, costuma ser da mulher a decisão pelo investimento e a escolha da casa. 

A pesquisa é longa e amplamente reveladora das condições sócio-econômicas dos moradores de favelas.  Mas seu traço mais renovador talvez seja a oferta de um novo jeito de olhar a favela, pela primeira vez desde que o poder público e o interesse político a traduziram para a cidade como lugar do cidadão de segunda classe.  Os preços dos barracos negociados nessas áreas e o expressivo número dos que gostariam de ter uma casa com existência formal no Registro Geral de Imóveis derrubam de vez a lorota de que favela é a desordem urbana intocável.  A partir do trabalho de Abramo desaparece o discurso segundo o qual favela é alternativa de casa própria barata para quem não tem onde morar. 

O Observatório de Favelas, ONG instalada na comunidade da Maré que produz estudos e pesquisas sobre as comunidades, tem uma boa história para contar sobre as suposições dos políticos em relação às favelas.  Há alguns anos, a Light procurou uma ONG  – na época muito importante e administrada pela esquerda.  Queria uma pesquisa para descobrir por que só 35% dos moradores da Maré pagavam suas contas de luz e campanha para que pagassem as contas de luz.  O funcionário que levou a proposta foi posto para correr.  Ouviu que fazer gato na luz era estratégia de sobrevivência das comunidades pobres.  Felizmente a empresa não se deu por achada e foi ao Observatório.  Uma campanha mostrou aos moradores que cidadania tem preço e que quem paga conquista o direito de reclamar.  Hoje, 87% dos moradores comparecem ao guichê com a conta na mão.  Em compensação, a Light pia fino na Maré.  Nunca mais se ouviu falar de apagão por aquelas bandas. 

Como atividade, a administração pública guarda relação com habitação, saneamento, transporte, coisas de que todo mundo gosta e sabe que não sai de graça.  Quando se dedica a adubar favelas com favores para colher votos do rebanho pode estar confundindo política com agropecuária. 

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Vazio de poder facilita favelização


Jornal O Globo, 22 de agosto de 2004

Carlos Gabaglia Penna*


Não há dúvida que algumas obras públicas importantes para a infra-estrutura da cidade do Rio de Janeiro têm sido realizadas, mas os fatos demonstram que continua relegada a segundo plano a questão da ocupação irregular de terras públicas e privadas. O combate à favelização é vital para a qualidade de vida dos cariocas. A necessidade urgente de estancamento da expansão das favelas e de sua remoção, parcial ou total, são componentes indispensáveis de uma política ambiental focada na proteção da cidade. Vamos a alguns exemplos desse processo de abandono:

Morei durante 11 anos na Rua General Ribeiro da Costa, no Leme. Durante todo esse tempo, a Favela Babilônia era uma comunidade pequena e estável.

Recentemente, verifiquei – não sem espanto – que as moradias ilegais haviam se espalhado, em grande número, na encosta por detrás de prédios da rua. Isso nas barbas das autoridades e da comunidade, que parecem se fazer de
mortos. É importante frisar que as residências que pude avistar são construções de alvenaria e com esquadrias de alumínio, possuindo aparelhos de ar condicionado e antenas parabólicas. Fui informado de que há um processo de ‘urbanização’ desses imóveis, ou seja, de legalização do ilegal. Fazê-lo é premiar quem infringe a lei e viola os direitos do restante da sociedade, é consumar um fato claro de degradação urbana e castigar quem anda na legalidade.

Há alguns anos, um grupo de moradores da Gávea e do Jardim Botânico lutam contra a absurda invasão dos entornos do arboreto do Jardim Botânico (JBRJ). Essa instituição possui um dos mais importantes acervos botânicos
neotropicais e é um patrimônio nacional (cultural, histórico, científico e ambiental). A sua ocupação começou com famílias de ex-funcionários, mas atualmente a esmagadora maioria das pessoas que lá moram ilegalmente nada
tem a ver com o JBRJ.

Novamente, uma simples visão das casas revela que não se trata de um mero problema social. A verdade é que morar nessa área – fundamental para o Jardim Botânico – é agradável, gratuito e valoriza as “propriedades”. As
ações para recuperar esse espaço público são burocráticas e desprovidas de qualquer empenho.

Uma das características marcantes do aprazível bairro da Urca sempre foi a ausência de moradias ilegais. Mas, não é mais... Há poucos anos, uma favela começou a se desenvolver na encosta ao fundo do terreno do Instituto
Benjamin Constant. Novamente, as autoridades se fingem de mortas; afinal de contas – quem sabe? – talvez ninguém perceba…

Ao se contornar o Parque Natural Chico Mendes em direção à Avenida Sernambetiba e ao Pontal do Recreio, ao redor do Rio das Tachas, se vê uma nova comunidade que cresce irregular e aceleradamente. São construções
recentes, sem infra-estrutura e que põem em risco, como sempre, a qualidade do meio ambiente e o bem estar da população que paga impostos...

Este é apenas um resumo de alguns dos principais problemas que terminarão por inviabilizar o Rio como uma cidade agradável de se viver. Favelas pululam pela cidade inteira e o quase absoluto laissez-faire da administração pública, somado à baixa participação das comunidades na defesa de seu bem-estar, atuam em sinergia, potencializando os seus efeitos e dificultando o seu inadiável enfrentamento. O que de objetivo – e efetivo – fazem as autoridades? Alguém ouviu qualquer dos candidatos a prefeito abordar seriamente algum desses problemas? Ou a sociedade age, ou a cidade ficará cada vez mais à deriva.

*Engenheiro ambiental e professor universitário

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Falta planejamento urbano

Jornal do Brasil, 12 de setembro de 2004

Entrevista: Raquel Rolnik
 Hugo Marques

BRASÍLIA - Doutora em urbanismo pela Universidade de Nova York, a paulistana Raquel Rolnik, de 47 anos, recebeu do governo do PT a missão de levar moradia digna para os brasileiros pobres e regularizar as favelas. Como secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, Raquel está em Barcelona, na Espanha, negociando uma das propostas do país para buscar mais recursos para a moradia.
Durante o Fórum Urbano Mundial – em que estão representantes de 191 países – Raquel vai destrinchar a sugestão de um acordo internacional para que os investimentos em habitação e saneamento sejam excluídos do conceito de dívida para efeito de cálculo do superávit primário. Uma forma de liberar dinheiro para habitação.

Nesta entrevista, Raquel dá algumas explicações sobre o mais ambicioso projeto do PT: levar moradia e saneamento a 16 milhões de famílias. Uma das grandes novidades é que o governo federal vai dar subsídios pesados para a moradia popular.

– A maioria dos países aceita esse acordo para excluir habitação do conceito de dívida para o cálculo do déficit primário? Como está a negociação?

– A idéia é angariar apoios no campo internacional, na linha do que o presidente Lula tem trabalhado em relação aos países pobres. Os números da precariedade no Brasil estão concentrados na faixa de zero a três salários
mínimos de renda. No campo internacional, os grandes números de precariedade urbanística sem acesso a água, esgoto e saneamento também são em faixas de renda muito baixas. Isso significa que essa é uma população que, para poder receber infra-estrutura, moradia adequada e ter resolvido o seu problema, precisa ter uma altíssima dose de subsídio. É uma população que não tem condições de pagar um financiamento, porque financiamento tem que ter retorno, não só do principal mas também dos juros. Primeiro, é preciso aumentar o endividamento público para poder colocar o subsídio nessas questões. E um dos grandes problemas que temos hoje para aumentar essa intervenção e esse financiamento é justamente o impacto que isso tem na dívida do setor público.

– Mas a idéia é bem aceita?

– A idéia é evidentemente aceita. A Argentina, por exemplo, foi uma das maiores vítimas da política urbana adotada na década de 90. O país aplicou a receita neoliberal, e o efeito que isso teve foi uma degradação das
condições de vida dos argentinos, que tinham uma condição melhor no campo da habitação. Foi onde a aplicação do paradigma foi mais completo e teve um efeito devastador, com a diminuição do papel do Estado e o aumento da participação do setor privado na área de infra-estrutura urbana. Isso se traduziu em muitos lugares na privatização dos serviços e na descentralização da direção dos municípios.

– A palavra subsídio era proibida nesse período.

– Absolutamente proscrita.

– O que se vê no Brasil, então, é que sem subsídio não tem como sair do buraco?

– Sem subsídio, não há como chegar nas famílias mais pobres, onde está concentrado o déficit. Um dos pilares do paradigma dos anos 90 é que todos os investimentos têm de ter retorno financeiro. Todo investimento em água, esgoto, habitação tem de ter retorno. É isso que foi aplicado.

– Isso distanciou ainda mais os pobres dos ricos?

– Temos que dizer que algumas medidas foram fundamentais, porque havia sangria, malversação de recursos públicos, superfaturamento, obras que eram contratadas e nunca eram feitas. Portanto, existe um lado importante nessa história.

– Passa um pouco pela Lei de Responsabilidade Fiscal?

– A lei é importante para moralizar. Mas não é preciso só moralizar. Temos um problema sério a resolver.

– Dessas 100 milhões de famílias de que a senhora fala, quantas vivem no Brasil?

– Poderíamos resumir a situação brasileira trabalhando com o conceito de moradia precária, adotado pela ONU. Trata-se de assentamentos contíguos, caracterizados por condições inadequadas de habitação e ausência de serviços básicos, e não reconhecidos pelo poder público como parte integrante da cidade. São cinco os componentes que refletem as condições que caracterizam o assentamento precário: status residencial inseguro – ou seja, moradia irregular – acesso inadequado a água potável, acesso inadequado a saneamento e a infra-estrutura em geral, baixa qualidade estrutural dos domicílios e adensamento excessivo – muita gente morando na mesma casa.

– No Brasil, quantas pessoas vão se encaixar nesses critérios?

– Em torno de 16 milhões de famílias. Cerca de 55 milhões de pessoas.

– Ou seja, o Brasil tem 55 milhões de pessoas em assentamentos precários?

– É muito difícil dizer, porque o IBGE chama as favelas de aglomerados subnormais. Nessa categoria, há 1,7 milhão de domicílios. Mas, como falei, isso não dá conta de todo o universo. Para o IBGE, aglomerados subnormais são as favelas precárias. Alargando-se esse conceito além das favelas e das ocupações, considerando também os loteamentos irregulares e clandestinos, há muito mais gente. Esse número é subestimado, porque o conceito de favela do IBGE é muito estrito. Por exemplo, a Rocinha, para o IBGE, não é favela.

– E para o ministério, a Rocinha é favela?

– Nós trabalhamos com dois números: O universo que o IBGE chama de favela e o universo maior que nós chamamos de assentamentos precários, em que entra a Rocinha.

– Na área de saneamento, a empresa pode recuperar os investimentos em forma de tarifa. Já para a habitação, não há esse tipo de retorno. Por isso a necessidade do subsídio?

– Mesmo em saneamento, essas empresas que pediram financiamento são poderosas, de cidades ricas, e conseguem retornar em tarifa. Mas e a empresa do Piauí, que precisa desesperadamente de saneamento? Ou do Maranhão? O que farão as empresas que não têm como recuperar o dinheiro com tarifas?

– Então o subsídio é necessário para moradia e também para saneamento em Estados pobres?

– Para Estados ou cidades pobres ou, por exemplo, para favelas. Essa verba para saneamento que foi liberada não chegará às favelas.

– Os R$ 2,9 bilhões liberados pelo governo este ano não vão atingir as favelas ainda?

– Não, porque não há a possibilidade de retorno com tarifa. Teremos de trabalhar uma equação para favelas e aglomerados informais.

– Como está hoje a regularização de favelas?

– O programa de regularização fundiária, papel passado sempre por meio de parcerias com os municípios, já está sendo implementado no país. Hoje, já temos 256 mil famílias em processo de regularização.

– A senhora tem uma idéia de quantos imóveis vagos existem no país?

– Os domicílios urbanos vagos no país são quase 5 milhões.

– Então daria quase para resolver o problema do déficit, de 6,6 milhões de moradias?

– Teoricamente, sim. É esse o nosso paradoxo. Claro que nem tudo dá para aproveitar, porque há coisas caindo aos pedaços. Esses domicílios urbanos vagos estão em duas pontas: nas pequenas cidades do interior que perderam população, porque a população migrou e a cidade tornou-se fantasma, com um monte de casas vazias e fechadas, e nos grandes centros urbanos.

– É bom o eleitor ficar de olho no prefeito que tem uma proposta de plano diretor que possa auxiliar nessa distribuição equitativa fundiária?

– Infelizmente, é um tema pouco discutido. O ministério das Cidades tem procurado difundir isso, tem procurado disponibilizar informações, fazer capacitação, prestar assistência técnica, apoiar a disseminação dessa
informação. Nossa intenção é lançar, a partir de 2005, uma grande campanha nacional pela implementação de planos diretores que tenham como um dos eixos o acesso à terra urbanizada, formal e bem localizada para os mais pobres.

– Os movimentos dos sem-teto no Brasil já estão cientes da importância de se mobilizarem para criar novos planos diretores, mais igualitários?

– Os movimentos populares de moradia mais organizados – principalmente os que têm organizações nacionais, como a União de Movimentos de Moradia, o Movimento Nacional de Luta pela Moradia, a Confederação Nacional de Moradores e a Central dos Movimentos Populares, as quatro centrais de movimentos de sem-teto mais organizadas nacionalmente – têm absoluta convicção da centralidade dessa questão, tanto é que já estão fazendo ações internas de capacitação dessas lideranças para participar das discussões dos
planos diretores em suas cidades.

– Essa campanha é sinal de que municípios e Estados ainda não estão conscientes para essa mudança?

– Não totalmente. A tarefa não é fácil. A política urbana é marcada por pragmatismo, dinheiro e obras. É difícil discutir planejamento no país, mas esse governo acredita em planejamento e acha que é importante implementá-lo.

– Além da campanha, que tipo de intervenção o governo federal pode fazer junto aos municípios?

– A idéia, não no curto prazo, é uma discussão feita com nosso Conselho das Cidades. O objetivo é que, no futuro, possamos condicionar o repasse de recursos para o município, para fazer obras, à existência de um plano diretor que contempla essa questão fundiária. A idéia é fazer isso no conjunto do ministério das Cidades. Ou seja, o financiamento na área de transporte, ambiental e habitação, o conjunto dessa área de infra-estrutura
urbana, deve ser priorizado nas cidades que têm planejamento territorial e  participação dos cidadãos na gestão pública.

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Coisas do Brasil: Os sem-teto e os sem-competência

Jornal do Brasil, 4 de novembro de 2004

 Israel Tabak

Repórter político do Jornal do Brasil
Logo depois do segundo turno, os sem-teto, de novo, mostraram a cara:  invadiram prédios desocupados em São Paulo e prometem mais.  Só os políticos parecem ignorar que o movimento vem crescendo, se organizando.  Não será surpresa se em pouco tempo essa turma estiver dando tanta dor de cabeça ao governo quanto os sem-terra. 
 
Os sem-teto não apareceram por acaso.  São o resultado de décadas de omissão, incompetência, ou de um repetitivo exercício de tapeação na área habitacional.  No tempo da ditadura, o extinto Banco Nacional de Habitação pensava que os pobres poderiam comprar casas populares a preços de mercado.  Deu no que deu.  Inadimplência em massa, imóveis abandonados ou destruídos, ruína total.  Quando os técnicos do banco acordaram e propuseram alternativas mais realistas, como o projeto do lote urbanizado, já era tarde.  O BNH acabou, pouco depois. 
 
Se com o banco era ruim, sem o banco piorou.  Não subsistiu sequer um arremedo de política habitacional.  Além do bem-intencionado esforço localizado de algumas poucas prefeituras, só apareceram paliativos e programas inconsistentes ou demagógicos, em todas as esferas de poder. 
 
Volta e meia surge o mote da regularização fundiária.  Mas como regularizar barracos construídos em cima de leitos de rios, embaixo de redes de alta tensão, em terrenos alagadiços, em encostas prontas para cair, ou na terra dos outros?  Eleição finda, já aparecem prefeitos prometendo erguer casas por atacado.  Mais uma empulhação. 
 
A situação é muito clara, expondo o tamanho da carência.  Num país em que o salário da esmagadora maioria da população chega a níveis tão baixos, o pobre simplesmente não tem dinheiro para comprar uma casa decente.  Por isso, qualquer política habitacional só vinga se as casas forem quase que totalmente subsidiadas.  Certamente a atual orientação econômica do governo não vai tolerar uma mudança do quadro, a curto prazo.  Aperto fiscal não permite essas liberalidades.  Assim, o Ministério das Cidades não pode mesmo deslanchar.  O resto é conversa de político.

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Favela-Bairro: um projeto populista

Jornal do Brasil, 16 de outubro de 2004

Aluizio Alves Filho*

Cientista político

O Favela-Bairro é um programa que todos reivindicam, mas está na Lei Orgânica do Município de 1990, e no Plano Diretor de 1992. Esse programa é um reconhecimento de que as autoridades desistiram de modificar a estrutura
da sociedade capitalista. Eles aceitaram-na como natural e verdadeira. É um reconhecimento de que existem ricos e pobres como um fato natural. De que há lugares para ricos, como a Barra da Tijuca, e lugares para pobres, as
favelas. Isto é uma forma populista de manter pobres e ricos em seus lugares.

Do ponto de vista de inclusão real, esse projeto tem muito pouco a dizer. O plano original da Lei Orgânica era o combate à favelização do Rio de Janeiro. A história dos 10 anos do Favela-Bairro mostra que, ao dotar uma
comunidade como a Rocinha de infra-estrutura, isto funciona como um atrativo para que surjam outras favelas, outras ocupações desordenadas, que sejam, posteriormente, urbanizadas.

Isto não é acompanhado por um projeto concreto de transformações na sociedade, que vise transformar as condições materiais de vida da população, e não fazê-la habitar biroscas, que não servem para classes mais elevadas. É
muito claro que falta educação e projetos sociais. A maior parte dos presos, em nossa cidade, continua sendo de jovens oriundos de favelas.

É interessante notar que Leonel Brizola foi chamado de louco ao criar seu programa educacional. Virou tema de novela sua proposta de criar um elevador no Pavão-Pavãozinho. Hoje essas idéias são abraçadas. Antes isso era chamado
de populismo, agora é o quê? O Favela-Bairro só faz uma maquiagem das formas perversas de desigualdade social que foram estruturadas neste país.

Claro que os indivíduos que estão, momentaneamente, no poder, e herdaram este panorama, não podem mudá-lo em seis meses, um ano, mas este projeto apenas reproduz populismo. Quem paga pelo crescimento desordenado da cidade é a classe média, com o aumento de suas tarifas de água e luz. A desigualdade entre classes sociais, não se resolve dando um prato de comida, ou pintando uma favela.

As péssimas condições de existência engendram o aumento da violência e da insegurança. A idéia de resolver, concretamente, estes problemas está sendo enterrada. Estamos perdendo a dimensão da utopia, de construir uma sociedade fraterna e justa.

*Aluizio Alves Filho é professor do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Onde está a integração?

JB, 15 de julho de 2004
Onde está a integração?


Denise Frossard

Deputada federal (PSDB-RJ)

Os programas implementados na cidade do Rio de Janeiro pelo prefeito César Maia estão completando 10 anos. Uma vez que ele é candidato à reeleição e não tendo, até aqui, apresentado qualquer proposta nova, a campanha
eleitoral ganhará o formato de um plebiscito, no qual a população irá se pronunciar sobre o resultado do decênio de trabalho do seu prefeito.

É época propícia, portanto, para que se fale um pouco dos resultados efetivos dos programas que ele implementou.

Em razão da criminalidade crescente com residência nas favelas e comprovadas causas sociais, o primeiro programa a ser avaliado, entendo, deva ser o ''Favela-Bairro'', que, como o próprio nome apregoa, deveria funcionar como
um esforço de integração social, bem mais do que uma integração urbanística.

Houve essa integração social ao largo dos 10 anos em que o programa está por aí?

Uma pesquisa publicada no fim do ano passado pela revista Conjuntura Econômica, da Fundação Getúlio Vargas, comprova que não. Tem como título O trabalho nos morros cariocas e como base o Censo Demográfico de 2000, do
IBGE. O trabalho, de autoria do professor Marcelo Néri, chefe do Centro de Políticas Sociais do Instituto Brasileiro de Economia e diretor da Fundação Getúlio Vargas, cruza dados sociais referentes a trabalhadores residentes
nas favelas do Jacarezinho, Maré, Complexo do Alemão, Rocinha e Cidade de Deus com dados referentes a trabalhadores residentes nos bairros da Lagoa, Barra da Tijuca, Botafogo, Copacabana e Tijuca.

Mostra que a renda média obtida pelos trabalhadores residentes nas favelas está em R$ 402,00, enquanto a dos trabalhadores residentes nos bairros está em R$ 2.175,00, para jornadas de trabalho que variam entre 45,9 horas
semanais para os moradores nas favelas e 40,6 horas para os moradores nos bairros. A taxa média de desemprego para os residentes em favelas está em 19,1%, enquanto para os moradores dos bairros está em 9,9%; e o percentual
de empregos formais, ou seja, com as garantias trabalhistas asseguradas em lei, na casa dos 8,9% para os residentes em favelas e 20,8% para os moradores nos bairros.

A razão dessas abissais diferenças a própria pesquisa sinaliza. Os trabalhadores residentes em favelas apresentam 6,2 anos de escolaridade, enquanto os trabalhadores que residem nos bairros estudam, em média, 11,9 anos e ingressam no mercado de trabalho bem mais tarde.

Está claro, portanto, que o programa ''Favela-Bairro'', administrado pela Prefeitura do Rio, se somado a um trabalho intensivo de educação nas favelas, também de responsabilidade da prefeitura, poderá render resultados
altamente positivos para a qualidade de vida da população da cidade e para a redução da criminalidade.

Para quem acredita que a violência é assunto só para polícia e Judiciário, a pesquisa comprova que há, no arco de atribuições da prefeitura municipal, muito que se possa fazer no sentido de reduzir a criminalidade. É relevante
também salientar as palavras do professor Marcelo Néri quando encerra a apresentação da pesquisa, na revista Conjuntura Econômica: ''Apesar das agruras da vida privada das favelas cariocas, a maior carência parece ser a
de Estado''.

Este é mais um convite à reflexão, com as coisas nos seus devidos lugares.

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Cidade à deriva

Jornal do Brasil, 18 de agosto de 2004

Carlos Gabaglia Penna
Engenheiro ambiental

Não há dúvida de que algumas obras públicas importantes para a infra-estrutura da cidade do Rio de Janeiro têm sido realizadas, mas os fatos demonstram que continua relegada a segundo plano a questão da ocupação irregular de terras públicas e privadas. O combate à favelização é vital para a qualidade de vida dos cariocas. A necessidade urgente de estancamento da expansão das favelas e sua remoção, parcial ou total, são componentes
indispensáveis de uma política ambiental focada na proteção da cidade.

Vamos a alguns exemplos desse processo de abandono.

Morei durante 11 anos na Rua General Ribeiro da Costa, no Leme. Durante todo esse tempo, a favela Babilônia era uma comunidade pequena e estável. Recentemente, verifiquei - não sem espanto - que as moradias ilegais haviam
se espalhado, em grande número, na encosta por detrás de diversos prédios da rua. Isso nas ''barbas'' das autoridades e da comunidade, que parecem fazer-se de mortos. É importante frisar que as residências que pude avistar
são construções de alvenaria e com esquadrias de alumínio, possuindo várias delas aparelhos de ar- condicionado e antenas parabólicas. Fui informado de que há um processo de ''urbanização'' desses imóveis, ou seja, de
legalização do ilegal. Fazê-lo é premiar quem infringe a lei e viola os direitos do restante da sociedade, é consumar um fato claro de degradação urbana e castigar quem anda na legalidade.

Há alguns anos um grupo de moradores dos bairros da Gávea e do Jardim Botânico lutam contra a absurda invasão dos entornos do arboreto do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Essa instituição, com quase dois séculos de
vida, possui um dos mais importantes acervos botânicos neotropicais e é um patrimônio nacional (cultural, histórico, científico e ambiental). A sua ocupação começou com famílias de ex-funcionários, mas atualmente a
esmagadora maioria das pessoas que lá moram ilegalmente nada tem a ver com a instituição. Novamente, uma simples visão das casas revela que não se tratade um mero problema social. A verdade é que morar nessa área - fundamental para o Jardim Botânico - é agradável, gratuito e valoriza as ''propriedades''. As ações para recuperar esse espaço público são burocráticas e desprovidas de qualquer empenho.

Uma das características marcantes do aprazível bairro da Urca sempre foi a ausência de moradias ilegais. Mas, não é mais... Há poucos anos, uma favela começou a se desenvolver na encosta ao fundo do terreno do Instituto
Benjamin Constant. Novamente, as autoridades fingem-se de mortas: afinal de contas - quem sabe? - talvez ninguém perceba.

Ao se contornar o Parque Natural Chico Mendes em direção à Avenida Sernambetiba e ao Pontal do Recreio dos Bandeirantes, ao redor do Rio das Tachas, vê-se uma nova comunidade que cresce irregular e aceleradamente. São
construções recentes, sem infra-estrutura e que põem em risco, como sempre, a qualidade do meio ambiente e o bem-estar da população que paga impostos.

Este é apenas um resumo de alguns dos principais problemas que terminarão por inviabilizar o Rio como uma cidade agradável. Favelas pululam pela cidade inteira e o quase absoluto laissez-faire da administração pública e a
baixa participação das comunidades na defesa de seu bem-estar atuam em sinergia, potencializando os seus efeitos e dificultando o seu inadiável enfrentamento. O que de objetivo - e efetivo - fazem as autoridades? Alguém
ouviu qualquer dos candidatos a prefeito abordar seriamente algum desses problemas? Ou a sociedade age, ou a cidade ficará cada vez mais à deriva.

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Demagogia zero

Jornal do Brasil, 30 de outubro de 2004

ALBERTO OLIVA
FILÓSOFO

Poucas coisas acontecem por obra e graça de uma só causa. A despeito de a inteligência ser desafiada a desvendar intrincados quebra-cabeças, os sistemas intelectuais que mais fazem sucesso são os monocausais. No Brasil, os grupos (semi) letrados adoram reduzir todos os males ao Sistema. O populismo acadêmico e a demagogia eleitoreira, ao sacralizarem a pobreza e demonizarem a riqueza, o máximo que conseguem é acirrar a luta de classes e instituir a esmola oficial. Os problemas sociais mais graves - da violência inaudita à favelização dos grandes centros - se agigantam porque não há autoridade que se disponha a atacar suas causas. Vem de longe a preferência nacional por inculpar forças ocultas e inimigos externos. Diante dos desafios cotidianos, as autoridades recorrem ao escapismo. Não por acaso, em vez de tentar melhorar a qualidade do ensino oferecido a pobres e remediados nossos excelsos governantes têm optado pela saída fácil das cotas raciais nas universidades. Em vez de fazer campanha pelo planejamento familiar, gastam em propaganda rios de dinheiro para alardear programas assistencialistas que só fazem perpetuar a pobreza.

O ritmo de expansão demográfica no Brasil era de 3% entre 1950 e 60. Caso tivesse se mantido, hoje o País teria 262 milhões de habitantes e certamente estaria mergulhado num quadro social ainda pior. Permanece, a despeito de ter declinado para 1,44% ao ano, bem acima da média mundial. Não precisamos
de estatísticas, de censo do IBGE, para perceber que a população cresce de forma significativa entre os segmentos mais pobres da população. Basta observar o aumento expressivo do número de favelas no Rio de Janeiro. Há enormes diferenças entre os índices de fecundidade nas famílias de mais baixa renda e rala instrução e os de estratos sociais que se situam acima delas na pirâmide social. E isto explica por que a pobreza só tem feito aumentar. É fácil atribuir a deterioração do quadro social brasileiro à exploração capitalista. Nas faixas de renda mais alta e de melhor nível de instrução a população cresce a uma velocidade inferior a 0,5% por ano
enquanto que nas faixas de renda mais baixa e nível de educação raso o índice ultrapassa os 2%. São estes números que ajudam a entender como, em que pesem os programas sociais que têm sido adotados, a pobreza tem crescido. E para piorar esses dados, não se pode esquecer que o Brasil se destaca pelo número expressivo de adolescentes grávidas.

A despeito de não ser uma panacéia, o planejamento familiar muito pode contribuir para evitar a expansão alarmante da pobreza. Em vez de gastar uma dinheirama com miragens assistencialistas, os governantes deveriam, depois de priorizar os desafios da saúde e educação, investir em campanhas institucionais em prol do planejamento familiar.

Causa espécie que as feministas se calem a respeito do tamanho das famílias pobres. Como a mulher pode se liberar tendo uma penca de filhos que a impede, entre outras coisas, de se profissionalizar? A classe média limitou o número de filhos não só por razões econômicas mas também para que a mulher pudesse dedicar mais tempo a si mesma e à sua formação profissional. Uma mulher que chega a passar dez anos tendo filhos fica dependente do marido ou se condena a atividades de baixíssima remuneração. Os pobres estão nessa
condição, entre outras razões, porque carecem de informações e meios para tomar as decisões que são de seu interesse. Não se consegue ajudá-los levando-os a se verem como vítimas do Sistema. Mesmo porque ninguém se torna um autêntico cidadão sem que assuma a responsabilidade por seus atos. E não há decisão mais importante que a de ter filhos.

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Favelas Upgrading. A cidade como integração dos bairros e espaço de habitação (1)

http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq027/arq027_00a.asp

Elisabete França e Gloria Bayeux

Elisabete França e Gloria Bayeux são arquitetas e curadoras da representação
brasileira na 8ª Mostra Internazionale di Architettura da Biennale di
Venezia de 2002.

Espaço da diversidade
Palco das grandes e rápidas transformações, a cidade tornou-se o grandeí cone do século XX, configurando-se como a expressão mais complexa da existência humana e, conseqüentemente, como espaço aglutinador dos
antagonismos, dos conflitos, das contradições e também das mais diversas manifestações criativas do homem. Território privilegiado para o estabelecimento das relações humanas, a cidade moderna é, por excelência, o
espaço do poder e da concentração de riqueza, onde se concentram, ao mesmo tempo, o maior número de possibilidades de trabalho e as maiores carências em relação a habitação.

No início deste novo milênio, as cidades representam o fenômeno mais significativo e mais desafiador para os arquitetos que, para responder constantemente às necessidades de sua permanente construção, têm como tarefa acompanhar não só as grandes mudanças relacionadas a sua forma física, mas também estar atentos às diversidades e à complexidade das questões sociais e econômicas deste tempo de globalização.

Embora inerentes a todo território urbano, essas mudanças não apresentam resultados análogos para o conjunto da humanidade, mas refletem, em cada região do planeta, as desigualdades de distribuição de riquezas, os valores étnicos, políticos, socioeconômicos, culturais, religiosos, bem como o estágio de desenvolvimento tecnológico e as potencialidades em relação aos recursos naturais. Frente a esta complexidade não é possível definir uma única pauta que resulte em um modelo universal de atuação, incluindo-se aí o
tema da arquitetura. Ou seja, não é possível propor um modelo de soluções que seja universalmente reproduzível.

Nos últimos tempos, a cidade moderna passou por profundas transformações, conseqüência principalmente dos grandes fluxos populacionais que se deslocaram do campo para as áreas urbanas, resultando nas grandes aglomerações atuais onde vivem dezenas de milhões de pessoas. Frente a essa nova realidade, faz-se necessário repensar os conteúdos teóricos, tecnológicos e práticos da arquitetura como instrumento que dá qualidade e forma à cidade, bem como novos princípios para a atuação do arquiteto no sentido de entendê-la como um bem comum, onde os espaços de convivência têm um papel central na construção das relações humanas e da sociabilidade.

Ao mesmo tempo, é necessário considerar a cidade não como um todo orgânico e uniforme, mas como um conjunto de coletividades que devem ser pensadas em função de suas personalidades específicas, garantindo-lhes, assim, suas próprias identidades. Ou seja, se por um lado para o arquiteto esta diversidade significa complexidade, por outro, torna-se um desafio instigante para o pleno exercício de sua atividade criadora.

Considerando ainda os problemas atuais das grandes metrópoles - ocupações irregulares em escala crescente e a ausência de padrões mínimos de qualidade de vida para seus habitantes - a contribuição da arquitetura deve ser pensada de modo diferenciado dos padrões clássicos conhecidos pela atividade arquitetônica. Os conceitos e métodos da arquitetura e urbanismo estruturados para resolver as questões das cidades do século XIX não podem mais servir de base para a atuação dos arquitetos nesta nova realidade.

Nos países do terceiro mundo, como o Brasil, os novos conceitos e métodos são estruturados a partir de realidades bastante diferenciadas daquelas dos países centrais. A condição atual das nossas cidades se manifesta por meio da escassez, da insalubridade, do descontrole das ocupações e da baixa qualidade das moradias, em sua grande parcela autoconstruídas. Decorrente de problemas econômicos e políticos, o crescimento incessante e descontrolado das metrópoles não é acompanhado de políticas públicas capazes de atender às necessidades mais imediatas de suas populações.

Cidades brasileiras - espaço de carências

Nas últimas décadas, o Brasil acompanhou a tendência mundial de crescimento acelerado da população urbana e de deterioração das condições de vida desta população, particularmente a de baixa renda. As décadas de 30 e 40 representaram o início de um intenso processo de urbanização, fruto dos fluxos migratórios de famílias que deixaram o campo com destino às cidades em busca de melhores condições de vida. Entre as décadas de 40 e 90 a taxa da população urbana passou de 26,35% para 80%. A rapidez com que esse processo ocorreu teve como resultados uma série de novos fatores que passaram a compor o quadro de pobreza urbana observável em todas as grandes cidades brasileiras, chegando a afetar atualmente as regiões de médio porte.

Entre 1960 e 1990 houve um acréscimo de oitenta e cinco milhões de habitantes nas áreas urbanas brasileiras. Parte significativa desse contingente não teve acesso aos serviços básicos de infra-estrutura, moradias dignas, espaços de lazer comunitário, serviços de saúde e educação. Vinda da área rural e de cidades de menor porte, parcela significativa desses novos moradores teve como destino a ocupação de áreas degradadas, tais como favelas, cortiços, palafitas e loteamentos clandestinos, que, desvinculadas da cidade formal, localizam-se, em geral, na periferia das grandes cidades ou então nos antigos e deteriorados centros históricos.
Calcula-se que nas duas maiores metrópoles brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro, a população que vive nesta situação-limite equivalha a quase 40% do total de moradores, ou seja, 4 milhões em São Paulo e 2 milhões no Rio.

O problema habitacional no país sempre padeceu da falta de definição de uma política nacional de habitação que pudesse amenizar os efeitos deste processo de urbanização avassalador. O Sistema Financeiro da Habitação - SFH, criado em 1964, não conseguiu responder às necessidades crescentes das
populações de baixa renda, e a crise dos anos 80, que culminou com a extinção do Banco Nacional da Habitação - BNH, provocou a paralisação dos programas habitacionais existentes, penalizando ainda mais as famílias sem possibilidades de acesso aos sistemas de mercado.  Esses fatos contribuíram para aumentar o número de moradias em favelas, cortiços, loteamentos irregulares e clandestinos e outras formas de habitação inadequadas, provocando um acirramento cada vez maior dos movimentos populares de moradia.

A partir da década de 70, diversas políticas e programas de Estado passaram a ter como linha de ação a busca de soluções para estes problemas que se apresentavam em dimensões até então desconhecidas pelo poder público. Inicialmente foram feitos grandes investimentos em conjuntos habitacionais, cujo propósito maior era responder ao déficit habitacional e remover as famílias dos assentamentos tidos como "marginais" e insalubres que se espalhavam pelas cidades. Desarticulados da cidade, estes programas foram, em sua grande maioria, implantados nas periferias das metrópoles em locais distantes das fontes de trabalho. Apesar dos significativos investimentos, a insatisfação com a política adotada intensificou o processo das ocupações urbanas irregulares, em especial nas favelas e loteamentos clandestinos, conduzido à base de múltiplos conflitos e à margem das legislações vigentes. Assim, tal como os modelos tecnocráticos de gestão e de implantação em que
estavam baseados, esses programas resultaram em estruturas que se deterioraram ao longo do tempo.

A crescente expansão de zonas ilegais nas cidades brasileiras demonstra as dificuldades que o poder público tem encontrado para solucionar e controlar esse tipo de crescimento desordenado. Cada vez mais constantes nos grandes centros urbanos, essas alternativas representam a única saída de moradia para parcelas significativas da população excluída do mercado formal da habitação. Mas, por outro lado, a participação, cada vez maior, das comunidades envolvidas nos processos decisórios foi o elemento que mais contribuiu para a aceitação de uma nova política que viria a ser implantada: a urbanização das áreas ocupadas irregularmente por meio da criação de serviços básicos e da conseqüente melhoria da qualidade de vida de seus habitantes.

Na década de 90, novos avanços foram obtidos na condução democrática do processo de planejamento das cidades. Em 1992, a Conferência Internacional sobre Desenvolvimento Sustentado - ECO 92, realizada no Rio de Janeiro, ratificou uma pauta de ação mundial centrada na busca do desenvolvimento econômico ecologicamente sustentável.  Em 1996, a Segunda Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos - Habitat II, realizada em Istambul, consolidou um plano internacional de ações centrado na busca do
desenvolvimento social e da erradicação da pobreza. Tais decisões representaram marcos históricos para a afirmação dos novos conceitos que hoje constituem a base para a elaboração das políticas públicas, em especial a política habitacional, dos governos federal, estaduais e municipais.

O processo de urbanização crescente nas cidades e nas áreas metropolitanas, com todas as suas conseqüências, aliado às mais recentes conquistas no plano da consolidação de um processo de gestão democrática da questão urbana, apresenta para o setor público novos desafios que envolvem os aspectos
decisórios relativos à melhor alocação dos investimentos públicos, ao desenvolvimento de mecanismos democráticos de participação popular, de avaliação dos resultados das políticas públicas e do estabelecimento de um acervo de práticas bem-sucedidas que possibilitem a divulgação do saber técnico acumulado.

Arquitetura e Urbanismo nas favelas brasileiras - novos modelos e novas funções

Considerando a realidade e a carência de serviços básicos desses assentamentos urbanos e os níveis de pobreza de seus moradores, poder-se-ia supor que os aspectos estéticos não fazem parte de suas preocupações. Porém, uma observação mais minuciosa revela que, apesar da precariedade das construções, é possível identificar uma certa sensibilidade na aplicação de detalhes construtivos, no emprego de materiais, nas formas, nas estruturas - um justo desejo de qualificar e identificar seus espaços. Trata-se de aspectos que apontam para a possibilidade da arquitetura preencher um espaço nesse campo de atuação, o que pressupõe um debate sobre a arquitetura e sua função nesse novo setor.

Assim, os arquitetos brasileiros passaram a ter nesse contingente de moradores da cidade um cliente especial/coletivo a ser atendido, cujas características e necessidades, que tangenciam a esfera do "público",
diferenciam-no do cliente individual/privado, tradicionalmente conhecido. Esta questão, cada vez mais presente no cotidiano da vida profissional dos arquitetos, representa não só um grande desafio no que diz respeito à busca de soluções para intervenção numa realidade complexa - a realidade da diversidade - mas também, a possibilidade de atuação em um mercado de trabalho que, até a década de 80, era desconhecido para a maioria dos profissionais brasileiros.

Com a certeza, adquirida ao longo da última década, do papel privilegiado que a cidade desempenha em relação ao desenvolvimento social, econômico e cultural da humanidade, os arquitetos brasileiros têm assumido
responsabilidades crescentes por meio de propostas e projetos que têm como objetivo a promoção da qualidade dos espaços construídos por meio da integração das áreas periféricas e degradadas da cidade ilegal aos espaços urbanos da cidade formal regulamentada.

Para os arquitetos e urbanistas brasileiros trabalhar para esse segmento da população significa, cada vez mais, construir um projeto de futuro vinculado não só à construção de novas e dignas moradias, mas também à superação de um conjunto de déficits relacionados à infra-estrutura, acessibilidade, equipamentos e serviços públicos. Para a população de excluídos o significado de pertencer à cidade torna-se condição básica para a conquista do direito primordial à cidadania.

A cidade, quando é assumida como espaço privilegiado das relações humanas e como foro eminentemente democrático, permite que valores opostos coexistam e sejam confrontados, contradizendo os conceitos conservadores dos agrupamentos isolados. Este papel privilegiado que a cidade assume - espaço de convivência democrática - também está relacionado com a possibilidade da extensão de acesso às oportunidades a todos seus habitantes.

Favelas Upgrading - uma contribuição dos arquitetos para as cidades brasileiras

Como contribuição ao tema da 8a Mostra Internazionale de Architettura da Bienal de Veneza, que sugere a investigação sobre o futuro próximo por meio das respostas que os arquitetos têm apresentado frente aos desafios do novo milênio, a Fundação Bienal de São Paulo traz uma seleção de projetos de arquitetos brasileiros que, nos últimos anos, vêm buscando soluções para a reestruturação de espaços marginalizados de modo a permitir sua integração ao território e à estrutura urbana da cidade formal e legalmente reconhecida.

A mostra brasileira é constituída por dois módulos: o primeiro trata de uma leitura da realidade destes assentamentos realizada a partir da visão de fotógrafos brasileiros retratando diferentes tipos de ocupações: a inserção das favelas na cidade, situações de risco, abrigos improvisados, "proteções" criadas sob viadutos, construções precárias sobre palafitas, favelas em áreas de risco e cortiços em prédios deteriorados.

A segunda ala do pavilhão foi destinada para mostrar exemplos de intervenções que caracterizam a atuação dos arquitetos frente a essa questão. Foram selecionados 23 projetos - de um universo bem mais amplo de
intervenções realizadas - para compor um outro mosaico - o de propostas que visam modificar a condição de precariedade das favelas. Esta parte da mostra caracteriza-se pela apresentação de urbanizações de favelas nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. São projetos implantados nos últimos cinco anos, selecionados, em sua maioria, por concursos públicos de arquitetura e que permitem ao visitante compreender o novo conceito de urbanismo e os novos métodos que estão sendo adotados para as intervenções em áreas pobres das cidades brasileiras.

Grande parcela dos projetos selecionados compõe um conjunto de programas de grandes dimensões que vêm sendo implantados nas principais cidades brasileiras. Atualmente, já alcançam um universo de centenas de favelas, objeto dos novos parâmetros urbanísticos de qualificação dos espaços que visam sua integração às áreas vizinhas e lhes conferem a condição e o reconhecimento como um novo bairro. O conceito central desse tipo de intervenção é o da permanência dos moradores e da garantia de continuidade dos investimentos realizados na construção da moradia.

As propostas de intervenção decorrem da identificação das características, demandas e expectativas dos moradores, levantamento este que resulta de um intenso trabalho de longo prazo realizado junto às comunidades afetadas. Além de apresentar soluções para os problemas de saneamento, drenagem, acessibilidade, estabilidade e eliminação de riscos, os projetos exploram a morfologia urbana e arquitetônica existentes, as condições topográficas e os terrenos disponíveis para criar um todo articulado, onde cada morador tenha acesso aos serviços básicos de infra-estrutura, aos novos equipamentos públicos e aos espaços coletivos. Essa necessidade de articulação de espaços e equipamentos públicos de forma a propiciar áreas de convivência social trata-se, na verdade, do desafio central no sentido de possibilitar o exercício dos processos de sociabilidade e cidadania.

Favela-Bairro (Rio de Janeiro), Guarapiranga e Lote Legal (São Paulo) e Novos Alagados (Salvador) - o novo urbanismo em construção

Apesar da história e culturas distintas, Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador têm em comum um cenário urbano de contrastes - resultado dos complexos e crônicos problemas que as principais metrópoles brasileiras, à
semelhança de outras tantas, enfrentam no seu cotidiano. Também têm em comum um conjunto de novas políticas urbanas que vêm sendo implantadas por meio de programas de grandes dimensões, caracterizados pela adoção de novos padrões urbanísticos que têm como base o conceito da permanência e fixação, em
contraposição ao da remoção e reassentamento.

O Programa Favela-Bairro, no Rio de Janeiro, os Programas Guarapiranga e Lote Legal, em São Paulo, e o projeto de Novos Alagados, em Salvador, buscam, de modo amplo e consistente, não mais a remoção compulsória das ocupações inadequadas visando simplesmente à erradicação dos assentamentos precários, onde vivem milhares de famílias, mas a sua integração urbanística como suporte básico para o desenvolvimento social e para a melhoria das condições de habitabilidade destas comunidades.  Como resultado essas áreas, antes degradadas, são integradas à cidade na forma de novos bairros.

Outra característica comum aos programas está relacionada aos novos métodos de elaboração dos projetos que têm como base um constante processo de mediações e readequações, conseqüência da realidade dos assentamentos e das reivindicações do conjunto dos moradores. Considerando as diferentes características morfológicas das ocupações - planos, morros, lindeiras a córregos, orlas de baía, entre outras - os projetos  apresentam peculiaridades relacionadas a cada situação e, portanto, são necessariamente diferenciados. A diversidade cultural das comunidades, fator relevante para a definição dos partidos arquitetônicos a serem adotados, aliada aos processos de participação democrática na definição dos rumos do projeto, também contribuem para garantir a diversidade das intervenções.

Os projetos apresentam como característica comum a preocupação com a qualificação dos espaços públicos de modo a assegurar o respeito às preexistências ambientais e culturais e  a diluição das fronteiras urbanísticas e simbólicas entre a área antes marginal e o bairro formal. Cria-se uma rede referencial de espaços públicos e atribui-se significado cultural a esses espaços, como fator decisivo para a vinculação desse novo bairro à cidade legalmente constituída.

A complexidade da diversidade - desafio central para o conjunto dos 23 projetos aqui apresentados (que representam a síntese de conjunto bem maior que vem sendo implantado nessas cidades) - resultou em mudanças significativas e de impacto positivo na qualidade de vida das cidades. Os assentamentos, antes degradados, assumem uma nova dimensão urbanística e social. Para os moradores, o acesso às qualidades e benefícios reconhecíveis até então apenas na cidade formal, eleva-os a uma nova condição de cidadania. Para a cidade apresenta-se uma nova possibilidade em que o tema da inclusão e integração passa constituir-se elemento decisivo no caminho do desenvolvimento social.
Nota
1
Texto sobre a representação brasileira na 8ª Mostra Internazionale di Architettura da Biennale di Venezia, 7 de setembro a 3 de novembro de 2002.
A mostra nacional contará com dois segmentos, o primeiro com Ensaios Fotográficos de André Cypriano, Lalo de Almeida e outros. O Segmento 2 conta com participações dos seguintes arquitetos e respectivos projetos: 1. Jorge Mario Jáuregui (Rio de Janeiro), Favela/Bairro - Fernão Cardim, Vidigal, Rio das Pedras, Fubá e Campinho; 2. Pablo Benetti (Rio de Janeiro), Favela/Bairro - Ladeira dos Funcionários, Divinéia e Quinta do Caju; 3. Archi 5 Arquitetos Associados - Alder Catunda, Bruno Fernandes, Octávio Henrique Reis, Pedro da Luz Moreira, Roberto de A. Nascimento (Rio de Janeiro), Favela/Bairro - Parque Royal e Complexo do Sapé; 4. Manoel Ribeiro (Rio de Janeiro), Favela/Bairro - Serrinha; 5. Casulo - Humberto Kzure-Cerquera Arquitetura e Urbanismo (Rio de Janeiro), Favela/Bairro - Favela Canal das Taxas; 6. ArquiTraço - Daniela Engel Aduan, Gerson Feres
Biscotto, Kátia Brakarz, Maria Cláudia Faro, Solange Carvalho, Tatiana Terry (Rio de Janeiro), Favela/Bairro - Projeto Bela Favela e Chácara Del Castilho; 7. Demetre Anastassakis (Salvador), Programa para Novos Alagados; 8. Paulo Bastos (São Paulo), Programa Guarapiranga - Imbuias e Jardim Floresta; 9. Raymundo de Paschoal Arquitetura e Planejamento Urbano (São Paulo), Programa Guarapiranga - Jardim Esmeralda e Iporanga; 10. João Walter Toscano, Odiléia Helena Setti Toscano, Massayoshi Kamimura, Guilherme Filipe
Toscano, Marta Maria Lagreca de Salles, Marcos Boldarini, Stetson Lareu (São Paulo), Programa Guarapiranga - Parque Amélia; 11. Tecton Planejamento e Assessoria S/C Ltda. - Pascoal Guglielmi  (São Paulo), Programa Guarapiranga - Viela do Colégio e Jardim Boa Sorte; 12. Portela Boldarini - Marcos Boldarini, Eulália Portela, Ronaldo Pezzo, Gláucia Varandas, Rita Canutti (São Paulo), Programa Lota Legal - Parada de Taipas 1 e 2, e Alpes do Jaraguá; 13. Marta Maria Lagreca de Sales, Marcos Boldarini e Stetson
Laureu (São Paulo), Programa Lota Legal - Morada do Sol.

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Queremos violência

Arthur Dapieve
Os três últimos sábados na vida deste carioca aqui.  No dia 20 de novembro, a equipe do guia "Rio Botequim" voltava de uma excursão pelos subúrbios quando trombou com o tradicional tiroteio noturno na Linha Vermelha. 
 
No dia 27, a equipe do GNT esperava cessar o tradicional tiroteio matinal na Rua Itapiru para começar a gravar o quadro "Sem controle". 
 
No dia 4 de dezembro, três amigos moradores do Jardim Botânico se queixavam que haviam sido acordados por um intenso tiroteio nas ruas do bairro. 
 
Contei-lhes que, lá pelas três da matina, o réveillon parecia ter sido antecipado em Laranjeiras, onde sou vizinho da Sra. Rosângela Matheus e do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da PM, tal a quantidade de fogos a saudar a chegada de pó num morro da região, difícil dizer se Pereirão, Vila Alice ou Cerro Corá na madrugada. 
 
Não tenho mais nenhuma indignação, nenhuma palpitação a lhes relatar.  O que me chamou a atenção nos três ou quatro episódios  - houve um outro tiroteio, vespertino, na subida para Santa Teresa, coisa banal, ouvida de casa -  foi a aguda sensação de normalidade.  Em mim, nos outros, nos circunstantes.  Estávamos em paz. 
 
Na altura da Favela da Maré, confrontados com o fogo cruzado, os carros e ônibus davam meia-volta, simplesmente, organizadamente, resignadamente, sem pânico ou buzinas.  No desfiladeiro do Rio Comprido, os moradores continuavam a ir às compras entre as salvas de AR-15.  Meus amigos lamentavam mais ter perdido o sono do que a tranqüilidade.  E eu me regozijava de que ainda não tinha dormido quando do foguetório. 
 
Ocorreu-me, então, o seguinte. 
 
Tanto os defensores da tolerância zero quanto os pregadores da tolerância máxima tratam a violência como uma disfunção do sistema.  Se sanadas determinadas falhas (falta de policiamento, falta de condições dignas de sobrevivência etc.), ela naturalmente desapareceria, este é o seu credo comum.  Era o meu.  No último mês, caiu-me a ficha:  a violência é o sistema ou, ao menos, o seu mais rentável produto. 
 
Lembrei-me da frase "guerra é paz". 
 
Uma das características dos grandes livros é que eles miram no que vêem e (também) acertam no que não vêem.  George Orwell tinha em mente os horrores do nazismo e do stalinismo quando, em 1948, escreveu "1984".  No processo, explicava a Guerra Fria, a paz armada entre as superpotências nucleares, cada qual com sua órbita de influência.  Contudo, talvez sem plena consciência disso, Orwell criava um modelo válido na interpretação de certas situações de força.  Inclusive as do Brasil e, em particular, do Rio. 
 
Em "1984", o mundo tem três superpotências:  Oceania (Américas, Austrália, Inglaterra, África do Sul), Eurásia (Europa e Rússia) e Lestásia (China e Japão).  Numa ou noutra aliança circunstancial, elas vivem em estado de guerra permanente entre si, apesar de não terem mais lançado mão de seus arsenais atômicos depois da guerra de 1950. 
 
O herói do livro é Winston Smith, burocrata subalterno do Ministério da Verdade, encarregado de reescrever continuamente os arquivos do jornal londrino "The Times" de modo que o passado não desminta o presente.  Certo dia, entretanto, ele descobre um livro proscrito:  "Teoria e prática do coletivismo oligárquico", de um certo Emmanuel Goldstein. 
 
Às escondidas, Smith lê que, no seu mundo, nada é bem o que parece.  Constatado o equilíbrio de forças entre as três superpotências, o único objetivo da guerra crudelíssima entre elas é a própria guerra crudelíssima, (i)mobilizadora das consciências, com a conseqüente eternização do status quo das oligarquias de Oceania, Eurásia e Lestásia. 
 
"A guerra, tornando-se contínua, mudou fundamentalmente de caráter", escreve Golstein/Orwell.  "No passado a guerra era, quase por definição, algo que mais cedo ou mais tarde chegava ao fim, em geral em inconfundível vitória ou derrota. (...)  A guerra de hoje é, portanto, uma impostura.  É como os combates entre certos ruminantes, cujos chifres são dispostos em ângulo tal que não podem ferir um ao outro."  E aqui estamos quase ao final de 1984 + 20. 
 
Nossas Oceania, Eurásia e Lestásia atendem por tráfico, polícia e Estado.  Os traficantes eternizam seu poder sobre as comunidades não só pela violência mas como alternativa local à polícia e à ausência do Estado.  A polícia, por sua vez, financia sua necessidade para a sociedade com sua truculência, com mineiras, venda de armas tomadas de uma facção criminosa a outra, vista grossa ao transporte de drogas aos morros, que não as produzem, etc.  O Estado, entendido como executivos, legislativos e judiciários, todos no mesmo saco, não tem interesse em acabar com tal situação, seja valorizando a polícia, seja dando à população uma vida decente, porque a guerra é rentável politicamente, quando não pela ligação direta com o crime.  O Estado ainda quer criar o Ministério da Verdade. 
 
A violência, por conseguinte, não é uma anomalia do sistema.  É seu ganha-pão.  Por isso, de nada adianta a óbvia constatação de que há bons PMs ou deputados.  Eles são neutralizados pela estrutura.  Acabar com a carnificina, então, é acabar com este Brasil.  Pergunta a ser respondida, clássica nos romances policiais:  a quem interessa o crime? 
 
Há muita teoria conspiratória no que está escrito acima.  Temo, porém, que só ela explique por que eu quero paz, tu queres paz, ele quer paz  - mas nós queremos violência

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A favelização das cidades

Jornal do Brasil, 21 de dezembro de 2004

Entre as muitas bombas-relógio que ameaçam a sociedade brasileira, a crise habitacional é, a cada dia, mais visível. Desde as favelas, até os barracos esparsos construídos às margens dos rios, embaixo de viadutos, ou sob redes de alta tensão, a precariedade das moradias é atestado vivo e crescente das disparidades sociais e da ausência de uma política nacional de habitação, extinta no momento em que o BNH foi liquidado, na década de 80.

Moradias precárias com famílias inteiras dormindo num só cômodo, sem água, esgoto e coleta de lixo. Altas taxas de desemprego. Abandono do poder público, que só costuma ser notado pela brutalidade das operações policiais. Deste quadro se aproveitam as organizações criminosas, que transformaram as favelas em bases de operações.

A política habitacional tem sido uma sucessão de equívocos e omissões, ao longo das últimas décadas. A remoção pura e simples de favelas em áreas valorizadas, com os moradores sendo transferidos para conjuntos
habitacionais periféricos, longe do mercado de trabalho, criou guetos urbanos, igualmente geradores de violência.

A tentativa de enquadrar os mais pobres nas leis formais do mercado, no momento de pagar as prestações da casa própria, levou a um colossal calote, uma das causas da falência do antigo Sistema Nacional de Habitação.
Criou-se, então, o programa de lotes urbanizados, de custo bem mais baixo, e por isso mais acessível. Já era tarde. O rombo promovido pelo calote em massa havia levado o banco ao descrédito.

Outro erro fatal foi a dissociação entre a política habitacional e a necessidade de um planejamento urbano integrado, que tornassem os programas mais funcionais.

A construção de moradias populares deve ser parte de um plano diretor da cidade, que inclua uma rede de transportes capaz de assegurar acesso fácil e barato para o trabalho. É tarefa prioritária reorganizar a expansão urbana, sob pena de todos ficarmos imobilizados em cidades que assustam mais do que funcionam.

Esta visão se opõe a algumas políticas segregacionistas, que isolam os mais pobres em mega conjuntos, nas áreas mais longínquas da periferia.

Sem infra-estrutura adequada e sujeitos a condução cara e demorada, esses monstrengos degradam ainda mais as condições de vida dos habitantes. Os exemplos se sucedem de conjuntos deteriorados, depredados ou simplesmente abandonados pelos seus moradores.

Só tardiamente a burocracia do Banco Nacional de Habitação descobriu que os mais pobres simplesmente não tinham condições de adquirir uma casa no mercado formal.

Após 18 anos de letargia, urge repensar o sistema. O mecanismo de financiamento da casa própria deve ser adaptado à realidade do país. Os subsídios para as classes de poder aquisitivo mais baixo precisam ser estendidos. Assim também, a construção civil deve ser incentivada a participar desse esforço, já que até agora só o nicho de mercado para as classes A e B tem se mostrado mais atrativo.

Moradias dignas para todos numa cidade mais humana, que tenha normas urbanas viáveis e respeitadas, sob condições mínimas de segurança. O que parece utopia pode pelo menos ficar menos distante, com medidas simples e eficientes.

O dinheiro da privatização de serviços de água e esgotos, por exemplo, pode ser acoplado à obrigatoriedade de utilizar os recursos decorrentes em programas de habitação e transportes.

A política de aproveitar áreas subutilizadas nos centros urbanos, com infra-estrutura já instalada, tem mostrado bons resultados, pois é mais barata que a transferência de favelados para áreas periféricas. Muitas
destas áreas são terrenos públicos, o que torna o programa ainda menos oneroso.

A reforma urbana, conduzida com seriedade, sem demagogia, é, enfim, a melhor das práticas preventivas, nas áreas da saúde, segurança e educação. Sua implantação, sobretudo nas maiores metrópoles, é urgente, antes que se transformem num grande aglomerado de favelas.

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Novo governo I

Jornal O Globo, 10/outubro/2004

'O problema das favelas é a taxa de fertilidade'

Para Cesar, se não houver planejamento familiar e programas federais de habitação, comunidades continuarão crescendo

A roupa alaranjada usada na campanha eleitoral está de volta ao armário. Reeleito no primeiro turno, o prefeito Cesar Maia reabilitou a camisa e o casaco azuis, uniforme que lembra o do ex-governador Leonel Brizola. Mas ainda está despachando no Palácio da Cidade, em Botafogo, onde recebeu O GLOBO e costura alianças politicas para o segundo turno com candidatos do interior. Apesar da opulência do palacete, que já abrigou a embaixada da Inglaterra, o prefeito diz que ali não se sente confortável, preferindo a praticidade do Centro Administrativo, na Cidade Nova:


- Em 1993, abri uma gaveta e encontrei um documento do ex-prefeito Marcello Alencar de 1989. Liguei para ele e perguntei a razão do esquecimento. Ele me recomendou sair daqui, lembrando a falência do Rio no período Saturnino Braga, que despachava no palácio - conta Cesar. - Para administrar o Rio é preciso estar próximo dos secretários. O palácio é bom para recepção.

Para Cesar, foi-se o tempo de elogios ao ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani e das citações sobre a América Latina. Ele agora conta e reconta a história do Rio e as suas ações na prefeitura desde 1993. E fala pouco sobre o que pretende realizar. Cesar promete acabar com a Superintendência Municipal de Transportes Urbanos (SMTU) e não alterar o IPTU. Diz ainda que pretende fazer mudanças no Plano Lúcio Costa, para conter o esvaziamento do Centro.

Ainda este fim de ano, quer aprovar projetos na Câmara na área urbanística e regulamentar parcerias público-privadas que tirem planos de transporte da gaveta. Para conter a favelização, a lista inclui a proposta de liberar a construção de condomínios no Alto da Boa Vista. As favelas, reconhece, tendem a continuar a se expandir e uma das razões é a alta taxa de natalidade. Embora não comente, ele enfrenta outra dificuldade: a vitória de Nadinho, eleito vereador pelo PFL do prefeito. Nadinho é líder comunitário de Rio das Pedras, em Jacarepaguá, uma das favelas que mais crescem no Rio.


O que a população pode esperar de seu terceiro mandato? O Cesar Maia impetuoso da primeira gestão, ou um prefeito mais racional com intervenções mais pontuais da segunda administração?

CESAR MAIA: Do ponto de vista dos grandes vetores de intervenção da cidade, como o Rio Cidade e o Favela-Bairro, o segundo governo foi uma continuidade do primeiro. Isso se complementa no segundo governo com a idéia da reconversão do Rio numa cidade de serviços, de entretenimento, de lazer, culturais e esportivos. A grande questão dos governos não são as ações operacionais. É a visão estratégica. O governo Lacerda, por exemplo, teve acertos na área administrativa, nos investimentos de infra-estrutura. Mas cometeu um erro de diagnóstico. O Hélio Beltrão, que foi secretário de Planejamento do Lacerda, identificou que a economia era decadente.

O senhor acha que o Rio é uma cidade decadente?

CESAR: Do ponto de vista social e cultural, é uma cidade ascendente. Os indicadores sócio-culturais são espetaculares.

A sensação do carioca é de que as favelas crescem, de que a cidade está perdendo espaços urbanos...

CESAR: Há dois problemas de percepção. Um deles é a violência, que cria uma sensação de decadência, de pânico. Por outro lado, o Rio é uma cidade que só é percebida pelos intelectuais no corredor da Zona Sul e por meio de intervenções focalizadas. Eles conhecem Vigário Geral, a Mangueira. Não conhecem boa parte da Zona Norte e a Zona Oeste. Voltando ao Lacerda, ele teve um erro estratégico, que foi imaginar o Rio como pólo industrial. O momento era de iniciar a reconversão para uma cidade de serviços.

O senhor acha que já houve essa reconversão do Rio?

CESAR: De jeito nenhum. O Rio vive um ciclo de decadência econômica de longo curso.

Chegamos ao fundo desse ciclo econômico?

CESAR: Em economia e em sociedade não existe fundo. Quando se diz que a violência chegou ao máximo, sempre pode piorar.

O senhor tem algum projeto para impedir a expansão das favelas?

CESAR: O grande problema do crescimento das favelas, a partir dos anos 80, é a taxa de fertilidade da favela, superior à da não-favela. Outra questão é a migração, que na época de recessão é muito forte e só pode ser resolvida com intervenções metropolitanas.

Como a prefeitura pode se mexer num ambiente desses? O fato é que as favelas estão crescendo...

CESAR: As favelas vão continuar crescendo no Rio enquanto a taxa de fertilidade da favela for muito maior do que a da não-favela. Uma nova classe média também se instalou na favela. Ela é fortemente atingida pela falta de uma política efetiva de habitação popular no Brasil. O processo de recessão sistemática foi jogando a classe média para baixo. Agora é que o governo federal começou a obrigar os bancos a cumprirem a lei e a aplicar recursos na área habitacional.

As prefeituras não poderiam ser mais ativas em termos de habitação popular?

CESAR: Só se você tiver uma base de financiamento forte. O que as prefeituras em geral podem fazer são urbanizações na margem e construir alguma coisa, como temos feito.

Há um projeto da prefeitura de permitir condomínios de classe média em encostas para impedir a favelização. O senhor pretende implementá-lo?

CESAR: Houve resistência em algumas áreas. Então, suprimi Santa Teresa e Gávea. Fiquei com o Alto da Boa Vista. Neste fim de ano, decidi me empenhar para tentar aprovar o projeto de lei flexibilizando a construção no Alto. Flexibilizar não é conceder em gabarito. É inviável ter uma casa no meio de um grande terreno. Queremos permitir a construção de condomínios.

Isso seria uma solução para conter as favelas? Poderia ser estendida a outras áreas da cidade?

CESAR: A questão não é conter a favela, mas a degradação. Hoje, o que se chama de favela é uma área que é demandada por setores médios. As favelas que vão se consolidando têm um perfil social razoável.

Mas a cidade não pode se contentar com isso...

CESAR: Não estou dizendo isso. Estou dizendo o que está acontecendo. Qual a alternativa? A favela é um produto de remoções, que foram desintegradas de outras ações.

Mas qual a ação que o senhor vai implementar?

CESAR: Isso não é assim, não. Você é seu pai, seu avô, seu bisavô. Uma cidade é muito mais que isso. Uma cidade se constitui em 200, 300 anos. Não num peteleco jurídico. Fui constituinte em 1988. Nós, constituintes, resolvemos o problema da pobreza, da falta de educação, na Constituição. E eles estão aí. Você precisa ter fôlego para realizar intervenções.

A proporção de adolescentes grávidas nas favelas é elevada. O senhor desautorizou um programa de distribuição de preservativos para adolescentes. Poderia rever essa decisão?

CESAR: Não é tão simples. Há uma proporção muito elevada de partos de jovens pobres com menos de 19 anos, 20% mais ou menos. Mas ter um filho é um momento sublime para a mulher. Para uma mulher pobre, esse é o momento da vida dela. Ela quer repeti-lo muitas vezes. Então, é uma questão de intervenção em nível cultural. A prefeitura tem, nas escolas, um programa de orientação. Nos nossos postos de saúde também temos um programa. Mas inevitavelmente é necessário o envolvimento das igrejas para a redução da taxa de fertilidade nas favelas. As igrejas têm uma capilaridade que ninguém tem. Estou falando de planejamento familiar, não de controle da natalidade.

No caso dos transportes, o que a prefeitura pode fazer para aperfeiçoar o sistema?

CESAR: O ideal é que todo o transporte sobre trilhos dentro do município fosse concessão municipal. Já pedi isso aos governadores, mas não consigo. Na atual divisão, a prefeitura ficou com o transporte rodoviário. Até 1992, muitas vias do Rio eram estaduais. Foi o governador Brizola quem municipalizou a Avenida das Américas, a Ayrton Senna, a Lagoa-Barra, o Viaduto Paulo de Frontin, a Perimetral, a Avenida Automóvel Clube (atual Martin Luther King Jr). Só falta a Linha Vermelha.

O senhor vai continuar pleiteando a Linha Vermelha?

CESAR: Há muito tempo pleiteio. A prefeitura tem condições de manter essas vias. Além disso, as parcerias com o metrô estão dando certo. Primeiro, foi a integração na Zona Sul, com ônibus do próprio metrô. Depois, as empresas de ônibus se convenceram de que podiam fazer a integração em outros lugares. Implantamos Tijuca e Muda. Depois, entraram Grajaú e Andaraí. E já foi aprovada a ligação de Del Castilho ao Fundão.

O senhor tem novas propostas para o sistema de transportes?

CESAR: Na Zona Oeste, ele está inviabilizado, porque a tarifa única para funcionar precisa de uma câmara de compensação, que é privada e implodiu. Em junho, os empresários de ônibus decidiram entregar as linhas da região. Dei um tranco forte neles: o Ônibus da Liberdade (transporte escolar) entrou para suprir a ausência de ônibus. É um subsídio cruzado, embora não seja direto às empresas. A prefeitura paga ônibus para que as crianças possam chegar às escolas. Preciso ainda oferecer à população uma saída na Central. Se a população na Central puder pegar o metrô e ir para onde desejar, está feita a integração.

Estamos, então, numa sinuca nessa questão dos transportes? Há problemas econômicos difíceis de superar...

CESAR: Sinuca, mas não é de bico. O governo federal tem recursos da Cide para a recuperação de estradas e para o transporte metropolitano. Ele precisa aplicá-los. Da minha parte, alterei o projeto de lei que oferecia como garantia para a Linha 4 a arrecadação da dívida ativa. Agora, o serviço da dívida servirá como garantia para parcerias público-privadas em transporte sobre trilhos e rodoviário. Quero aprovar a lei este ano.

Seria o caso de fazer uma parceria para implantar o corredor T5 (Barra à Penha) para facilitar o deslocamento durante o Pan-Americano?

CESAR: O Pan será na segunda quinzena de julho e, com gerência de tráfego, não haverá problema de transporte. Hoje, no Rio, o problema de transportes não é grave. Mas daqui a dez anos será gravíssimo. Estamos na fronteira dos investimentos para o Rio não dar um nó. Para o corredor T5, fiz a licitação do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) em 1994. Dizem que houve pressão de empresários de ônibus e nenhuma empresa participou da licitação. Consegui alargar o prazo de concessão na Câmara. Agora, as empresas de ônibus estão se dizendo dispostas a participar da licitação. Se isso é verdade, a prefeitura faz a obra e as empresas, a operação com ônibus adequados àquele corredor.

'Eu sou amado de uma maneira racional'

Prefeito diz que informa, critica e até defende os seus secretários, que se traumatizam com notícia negativa

No atual mandato, o senhor prometeu levar ordem à Zona Sul e progresso à Zona Oeste. Mas ficou uma impressão de que, no caso da ordem, não fez o papel de dona de casa. A cidade tem problemas de conservação. O que houve?

CESAR MAIA: Em um período de recessão, você tem uma impressão negativa da cidade devido à migração de indigentes, a população de rua e ao aumento do número de camelôs. Então, há uma sensação de que a desordem aumentou. A gente está gerindo num período de recessão. Quando a pessoa tinha alternativa, minha política de ordem urbana foi muito dura. Agora eu tive que flexibilizar.

Mas faltam detalhes, como por exemplo instalar câmeras nos túneis da Lagoa-Barra para facilitar o socorro. O senhor não sente necessidade de aprimorar?

CESAR: Não sei se alguém tem um sistema capaz de captar a necessidade dessas intervenções. Sabe como funciona o nosso sistema de ouvidorias? São milhares de pessoas que acionam nossas ouvidorias e têm uma resolutividade de 80%. O prefeito também é uma espécie de ouvidor.

E na futura gestão? Qual será o mote? A ordem chegará com a contratação de 120 fiscais de posturas municipais já autorizada pela Câmara?

CESAR: Um dos muitos erros do ex-prefeito Saturnino Braga foi acabar com esta categoria de fiscais. Quem está fazendo a fiscalização de posturas é a Guarda Municipal, quando na verdade a Guarda tinha que apoiar.

A cidade não está muito escura? Segundo a Rio Luz, a carência é de 35 mil pontos.

CESAR: Não acho. Vá a Paris, ou qualquer cidade do mundo e compare com o Rio de Janeiro. Eu governo sempre olhando para trás. Sei que está melhorando. Quantos pontos de luz instalamos nos últimos 12 anos? Nós dobramos. A Rocinha parece um presépio à noite. Quando a gente olha para frente tem a sensação que falta muito. É verdade. Mas temos que olhar para trás e ver o que já foi feito.

Além dos projetos urbanísticos, o senhor tem algum outro na lista de prioridades?

CESAR: Vou encaminhar à Câmara de Vereadores um projeto que acaba com a SMTU (órgão que fiscaliza ônibus, táxis e o transporte alternativo) como autarquia. Sua estrutura será absorvida pela Secretaria municipal de Transportes. Estudamos também uma revisão do Plano Lúcio Costa para evitar que se continue a tendência de escritórios se transferirem do Centro para a Barra da Tijuca.

Acabar com a SMTU levaria ao fim das denúncias de corrupção e de falta de estrutura para trabalhar no órgão?

CESAR: Acho que vai dificultar desvios de conduta. Todos os técnicos da secretaria e da SMTU serão transferidos para um prédio que trocamos com o Senac, em Botafogo.

E quanto ao IPTU? A atual planta de valores (usada na base de cálculo do Imposto) é de 1996. O senhor pretende atualizar a legislação?

CESAR: Na hora que sentirmos que a planta de valores está defasada contra o contribuinte, nós iremos mudar. Neste momento não é o caso.

Na área cultural houve avanço nos setores de cinema e audiovisual. Mas, em artes plásticas, tem algum plano?

CESAR: Nós estamos recuperando. Mas como formular isso? A primeira idéia era o projeto do Museu Guggenheim. Todos os grandes artistas cariocas eram a favor.

O senhor ainda quer construir o Guggenheim?

CESAR: Não dou o caso por perdido. Depende da Justiça. Fiz uma proposta para a Fundação Guggenheim e o Jean Nouvel (arquiteto francês que projetou o museu) aceitou, mas a direção do museu não. Queria separar o contrato em dois, para fazer o projeto já que a decisão judicial se referia ao contrato com a fundação. Se eles tivessem concordado, haveria possibilidade de construir o museu mesmo antes da decisão final da justiça sobre o acordo.


Seu melhor desempenho nas urnas foi na Zona Sul. O senhor acredita que está relacionado com a política preservacionista das Apacs?

CESAR: Em parte. As Apacs neutralizaram o Conde (Luiz Paulo Conde, candidato do PMDB) como alternativa, pois o jogaram para o eleitorado do Garotinho. O Conde desapareceu na classe média. Na região, o voto foi de caráter mais político para evitar que o Crivella (candidato do PL) chegasse ao segundo turno.

O resultado das urnas mostra que, apesar de eleito no primeiro turno, o senhor não ganhou um cheque em branco da população do Rio ...

CESAR: Aqui no Rio é assim. No dia seguinte você precisa começar a ganhar a eleição de novo. Vencer a eleição significa ganhar o apoio da população para governar.

Como o senhor define sua relação com o Rio? O senhor não é um carioca típico.

CESAR: Sou a caricatura do carioca em Paris: alegre. Preservo os momentos em que eu preciso que essa simbologia seja marcante. E um deles é no carnaval quando me comporto como se tivesse menos 20 anos. Acompanho os desfiles e não vou dizer que sambando, pois seria um exagero da minha parte. Mas me mexo. Quantas pessoas me vêem na avenida? Por baixo, 80 mil.

E como o senhor definiria a sua relação com a imprensa?

CESAR: É muito boa. Hoje uso muito a imprensa como controle de qualidade. A imprensa não é um partido político. Tem a lógica dela, e nós a nossa. Diariamente leio os jornais pela manhã. Informo ao secretariado o que achei importante e critico aquilo que não achei importante. Defendo o secretariado, que se traumatiza com notícia negativa. Explico qual é o papel do jornal, que não existe um comitê central dos jornais decidindo o que vai sair. Isso permanentemente.

O senhor se sente amado pelo carioca?

CESAR: Eu sou amado de uma maneira racional. A população sabe que eu posso fazer as coisas que precisam ser feitas. Mas também já fui vaiado, na época de baixa popularidade, no primeiro governo. O negócio de factóide gerou desgaste. Não estavam enxergando que o governo estava agindo.

Mas o senhor era muito marqueteiro, prefeito...

CESAR: Aquela visibilidade (do factóide) me ajudou a entrar no imaginário da população. Mas corri riscos grandes. Ficava entre o louco e o realizador; o corajoso e o idiota.

Qual será seu lema agora?

CESAR: Tenho que pensar em três coisas nesta futura gestão. Em primeiro lugar, na cidade. Além disso, no meu grupo político. E, por fim, humildemente, em mim. Em 2008, terei 63 anos.Tenho ambições nacionais ou não? Vou aproveitar essa força em nível regional, esperar a próxima eleição de dois senadores e me eleger com facilidade? Eu tenho que ser simplesmente a quarta etapa do mesmo governo, que acrescenta alguns aditivos? Como o caso por exemplo da expansão da ofertas serviços de lazer, de cultura, de entretenimento. Seria só isso: expandir? Ou preciso agregar uma imagem para lá na frente ter um quadro de alternativas maior do que aquele que eu tenho hoje? Estamos pensando.

Talvez para se candidatar à presidência da República?

CESAR: Aí não é o caso. O PSDB mostrou uma posição hegemônica nesse momento. Nós, do PFL, teremos que nos agrupar no vetor de centro para sermos em algum momento uma alternativa de poder. E para isso essa aliança com o PSDB foi bastante importante.

Qual vai ser o papel do vice-prefeito eleito (Otávio Leite) e do PSDB no seu governo? O PSDB vai ficar mesmo com três secretarias?

CESAR: Se o Otávio Leite quiser ser secretário, terá que ocupar uma pasta de primeira grandeza. O PSDB terá de fato três secretarias, sendo que duas efetivas e uma extraordinária.

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