Já tínhamos no Rio de Janeiro o Triângulo das Bermudas, agora
construímos a Faixa de Gaza. Como naquele pedaço do Atlântico
entre Flórida, Porto Rico e Bermudas, na área que tem por
fronteiras Vila do João, favela da Maré e Linha Vermelha
desaparecem coisas e pessoas. Com diferenças: no Triângulo de
lá, tenta-se há quase um século distinguir a realidade da
lenda nos relatos das tragédias. Aqui, não: é tudo verdade.
Quem já esqueceu dos quatro paulistas assassinados quando
tentavam chegar à Linha Vermelha? Queriam tomar a via Dutra e
voltar para casa, depois de uma tarde de domingo vendo o
Corínthians no Maracanã, mas entraram na Vila do João. Ali
mesmo, sem mais aquela, traficantes os julgaram e condenaram à
morte pelo crime de errar o caminho. E ficou por isso mesmo.
Não é de hoje que a cidade formal sucumbe sob territórios cada
vez maiores de amplo domínio do crime. A Faixa de Gaza,
segundo o Globo assim chamada em referência ao lugar onde se
repetem escaramuças entre israelenses e palestinos, é apenas a
mais extensa dessas áreas. Há mais de 10 anos essa é uma
discussão recorrente. Começou com a construção da Linha
Vermelha, em 1991, quando o expediente das empreiteiras em
cada trecho teve de ser discutido com o tráfico. O mesmo se
repetiria anos depois na abertura da Linha Amarela. Não é
segredo que, em todas as favelas dominadas por traficantes, as
intervenções do programa Favela-Bairro são pacientemente
negociadas com os chefes das quadrilhas através das
associações de moradores. Foi assim no Vidigal, na Mangueira,
na Mata Machado e em tantas outras. Quem quiser saber mais é
só perguntar ao secretário Chiquinho da Mangueira, que tentou
até fixar horário para a polícia subir o morro que lhe deu
apelido. O tráfico manda e o poder público obedece.
O assustador, agora, é que a Faixa de Gaza materializa espaço
maior que a área urbana de muitas das cidades brasileiras. Une
dois bairros distantes entre si (São Cristóvão e Acari), corre
pela avenida Brasil (principal via
de entrada do Rio), segue pelas linhas Vermelha e Amarela, e
envolve as favelas do complexo da Maré. São Cristóvão já foi o
bairro com maior arrecadação de ICMS no Rio. No final dos anos
1980 era tão importante que se chegou até a fundar por lá uma
Associação Comercial. Mas ao engolir São Cristóvão, a cidade
do crime mostra que esse domínio chegou à beira do Centro do
Rio. Não à toa é o Centro a nova região dos mais variados
crimes.
Guardas municipais e camelôs se espancam semanalmente, PMs
achacam motoristas de táxi todos os dias, jóias roubadas são
vendidas pelas calçadas, onde também se oferecem roupas, CDs e
DVDs piratas, cargas roubadas, e cigarros e quinquilharias
contrabandeadas.
Da mesma maneira que no território hoje ocupado pela Faixa de
Gaza multiplicam-se prédios fechados por empreendimentos que
bateram em retirada, no Centro da cidade já se registra a fuga
de empresas. Umas tantas tomaram o rumo de São Paulo por
acreditar que lá trata-se da segurança com mais seriedade.
Outras, mudaram-se para a Barra da Tijuca, onde já brotam os
primeiros sinais da deterioração urbana que já toma quase toda
a cidade.
Prefeitos, vereadores, governadores e deputados costumam ter
para esse fenômeno um universo de explicações. Nenhuma, porém,
que revele o interesse eleitoral que os move. Nada que leve
aos motivos por que fazem vista grossa para o avanço de todas
as irregularidades até o ponto em que elas se cristalizam. A
partir daí fica tudo mais tranqüilo. Na mesma sombra que serve
ao avanço do crime, os legisladores produziram leis nas quais
se escudam os administradores, para não devolver a cidade
formal ao ir e vir dos que pagam a conta.
Políticas sociais excludentes, ausência de planejamento e acesso ao espaço habitacional ditado pelos interesses da indústria imobiliária são os motores do drama habitacional na maior cidade do
país. Metade da população, ignorada ou deliberadamente excluída, resolveu o problema situando-se à margem da lei, habitando loteamentos irregulares, áreas de mananciais, qualquer nesga de terra ou abrigo
disponível. Quase 20% dos paulistanos são favelados e 6% moram em cortiços
"Na questão habitacional, é
importante
saber que
nem tudo é
déficit de unidades
habitacionais. O menor problema
é a unidade habitacional. Se
houver ajuda técnica e algum financiamento,
isso é facilmente solúvel.
O problema é a construção
de cidade, porque a pessoa não
mora dentro de quatro paredes, ela
mora na cidade", adverte a professora
Ermínia Maricato, coordenadora
do Laboratório de Habitação
e Assentamentos Humanos (Lab-
Hab) da Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da USP e ex-secretária
municipal da Habitação.
"Se a casa não tiver água, esgoto,
acesso ao transporte, escola
próxima, drenagem, ela não é viável,
e São Paulo tem sido construída
como uma soma de unidades
habitacionais que forma um depósito
de gente. Isso não é cidade.
Em São Paulo, parte do déficit é
déficit de cidade, de infraestrutura
urbana, de programas sociais, de
área de lazer, de recuperação do
meio ambiente, dos córregos, mananciais,
de coleta de lixo — e parte
é, se você não produz novas moradias,
déficit habitacional."
No entender da professora, o
crescimento de favelas em São
Paulo é absolutamente exponencial.
"No começo da década de 70
tínhamos 1% da população morando
em favelas; em 1987, 8%; em
1993, 19%, ou seja, nosso processo
de urbanização é uma máquina de
produzir favelas. É uma máquina
de exclusão. Se não produzir novas
moradias e só urbanizar favelas, é
um processo de enxugar gelo."
Pesquisas realizadas pelo Lab-
Hab e pela Escola Politécnica propõem
soluções integradas, que são
mais racionais, menos onerosas para
os cofres públicos e mais justas
socialmente. Entre as principais linhas
de pesquisa, destinadas a subsidiar
políticas habitacionais coerentes,
estão a recuperação da região
central da cidade, a avaliação
da reurbanização de favelas, o problema
da ocupação de áreas de
proteção de mananciais e a questão
do preço do solo urbano.
A revitalização do Centro por
meio de sua requalificação como
local de moradia é uma das mais instigantes propostas geradas pelo
LabHab. Articular ações de defesa
do patrimônio público, remodelação
do espaço público e revitalização
da atividade econômica com a
questão habitacional é a saída
apontada pela professora Helena
Menna Barreto para o problema
da degradação de toda a região
central da cidade de São Paulo.
No documento
Habitação no Centro de São Paulo: Como Viabilizar essa Idéia?, que preparou para
subsidiar seminário realizado em
agosto deste ano, Helena Menna
Barreto observa que não existe limite
definido para as chamadas
áreas centrais da Capital.
"Podemos dizer que são bairros
situados no Centro histórico e seu
entorno, caracterizados pela tradição
de uso misto, perda de atividades
e de população, desvalorização
imobiliária, presença de edifícios
abandonados e espaços públicos utilizados",
o que incluiria "os atuais
distritos censitários da Sé, República,
Santa Cecília, Liberdade, Parí,
Cambuci, Brás, parte do Bexiga,
Barra Funda, Belém e Mooca".
O chamado Centro Expandido
incorpora também a Aclimação,
Bela Vista, Cerqueira César, Consolação,
Indianópolis, Jardim
América, Jardim Paulista, Lapa,
Liberdade, Perdizes, Pinheiros,
Santa Cecília, Vila Madalena e Vila
Mariana. A Tabela 1 mostra o
decréscimo da população no Centro
Histórico e no Centro Expandido,
nas décadas de 70 e 80.
Helena entende que só a ação
do poder público pode reverter a situação
do Centro, defendendo que
é nessa região, e não na periferia,
que se devem aplicar os recursos
públicos que viabilizem a moradia
popular. "A política até agora foi de
sempre produzir conjuntos habitacionais
na periferia, e normalmente
fazia-se isso porque ficava mais barato
o terreno", diz a pesquisadora.
"Na verdade, é um engano, porque
acaba ficando tudo muito caro por
precisar se levar também a infraestrutura
para essas regiões".
Desse modelo desgastado de
política habitacional resulta a cria-
64
Setembro 2000 Revista Adusp
A construção
de conjuntos
habitacionais
na periferia é mais
cara e só resulta na
criação de bairros
dormitórios
65
Revista Adusp Setembro 2000
ção de "bairros dormitórios", desaparelhados
de equipamentos sociais,
repletos de problemas, e cuja
população é obrigada a deslocar-se
por longas distâncias para se dirigir
ao trabalho.
A idéia de reabilitação do Centro
para fins de localização de moradias
sociais foi testada pelo
Laboratório
de Projeto Integrado e Participativo
para a Requalificação de
Cortiços
, projeto interinstitucional
que estudou a possibilidade de revitalizar
prédios abandonados,
mantendo as pessoas que já estão
lá e incorporando um maior contingente
populacional.
Trata-se de garantir que famílias
de baixa e média renda possam adquirir
imóveis financiados no Centro,
e neles permaneçam. A pesquisadora
aponta a necessidade de um
plano de obras públicas na região,
com financiamento facilitado.
A Caixa Econômica Federal
(CEF) e a Companhia de Desenvolvimento
Habitacional e Urbano
do Estado de São Paulo (CDHU)
possuem recursos para aumentar o
financiamento. O Programa de Arrendamento
Residencial (PAR), da
CEF, por exemplo, financia imóveis
de até R$ 20 mil por um período
máximo de 15 anos para a quitação.
Para a professora, o programa
deveria ser flexibilizado para que
Na tese de mestrado "Rendimentos obtidos na
locação e sublocação de cortiços: estudo de casos
na área central da cidade de São Paulo" (Politécnica,
1999), baseada em pesquisa realizada em 1998
em sessenta imóveis encortiçados do Bom Retiro,
Luís Kohara fornece dados valiosos sobre o custo
da moradia em cortiços centrais
e suas condições de conforto.
A área média dos domicílios
encortiçados, sem considerar banheiros
e áreas comuns, é de
11,9m2. Entre as 120 famílias
pesquisadas, 78,9% residem em
espaços inferiores a 15m2 e
77,8% em apenas um cômodo. O
número de bacias sanitárias é de uma para cada
vinte e cinco pessoas.
"O cortiço se carateriza tanto pelas condições
precárias de moradia como pelas relações de locação,
geralmente marcadas por cobranças abusivas de
aluguéis e taxas", afirma Helena Menna Barreto em
seu texto
Habitação no Centro de São Paulo: Como
Viabilizar essa Idéia?
. "A ilegalidade dos contratos e
a convivência direta com a pressão dos proprietários
e seus prepostos deixa as famílias em situação extremamente
fragilizada."
O valor médio dos aluguéis encontrados na pesquisa
é de 191 reais, mas 42,9% das famílias pagam
aluguéis entre 196 reais e 260 reais. O comprometimento
da renda familiar com o aluguel é muito alto:
45,6% dos moradores comprometem entre 31% e
60%; e 23,3% comprometem mais de 60%. A pesquisa
comprova a predominância de relações informais
de locação: os que possuem contrato
apenas verbal representam
73,9%. A garantia exigida é normalmente
de um mês de aluguel.
Os empregados com registro
em carteira chegam a 28,9% das
pessoas maiores de 15 anos. Sem
registro, 22,9%; trabalhando por
conta própria, 18,2%; desempregados,
17,4%. Isso representa um total de 70% de
pessoas trabalhando.
"A comparação entre os valores de aluguel encontrados
nos cortiços e aqueles praticados no mercado
formal da área de estudo permitiu a Kohara
concluir que o valor do metro quadrado de cortiço é
78% superior ao de casas térreas, 41% superior ao
de apartamentos e 30% superior ao aluguel de sobrelojas
e salas comerciais", informa a professora
Helena. "O aluguel de imóveis encortiçados parece
mais rentável que o aluguel do imóvel inteiro para
usos residenciais ou outros".
NOS CORTIÇOS, ÁREA MÉDIA DOS
DOMICÍLIOS É INFERIOR A 12M2
A construção de
conjuntos habitacionais
na periferia é mais cara
e só resulta na criação
de bairros dormitórios
imóveis de valor um pouco mais alto
possam ser adquiridos na região.
A professora também defende a
necessidade de subsídio, pelo governo,
de parte dos custos da habitação
no Centro. Além de a habitação ser
uma dívida que o Estado tem com a
população de baixa renda, os benefícios
da conservação do patrimônio
público decorrentes da reabilitação
da região central já serão um resultado
muito compensador.
A presença de conjuntos habitacionais
populares no Centro terá
também o papel de impedir a valorização
exagerada dos imóveis nas
localidades próximas. "A idéia é
não mais fazer conjuntos habitacionais
isolados, mas integrar a habitação
social no tecido da cidade,
preenchendo os vazios do centro e
usando edifícios que hoje estão
abandonados", explica Helena.
"Se as pessoas empregadas no
Centro puderem morar perto do
trabalho e em boas condições, isso
vai melhorar muito as condições
da região até em termos de transporte
e segurança". A pesquisadora
aponta outra vantagem de um
programa de moradia social na região:
"É claro que a população que
vai morar lá não pode ser aquela
que tem um carro em casa e quer
ter dois. Tem que ser mais interessada
no transporte público, porque
aí será bom para a cidade".
Atualmente ocorre subutilização
habitacional do Centro: nele moram
somente 119 pessoas por hectare.
"Se outros 313 mil habitantes
viessem para o Centro Histórico, a
densidade ainda seria de apenas
238 habitantes por hectare. Para isso,
seriam necessários cerca de 150
mil novos domicílios. Parte deles já
existe, e está desocupada. A outra
poderia ser obtida mediante reciclagem
de edifícios e construção
nova", sustenta Helena. Na verdade,
a população atual poderia
ser mesmo triplicada com a execução
de um programa habitacional
de moradia social e adequação
dos equipamentos sociais:
a infraestrutura é suficiente.
Na Tabela 2 (p.71) nota-se a baixíssima
densidade habitacional nos
bairros de Pari, Bom Retiro, Cambuci
e Brás. "Aqui a oportunidade
de adensamento residencial é muito
grande. Para se ter uma idéia de
quanto essa densidade é baixa, o
distrito de Sapopemba tem densidade
de 188,8 habitantes por hectare;
São Miguel Paulista tem 138,2 habitantes
por hectare; o Itaim Paulista
tem 150,6 habitantes por hectare",
anota a pesquisadora do LabHab.
"Todo plano de revitalização e
renovação causa a expulsão da população
pobre. Estamos partindo
da questão da moradia social exatamente
para que o plano não nasça
com essa cunha e leve em consideração
que as pessoas que moram lá,
principalmente em cortiços, possam
permanecer", acrescenta Ermínia
Maricato. "Porque, por exemplo,
grande parte dos garçons moram
em cortiços no centro de São Paulo,
assim como todo o pessoal de faxina
dos prédios e toda uma população
que trabalha no terciário. Esta
questão depende de um programa
66
Setembro 2000 Revista Adusp
Projeto demonstrou ser
viável a recuperação
de prédios ociosos
do Centro da cidade
Maria Lúcia Refinetti
Daniel Garcia
Laura de Mello Bueno
Daniel Garcia
Alex Kenya Abiko
Daniel Garcia
67
Revista Adusp Setembro 2000
federal de financiamento e depende
muito de um plano municipal".
Em 1993, a Fipe, a pedido da
Prefeitura, realizou pesquisa amostral
que estimou em 6% do total
da população da cidade o contigente
que vive em cortiços típicos.
Segundo a pesquisa, a maior concentração
de população encortiçada,
20% ou 120 mil pessoas, encontrava-
se na região da Sé, que
corresponde aos distritos censitários
de Bom Retiro, Pari, Brás,
Cambuci, Liberdade, República,
Sé, Bela Vista, Consolação, Santa
Cecília. Esse número representava
aproximadamente um quarto da
população total dessa região.
"É bastante viável revitalizar as
áreas centrais da cidade com base
nos prédios abandonados", argumenta
o engenheiro Francisco Comaru,
um dos coordenadores do
Laboratório de Projeto Integrado e
Participativo para a Requalificação
de Cortiços, acima citado, que envolveu
cerca de cento e trinta partici-
Para quem vem do Viaduto da Bandeira e sai na
Rua do Ouvidor, é só um prédio sujo e bem trancado,
o de número 63. Fica ali, entre o povo passando
e os camelôs vendendo artigos importados. Nele
mora dona Maria, Maria Silva Mattias, mineira, catadora
de papel há quase cinqüenta anos. Tem também
Gegê, que dona Maria chama de pai, embora
seja mais novo do que ela. Por que "pai", dona Maria?
"Ah, filho, porque ele fez pra mim melhor que
um pai fizesse".
Dona Maria conta que Gegê é o chefe daquele
povo, que é ele quem está "na ponta" das manifestações,
que faz aquilo com muita coragem e o povo
vai junto. Gegê, ou Luiz Gonzaga, é um dos líderes
dos sem-teto paulistanos e integra a direção da Central
de Movimentos Populares (CMP).
Dona Maria está estendendo roupa lavada. É ela
quem faz seu horário e decide quando vai trabalhar
ou cuidar dos netos. Logo chegou o Paulo Henrique,
que não gosta muito de escola, e lá dentro estava o
Sidney, que esse gosta das aulas.
Ocupação bonita
"A gente ‘tá aqui faz quatro anos, meu filho, foi
uma ocupação muito bonita. Tinha mil e poucas pessoas",
relata dona Maria. "Eu nunca tinha participado
não. Primeiro foi o pai, né, que foi na frente e
quebrou a tranca. Aí foi aquele alvoroço. Muita gente
metendo a mão nas portas, entrando, eu ‘tava junto,
com um nenenzinho no colo".
A ocupação, diz Gegê, conscientiza, constrói cidadania
e dignidade. "Mas só constrói se o povo quiser."
Ele não sabe se conseguirão regularizar a situação
do prédio ocupado. "O governo diz que o prédio
é da Secretaria da Cultura e que não está disponibilizado
para moradia. A gente pode até ser ameaçado
de despejo."
Quem é essa gente? Você bate na porta (quando
existe porta) e eles estão lá, de sorrisão no rosto.
"Bom dia! Quem vocês ‘tão procurando?" A escada
é em espiral e perde-se a noção de em que andar se
está. No quarto andar fica o maior salão do prédio,
onde as crianças têm aulas de reforço escolar. A professora,
Tatiana, filha de uma das líderes do Movimento
de Moradia do Centro, tem mais de vinte alunos,
a maioria de primeira a quarta série. Setenta famílias
moram no prédio. Quase 90% dos adultos trabalham.
Aqui, o estereótipo das "classes perigosas"
cai por terra. (A.T.)
Cena paulistana
OS COM-DIGNIDADE DA OUVIDOR
Dona Maria no prédio da Ouvidor: ocupação no Centro
Daniel Garcia
pantes e diversas entidades. "Famílias
que não têm condições de moradia
adequadas podem se incluir
no sistema social e usar o investimento
que a cidade já tem, que é
toda a infraestrutura do centro".
Organizado pelo Escritório Piloto
do Grêmio Politécnico da
USP e pela Escola de Pós-Graduação
"Tecnologia, Arquitetura e Cidade
nos Países em Vias de Desenvolvimento",
do Politecnico de
Turim, Itália, o projeto foi concebido
pela arquiteta Letizia Vitale,
bolsista da Capes no Politecnico
de Turim.
Participaram do trabalho equipes
de professores e alunos da
Pontifícia Universidade Católica
(PUC-SP), da Universidade de
Taubaté (Unitau), da Universidade
São Francisco (USF) e da USP,
bem como integrantes de oito
ONGs brasileiras e uma italiana,
representantes de movimentos populares
(Movimento de Moradia
do Centro, Unificação das Lutas
de Cortiços e União dos Movimentos
de Moradia) etc.
Três unidades da USP colaboraram
com o projeto: Escola Politécnica,
FAU e Departamento de Terapia
Ocupacional da Faculdade de
Medicina. Além de Letizia e de Comaru,
que é pós-graduando da Faculdade
de Saúde Pública, a coordenação
ficou a cargo do professor
Andrea Piccini, da Politécnica, e de
Henrique Alfonsi, que coordenava
o Escritório Piloto quando o projeto
foi elaborado, em 1999.
"Existem vários prédios vazios,
pois o Centro acabou se degradando.
Ao mesmo tempo, existe muita
gente que mora em cortiço e tem
que trabalhar lá, estar próximo",
pontua o engenheiro Alfonsi. "Tivemos
de dar um enfoque interdisciplinar,
bem amplo", relembra.
"Olhar a questão como um todo,
não só nos aspectos de engenharia,
de arquitetura, mas também nos
aspectos econômico, jurídico, arquitetônico
e social".
A escolha do prédio a ser estudado
obedeceu a critérios que facilitaram
a análise. "Não podia ser
nem muito grande nem muito pequeno,
e tinha de ter um quadro
de famílias morando nele com algum
grau de organização para que
fosse facilitado o trabalho de pesquisa",
conta Comaru. "Fizemos
várias visitas a prédios ocupados e
escolhemos um na Rua do Ouvidor,
que foi ocupado em 1997".
Há dezessete prédios ocupados
por sem-teto no Centro.
Os resultados do projeto apontam
um custo de R$ 19.600,00 por
família para a requalificação do
prédio estudado. A cifra é bastante
inferior ao valor normalmente
destinado pela CDHU à construção
de moradias na periferia, em
torno de R$ 27.000,00. "Na periferia,
além de construir, você ainda
teria de colocar toda a infraestrutura,
mais os equipamentos urbanos:
escola, posto de saúde, e
que não entram na conta", analisa
Comaru.
"Nossa proposta é buscar uma
cidade mais democrática, que inclua
as pessoas, para não se fique
fazendo investimento só na polícia,
comprando mais armas, porque este
tipo de ação não atinge a raiz do
problema: a falta de emprego, de
moradia, de educação. Tudo isso
junto ajuda a gerar a violência".
Os nove projetos de urbanização
de favelas estudados pela equi-
68
Setembro 2000 Revista Adusp
Urbanização criativa
e barata de favelas
só depende da
integração física e
social com o entorno
TABELA 1 - Evolução da participação relativa das populações,
segundo zonas (1960, 1970 e 1980)
Zonas do município 1960 1970 1980
Centro Histórico 10,1 5,5 3,8
Centro Expandido 22,1 15,8 13,5
Oeste 1,9 3,0 3,7
Sul 8,1 14,5 19,8
Sudeste 17,2 15,2 13,0
Leste 1 14,9 14,4 12,9
Leste 2 3,3 8,4 11,9
Norte 1 2,5 3,2 3,4
Norte 2 19,9 20,0 18,0
Município de São Paulo 100,0 100,0 100,0
Fonte: Emplasa. Fonte dos dados básicos: IBGE
69
Revista Adusp Setembro 2000
pe do LabHab mostraram possuir
parâmetros urbanísticos diferenciados,
com soluções urbanísticas
criativas e eficientes. Para a arquiteta
Laura de Mello Bueno, pósgraduanda
da USP e professora da
Pontifícia Universidade de Campinas
(Puccamp), isso foi possível
porque os responsáveis tiveram liberdade
para projetar além das
restrições impostas pelas leis urbanas,
que às vezes limitam os projetos
e não podem ser aplicadas em
situações específicas, como acontece
em algumas favelas. Outro elemento
que contribuiu para as soluções
foi a decisão de interferir o
mínimo possível nas estruturas urbanísticas
existentes.
Foram estudadas as favelas
Santa Lúcia II e Jardim Esmeralda,
em São Paulo, e Núcleo Barão
de Uruguaiana e Vila Olinda, em
Diadema, além de outras cinco no
Rio de Janeiro, em Fortaleza e
Goiânia. Em todos os casos estudados
a urbanização modificou somente
aquilo que era imprescindível,
por exemplo, removendo barracos
em áreas de risco ou abrindo
espaço quando não havia outra
forma de passar a rede de esgoto.
A pesquisa concluiu que os métodos
de drenagem e escoamento
de esgoto implantados nas localidades
seguiram padrões bem próximos
dos tradicionais. Isso é bastante
positivo, explica a professora,
porque facilita a integração da favela
urbanizada com o resto da cidade,
pois as equipes da Prefeitura
podem aplicar na manutenção da
rede as mesmas ferramentas e métodos
usados nos outros bairros.
Entre as recomendações feitas
no relatório final das pequisas,
destaca-se que a intervenção em
favelas deve coadunar-se às políticas
públicas de acesso à cidade, ou
seja, ela deve estar vinculada às
políticas de desenvolvimento urbano,
política fundiária, política de
meio ambiente e de planejamento
urbano. As obras de urbanização
não devem ser intervenções pontuais,
mas integrar-se nos projetos
de um conjunto de intervenções
1Somente a articulação das ações de defesa do patrimônio
histórico e arquitetônico, remodelação
do espaço público e revitalização da atividade econômica
com a questão habitacional permitirá superar os
impasses atuais do problema habitacional.
Que modelo
de política habitacional o candidato defende?
2A revitalização do Centro, reformando e tornando
habitáveis dezenas de prédios abandonados,
integraria a habitação social no tecido da cidade e
preencheria vazios. Projeto coordenado pelo Lab-
Hab mostrou ser possível requalificar um prédio no
centro ao custo de R$ 19.600,00 por família, valor
bem inferior ao normalmente destinado pela CDHU
à construção de moradias na periferia, em torno de
R$ 27.000,00.
A revitalização do centro da cidade
consta dos planos do candidato? Que projeto de revitalização
se pretende executar?
3A proteção da área de mananciais da represa
Guarapiranga seria atendida com a criação de
faixas contínuas de tratamento alternativo de esgoto,
paralelas às margens dos rios que a alimentam, para
evitar que as habitações continuem se expandindo
para mais perto da água. Isso permitiria preservar,
nos locais que ocupam hoje, a maior parte das 600
mil pessoas que moram no entorno da represa, relocalizando
somente os casos mais graves. A proposta
é detalhada no projeto Moradia Social e Meio Ambiente,
dos alunos da disciplina "Habitação para População
de Baixa Renda" da FAU. Idêntica solução
é proposta para a Billings, requerendo uma ação
conjunta com municípios do ABC.
Como o candidato
pretende equacionar a ação de proteção dos mananciais
com a necessidade de garantir ou providenciar
moradia para os habitantes das ocupações irregulares
do entorno de Guarapiranga e de outras áreas?
4A urbanização de favelas requer soluções integradas,
de modo a garantir o funcionamento adequado
e coordenado dos sistemas de água, esgotos,
drenagem de águas pluviais e coleta de lixo.
O candidato
tem planos de urbanização de favelas? Nesse caso,
quais as prioridades, as fontes de financiamento e
as diretrizes básicas da urbanização?
AS PERGUNTAS FEITAS AOS CANDIDATOS
70
Setembro 2000 Revista Adusp
Antonio Biondi
Os grupos de estudo do Laboratório de Geografia
Urbana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP (Labur) vêm realizando diversas
discussões sobre a cidade de São Paulo. Recentemente,
o resultado de tais debates e reflexões
veio a público no livro intitulado
O espaço no fim de
século — A nova raridade
(Contexto, 1999). O tema
central do livro é a transformação do espaço em
mercadoria, propriedade das grandes corporações.
Em conversa solicitada pela Revista Adusp, os pesquisadores
do Labur explicaram como essa questão
se reflete na Capital paulista, além de discutir as formas
de atuação da Prefeitura.
Anselmo Alfredo, professor da Escola de Comunicações
e Artes e pesquisador do Labur, refere-se
ao espaço das favelas, que se transformaram em reservas
de terra com potencial de valorização. "Num
certo momento do processo, elas são removidas, para
dar lugar a grandes empreendimentos", explica. "As
famílias que antes viviam no local não são consideradas
no processo — exatamente como se viu nas regiões
das avenidas Berrini e Juscelino Kubitscheck—
e tornam-se migrantes em sua própria cidade."
O desafio de administrar São Paulo é agravado
pelo fato de os problemas não se restringirem à Capital,
mas serem compartilhados com as cidades vizinhas.
Transporte, lixo e água, por exemplo, dependem
de soluções e planejamento conjuntos. Francisco
Capuano Scarlato, professor de Geografia Urbana,
adverte que, com relação ao lixo, não há mais como
apenas fazer lixões e aterros. "A reciclagem tem
de ser melhor pensada, e não somente pelo viés dos
custos que ela representa de imediato."
O aparente caos urbano que envolve São Paulo é
outro ponto colocado em debate. No entender de
Amélia Luísa Damiani, docente de Geografia Urbana,
praticamente toda ação da Prefeitura atende a
uma lógica bastante clara, de acordo com os interesses
da iniciativa privada. O Centro seria um exemplo
dessa lógica. O trabalho da Prefeitura na região é
realizado preponderantemente por meio de parcerias
com comerciantes e empresários, numa ótica
que leva em consideração somente a funcionalidade
e a beleza da área.
De acordo com a professora Odete Carvalho de
Lima Seabra, também da FFLCH, a nova "higienização"
realizada no Centro reflete uma representação
da cidade tal como sonhada pela população. "A
burguesia busca apresentar um sonho, uma promessa,
da qual o povo, mesmo que teoricamente, se sinta
parte. Em São Paulo, porém, essa promessa não
se sustenta."
De acordo com Odete, o crescimento que a cidade
apresentou nos anos 70 e 80, quando 500 mil pessoas
chegavam por ano à Capital, faz com que o discurso
não cole com a realidade. "O crescimento fugiu
ao controle e o Centro tornou-se caótico", diz ela.
Amélia vai além, questionando a possibilidade de
São Paulo ser uma cidade realmente administrável.
"Qualquer política que vise administrá-la é pequena.
Para que não fosse, seria preciso enfrentar frontalmente
a capitalização da cidade." Na opinião de
Amélia, "o grande projeto é incompatível com a racionalidade
da Prefeitura".
REFLEXÕES SOBRE O ESPAÇO URBANO
Pesquisadores do Labur: espaço, a nova raridade
71
Revista Adusp Setembro 2000
nos bairros, buscando
uma integração física e
social com o entorno.
Deve haver maior integração
entre obras de
urbanização e as melhorias
na habitação, com
adequação das ligações
sanitárias e instalações
elétricas das casas. Também
é preciso que sejam
criados sistemas de fiscalização
do uso e ocupação
do solo após as obras concluídas,
para impedir que as reformas dos
imóveis tornem insalubres as quadras,
e em especial, sejam invadidos
os espaços de uso comum.
Alex Kenya Abiko, chefe do Departamento
de Engenharia de
Construção Civil da Escola Politécnica
da USP, explica que o modelo
de urbanização de favelas defendido
por Laura Bueno é uma tendência
internacional e está sendo usado
em países como Bolívia, Venezuela,
México e África do Sul. "Mas o fato
de os países resolverem urbanizar
suas favelas não quer dizer que todos
concordem com a existência delas",
alerta o professor. "O poder
público deveria trabalhar para que
elas não se formassem, mas como
elas estão presentes, é preciso urbanizar
para resolver um problema
que não deveria existir".
O grupo do professor Abiko estudou
quais os indicadores mais
precisos para medir-se o grau de salubridade
ambiental dos projetos de
urbanização. Nas favelas existe uma
forte relação de interdependência
entre os sistemas de água, esgoto,
drenagem de águas pluviais e coleta
de lixo, o que obriga sempre a uma
solução integrada no
processo de urbanização.
Qualquer problema
num dos sistemas acaba
interferindo no resto,
pois a densidade populacional
é muito alta e os
sistemas têm de estar
funcionando bem e
coordenadamente.
A criação de uma
"barreira verde" nas
margens dos rios que alimentam
as represas Guarapiranga
e Billings pode evitar que as habitações
continuem se expandindo para
cada vez mais perto da água. A
idéia é desenvolver faixas contínuas
de áreas de tratamento alternativo
de esgoto, paralelas às margens. As
faixas serviriam como uma separação
real e visual entre as áreas habitadas
e os rios, e ainda devolveriam
à represa uma água com um grau
aceitável de tratamento.
A proposta surgiu no projeto
Moradia social e meio ambiente, trabalhado
pelos alunos da disciplina
"Habitação para população de bai-
TABELA 2 - Evolução da população residente, segundo distritos, 1980, 1991 e 1996,
área e densidade demográfica dos distritos do centro (base distrital atual)
Distritos Censo % da Censo % da Contagem % da Tgca Tgca Área habit/
1980 (1) pop. total 1991 pop. total 1996 pop. total 80/91 91/96 (km2) hectare
Está na rua um livrinho modesto, mas de grande utilidade para
o carioca. Produziu-o a prefeitura do Rio, para responder a
tudo o que você queria saber sobre o futuro das favelas que
permeiam a cidade e não sabia a quem perguntar. “Das remoções
à célula urbana – Evolução urbano-social das favelas do Rio de
Janeiro” é continente de larga fatia da experiência da
arquiteta Lu Petersen, 63 anos, 20 dos quais dedicados a
favelas. Vem dela, portanto, o minucioso relato das
intervenções do poder público municipal na acomodação da
favela no conjunto urbano. Jovem moradora do Leblon, Petersen
tira da memória desses dias o fracasso das remoções: “Morava
na rua Cupertino Durão, que era a saída da Praia do Pinto, uma
favela eminentemente negra. A rua dava acesso à praia e ao
bonde. As pessoas que ali moravam prestavam serviço nas casas
e no comércio do bairro”.
Levadas para a periferia, essas famílias perderam o trabalho
perto de casa e a classe média da Zona Sul ficou sem a
mão-de-obra para as tarefas domésticas. É nesse ponto que a
política urbana se mistura com o ferro de engomar. “Quando as
lavadeiras vinham da Cidade de Deus”, revela Lu Petersen, “a
roupa estava toda amassada. Além disso, elas tinham que pagar
transporte. Dar moradia isoladamente, quando se trabalha com a
área de pobreza, não é uma solução de vida”. Não terá sido,
então, apenas por iniciativa da pobreza que brotaram as
ocupações de áreas valorizadas como Rocinha, Pavão-Pavãozinho
e Vidigal, mas também para atender ao surto de construção que
percorreu a Zona Sul da cidade na mesma época.
Mais do que pitoresco no resgate de pequenas histórias da
favelização do Rio, o livro é esclarecedor sobre o futuro
desse fenômeno urbano. Não está lá com todas as letras, mas
fica bem claro ao longo de 90 páginas que a classe média alta
pode esquecer o sonho de isolar-se da favela. O que as
políticas públicas apontam como caminho é a integração, cada
vez maior, com tudo o que isso carrega de bom e ruim. A
descrição do Projeto Experimental Célula Urbana, iniciado na
favela do Jacarezinho, em 2000, retrata um modelo
revolucionário de intervenção numa – por assim dizer – cidade
de 60 mil habitantes. Rico na documentação fotográfica, o
livrinho de Lu Petersen registra detalhes nos levantamentos
que precederam as mudanças. No Jacarezinho, depois de observar
comportamentos e hábitos culturais, conclui que no comércio
caótico da favela não só é possível construir e decorar uma
casa inteira, como comprar alianças de noivado numa pequena
joalheria. “Butiques existem para todos os tipos e gostos,
oferecendo desde roupas das costureiras locais até ternos sob
medida feitos por um alfaiate aposentado”.
Do Jacarezinho, o projeto está sendo replicado no morro da
Providência, onde se encarapitou a primeira favela do Rio.
Nessa área, repleta de marcos históricos, a operação é mais
ambiciosa. Espalha-se sobre velhas casas da rua do Livramento,
já no asfalto do bairro da Saúde, e alcança o projeto
Revitalização do Cais do Porto, do qual muito já se ouviu
falar, mas não há quem lhe tenha visto sinal.
À exceção do cais do porto, todo o resto é alinhavado pelo
programa Favela-Bairro, fundamento efetivo do livro que o
apresenta como “um das mais avançadas propostas mundiais de
integração de áreas de pobreza”. Pode ser. Pelo menos assim o
considera o BID, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, um
dos seus financiadores. Mas nada há nas páginas sobre efeitos
colaterais indesejáveis do Favela-Bairro, um dos quais é a já
constatada especulação imobiliária que ocorre à sua passagem.
Também não se encontram registros de dificuldades provocadas
pelo clima de violência existente nas favelas e que obrigam o
poder público a negociar suas intervenções.
Mas é um relato sincero, quando descortina o longo caminho da
reforma urbana, iniciado na década de 80, e confessa o
fracasso de projetos como o Mutirão Voluntário. Com ele
pretendia-se arregimentar moradores para, de graça, mudar as
condições de vida. Não só a tarefa era grande demais, como os
candidatos à vida melhor estavam mais interessados em
eventuais bicos de fim de semana. Foram salvos,
administradores e administrados, pelo Mutirão Remunerado,
projeto criado em 1985.
Nos registros fotográficos, os destaques em “Das remoções à
célula urbana” estão nas favelas Parque Royal e Fernão Cardim.
Na primeira, uma ciclovia tomou o lugar das palafitas
espetadas sobre um canto fétido da baía de Guanabara. Na
segunda, duas pistas de avenida e uma canalização botaram
ordem na mixórdia insalubre que cercava um rio. Uma maravilha
de ver.
A leitura vale a pena, para saber o que espera o carioca nos
próximos anos. Só como registro, é bom ir sabendo que o verbo
conter não freqüenta as páginas e muito menos associado ao
substantivo favela. Apenas num anexo, no final do volume, há
breve referência à limitação no tamanho das comunidades. É lá
também que se encontra a única citação a pagamento de impostos
e tarifas por serviços públicos, ainda que sociais. O texto,
porém, é agradável e passa ao largo do burocratês que habita
as repartições públicas. Talvez seja assim porque resulta da
“memória viva da arquiteta e urbanista Lu Petersen”, como
afirma o “epílogo”.
Hoje assessora do prefeito, ela trocou o o Brasil pelo Chile,
em 1971, como exilada. De lá, tomou o rumo da Suíça e só
voltou ao Rio em 84, quando os brasileiros se reencontraram
com a democracia. Sua carreira na prefeitura começou na
secretaria de Desenvolvimento Social do município, quando o
patrão era Marcello Alencar. Dali, saltou para o
Favela-Bairro, projeto que teve a paternidade longamente
discutida entre Cesar Maia e o ex-prefeito Luiz Paulo Conde.
Com o tempo, Conde foi convencido de que começou a executar o
programa como empregado de Cesar e decidiu procurar outro
filho. Não se sabe se já o encontrou. Ao contrário das
paternidades, que sempre podem ser discutidas, a maternidade,
não. Lu Petersen é considerada a mãe do Favela-Bairro.
Se admitimos que a maioria dos brasileiros são homens de bem,
por que permitir que a minoria dos delinqüentes esteja a nos
pautar a mídia diariamente? Por que não enfrentar a minoria?
Por que nos submetermos a
viver num ambiente onde parece que o crime compensa? Idealizei
o projeto da Voz do Cidadão exatamente para isso. Mas pensei
que fosse conseguir mobilizar os homens de bem de maneira
muito mais rápida e eficiente. Fui
ingênuo! Uma idéia apenas não é suficiente, ela depende de um
ambiente favorável. Mas quantos crimes torpes e hediondos como
este do assassinato do casal de namorados serão precisos para
nos fazer agir em coletivo? Terá de chegar a vez de nossas
filhas, meu querido leitor de bem? Essa mal colocada questão
sobre a maioridade penal resolve o problema? Por que
continuamos acuados em nossas casas, ao som da algaravia "Tô
nem aí..."?
Não podemos viver em sociedade fingindo que não ouvimos uns
aos outros, fazendo ouvidos de mercador. Não conheço
civilização no mundo digna deste nome que não tenha sobretudo
organizado minimamente o seu sistema
judiciário.
Não bastam mais as ironias. A delinqüência de um
colarinho-branco qualquer tem que ser punida com todo o rigor
da lei. Mas a delinqüência de um juiz tem de ser punida com o
rigor da lei e a sentença proferida aos quatro cantos da
mídia. Com seriedade e a alto e bom som. Porque a delinqüência
de um juiz representa a delinqüência da esperança de justiça,
do próprio sentido e possibilidade da convivência social.
Representa simplesmente a diferença entre barbárie e
civilização, porque é a mais vil das traições. E é impossível
conceber a vida social sem a possibilidade de apelar à Justiça
ou encontrar apenas a sua omissão. Me perdoem meus queridos
colegas da mídia, mas cobrir as mazelas do Judiciário
brasileiro e lutar pela sua reforma, mais do que editoria
política, passou a ser objetivo cívico nacional. Nada é mais
urgente do que enfrentar a questão fundamental da instituição
da Justiça que é a ontologia do próprio Estado. Não
resolveremos nenhuma miséria social ou econômica enquanto não
resolvermos a nossa miséria cultural de fingir que estamos a
construir um país mais justo com esta ou aquela política
paliativa de redistribuição de renda. A ênfase tem de se
deslocar do econômico para o Judiciário, o cerne da coisa
pública.
Vivo dizendo que educação é tudo e mais alguma coisa. Mais do
que transmissão de conhecimento, deve ser transmissão de
cultura de cidadania. Para além das escolas, da família e das
igrejas, deve ser transmissão de
cultura de cidadania nos espaços do mercado, das empresas das
associações civis, mas sobretudo nos espaços da opinião
pública e da própria mídia. Só assim poderemos tirar os homens
de bem de suas tocas, de seu justificável terror, e nos fazer
ouvir de fato uns aos outros. O Estado não pode faltar com a
sua primordial obrigação, que é a de produzir e distribuir
justiça, até para nos resgatar a crença de que ela existe,
mesmo sendo a mais falha e a mais sublime das criações
humanas.
Quando o órgão especial de um tribunal finge que pune a
delinqüência explícita de um de seus membros que mercadejava
sentenças, está a dizer a toda a parte podre da delinqüência
social que o crime compensa. Está a fazer ouvidos de mercador.
E quando esta farsa, esta pantomima que seria engraçada se não
fosse trágica, se repete, não há como sermos irônicos.
Sei disso por que nesses seis meses em que nosso site está no
ar, tenho sentido a enorme indignação dos cidadãos de bem.
Todos queremos fazer alguma coisa para construir, enfim, um
país menos injusto e violento para os nossos filhos. Pois bem.
Que ocupemos os espaços da mídia com a nossa ação de
cidadania. Façamos manifestos. Que sejamos os fiscais de todos
os fiscais. Tomemos conta de nossas próprias calçadas. Que
isto é o começo de tomarmos conta do nosso próprio país. E não
há outra alternativa a não ser o cidadão morador, eleitor,
contribuinte e consumidor cobrar justiça do Judiciário e
segurança dos executivos, tomar conta dos mandatos políticos,
dos orçamentos públicos e vigiar a concorrência dos mercados.
Que transformemos, enfim,
nossa indignação em ação!
JORGE MARANHÃO é publicitário e
mestre em filosofia pela UFRJ.
E a Rocinha transformou em realidade literal o que era para
ser apenas uma metáfora. Ali estavam as imagens, o som e a
fúria da cidade partida: o barulho dos tiros, as balas
traçantes, a fuga das pessoas em pânico, o terror. Há dez
anos, quando publiquei o livro, a expressão foi utilizada para
mostrar simbolicamente que havia no Rio um apartheid social,
em conseqüência da opção que as políticas urbanas sempre
fizeram pela segregação. “Do lado de cá”, como cantou a
Mangueira, “luxo e riqueza; do lado de lá, lixo e pobreza”.
Também falava metaforicamente da invasão dos “bárbaros”, com
duplo sentido: o que lhe davam os romanos, para designar os
que viviam fora do império, e o que lhe é dado hoje, para
definir os que praticam barbaridade. “Eles estão chegando ou
já chegaram — com suas ‘vanguardas’ armadas, audazes e cruéis.
Os nossos bárbaros já estão dentro das muralhas e suas tropas
detêm as melhores armas e a melhor posição de tiro”.
A diferença é que há dez anos eles não sabiam muito bem disso.
Agora sabem. Descobriram sua força e vantagem, enquanto nós
nos tornamos reféns, sem saber como enfrentá-los. ZUENIR VENTURA é colunista do GLOBO
A Sexta-Feira Santa vestiu de roxo o Rio de Janeiro, com a
violência de que foram palco a Rocinha e o Vidigal. O
espírito de confiança do carioca ficou mais uma vez
atingido. A perplexidade indaga se nossa cidade voltará a
ser pacífica, como por gerações nos acostumamos a viver.
E, estando os focos de violência identificados com as
favelas, muitos se perguntam se não é possível contê-las
ou pelo menos isolá-las.
Construir limites é uma providência indispensável para que
as favelas não cresçam além da área urbanizada. Quando
elas recebem infra-estrutura, é importante que se evite a
expansão da área ocupada, sob pena de os investimentos
ficarem prejudicados. Por isso o programa Favela-Bairro
construiu limites claramente definidos em cada comunidade,
de modo a evidenciar a área urbanizada, além da qual não
se toleraria construir novas moradias.
Essa tarefa de controle é responsabilidade pública, tal
como ocorre nos bairros da cidade. O governo precisa
contar com a participação dos moradores mas sobretudo com
disposição para agir contra interesses privados que
forçarem a transposição desses limites. Falta de controle
implica a perda de qualidade ambiental, que prejudica a
favela e a cidade.
A favela de Santa Marta, em Botafogo, está limitada por
muros altos, assim como Cerro-Corá, no Cosme Velho.
Vigário Geral é também limitada por muro junto à via
férrea. Todas, tristemente, são focos recorrentes de
violência, provocada pelo banditismo de traficantes. Já
Mata Machado, no Alto da Boa Vista, é uma comunidade
pacífica, como também o são a Benjamin Constant, na Urca,
e a Vila das Canoas, em São Conrado, todas contidas com
muros. Muros altos não causam nem combatem a violência.
Urbanizar as favelas, limitá-las e impedir a sua expansão
é uma responsabilidade governamental, que se ajusta às
outras funções de Estado em garantia da vida cidadã e
democrática.
Entre elas, encontram-se a segurança e o provimento da
Justiça para o cumprimento das leis — inclusive a Lei do
Inquilinato. (Os aluguéis nas favelas obedecem apenas à
lei do mais poderoso, seja ele o senhorio cada vez mais
selvagemente capitalizado, seja o seu braço armado, a
impor restrições e constrangimentos absurdos.)
A situação inaceitável de desprezo pela vida — tal como
presenciamos na Semana Santa — está construída em décadas
de violência e de desconsideração pela habitação dos
pobres. Políticas de absenteísmo, de remoção compulsória,
de clientelismo explícito, promoveram um século de favelas
e loteamentos periféricos onde faltam serviços,
infra-estrutura, justiça, segurança e cidadania.
Mas elas não são causas remotas, apenas localizadas na
História. Ainda hoje continuamos sem política urbana e sem
política habitacional no Brasil. Não há investimentos
nacionais para a urbanização das áreas pobres, para o
saneamento e para o transporte público; não há crédito
para as famílias terem acesso à moradia, nas condições em
que a vida moderna exige e permite. O Brasil financiou na
última década apenas 10% das habitações construídas! Uma
política democrática precisa fazer da família a receptora
do financiamento (em alguns casos subsidiado), ela
decidindo onde e o que comprar — ou construir. Obtendo o
crédito, como ocorre no mundo desenvolvido e capitalista,
as famílias estarão comprometidas com os ônus de construir
na legalidade. Casa financiada é condição para a família
dispor de melhor saúde, de mais tempo para o estudo e para
o trabalho.
As favelas são o lugar que a família pobre dispõe para
permitir sua inserção na sociedade e no trabalho. As
favelas cariocas não fabricam armamentos, tampouco plantam
ou refinam cocaína. Armas e drogas chegam ao Rio pelas
fronteiras nacionais desprotegidas, terrestres ou
marítimas, assim como também chegam nas outras grandes
cidades brasileiras, também elas palco da insegurança.
É preciso reconhecer que a violência instalada na cidade,
mas especialmente nas áreas faveladas, resulta de causas
amplas e complexas, e que seu combate não se dará por
mágica. O governo do estado está cumprindo a sua parte.
Todavia, precisamos reconhecer que os três níveis de
governo — municipal, estadual e federal — têm papéis
insubstituíveis a cumprir. O fraquejo de um deles
compromete o resultado da construção de uma sociedade
democrática.
A ressurreição do espírito de confiança e de paz é a
grande esperança do carioca. Ela só resultará da união de
esforços dos três níveis de governo, e contará com o apoio
da sociedade. LUIZ PAULO CONDE E SÉRGIO MAGALHÃES. Conde é
vice-governador do Estado do Rio e Magalhães é
subsecretário estadual do Desenvolvimento Urbano
Mais um ciclo de violência no Rio de Janeiro. Outra vez se
cometerá o mesmo equívoco de tratá-lo como sendo uma
questão local. Assim tem sido nestas duas décadas. O
autismo governamental — daqui e de Brasília — nos leva
sempre pelos mesmos e inócuos caminhos das reflexões sobre
remotas causas sociais e ações que nos conduzem para um
longo prazo que não chega nunca. É verdade que a forma e
os métodos adotados pelo varejo de drogas, no Rio de
Janeiro, foram fundadores de uma violência que combina
qualquer grau de brutalidade e anomia com áreas ocupadas e
controladas por traficantes. Não há coincidência no fato
de que estas sejam as áreas de desenho urbano irregular.
Aqui, e em tantos outros lugares do mundo, elas têm sido
escolhidas por organizações diversas para fincarem suas
bases, devido às condições de ocultação e fuga que
oferecem.
O Rio foi o espaço fundador. É fato. Em 1980, a taxa de
homicídios de jovens entre 15 e 24 anos, em nossa cidade,
já se destacava: algo próximo a 60 por cada 100 mil
habitantes. São Paulo não chegava à metade. Recife e
Vitória, a um terço disso. Cuiabá e Macapá, a 10%, se
tanto. Vinte anos depois, as três primeiras já passavam o
Rio e as duas últimas se aproximavam. Como o crime,
especialmente ligado a drogas, é juvenil, este indicador é
o que importa. Em vinte anos, ele tinha deixado de ser
carioca, tornando-se cada vez mais nacional. Muito mais
grave é o fato de que a metodologia inaugurada no Rio — os
comandos desverticalizados em áreas definidas, as armas
militares para defender/ocupar estes espaços, as
referências nos presídios — foi sendo “exportada” a partir
daqui e tornou-se, de forma progressiva, uma rotina em São
Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Vitória, Recife e
tantas cidades metropolitanas pelo Brasil afora. Em
proporções diferentes, é claro, às vezes até mais graves,
mas com a mesma dinâmica.
No último lustro, pela inversão da relação causal entre
drogas e armas, promovida por intelectuais, este processo
ganhou formas novas: ocupação de espaços urbanos externos
às bocas-de-fumo, “bondes”, fechamento do comércio, queima
de ônibus... Outra vez, e progressivamente, estas formas
foram sendo espalhadas por outras grandes cidades. E logo
atingiram a mesma gravidade. Esta é uma questão nacional.
Há muito deixou de ser local. Mas, no Rio, ela tem seu
espaço fundador, tanto naquele quanto neste momento.
Imaginar que pode ter solução regional, imaginar que os
governadores — este ou outros, na lógica e no tempo
políticos e com a volatilidade brasileira — imprimirão
medidas continuadas e a longo prazo é ilusão. Cabe, e há
exemplos pelo mundo afora, dar à Segurança Pública a
condição de função de Estado, com um comissariado gestor
cujo mandato rígido não seja coincidente com o de
governador, e que se promova a substituição anual do
quinto,
Simultaneamente, o governo federal — em entendimento e
convergência com o governo estadual, reforçando e não
debilitando a sua autoridade, hoje atingida pelo poder
efetivo do crime organizado — poderia declarar, com o
apoio do Congresso, o Estado de defesa, figura prevista
constitucionalmente. Desta forma, se daria caráter de
questão nacional ao varejo de drogas, se interviria num
espaço permanentemente fundador de cada ciclo e se estaria
dando o primeiro golpe sério na cabeça da serpente. Tentar
as mesmas soluções de antes, voltar ao labirinto do
emaranhado retórico — e teórico — que opõe e antagoniza os
mesmos atores, dentro e fora da polícia e da universidade,
é a garantia de que os ciclos de violência inaugurados
aqui continuarão se expandindo, com os mesmos métodos, por
outras cidades brasileiras até que o custo da reversão
seja alto e por prazos dilatados. A crise de hoje nos
oferece saídas pela gravidade exposta. Devemos
aproveitá-las, antes que se sedimente
Talvez não haja cenário mais adequado para refletir a
situação a que chegou a segurança pública do que o do
conflito armado na Rocinha. A região, na principal ligação
entre a Zona Sul e a Barra da Tijuca, é estratégica. Ao
ter como cenário endereços nobres, uma área visitada por
turistas e habitada por famílias de renda alta, uma região
com índices de desenvolvimento humano comparáveis ao de
cidades do Primeiro Mundo, mais essa batalha no que já se
convencionou chamar tristemente de a Guerra do Rio
significa a escalada em direção à violência sem controle.
A idéia de uma cidade partida, lançada com propriedade na
década de 90 para designar um Rio dividido entre o morro e
o asfalto, entre o crime e o cidadão de bem ----- como é a
grande maioria dos favelados ----- começa a ser revogada.
As duas bandas do Rio tendem a ser unificadas pela
violência. Quando se esperava a inclusão do Rio sem lei e
violento pelo Rio da legalidade e do bem, a população
testemunha, assustada, o inverso.
A crise de segurança vivida pela região metropolitana
carioca é obra construída com rara competência. A
violência tem raízes múltiplas, fortalecidas durante
vários governos, alguns deles adestrados em discursos e
práticas demagógicas e populistas, dos quais o tráfico
soube se aproveitar para consolidar-se em comunidades
pobres; enquanto outros administradores contribuíram para
a crise por simples e virulenta incompetência.
Por trás da justificada sensação de orfandade dos cariocas
há uma crise institucional própria do estado fluminense,
da qual o mais expressivo exemplo é a polícia. Poucas são
tão violentas, sofrem tantas baixas e ao mesmo tempo
demonstram tanta ineficácia quanto as forças policiais do
estado. Há, ainda, provas contundentes de que parte da
polícia foi contaminada pela corrupção, infiltrada em
quartéis e delegacias pelo crime organizado. Os esforços
louváveis empreendidos pelo governo para limpar a
corporação policial até agora não se materializaram em
mais segurança nas ruas. Dessa crise institucional não
escapam o Executivo, o Legislativo e a Justiça, em que,
volta e meia, são observados vestígios — mais evidentes ou
mais sutis, a depender do caso — da presença de tentáculos
da criminalidade.
Também é sócio da crise o Executivo federal. Em Brasília,
existe quem saiba do caráter nacional da crise de
segurança pública, mais visível no Rio por motivos
históricos, sociais e até topográficos. Sem o combate às
linhas de suprimento de armas e drogas, para o que a ação
federal integrada com os estados é essencial, casos como o
da Rocinha se repetirão. No Rio e em outras cidades. A
consciência da dimensão da crise precisa, porém,
converter-se em fatos.
As divergências político-partidárias têm de ser deixadas
de lado na luta contra o crime. Manipular a deterioração
da segurança pública com outros interesses significa
decretar, já, a vitória do crime sobre o Estado de
direito.
O país vem
assistindo, estarrecido e atônito, à escalada da violência e
à falta de controle da situação no Rio de Janeiro, sob o
beneplácito e a irresponsabilidade dos governos estadual e
federal, sem falar na prefeitura carioca, responsável por
lei pela ocupação do solo.
Tancredo
Neves afirmava que não se deve, nunca, nomear alguém que,
depois, não se possa demitir. Mesmo que seja uma
jogada política, como é, a manutenção de Anthony Matheus
Garotinho, ex-governador e atual secretário de (in)Segurança
do Rio de Janeiro, no cargo que ocupa faz parte dessa
categoria.
Ao nomear a
quem chamou de Coronel Bolinha, a governadora Rosângela
Matheus colocou-se em beco sem saída, pois demitir o cônjuge
é tarefa quase impossível, sem causar uma hecatombe
matrimonial e, no caso, política.
Sabe-se que
Garotinho está secretário de Segurança para se manter na
mídia e ocupando algum espaço político, pois acha que fará
no PMDB fluminense o que fez no PSB, passando a fazer parte
da sigla com todo o seu entourage e forçando sua
indicação para as eleições presidenciais, em 2006.
O
atrevimento do casal diante da nação preocupada e perplexa
com a escalada da criminalidade na Cidade Maravilhosa é
impressionante.
Que a
cidade está ao deus-dará, disso ninguém tem dúvidas, salvo o
casal Matheus e o governo federal. Conflitos armados
explodem nos morros, nos subúrbios, nas ruas; os criminosos
estão mais bem armados do que a Polícia Militar e a Polícia
Civil. Foi lamentável assistir na televisão a soldados
mostrando as armas que utilizavam contra metralhadoras e
fuzis top: revólveres 38 enferrujados, velhos e
com pouca munição. Soldados (e repórteres também,
malgrado todas as promessas feitas depois do assassinato do
jornalista Tim Lopes, em 2002) sem a proteção de coletes à
prova de bala ou vestindo coletes obsoletos.
Falta
equilíbrio aos governantes do país e do Estado. Será
inesquecível o silêncio sepulcral vindo de Brasília durante
o feriadão, quando houve a tentativa de retomada do
tráfico da Rocinha por um bando e a guerra que se viu
durante seis dias e noites.
O casal
Matheus estava de férias e de férias continuou. Garotinho
retornou ao Rio no sábado à noite e a governadora retomou
suas funções apenas na segunda-feira, quando também não se
pronunciou.
O prefeito
César Maia, bem a seu estilo, pediu logo o decretar do
estado de defesa, que subtrai dos cidadãos o direito de
reunião, entre outras coisas, mas nada faz para conter a
ocupação das encostas e a expansão das favelas,
responsabilidade municipal. O governo federal também não
compareceu, nos piores dias do confronto.
Foram cinco
dias de silêncio. Quando todos os lados começaram a
falar, foi o que se viu: um secretário debochado e
irresponsável, tripudiando sobre uma oferta pouco
consistente do governo federal. Este tem assistido à
sufocação do Rio de Janeiro com desdém e aceita a provocação
de Garotinho, que se utiliza do cargo para acuá-lo. O
governo federal, com pouco pulso e nenhuma experiência, tem
topado qualquer tipo de provocação e entrado no jogo
político que lhe é apresentado. E a população que se
dane.
Só uma
personalidade delirante e fora da realidade poderia achar
que um pedido de tropas federais deva ser feito por um
secretário, e não pela governadora (no caso) do Estado, sua
autoridade maior. E que o Exército ficaria sob suas
ordens.
A
governadora, por sua vez, entre um remédio para emagrecer,
quedas de pressão e falta de tino político, deixa claro que
segue as diretrizes traçadas pelo marido e tem usado o cargo
para alguns confrontos com o governo federal que, por sua
vez, trata a cidade e o Estado como inimigos, pois considera
inimigos ou adversários os seus governantes.
O governo
federal se utiliza daquilo que nos bastidores chamam de
verba virtual: toda a burocracia é cumprida e verbas são
empenhadas, mas inexistem na realidade. Pingam uns
caraminguás a cada crise e os problemas, todos, vão sendo
empurrados para depois.
Só que, no
Rio de Janeiro, o depois é agora e não dá mais para ficar
assistindo a um embate político de baixa qualidade, enquanto
a população é permanentemente mantida como refém. Dos
bandidos ou da incompetência governamental, como um todo.
Newton
Rodrigues escreve nesta página às sextas-feiras
Jornal O Estado de São Paulo, quinta-feira, 15
de abril de 2004
CESAR MAIA
Em seu livro "A
Construção da Ordem", já clássico, o professor José Murilo
de Carvalho desenvolve uma tipologia das elites políticas,
suas relações com a economia, com a burocracia e suas
formas de gestação em diversos casos, países e épocas. O
objetivo do livro é nos ajudar a entender a dinâmica da
elite política imperial no Brasil. É um livro
intrigante, pois introduz uma metodologia geral que
permite aos políticos e politólogos, num exercício
devidamente contextualizado, buscar entender as razões da
emergência de uma certa elite política num determinado
período.
O professor passeia pelos casos da Inglaterra e EUA, na
passagem do século 18 ao 19, e mostra as classes
proprietárias ocupando diretamente o poder e dando um
caráter complementar à atividade política. Ele
analisa burocracias públicas homogêneas e heterogêneas.
O primeiro caso mais eloqüente é o dos mandarins chineses,
treinados por 35 anos e selecionados em 160 dias para o
exercício da administração pública. Depois, relata
as semelhanças entre as elites políticas turca, de Ataturk,
e brasileira imperial. Sinaliza como referência de elites
políticas burocráticas a Prússia de Bismarck e suas
características. Destaca a homogeneidade da elite
imperial brasileira a partir da função nuclear de Coimbra
e, depois, das faculdades de direito de São Paulo e
Olinda, que a "nacionalizam" e que, por essa condição,
ajudam a explicar a unidade nacional espacial conseguida.
Não há mais
método nem modelo. De improvisação em
improvisação, caminha-se para o caos. É a
construção da desordem
Afirma o papel central
dos magistrados na construção de uma elite política
imperial, com ampla margem de autonomia sobre as
influências dos proprietários rurais e dos comerciantes.
Sem esquecer a dinâmica em direção ao final do século 19,
com a flexibilização do Estado, a ascensão dos
profissionais liberais, embora ainda com a hegemonia da
formação jurídica, no caso, dos advogados. E,
finalmente, sublinha a diferença e as razões que ajudam a
explicar o fatiamento da América hispânica devido à
heterogeneidade das antigas elites e daquelas em ascensão
nas guerras de independência.
Nos desenhos dessa tipologia, logo no início, o autor
aponta para a visão de Lênin ("O que Fazer?") e de sua
vanguarda de revolucionários profissionais. Esse é
um desenho em que a condição de origem da elite política
dominante é sua rigorosa homogeneidade ideológica, cuja
formação independe do nível e do tipo de educação antes
recebida e, claro, com autonomia radical das elites
econômicas existentes em nome dos oprimidos que devem
emergir, sempre através do canal dos revolucionários
profissionais.
Essa longa introdução, com as simplificações naturais,
ajuda-nos a analisar a gestação da elite política hoje
dominante no Brasil e as razões do impasse em que
vivemos.
O governo do PT foi empolgado por um grupo de
profissionais da política -com um ramo de ex-sindicalistas
há muito afastados de sua origem- de formação tipicamente
leninista. Uma vez no poder, sua natureza
destacou-se, como seria natural. Sua autonomia, de
partida, em relação à burocracia e à economia era total.
Ascende carregando sua natureza e sua experiência limitada
à atividade política. Confronta-se com um mundo onde
o Estado já não tem mais o poder de produzir
desenvolvimento, reforçando sua autonomia.
Descola-se da burocracia profissional e deixa isso claro
ao priorizar a reforma previdenciária e ir atrás de
recursos para dar ao Estado a autonomia fiscal que não
tem. Precisa de tempo e teme a desestabilização
econômica. Para isso, faz gestos efetivos em relação
à economia com medidas ortodoxas de estabilização.
Teme a desestabilização parlamentar e, para isso, compõe
com vários partidos e lideranças parlamentares. Mas,
como a hegemonia em questões relevantes deve ser garantida
ao grupo de revolucionários profissionais, aos aliados
cabem as migalhas e a clientela, coisa que atende à lógica
da reprodução dos mandatos individuais. Esse modelo
-quando puro e em outra época- não deu certo pela
desarticulação com a burocracia pública e com a base
econômica, tendo custado centenas de milhares de vidas em
20 anos de stalinismo.
Hoje, num ambiente radicalmente diverso, a elite de
profissionais revolucionários descolada da burocracia não
consegue administrar. Busca a estabilidade política por
meio de sinais calmantes ao mercado. Assim, perde
sua referência e desarruma sua unidade ideológica, básica
para esse tipo de elite. Constrói uma maioria parlamentar
à custa de nuclearizar em pouquíssimos quadros a condução
política, única forma de manter o controle. E retira
o véu da prática revolucionária de "expropriação" da
burguesia e do "fim justifica os meios", que tem seu DNA
na captação de recursos para financiar o partido, em que a
questão ética está lastreada nesse "compromisso matriz".
O desnudamento de vários casos desmoraliza o discurso
anterior e não há como separar, na sociedade de hoje, a
ética política da ética pessoal, ou seja, a busca de
recursos para a causa, e não para as pessoas.
A dinâmica desse processo está construindo a desordem.
Acompanha-se no Brasil um desenho novo, não tipificado
ainda, que, partindo de um tipo conhecido para um outro
período, desintegra-se neste. Articula-se para
sobreviver e agrava a desintegração, afetando a
administração, a política, a economia e a ética. Não
há mais método nem modelo. De improvisação em
improvisação, caminha-se para o caos. É a construção da
desordem. Não há saída paliativa capaz de remendar a
"estrutura Frankenstein" criada de fato.
Há que repensar as razões e, com coragem, começar tudo de
novo. É o que todos desejam.
Cesar Maia, 58,
economista, é prefeito, pelo PFL, do Rio de Janeiro.
No
Brasil, nem todo problema insolúvel é complicado. A
Rocinha, por exemplo. Ela até que parece
simples, vista na moldura da ação civil pública, que há
mais de dez anos obrigava a prefeitura carioca evitar que
ela, para crescer sem parar, continuasse tirando fatias de
um patrimônio público inalienável. Ou seja, das
florestas que ainda cobrem as encostas a seu redor.
No caso, bastaria uma sentença mandando cumprir a lei.
Mas, como o programa de despoluição da baía de Guanabara,
que despejou cerca de 800 milhões de dólares em águas cada
vez mais sujas, essa é prioridade do Rio de Janeiro que a
cidade inteira esqueceu. Ou pior, não esqueceu, mas
resolveu deixar para lá. E pelo menos esse favor os
cariocas ficam devendo aos traficantes Dudu e Lulu.
Com o barulho que eles fizeram na Semana Santa, a tal ação
está voltando aos jornais.
Ela foi proposta pela promotora Patrícia Silveira Rosa em
1991 – ou seja, antes da Rio-92 quando, animada por toda
aquela conversa sobre desenvolvimento sustentável, um
braço inteiro da Rocinha se estendeu sobre as matas de São
Conrado. E não estava só. A ela se juntou em 1993 o
processo para a delimitação do Vidigal, quando as duas
favelas ainda estavam separadas uma da outra pelas
encostas dos Dois Irmãos, morro que agora parece um
convite para juntarem-se.
As ações traziam uma receita quase completa para a
legalização da Rocinha e do Vidigal. Exigia que o
município fizesse o cadastro geral de suas casas, que é o
primeiro passo para se considerar a situação sob controle,
ou pelo menos sob o olho das autoridades. E teria
criado dez anos atrás uma barreira judicial contra sua
expansão permanente e desordenada. “Quando essa história
começou, eu estava na faculdade de Direito”, diz o
promotor Carlos Frederico Saturnino de Oliveira.
Uma década depois, ele está no Ministério Público
estadual, onde cuida do meio ambiente. E lá
encontrou o caso no ponto em que a promotora Patrícia
Silveira Rosa havia deixado. Emperra onde essas
coisas geralmente emperram – na perícia. Esse é um
serviço pago. E o Ministério Público tem a prerrogativa
de não pagá-lo no começo de um processo, deixando a conta
espetada para que no fim a parte vencida a liquide.
E, com a perícia parada, as ações encalham.
O promotor Saturnino Oliveira fez o possível para tudo
para desencantar a história da Rocinha e do Vidigal.
Recrutou peritos que já estão na folha do Ministério
Público e com eles mapeou as favelas, localizou seus focos
de expansão e os pontos onde novas construções haviam
transbordado os cabos de aço postos pela prefeitura para
demarcá-las. Com isso, o processo ficou pronto. Ou
concluso, para usar o jargão da casa. E em setembro
do ano passado foi parar nas mãos do juiz Wanderley
Carvalho Rego, da 5a Vara de Fazenda Pública. Onde
ele espera a sentença há sete meses.
Por quê? O promotor não sabe. Presume que o
juiz esteja ocupado demais com outras providências e não
queira entregar a tarefa com um substituto. Mas esse
é um atraso que não se pode debitar exclusivamente à
lerdeza do Judiciário, porque todo mundo, podendo, prefere
fingir que ele não existe. Nesse tipo de assunto em que
ninguém tem pressa, a não ser os moradores da favela.
Defender os interesses difusos de uma floresta contra as
necessidades concretas da Rocinha ou do Vidigal é mesmo
uma coisa chata. Lei é sempre uma coisa chata,
sobretudo se precisa subir o morro em nome de uma
sociedade envergonhada pela fama que merecidamente
conquistou de ser desigual e injusta. Etc. e tal.
Mas, se é assim, para informar aos favelados que no lugar
onde eles moram a lei não entra a cidade não precisa do
traficante.
A urbanização brasileira no século XX, fenômeno no
planeta, está revelando sua face perversa. O viver em
cidades não tem mais como marca principal a pluralidade de
idéias, a maior circulação de bens e a proteção social.
Abandono, isolamento e brutalidade envolvem o cotidiano,
produzindo uma crise civilizatória sem precedentes.
Os números assustam: entre 1980 e 2000, os homicídios
aumentaram 130% no Brasil. Foram 600 mil assassinatos nas
duas últimas décadas, a maioria absoluta de jovens e por
armas de fogo, numa macabra média de 30 mil mortos por
ano.
Alvos fáceis desse genocídio, 15% dos jovens, nas capitais
e em seus entornos, não estudam e nem trabalham. Sem
oportunidades, são eles que constituem o “exército” do
tráfico varejista armado de drogas: só no Rio, somam 5
mil, com suas AR-15, AK-47 e granadas. Um arsenal estimado
em 3 mil armas pesadas!
A disputa pelas lucrativas “bocas”, entre grupos rivais,
ou com a polícia, quando ela se desvincula do esquema
ilegal, não caracteriza uma “guerra civil”, no sentido
clássico, apesar da letalidade superior à de países em
conflito. Nessas facções criminosas não há ideologia
nacional ou religiosa, nem pretensão de controle do poder
político. O que existe é fúria e barbarismo pela dominação
do mercado, com elementos psicossociais de desprezo a
valores elementares, como o respeito à vida alheia.
Este poder só se torna paralelo quando o Estado, como
acontece há décadas, apequena sua presença nas áreas
desassistidas, renunciando às suas funções de gestor do
bem-comum. Assim como o comércio de drogas e armas é
regido pela lógica capitalista, a intervenção “política”
do banditismo se dá pelo velho clientelismo praticado
pelas nossas elites: os chefões, “donos do morro”, dão
remédio na doença, assistência em troca de reconhecimento,
paternalismo interessado. E até decretam luto ou arbitram
questões locais, com a mesma agilidade despótica com que
“julgam” e executam desafetos. Regresso à barbárie?
A violência pode ser atenuada. Para tanto, é preciso que
os governos considerem prioritárias as políticas de
Segurança Pública, importantes demais para serem
implementadas apenas pelas polícias.
É urgente a criação, nas áreas segregadas, de programas de
educação, cultura e esporte, formação profissional e
geração de empregos, movidos a recursos captados para um
fundo público não estatal, coordenado por instituições de
credibilidade. Aos governantes, no que se refere às forças
de segurança pública, impõe-se adotar uma nova postura, de
humildade, colaboração e grandeza. As administrações e
poderes precisam estar unidos contra o banditismo
desagregador, combatendo inclusive a conivência dentro das
instâncias públicas, que têm setores capturados pela
criminalidade.
Outra inflexão urgente é na forma de atuação da polícia. A
melhor não é a que mais mata, mas a que é mais competente
na investigação e na prevenção. E que isola seus segmentos
corrompidos. Isto vale para a Polícia Federal e para as
polícias estaduais, Civil e Militar. Estas,
particularmente, devem se reconstruir como comunitárias,
controladas pela população.
É uma questão de concepção: o servidor policial, como o
seu colega gari, médico ou professora, tem o seu trabalho
permanentemente avaliado pelos moradores a quem ele tem a
missão de proteger. É inaceitável que as ricas
experiências de policiamento comunitário sejam
descontínuas e dependentes da boa vontade — rara — da
autoridade superior de ocasião.
As Forças Armadas, nesse mundo unipolar onde não há
“inimigo externo” a eliminar, têm um papel de defesa a
cumprir. À Guarda Costeira da Marinha cabe combater o
contrabando nos mares e portos. A Aeronáutica pode e deve
ter um sistema de vigilância do espaço aéreo, bem como o
Exército, com sua logística de informação, desvendará os
circuitos de tráfico e poderá ocupar, como força auxiliar,
pontos estratégicos do cinturão rodoviário dos grandes
centros.
Tudo isso está redigido como programa governamental:
Sistema Único de Segurança, coordenado pelo Gabinete de
Gestão Integrada. O desafio é efetivá-lo na vida real, já.
Para derrotar as forças da morte. Para não perecermos como
sociedade. CHICO ALENCAR é deputado federal (PT/RJ). MARCELO
FREIXO é presidente do Conselho da Comunidade do Sistema
Penitenciário do Rio de Janeiro.
"Não há dúvida de que, assim como a favela é o berço do
traficante, a economia informal é a creche da corrupção,
pública e privada"
Favela pode ter muitos
significados. Um dos mais interessantes diz respeito
à reação das pessoas e empresas diante de dificuldades,
freqüentemente impostas pelo próprio poder público, para o
desempenho de suas atividades, inclusive a de morar.
Pode-se dizer, por exemplo, que nosso sistema tributário,
bem como a legislação trabalhista, "faveliza" a economia,
pois condena empresas e pessoas a permanecer à margem das
regras. A "favela", nessa acepção, é a expressão espacial
da "economia informal", que adquire, na Rocinha como em
qualquer parte do Brasil, uma feição concreta, a de uma
"cidade precária", sem leis nem direitos, sobreposta à
cidade "formal".
A economia informal e a favela se
confundem, ambas desenvolvendo uma relação de coexistência
pacífica com a política, no âmbito da qual se formam
certas reciprocidades. Sucessivas gerações de
políticos, cariocas em especial, foram tornando a favela
intocável, reforçando a identidade dessas "comunidades",
as quais, tal como as empresas informais, passam a não
funcionar pelas mesmas regras que valem para o resto da
cidade. A começar pelo direito de propriedade, que
permanece mal definido, e de propósito, para que o
político "proteja" as comunidades. Estas, dessa
forma, se vêem cercadas de um "muro" invisível, que impede
a entrada do Estado, com seus atestados, impostos,
posturas, serviços, inclusive o de polícia.
Esse "muro", todavia, é
instável, como a dualidade entre o formal e o informal, e
tende à degeneração. A favela e a cidade se repelem,
embora dependam uma da outra. Na cidade há
desconforto, para não falar de tentações, em perceber-se que
na favela, ou na "informalidade", tudo é permitido, não há
tributos, encargos trabalhistas, restrições ambientais, nada
disso.
Na favela, por outro
lado, a ausência de Estado resulta na ascensão de uma
liderança "orgânica", capaz de exercer o chamado poder de
polícia. Ou seja, em razão do "muro", cria-se a
situação ideal para o crime organizado "governar", cooptar e
transformar essas comunidades em reféns ou apêndices de
atividades ilegais porém muito rentáveis.
Na economia informal o
processo é semelhante, também degenerativo, embora não
tenha, por ora, no Brasil, alcançado os extremos a que
chegou na Rússia, por exemplo. O sujeito pode começar
meio inocente, abandonando certas regrinhas tributárias e
trabalhistas, mas, com o crescimento do "caixa dois",
aparece a necessidade de "lavar" dinheiro, ou de estreitar
relacionamentos com fornecedores "ilegais", contrabandistas
ou receptadores, e transportadores ou distribuidores que
podem se organizar como quadrilhas, e que garantem vantagens
comerciais, e assim, aos pouquinhos, a empresa vai se
enredando com toda sorte de criminosos. Na Rússia,
formaram-se gigantescos "grupos empresariais", associados a
"máfias", que se embrenham nos mais variados setores onde,
por motivos variados, prevalece a informalidade.
Na favela, o sujeito
não investe no barraco porque a posse é duvidosa, daí o
gasto em eletrodomésticos, antenas parabólicas e aparelhos
de DVD, que se amontoam em barracos de péssima aparência.
Nas empresas "informais", a "propriedade" também é
controversa, em razão de contingências tributárias e
inadimplências, e o empresário investe fora da empresa, que
também tem péssima aparência quando observada através de sua
contabilidade formal.
Não há dúvida de que,
assim como a favela é o berço do traficante, a economia
informal é a creche da corrupção, pública e privada.
Sendo assim, é exasperante perceber que o poder público não
reconhece a favela, ou a economia informal, como problema.
Episodicamente reage com violência diante do que considera
abuso ou provocação, o que apenas agrava as coisas. A
atitude é semelhante à que prevalecia no tempo em que se
achava que a inflação não era problema, e, quando se
entendeu contrariamente, a primeira reação foi violenta e
ineficaz: congelamentos e confiscos. Demoramos a
compreender a abrangência do problema e a extensão do
esforço intelectual e da mobilização para erradicá-lo.
O mesmo deve ocorrer com a informalidade.
Gustavo Franco
é economista da PUC-RJ e ex-presidente do
Banco Central
Em 1950, havia no
mundo 86 cidades com mais de um milhão de habitantes.
Hoje há 400. Nos próximos 10 anos esse número deverá
pular para, no mínimo, 550. As favelas – já
inevitáveis – continuarão crescendo. Desorganizarão
as capitais e cruzarão sobre as regiões metropolitanas,
engolfando cidades e criando corredores contínuos que
controlarão os fluxos de capital e informação. Nessa
marcha, aumentará também a desigualdade entre cidades de
tamanhos e vocações diferentes. E, mais: 95% dessa
explosão populacional ocorrerão nas áreas urbanas de
países em desenvolvimento, como o Brasil.
Para quem acredita no que dizem prefeitos, governadores e
ministros sobre integração e crescimento das cidades,
ocupação do solo e contenção das favelas, há um achado na
revista New left review, edição de março/abril
passados. É Planet of Slums, literalmente
Planeta de favelas, artigo de Mike Davis (leitura
gratuita ou impressão em PDF, em inglês, no endereço
www.newleftreview.net/NLR26001.shtml).
Davis é aplicado arquiteto e urbanista americano,
professor de Teoria do Urbanismo do Instituto de
Arquitetura do Sul da Califórnia e autor, entre outros
livros, de Prisioneiro do sonho americano e
Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles
respeitadas obras sobre sua especialidade. Apoiado
em extenso e variado leque de fontes de consulta, ele
traça um inédito, por amplo, e sombrio futuro para o
universo urbano, tal como o conhecemos.
“O futuro muito próximo trará a marca de uma linha
divisória na história da humanidade”, alerta ele. “A
população urbana do mundo superará a rural e é bem
possível que isso já esteja acontecendo”. Os números
assustam: só a população urbana hoje (3,2 bilhões de
pessoas), já é maior do que a de todo o planeta em 1960.
Desde 1950, as cidades estão absorvendo cerca de 2/3 do
crescimento populacional, o que hoje significa, no mundo,
o acréscimo de um milhão de bebês e migrantes por semana.
Já não se trata,
portanto, da cansativa discussão entre políticos e
urbanistas do Rio e de São Paulo que tentam definir se as
favelas crescem para os lados ou para o alto. O
que Davis extrai de pesquisas e conclusões de
especialistas e organismos internacionais é que 95% dessa
explosão populacional ocorrerão nas áreas urbanas de
países em desenvolvimento.
“Nesses países, a população certamente somará mais de
quatro bilhões de pessoas, já na próxima geração”.
Brasil, China e Índia, juntos, terão população equivalente
à soma de toda a Europa com a América do Norte. Como
conseqüência, a maioria dos urbanistas sérios acredita que
surgirão megacidades com oito milhões de habitantes
construídas num inevitável rastro de degradação.
O que eles dizem: esse crescimento tornará
perfeitamente visível um conjunto de cidades e áreas
urbanas no qual, como as pesquisas da ONU têm alertado,
não haverá planejamento possível para acomodar ou atender
tanta gente com serviços. No Brasil, os sinais dessa
explosão começaram a vir à tona com o Censo do IBGE, em
2000. Descobriu-se que, apesar de São Paulo
continuar tendo o maior número de favelas, durante 10 anos
o Rio de Janeiro ganhou uma nova favela por mês. É
exemplo do que Davis considera urbanização sem
desenvolvimento. Fenômeno semelhante ocorre na África
sub-saariana, na América Latina, em alguns países da Ásia
e no Oriente Médio. Para o autor esse “é o legado
mais óbvio da globalização” e o resultado das políticas de
arrocho de organismos internacionais como o FMI na
reestruturação das economias. “A explosão das
cidades contrariou os modelos econômicos ortodoxos que
chegaram a prever crescimento negativo das cidades,
retardamento e até reversão no êxodo rural”. Um
fiasco que deixou de observar, por exemplo, casos como o
de Lagos, na Nigéria, onde a população saltou de 300 mil
em 1950 para 10 milhões hoje.
Pode-se considerar politizado o artigo de Mike Davis, como
acabam sendo – para o bem ou para o mal – as
questões sociais, mas não se lhe pode negar riqueza de
informação, da mais variada natureza, registrada em 106
notas-pé ao longo de 34 páginas. É por elas que se
descobre que o “surpreendente predomínio das favelas” no
mundo é o principal tema do sombrio relatório da ONU O
desafio das favelas. Trata-se do primeiro censo
realmente global da população miserável das cidades e
carrega um alerta que deveria deixar todos os governantes
de orelhas em pé: cada vez mais, as favelas serão
como vulcões. Será que tem algo a ver com o que já
se vê hoje no Rio de Janeiro?
Há outros dados surpreendentes, como a revelação segundo a
qual islamismo e pentecostalismo ocupam hoje espaços
análogos ao que socialismo e anarquismo ocuparam em
séculos passados. O islamismo seduziu populações na
África prometendo o paraíso na Terra e oferecendo ajuda
contra a brutalidade da vida diária, fraternidade e
solidariedade. O pentecostalismo encontrou terreno
firme para crescer na América Latina (Brasil e Peru,
principalmente). Redes de auto-ajuda, mulheres
pobres, fé capaz de curar como a medicina, recuperação de
alcoólatras, retirar crianças das tentações do cotidiano,
tudo isso ajudou as denominações religiosas a deitar
raízes sobre as favelas e periferias urbanas.
Não só pelo inesgotável sortimento de novidades o artigo
do urbanista Mike Davis torna-se atraente. À medida
que a leitura avança percebe-se o quanto governantes e
administradores no Brasil não têm a menor idéia do que
estão dizendo quando resolvem tratar de desenvolvimento
das cidades e ocupação do solo urbano. A
ex-cidade-modelo Curitiba está aí para mostrar que Davis
tem razão.
Alguém já ouviu falar que a favela,
um dia, daria prêmio em dinheiro ao asfalto? Pois é,
vai acontecer em junho, quando receberem seus cheques os
vencedores do concurso de textos “Sexualidade, violência e
justiça nos espaços populares do Rio de Janeiro” criado
pelo Observatório de Favelas, ONG que tem sede no chamado
Complexo da Maré e move céus e Terra para produzir estudos
e informações sobre essas áreas informais da cidade e de
outros estados. Pelo título, poderia ser um longo e
talvez enfadonho estudo sócio-antropológico sobre o
cotidiano de gente pobre do Rio. Anunciado como
concurso de textos, provocou a manifestação de três
dezenas de talentos e colheu numa banca julgadora
qualificada o resultado inédito. Paula Santos,
Flávio Aniceto e Márcia Zanelatto, os vencedores, não
integram faixa de renda alta da cidade, mas estão a léguas
dos barracos da Maré. Mais por escolha do que pelos
fundos na conta bancária.
Paula, 22 anos, é uma negra de riso fácil que cursa o 7º
período de Biomedicina na UFRJ e gosta tanto de histórias
que decorava, quando criança, as que ouvia da mãe. O
texto que construiu em uma semana e meia para o concurso (Ouroboros),
um conto, é o mais curto dos três vencedores. Mas
repleto de emoções em que predominam o desespero, a
descrença e a baixa auto-estima da protagonista em cujo
ponto de vista se alicerça a história, que tem traços
fortes de realidade. Paula nunca morou em favela, mas
passou perto. Adrelina, a avó, deixou 20 anos de
vida no morro da Coroa, em Santa Teresa.
A neta já conheceu a vida morando na rua do Riachuelo,
perto da Lapa. Quando tinha dois anos o pai resolveu
seguir em frente. Deixou a família nos braços de
Eliane, a mãe, uma pedagoga formada pela Universidade
Federal Fluminense, com mestrado em Ciência da Arte.
Em 2000, a família tomou o rumo de São Cristóvão, na Zona
Norte, onde ainda mora, e instalou-se numa casa de vila
com 23 simpáticos gatos alimentados com ração comprada
diretamente da fábrica. Com um pé no laboratório de
Bioquímica de Insetos, da UFRJ, e no Instituto Nacional do
Câncer, estágios que cumpre por exigência da graduação,
Paula tem o outro na arte: toca piano, flauta,
esculpe, desenha e, ufa!!, escreve. O prêmio – R$
1.500 –, em junho, se somará aos R$ 2.000 da renda
familiar.
Como Paula, Flávio Aniceto escreveu um conto. Mais
longo, mas certamente menos trabalhoso, já que em menos de
três dias estava pronto e não que lhe sobre tempo para
isso. Flávio trabalha na assessoria de um vereador,
pela manhã, e dedica suas tardes ao Canal Virtual, da
Funarte, onde se digitalizam acervos para botar no ar uma
emissora de rádio via Internet. Nada, porém, que o
tenha impedido de, nos últimos cinco anos, escrever cerca
de 100 textos que tratam basicamente de cultura popular.
Sua história para o concurso (Faça a coisa certa)
é menos dramática que a de Paula, tem amor adolescente e
referência mais direta ao que a cidade acostumou-se a
classificar como o dono do morro, o traficante que manda
no pedaço e está formalmente dividida em capítulos.
Mas tem um final que se poderia acreditar feliz.
Flávio tem 30 anos, e nunca viveu em favela. Nasceu
no centro de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e há dez
anos mora só, num quarto e sala da rua do Riachuelo, na
borda da Lapa, no Rio, área onde Paula já viveu. Ali
deixa quase R$ 500 dos R$ 3 mil que ganha por mês nos dois
empregos. Daqui um ano, quando concluir o curso de
produção cultural que faz na Universidade Cândido Mendes,
vai tratar de botar na rua um livro com os textos que
produz entre uma sessão e outra de cinema. Em junho, com
o prêmio que a favela lhe dará, bota no bolso mais mil
pratas.
O terceiro lugar no concurso é talvez o mais
surpreendente. Vem de uma mulher loura, olhos verdes, 33
anos, atriz, filha de um caminhoneiro e uma dona de casa.
Aos 16 anos, em 1987, Márcia Zanelatto (foto)
surpreendeu a escola Martins Pena e a cidade serrana de
Petrópolis, onde nasceu, ao declamar no palco de um
concurso de poesia e interpretação poema que escrevera
desancando a ditadura militar, que não vira nascer e da
qual não conhecida os efeitos. Seguia apenas a
trajetória política que iniciara um ano antes, aos 15,
quando vencera a eleição para a presidência do grêmio da
escola, com 60% dos votos de quatro mil alunos. Era
a mais velha de seis irmãos e a família morava num
apartamento minúsculo na serra. Os filhos dormiam na
sala, em beliches, e, pela manhã, acordavam cedo para
arrumar tudo e botar em vigência, durante o dia, o
ambiente social da casa. Passou por fábricas de
bijuterias e lojas de roupas da tradicional rua Teresa,
enquanto apascentava o sonho de criar asas e cursar
teatro. Um dia, um amigo que já morava no Rio
mandou-lhe o edital publicado pela Escola Estadual de
Teatro anunciando o vestibular. Fez, não passou e
voltou para Petrópolis com a derrota estampada na testa.
Pouco depois, porém, recebeu um telegrama do ator Anselmo
Vasconcelos, diretor da escola, que reconhecia seu talento
e a convidava para ingressar num curso de atores que ele
mantinha. Foi a conta. Com a conspiração
financeira da avó desceu a serra e acomodou-se no Rio.
Como convém aos aventureiros passou uma semana de fome.
Um amigo a apresentou a uma pessoa que a acolheu, de graça
e por longo tempo, no quarto de empregada do apartamento e
por aí vai. Casou, mas separou quando Gabriel, hoje
com 9 anos, estava para nascer.
Desde então sua vida oscila em dias de muito, períodos de
pouco e tempos de nada. Quando soube do concurso do
Observatório decidiu que entraria nele com uma peça de
teatro e a pôs de pé (Eles não usam tênis naique)
no último dia do prazo para a inscrição. Correu na
chuva no Centro da cidade em busca de um lugar onde as
cópias xerox fossem mais baratas, porque não tinha como
pagar o preço cobrado em Laranjeiras, o bairro onde mora.
O resultado é uma paulada. Um longo e desbocado
diálogo entre pai e filha enfiados até o pescoço no
universo do crime. O título passa por “Eles não usam
blak-tie”, de Guarnieri, e o ritmo roça “Dois perdidos
numa noite suja”, a conhecida peça de Plínio Marcos. O
prêmio – quinhentas pratas – ajudará a tapar alguns
buracos, já que o momento é de pouco. Muito pouco.
São esses os três moradores do asfalto que, na contra-mão
do que a elite da cidade pensa, receberão uma erva de uma
favela. Mas não é só. Semana passada, uma dúzia de
homens armados com picaretas rasgava o asfalto ondulado de
uma rua estreita e recheada de botequins e oficinas de
serventia variada na favela Nova Holanda, uma das 13 que
compõem a área conhecida como Complexo da Maré, no
entroncamento das linhas expressas Vermelha e Amarela, na
Zona Norte do Rio. O movimento levou à pergunta:
o que é isso, água? “Não, a Telemar está instalando
o Velox”, informou Jailson de Souza, coordenador do
Observatório de Favelas. Era a segunda surpresa do
dia: no lugar que a cidade considera símbolo de
miséria e violência, a demanda por um serviço caro e
sofisticado de acesso à Internet por banda larga cresceu a
ponto de encher os olhos de uma operadora privada de
telefonia.
Dormita nos arquivos do Instituto
Pereira Passos, entidade da prefeitura do Rio para estudos
e pesquisas, um conjunto de informações que pode deitar
terra no mito da intocabilidade das favelas da cidade.
O trabalho “Dinâmica do
mercado de solo informal em favelas e a mobilidade
residencial dos pobres” destrinchou o
universo imobiliário de 15 favelas e foi concluído pelo
economista Pedro Abramo. Das 18 páginas de texto e
tabelas que escreveu emerge um quadro tão interessante,
quanto pouco oferecido ao conhecimento do asfalto.
Uma das revelações mais
importantes reside no
elevadopercentual (27%)
dos quegostariam,
mesmo,
é deuma casa maior em Bangu
ou Campo Grande,
com uma bela escritura lavrada em
cartório.
Brotam da pesquisa outros dados surpreendentes, como a
constatação de que, na média, a cada três moradores de
favela dois são donos do teto que lhes protege o sono.
Apesar de menor, 1/3 não deixa de ser número alto para a
fatia dos explorados por aluguéis cada vez mais altos.
É o que faz lembrar dos últimos 28 barracos derrubados na
já removida favela Roque Santeiro, em Jacarepaguá.
Pertenciam à respeitável moradora de Copacabana que, por
unidade, embolsava um salário mínimo.
Melhor do que isso é saber que nem
tão miseráveis assim são os moradores das favelas, já que
66,5% dos negócios são feitos a vista e em 27% dos casos a
origem do dinheiro está na venda de outro imóvel. Ou
seja, como no asfalto. Alguém tem um imóvel, vende,
junta o dinheirinho que guardou e parte para algo melhor.
Desses, 25% conseguem empréstimos com parentes e 18%
lançam mão da poupança. E mais: só 11,5% dos
entrevistados tinham usado o FGTS para integralizar a
poupança. Uma situação talvez algo melhor do que a
da depauperada classe média. Tanto é assim que 85%
desses compradores sequer tentaram negociar o preço.
Pagaram o que era pedido pelo vendedor e pronto.
Esse é o panorama médio na maioria
das favelas examinadas (Borel, Cachoeira grande, Campinho,
Divinéia, Grotão, Lagartixa, Tuiuti, Vigário Geral, Vila
Rica do Irajá, Vila Vintém, Jacaré, Joaquim de Queiroz e
Parque Acari). As exceções ficam por conta de
Tijuquinha, no Itanhangá, e Pavão-Pavãozinho, em Ipanema.
Nessas predomina o aluguel. Na Tijuquinha,
certamente, o preço dos imóveis (R$ 29,6 mil, em média,
ano passado) inviabiliza um volume maior de negócios. Na
favela Pavão-Pavãozinho, como em áreas marcadamente
violentas, o normal seria um mercado com grande número de
ofertas, o que a pesquisa não encontrou. Talvez tenha
coincidido com a época em que por lá se instalou o
Batalhão de Operações Especial da PM, que pacificou o
morro sob o comando do major Carlos Carballo.
Nas demais, o valor médio de compra para um imóvel de dois
quartos estava em R$ 11,5 mil, na época da pesquisa.
Para a venda, a média fica em torno de R$ 16 mil.
Parte de um mínimo de R$ 4,3 mil, em Vigário Geral, e
chega a R$ 18 mil na Lagartixa.
Não só pelo bolso, porém, a favela galga a escala social.
A pesquisa encontrou, entre os compradores, grau de
instrução mais alto do que o dos vendedores: 40% dos
compradores tinham o curso secundário (13,9% completo e
26,23% incompleto). Os vendedores com instrução
secundária chegavam a 30,58% (11,03% completo e 19,55%
incompleto). São assalariados, na maioria (64,75%)
os compradores, enquanto os autônomos não passam de
32,25%. E nas áreas que foram atendidas pelo
Favela-Bairro os assalariados chegam a 70%.
É forte também a presença feminina nesse mercado.
Nas favelas pesquisadas os compradores em mulheres em sua
maior parte (62,3%) e chegavam a 85,7% em comunidades como
Borel e Parque Acari. Também eram maioria entre os
vendedores, mas, curiosamente, nos lugares reformados pelo
Favela-Bairro e teoricamente mais valorizados o percentual
de mulheres cai para 58%. A predominância feminina
nesse mercado de imóveis, segundo a pesquisa, tem
explicação “na importância das redes sociais na vida
cotidiana das comunidades de favela”. Em português e
comparado ao que ocorre no asfalto, costuma ser da mulher
a decisão pelo investimento e a escolha da casa.
A pesquisa é longa e amplamente reveladora das condições
sócio-econômicas dos moradores de favelas. Mas seu
traço mais renovador talvez seja a oferta de um novo jeito
de olhar a favela, pela primeira vez desde que o poder
público e o interesse político a traduziram para a cidade
como lugar do cidadão de segunda classe. Os preços
dos barracos negociados nessas áreas e o expressivo número
dos que gostariam de ter uma casa com existência formal no
Registro Geral de Imóveis derrubam de vez a lorota de que
favela é a desordem urbana intocável. A partir do
trabalho de Abramo desaparece o discurso segundo o qual
favela é alternativa de casa própria barata para quem não
tem onde morar.
O Observatório de Favelas, ONG instalada na comunidade da
Maré que produz estudos e pesquisas sobre as comunidades,
tem uma boa história para contar sobre as suposições dos
políticos em relação às favelas. Há alguns anos, a
Light procurou uma ONG – na época muito importante e
administrada pela esquerda. Queria uma pesquisa para
descobrir por que só 35% dos moradores da Maré pagavam
suas contas de luz e campanha para que pagassem as contas
de luz. O funcionário que levou a proposta foi posto
para correr. Ouviu que fazer gato na luz era
estratégia de sobrevivência das comunidades pobres.
Felizmente a empresa não se deu por achada e foi ao
Observatório. Uma campanha mostrou aos moradores que
cidadania tem preço e que quem paga conquista o direito de
reclamar. Hoje, 87% dos moradores comparecem ao
guichê com a conta na mão. Em compensação, a Light
pia fino na Maré. Nunca mais se ouviu falar de apagão por
aquelas bandas.
Como atividade, a administração pública guarda relação com
habitação, saneamento, transporte, coisas de que todo
mundo gosta e sabe que não sai de graça. Quando se
dedica a adubar favelas com favores para colher votos do
rebanho pode estar confundindo política com agropecuária.
Não há dúvida que algumas obras públicas importantes para a
infra-estrutura da cidade do Rio de Janeiro têm sido
realizadas, mas os fatos demonstram que continua relegada a
segundo plano a questão da ocupação irregular de terras
públicas e privadas. O combate à favelização é vital para a
qualidade de vida dos cariocas. A necessidade urgente de
estancamento da expansão das favelas e de sua remoção, parcial
ou total, são componentes indispensáveis de uma política
ambiental focada na proteção da cidade. Vamos a alguns
exemplos desse processo de abandono:
Morei durante 11 anos na Rua General Ribeiro da Costa, no
Leme. Durante todo esse tempo, a Favela Babilônia era uma
comunidade pequena e estável.
Recentemente, verifiquei – não sem espanto – que as moradias
ilegais haviam se espalhado, em grande número, na encosta por
detrás de prédios da rua. Isso nas barbas das autoridades e da
comunidade, que parecem se fazer de
mortos. É importante frisar que as residências que pude
avistar são construções de alvenaria e com esquadrias de
alumínio, possuindo aparelhos de ar condicionado e antenas
parabólicas. Fui informado de que há um processo de
‘urbanização’ desses imóveis, ou seja, de legalização do
ilegal. Fazê-lo é premiar quem infringe a lei e viola os
direitos do restante da sociedade, é consumar um fato claro de
degradação urbana e castigar quem anda na legalidade.
Há alguns anos, um grupo de moradores da Gávea e do Jardim
Botânico lutam contra a absurda invasão dos entornos do
arboreto do Jardim Botânico (JBRJ). Essa instituição possui um
dos mais importantes acervos botânicos
neotropicais e é um patrimônio nacional (cultural, histórico,
científico e ambiental). A sua ocupação começou com famílias
de ex-funcionários, mas atualmente a esmagadora maioria das
pessoas que lá moram ilegalmente nada
tem a ver com o JBRJ.
Novamente, uma simples visão das casas revela que não se trata
de um mero problema social. A verdade é que morar nessa área –
fundamental para o Jardim Botânico – é agradável, gratuito e
valoriza as “propriedades”. As
ações para recuperar esse espaço público são burocráticas e
desprovidas de qualquer empenho.
Uma das características marcantes do aprazível bairro da Urca
sempre foi a ausência de moradias ilegais. Mas, não é mais...
Há poucos anos, uma favela começou a se desenvolver na encosta
ao fundo do terreno do Instituto
Benjamin Constant. Novamente, as autoridades se fingem de
mortas; afinal de contas – quem sabe? – talvez ninguém
perceba…
Ao se contornar o Parque Natural Chico Mendes em direção à
Avenida Sernambetiba e ao Pontal do Recreio, ao redor do Rio
das Tachas, se vê uma nova comunidade que cresce irregular e
aceleradamente. São construções
recentes, sem infra-estrutura e que põem em risco, como
sempre, a qualidade do meio ambiente e o bem estar da
população que paga impostos...
Este é apenas um resumo de alguns dos principais problemas que
terminarão por inviabilizar o Rio como uma cidade agradável de
se viver. Favelas pululam pela cidade inteira e o quase
absoluto laissez-faire da administração pública, somado à
baixa participação das comunidades na defesa de seu bem-estar,
atuam em sinergia, potencializando os seus efeitos e
dificultando o seu inadiável enfrentamento. O que de objetivo
– e efetivo – fazem as autoridades? Alguém ouviu qualquer dos
candidatos a prefeito abordar seriamente algum desses
problemas? Ou a sociedade age, ou a cidade ficará cada vez
mais à deriva.
BRASÍLIA - Doutora em urbanismo pela Universidade de Nova
York, a paulistana Raquel Rolnik, de 47 anos, recebeu do
governo do PT a missão de levar moradia digna para os
brasileiros pobres e regularizar as favelas. Como secretária
Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades,
Raquel está em Barcelona, na Espanha, negociando uma das
propostas do país para buscar mais recursos para a moradia.
Durante o Fórum Urbano Mundial – em que estão representantes
de 191 países – Raquel vai destrinchar a sugestão de um acordo
internacional para que os investimentos em habitação e
saneamento sejam excluídos do conceito de dívida para efeito
de cálculo do superávit primário. Uma forma de liberar
dinheiro para habitação.
Nesta entrevista, Raquel dá algumas explicações sobre o mais
ambicioso projeto do PT: levar moradia e saneamento a 16
milhões de famílias. Uma das grandes novidades é que o governo
federal vai dar subsídios pesados para a moradia popular.
– A maioria dos países aceita esse acordo para excluir
habitação do conceito de dívida para o cálculo do déficit
primário? Como está a negociação?
– A idéia é angariar apoios no campo internacional, na linha
do que o presidente Lula tem trabalhado em relação aos países
pobres. Os números da precariedade no Brasil estão
concentrados na faixa de zero a três salários
mínimos de renda. No campo internacional, os grandes números
de precariedade urbanística sem acesso a água, esgoto e
saneamento também são em faixas de renda muito baixas. Isso
significa que essa é uma população que, para poder receber
infra-estrutura, moradia adequada e ter resolvido o seu
problema, precisa ter uma altíssima dose de subsídio. É uma
população que não tem condições de pagar um financiamento,
porque financiamento tem que ter retorno, não só do principal
mas também dos juros. Primeiro, é preciso aumentar o
endividamento público para poder colocar o subsídio nessas
questões. E um dos grandes problemas que temos hoje para
aumentar essa intervenção e esse financiamento é justamente o
impacto que isso tem na dívida do setor público.
– Mas a idéia é bem aceita?
– A idéia é evidentemente aceita. A Argentina, por exemplo,
foi uma das maiores vítimas da política urbana adotada na
década de 90. O país aplicou a receita neoliberal, e o efeito
que isso teve foi uma degradação das
condições de vida dos argentinos, que tinham uma condição
melhor no campo da habitação. Foi onde a aplicação do
paradigma foi mais completo e teve um efeito devastador, com a
diminuição do papel do Estado e o aumento da participação do
setor privado na área de infra-estrutura urbana. Isso se
traduziu em muitos lugares na privatização dos serviços e na
descentralização da direção dos municípios.
– A palavra subsídio era proibida nesse período.
– Absolutamente proscrita.
– O que se vê no Brasil, então, é que sem subsídio não tem
como sair do buraco?
– Sem subsídio, não há
como chegar nas famílias mais pobres, onde está concentrado o
déficit. Um dos pilares do paradigma dos anos 90 é que todos
os investimentos têm de ter retorno financeiro. Todo
investimento em água, esgoto, habitação tem de ter retorno. É
isso que foi aplicado.
– Isso distanciou ainda mais os pobres dos ricos?
– Temos que dizer que algumas medidas foram fundamentais,
porque havia sangria, malversação de recursos públicos,
superfaturamento, obras que eram contratadas e nunca eram
feitas. Portanto, existe um lado importante nessa história.
– Passa um pouco pela Lei de Responsabilidade Fiscal?
– A lei é importante para moralizar. Mas não é preciso só
moralizar. Temos um problema sério a resolver.
– Dessas 100 milhões de famílias de que a senhora fala,
quantas vivem no Brasil?
– Poderíamos resumir a situação brasileira trabalhando com o
conceito de moradia precária, adotado pela ONU. Trata-se de
assentamentos contíguos, caracterizados por condições
inadequadas de habitação e ausência de serviços básicos, e não
reconhecidos pelo poder público como parte integrante da
cidade. São cinco os componentes que refletem as condições que
caracterizam o assentamento precário: status residencial
inseguro – ou seja, moradia irregular – acesso inadequado a
água potável, acesso inadequado a saneamento e a
infra-estrutura em geral, baixa qualidade estrutural dos
domicílios e adensamento excessivo – muita gente morando na
mesma casa.
– No Brasil, quantas pessoas vão se encaixar nesses critérios?
– Em torno de 16 milhões
de famílias. Cerca de 55 milhões de pessoas.
– Ou seja, o Brasil tem 55 milhões de pessoas em assentamentos
precários?
– É muito difícil dizer, porque o IBGE chama as favelas de
aglomerados subnormais. Nessa categoria, há 1,7 milhão de
domicílios. Mas, como falei, isso não dá conta de todo o
universo. Para o IBGE, aglomerados subnormais são as favelas
precárias. Alargando-se esse conceito além das favelas e das
ocupações, considerando também os loteamentos irregulares e
clandestinos, há muito mais gente. Esse número é subestimado,
porque o conceito de favela do IBGE é muito estrito. Por
exemplo, a Rocinha, para o IBGE, não é favela.
– E para o ministério, a Rocinha é favela?
– Nós trabalhamos com dois números: O universo que o IBGE
chama de favela e o universo maior que nós chamamos de
assentamentos precários, em que entra a Rocinha.
– Na área de saneamento, a empresa pode recuperar os
investimentos em forma de tarifa. Já para a habitação, não há
esse tipo de retorno. Por isso a necessidade do subsídio?
– Mesmo em saneamento, essas empresas que pediram
financiamento são poderosas, de cidades ricas, e conseguem
retornar em tarifa. Mas e a empresa do Piauí, que precisa
desesperadamente de saneamento? Ou do Maranhão? O que farão as
empresas que não têm como recuperar o dinheiro com tarifas?
– Então o subsídio é necessário para moradia e também para
saneamento em Estados pobres?
– Para Estados ou cidades pobres ou, por exemplo, para
favelas. Essa verba para saneamento que foi liberada não
chegará às favelas.
– Os R$ 2,9 bilhões liberados pelo governo este ano não vão
atingir as favelas ainda?
– Não, porque não há a possibilidade de retorno com tarifa.
Teremos de trabalhar uma equação para favelas e aglomerados
informais.
– Como está hoje a regularização de favelas?
– O programa de regularização fundiária, papel passado sempre
por meio de parcerias com os municípios, já está sendo
implementado no país. Hoje, já temos 256 mil famílias em
processo de regularização.
– A senhora tem uma idéia de quantos imóveis vagos existem no
país?
– Os domicílios urbanos vagos no país são quase 5 milhões.
– Então daria quase para resolver o problema do déficit, de
6,6 milhões de moradias?
– Teoricamente, sim. É esse o nosso paradoxo. Claro que nem
tudo dá para aproveitar, porque há coisas caindo aos pedaços.
Esses domicílios urbanos vagos estão em duas pontas: nas
pequenas cidades do interior que perderam população, porque a
população migrou e a cidade tornou-se fantasma, com um monte
de casas vazias e fechadas, e nos grandes centros urbanos.
– É bom o eleitor ficar de olho no prefeito que tem uma
proposta de plano diretor que possa auxiliar nessa
distribuição equitativa fundiária?
– Infelizmente, é um tema pouco discutido. O ministério das
Cidades tem procurado difundir isso, tem procurado
disponibilizar informações, fazer capacitação, prestar
assistência técnica, apoiar a disseminação dessa
informação. Nossa intenção é lançar, a partir de 2005, uma
grande campanha nacional pela implementação de planos
diretores que tenham como um dos eixos o acesso à terra
urbanizada, formal e bem localizada para os mais pobres.
– Os movimentos dos sem-teto no Brasil já estão cientes da
importância de se mobilizarem para criar novos planos
diretores, mais igualitários?
– Os movimentos populares de moradia mais organizados –
principalmente os que têm organizações nacionais, como a União
de Movimentos de Moradia, o Movimento Nacional de Luta pela
Moradia, a Confederação Nacional de Moradores e a Central dos
Movimentos Populares, as quatro centrais de movimentos de
sem-teto mais organizadas nacionalmente – têm absoluta
convicção da centralidade dessa questão, tanto é que já estão
fazendo ações internas de capacitação dessas lideranças para
participar das discussões dos
planos diretores em suas cidades.
– Essa campanha é sinal de que municípios e Estados ainda não
estão conscientes para essa mudança?
– Não totalmente. A tarefa não é fácil. A política urbana é
marcada por pragmatismo, dinheiro e obras. É difícil discutir
planejamento no país, mas esse governo acredita em
planejamento e acha que é importante implementá-lo.
– Além da campanha, que tipo de intervenção o governo federal
pode fazer junto aos municípios?
– A idéia, não no curto prazo, é uma discussão feita com nosso
Conselho das Cidades. O objetivo é que, no futuro, possamos
condicionar o repasse de recursos para o município, para fazer
obras, à existência de um plano diretor que contempla essa
questão fundiária. A idéia é fazer isso no conjunto do
ministério das Cidades. Ou seja, o financiamento na área de
transporte, ambiental e habitação, o conjunto dessa área de
infra-estrutura
urbana, deve ser priorizado nas cidades que têm planejamento
territorial e participação dos cidadãos na gestão
pública.
Coisas do
Brasil: Os sem-teto e os sem-competência
Jornal do Brasil, 4 de novembro de 2004
Israel Tabak
Repórter político do Jornal do Brasil
Logo depois do segundo turno, os
sem-teto, de novo, mostraram a cara: invadiram
prédios desocupados em São Paulo e prometem mais. Só
os políticos parecem ignorar que o movimento vem
crescendo, se organizando. Não será surpresa se em
pouco tempo essa turma estiver dando tanta dor de cabeça
ao governo quanto os sem-terra.
Os sem-teto não apareceram por acaso.
São o resultado de décadas de omissão, incompetência, ou
de um repetitivo exercício de tapeação na área
habitacional. No tempo da ditadura, o extinto Banco
Nacional de Habitação pensava que os pobres poderiam
comprar casas populares a preços de mercado. Deu no
que deu. Inadimplência em massa, imóveis abandonados
ou destruídos, ruína total. Quando os técnicos do
banco acordaram e propuseram alternativas mais realistas,
como o projeto do lote urbanizado, já era tarde. O BNH
acabou, pouco depois.
Se com o banco era ruim, sem o banco
piorou. Não subsistiu sequer um arremedo de política
habitacional. Além do bem-intencionado esforço
localizado de algumas poucas prefeituras, só apareceram
paliativos e programas inconsistentes ou demagógicos, em
todas as esferas de poder.
Volta e meia surge o mote da
regularização fundiária. Mas como regularizar
barracos construídos em cima de leitos de rios, embaixo de
redes de alta tensão, em terrenos alagadiços, em encostas
prontas para cair, ou na terra dos outros? Eleição
finda, já aparecem prefeitos prometendo erguer casas por
atacado. Mais uma empulhação.
A situação é muito clara, expondo o
tamanho da carência. Num país em que o salário da
esmagadora maioria da população chega a níveis tão baixos,
o pobre simplesmente não tem dinheiro para comprar uma
casa decente. Por isso, qualquer política
habitacional só vinga se as casas forem quase que
totalmente subsidiadas. Certamente a atual
orientação econômica do governo não vai tolerar uma
mudança do quadro, a curto prazo. Aperto fiscal não
permite essas liberalidades. Assim, o Ministério das
Cidades não pode mesmo deslanchar. O resto é
conversa de político.
O Favela-Bairro é um programa que todos reivindicam, mas está
na Lei Orgânica do Município de 1990, e no Plano Diretor de
1992. Esse programa é um reconhecimento de que as autoridades
desistiram de modificar a estrutura
da sociedade capitalista. Eles aceitaram-na como natural e
verdadeira. É um reconhecimento de que existem ricos e pobres
como um fato natural. De que há lugares para ricos, como a
Barra da Tijuca, e lugares para pobres, as
favelas. Isto é uma forma populista de manter pobres e ricos
em seus lugares.
Do ponto de vista de inclusão real, esse projeto tem muito
pouco a dizer. O plano original da Lei Orgânica era o combate
à favelização do Rio de Janeiro. A história dos 10 anos do
Favela-Bairro mostra que, ao dotar uma
comunidade como a Rocinha de infra-estrutura, isto funciona
como um atrativo para que surjam outras favelas, outras
ocupações desordenadas, que sejam, posteriormente,
urbanizadas.
Isto não é acompanhado por um projeto concreto de
transformações na sociedade, que vise transformar as condições
materiais de vida da população, e não fazê-la habitar
biroscas, que não servem para classes mais elevadas. É
muito claro que falta educação e projetos sociais. A maior
parte dos presos, em nossa cidade, continua sendo de jovens
oriundos de favelas.
É interessante notar que Leonel Brizola foi chamado de louco
ao criar seu programa educacional. Virou tema de novela sua
proposta de criar um elevador no Pavão-Pavãozinho. Hoje essas
idéias são abraçadas. Antes isso era chamado
de populismo, agora é o quê? O Favela-Bairro só faz uma
maquiagem das formas perversas de desigualdade social que
foram estruturadas neste país.
Claro que os indivíduos que estão, momentaneamente, no poder,
e herdaram este panorama, não podem mudá-lo em seis meses, um
ano, mas este projeto apenas reproduz populismo. Quem paga
pelo crescimento desordenado da cidade é a classe média, com o
aumento de suas tarifas de água e luz. A desigualdade entre
classes sociais, não se resolve dando um prato de comida, ou
pintando uma favela.
As péssimas condições de existência engendram o aumento da
violência e da insegurança. A idéia de resolver,
concretamente, estes problemas está sendo enterrada. Estamos
perdendo a dimensão da utopia, de construir uma sociedade
fraterna e justa.
*Aluizio Alves Filho é professor do Instituto de Filosofia e
Ciências
Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Os programas implementados na cidade do Rio de Janeiro pelo
prefeito César Maia estão completando 10 anos. Uma vez que ele
é candidato à reeleição e não tendo, até aqui, apresentado
qualquer proposta nova, a campanha
eleitoral ganhará o formato de um plebiscito, no qual a
população irá se pronunciar sobre o resultado do decênio de
trabalho do seu prefeito.
É época propícia, portanto, para que se fale um pouco dos
resultados efetivos dos programas que ele implementou.
Em razão da criminalidade crescente com residência nas favelas
e comprovadas causas sociais, o primeiro programa a ser
avaliado, entendo, deva ser o ''Favela-Bairro'', que, como o
próprio nome apregoa, deveria funcionar como
um esforço de integração social, bem mais do que uma
integração urbanística.
Houve essa integração social ao largo dos 10 anos em que o
programa está por aí?
Uma pesquisa publicada no fim do ano passado pela revista
Conjuntura Econômica, da Fundação Getúlio Vargas, comprova que
não. Tem como título O trabalho nos morros cariocas e como
base o Censo Demográfico de 2000, do
IBGE. O trabalho, de autoria do professor Marcelo Néri, chefe
do Centro de Políticas Sociais do Instituto Brasileiro de
Economia e diretor da Fundação Getúlio Vargas, cruza dados
sociais referentes a trabalhadores residentes
nas favelas do Jacarezinho, Maré, Complexo do Alemão, Rocinha
e Cidade de Deus com dados referentes a trabalhadores
residentes nos bairros da Lagoa, Barra da Tijuca, Botafogo,
Copacabana e Tijuca.
Mostra que a renda média obtida pelos trabalhadores residentes
nas favelas está em R$ 402,00, enquanto a dos trabalhadores
residentes nos bairros está em R$ 2.175,00, para jornadas de
trabalho que variam entre 45,9 horas
semanais para os moradores nas favelas e 40,6 horas para os
moradores nos bairros. A taxa média de desemprego para os
residentes em favelas está em 19,1%, enquanto para os
moradores dos bairros está em 9,9%; e o percentual
de empregos formais, ou seja, com as garantias trabalhistas
asseguradas em lei, na casa dos 8,9% para os residentes em
favelas e 20,8% para os moradores nos bairros.
A razão dessas abissais diferenças a própria pesquisa
sinaliza. Os trabalhadores residentes em favelas apresentam
6,2 anos de escolaridade, enquanto os trabalhadores que
residem nos bairros estudam, em média, 11,9 anos e ingressam
no mercado de trabalho bem mais tarde.
Está claro, portanto, que o programa ''Favela-Bairro'',
administrado pela Prefeitura do Rio, se somado a um trabalho
intensivo de educação nas favelas, também de responsabilidade
da prefeitura, poderá render resultados
altamente positivos para a qualidade de vida da população da
cidade e para a redução da criminalidade.
Para quem acredita que a violência é assunto só para polícia e
Judiciário, a pesquisa comprova que há, no arco de atribuições
da prefeitura municipal, muito que se possa fazer no sentido
de reduzir a criminalidade. É relevante
também salientar as palavras do professor Marcelo Néri quando
encerra a apresentação da pesquisa, na revista Conjuntura
Econômica: ''Apesar das agruras da vida privada das favelas
cariocas, a maior carência parece ser a
de Estado''.
Este é mais um convite à reflexão, com as coisas nos seus
devidos lugares.
Não há dúvida de que algumas obras públicas importantes para a
infra-estrutura da cidade do Rio de Janeiro têm sido
realizadas, mas os fatos demonstram que continua relegada a
segundo plano a questão da ocupação irregular de terras
públicas e privadas. O combate à favelização é vital para a
qualidade de vida dos cariocas. A necessidade urgente de
estancamento da expansão das favelas e sua remoção, parcial ou
total, são componentes
indispensáveis de uma política ambiental focada na proteção da
cidade.
Vamos a alguns exemplos desse processo de abandono.
Morei durante 11 anos na Rua General Ribeiro da Costa, no
Leme. Durante todo esse tempo, a favela Babilônia era uma
comunidade pequena e estável. Recentemente, verifiquei - não
sem espanto - que as moradias ilegais haviam
se espalhado, em grande número, na encosta por detrás de
diversos prédios da rua. Isso nas ''barbas'' das autoridades e
da comunidade, que parecem fazer-se de mortos. É importante
frisar que as residências que pude avistar
são construções de alvenaria e com esquadrias de alumínio,
possuindo várias delas aparelhos de ar- condicionado e antenas
parabólicas. Fui informado de que há um processo de
''urbanização'' desses imóveis, ou seja, de
legalização do ilegal. Fazê-lo é premiar quem infringe a lei e
viola os direitos do restante da sociedade, é consumar um fato
claro de degradação urbana e castigar quem anda na legalidade.
Há alguns anos um grupo de moradores dos bairros da Gávea e do
Jardim Botânico lutam contra a absurda invasão dos entornos do
arboreto do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Essa
instituição, com quase dois séculos de
vida, possui um dos mais importantes acervos botânicos
neotropicais e é um patrimônio nacional (cultural, histórico,
científico e ambiental). A sua ocupação começou com famílias
de ex-funcionários, mas atualmente a
esmagadora maioria das pessoas que lá moram ilegalmente nada
tem a ver com a instituição. Novamente, uma simples visão das
casas revela que não se tratade um mero problema social. A
verdade é que morar nessa área - fundamental para o Jardim
Botânico - é agradável, gratuito e valoriza as
''propriedades''. As ações para recuperar esse espaço público
são burocráticas e desprovidas de qualquer empenho.
Uma das características marcantes do aprazível bairro da Urca
sempre foi a ausência de moradias ilegais. Mas, não é mais...
Há poucos anos, uma favela começou a se desenvolver na encosta
ao fundo do terreno do Instituto
Benjamin Constant. Novamente, as autoridades fingem-se de
mortas: afinal de contas - quem sabe? - talvez ninguém
perceba.
Ao se contornar o Parque Natural Chico Mendes em direção à
Avenida Sernambetiba e ao Pontal do Recreio dos Bandeirantes,
ao redor do Rio das Tachas, vê-se uma nova comunidade que
cresce irregular e aceleradamente. São
construções recentes, sem infra-estrutura e que põem em risco,
como sempre, a qualidade do meio ambiente e o bem-estar da
população que paga impostos.
Este é apenas um resumo de alguns dos principais problemas que
terminarão por inviabilizar o Rio como uma cidade agradável.
Favelas pululam pela cidade inteira e o quase absoluto
laissez-faire da administração pública e a
baixa participação das comunidades na defesa de seu bem-estar
atuam em sinergia, potencializando os seus efeitos e
dificultando o seu inadiável enfrentamento. O que de objetivo
- e efetivo - fazem as autoridades? Alguém
ouviu qualquer dos candidatos a prefeito abordar seriamente
algum desses problemas? Ou a sociedade age, ou a cidade ficará
cada vez mais à deriva.
Poucas coisas acontecem por obra e graça de uma só causa. A
despeito de a inteligência ser desafiada a desvendar
intrincados quebra-cabeças, os sistemas intelectuais que mais
fazem sucesso são os monocausais. No Brasil, os grupos (semi)
letrados adoram reduzir todos os males ao Sistema. O populismo
acadêmico e a demagogia eleitoreira, ao sacralizarem a pobreza
e demonizarem a riqueza, o máximo que conseguem é acirrar a
luta de classes e instituir a esmola oficial. Os problemas
sociais mais graves - da violência inaudita à favelização dos
grandes centros - se agigantam porque não há autoridade que se
disponha a atacar suas causas. Vem de longe a preferência
nacional por inculpar forças ocultas e inimigos externos.
Diante dos desafios cotidianos, as autoridades recorrem ao
escapismo. Não por acaso, em vez de tentar melhorar a
qualidade do ensino oferecido a pobres e remediados nossos
excelsos governantes têm optado pela saída fácil das cotas
raciais nas universidades. Em vez de fazer campanha pelo
planejamento familiar, gastam em propaganda rios de dinheiro
para alardear programas assistencialistas que só fazem
perpetuar a pobreza.
O ritmo de expansão demográfica no Brasil era de 3% entre 1950
e 60. Caso tivesse se mantido, hoje o País teria 262 milhões
de habitantes e certamente estaria mergulhado num quadro
social ainda pior. Permanece, a despeito de ter declinado para
1,44% ao ano, bem acima da média mundial. Não precisamos
de estatísticas, de censo do IBGE, para perceber que a
população cresce de forma significativa entre os segmentos
mais pobres da população. Basta observar o aumento expressivo
do número de favelas no Rio de Janeiro. Há enormes diferenças
entre os índices de fecundidade nas famílias de mais baixa
renda e rala instrução e os de estratos sociais que se situam
acima delas na pirâmide social. E isto explica por que a
pobreza só tem feito aumentar. É fácil atribuir a deterioração
do quadro social brasileiro à exploração capitalista. Nas
faixas de renda mais alta e de melhor nível de instrução a
população cresce a uma velocidade inferior a 0,5% por ano
enquanto que nas faixas de renda mais baixa e nível de
educação raso o índice ultrapassa os 2%. São estes números que
ajudam a entender como, em que pesem os programas sociais que
têm sido adotados, a pobreza tem crescido. E para piorar esses
dados, não se pode esquecer que o Brasil se destaca pelo
número expressivo de adolescentes grávidas.
A despeito de não ser uma panacéia, o planejamento familiar
muito pode contribuir para evitar a expansão alarmante da
pobreza. Em vez de gastar uma dinheirama com miragens
assistencialistas, os governantes deveriam, depois de
priorizar os desafios da saúde e educação, investir em
campanhas institucionais em prol do planejamento familiar.
Causa espécie que as feministas se calem a respeito do tamanho
das famílias pobres. Como a mulher pode se liberar tendo uma
penca de filhos que a impede, entre outras coisas, de se
profissionalizar? A classe média limitou o número de filhos
não só por razões econômicas mas também para que a mulher
pudesse dedicar mais tempo a si mesma e à sua formação
profissional. Uma mulher que chega a passar dez anos tendo
filhos fica dependente do marido ou se condena a atividades de
baixíssima remuneração. Os pobres estão nessa
condição, entre outras razões, porque carecem de informações e
meios para tomar as decisões que são de seu interesse. Não se
consegue ajudá-los levando-os a se verem como vítimas do
Sistema. Mesmo porque ninguém se torna um autêntico cidadão
sem que assuma a responsabilidade por seus atos. E não há
decisão mais importante que a de ter filhos.
Elisabete França e Gloria Bayeux são arquitetas e curadoras da
representação
brasileira na 8ª Mostra Internazionale di Architettura da
Biennale di
Venezia de 2002.
Espaço da diversidade
Palco das grandes e rápidas transformações, a cidade tornou-se
o grandeí cone do século XX, configurando-se como a expressão
mais complexa da existência humana e, conseqüentemente, como
espaço aglutinador dos
antagonismos, dos conflitos, das contradições e também das
mais diversas manifestações criativas do homem. Território
privilegiado para o estabelecimento das relações humanas, a
cidade moderna é, por excelência, o
espaço do poder e da concentração de riqueza, onde se
concentram, ao mesmo tempo, o maior número de possibilidades
de trabalho e as maiores carências em relação a habitação.
No início deste novo milênio, as cidades representam o
fenômeno mais significativo e mais desafiador para os
arquitetos que, para responder constantemente às necessidades
de sua permanente construção, têm como tarefa acompanhar não
só as grandes mudanças relacionadas a sua forma física, mas
também estar atentos às diversidades e à complexidade das
questões sociais e econômicas deste tempo de globalização.
Embora inerentes a todo território urbano, essas mudanças não
apresentam resultados análogos para o conjunto da humanidade,
mas refletem, em cada região do planeta, as desigualdades de
distribuição de riquezas, os valores étnicos, políticos,
socioeconômicos, culturais, religiosos, bem como o estágio de
desenvolvimento tecnológico e as potencialidades em relação
aos recursos naturais. Frente a esta complexidade não é
possível definir uma única pauta que resulte em um modelo
universal de atuação, incluindo-se aí o
tema da arquitetura. Ou seja, não é possível propor um modelo
de soluções que seja universalmente reproduzível.
Nos últimos tempos, a cidade moderna passou por profundas
transformações, conseqüência principalmente dos grandes fluxos
populacionais que se deslocaram do campo para as áreas
urbanas, resultando nas grandes aglomerações atuais onde vivem
dezenas de milhões de pessoas. Frente a essa nova realidade,
faz-se necessário repensar os conteúdos teóricos, tecnológicos
e práticos da arquitetura como instrumento que dá qualidade e
forma à cidade, bem como novos princípios para a atuação do
arquiteto no sentido de entendê-la como um bem comum, onde os
espaços de convivência têm um papel central na construção das
relações humanas e da sociabilidade.
Ao mesmo tempo, é necessário considerar a cidade não como um
todo orgânico e uniforme, mas como um conjunto de
coletividades que devem ser pensadas em função de suas
personalidades específicas, garantindo-lhes, assim, suas
próprias identidades. Ou seja, se por um lado para o arquiteto
esta diversidade significa complexidade, por outro, torna-se
um desafio instigante para o pleno exercício de sua atividade
criadora.
Considerando ainda os problemas atuais das grandes metrópoles
- ocupações irregulares em escala crescente e a ausência de
padrões mínimos de qualidade de vida para seus habitantes - a
contribuição da arquitetura deve ser pensada de modo
diferenciado dos padrões clássicos conhecidos pela atividade
arquitetônica. Os conceitos e métodos da arquitetura e
urbanismo estruturados para resolver as questões das cidades
do século XIX não podem mais servir de base para a atuação dos
arquitetos nesta nova realidade.
Nos países do terceiro mundo, como o Brasil, os novos
conceitos e métodos são estruturados a partir de realidades
bastante diferenciadas daquelas dos países centrais. A
condição atual das nossas cidades se manifesta por meio da
escassez, da insalubridade, do descontrole das ocupações e da
baixa qualidade das moradias, em sua grande parcela
autoconstruídas. Decorrente de problemas econômicos e
políticos, o crescimento incessante e descontrolado das
metrópoles não é acompanhado de políticas públicas capazes de
atender às necessidades mais imediatas de suas populações.
Cidades brasileiras - espaço de carências
Nas últimas décadas, o Brasil acompanhou a tendência mundial
de crescimento acelerado da população urbana e de deterioração
das condições de vida desta população, particularmente a de
baixa renda. As décadas de 30 e 40 representaram o início de
um intenso processo de urbanização, fruto dos fluxos
migratórios de famílias que deixaram o campo com destino às
cidades em busca de melhores condições de vida. Entre as
décadas de 40 e 90 a taxa da população urbana passou de 26,35%
para 80%. A rapidez com que esse processo ocorreu teve como
resultados uma série de novos fatores que passaram a compor o
quadro de pobreza urbana observável em todas as grandes
cidades brasileiras, chegando a afetar atualmente as regiões
de médio porte.
Entre 1960 e 1990 houve um acréscimo de oitenta e cinco
milhões de habitantes nas áreas urbanas brasileiras. Parte
significativa desse contingente não teve acesso aos serviços
básicos de infra-estrutura, moradias dignas, espaços de lazer
comunitário, serviços de saúde e educação. Vinda da área rural
e de cidades de menor porte, parcela significativa desses
novos moradores teve como destino a ocupação de áreas
degradadas, tais como favelas, cortiços, palafitas e
loteamentos clandestinos, que, desvinculadas da cidade formal,
localizam-se, em geral, na periferia das grandes cidades ou
então nos antigos e deteriorados centros históricos.
Calcula-se que nas duas maiores metrópoles brasileiras, São
Paulo e Rio de Janeiro, a população que vive nesta
situação-limite equivalha a quase 40% do total de moradores,
ou seja, 4 milhões em São Paulo e 2 milhões no Rio.
O problema habitacional no país sempre padeceu da falta de
definição de uma política nacional de habitação que pudesse
amenizar os efeitos deste processo de urbanização avassalador.
O Sistema Financeiro da Habitação - SFH, criado em 1964, não
conseguiu responder às necessidades crescentes das
populações de baixa renda, e a crise dos anos 80, que culminou
com a extinção do Banco Nacional da Habitação - BNH, provocou
a paralisação dos programas habitacionais existentes,
penalizando ainda mais as famílias sem possibilidades de
acesso aos sistemas de mercado. Esses fatos contribuíram
para aumentar o número de moradias em favelas, cortiços,
loteamentos irregulares e clandestinos e outras formas de
habitação inadequadas, provocando um acirramento cada vez
maior dos movimentos populares de moradia.
A partir da década de 70, diversas políticas e programas de
Estado passaram a ter como linha de ação a busca de soluções
para estes problemas que se apresentavam em dimensões até
então desconhecidas pelo poder público. Inicialmente foram
feitos grandes investimentos em conjuntos habitacionais, cujo
propósito maior era responder ao déficit habitacional e
remover as famílias dos assentamentos tidos como "marginais" e
insalubres que se espalhavam pelas cidades. Desarticulados da
cidade, estes programas foram, em sua grande maioria,
implantados nas periferias das metrópoles em locais distantes
das fontes de trabalho. Apesar dos significativos
investimentos, a insatisfação com a política adotada
intensificou o processo das ocupações urbanas irregulares, em
especial nas favelas e loteamentos clandestinos, conduzido à
base de múltiplos conflitos e à margem das legislações
vigentes. Assim, tal como os modelos tecnocráticos de gestão e
de implantação em que
estavam baseados, esses programas resultaram em estruturas que
se deterioraram ao longo do tempo.
A crescente expansão de zonas ilegais nas cidades brasileiras
demonstra as dificuldades que o poder público tem encontrado
para solucionar e controlar esse tipo de crescimento
desordenado. Cada vez mais constantes nos grandes centros
urbanos, essas alternativas representam a única saída de
moradia para parcelas significativas da população excluída do
mercado formal da habitação. Mas, por outro lado, a
participação, cada vez maior, das comunidades envolvidas nos
processos decisórios foi o elemento que mais contribuiu para a
aceitação de uma nova política que viria a ser implantada: a
urbanização das áreas ocupadas irregularmente por meio da
criação de serviços básicos e da conseqüente melhoria da
qualidade de vida de seus habitantes.
Na década de 90, novos avanços foram obtidos na condução
democrática do processo de planejamento das cidades. Em 1992,
a Conferência Internacional sobre Desenvolvimento Sustentado -
ECO 92, realizada no Rio de Janeiro, ratificou uma pauta de
ação mundial centrada na busca do desenvolvimento econômico
ecologicamente sustentável. Em 1996, a Segunda
Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos -
Habitat II, realizada em Istambul, consolidou um plano
internacional de ações centrado na busca do
desenvolvimento social e da erradicação da pobreza. Tais
decisões representaram marcos históricos para a afirmação dos
novos conceitos que hoje constituem a base para a elaboração
das políticas públicas, em especial a política habitacional,
dos governos federal, estaduais e municipais.
O processo de urbanização crescente nas cidades e nas áreas
metropolitanas, com todas as suas conseqüências, aliado às
mais recentes conquistas no plano da consolidação de um
processo de gestão democrática da questão urbana, apresenta
para o setor público novos desafios que envolvem os aspectos
decisórios relativos à melhor alocação dos investimentos
públicos, ao desenvolvimento de mecanismos democráticos de
participação popular, de avaliação dos resultados das
políticas públicas e do estabelecimento de um acervo de
práticas bem-sucedidas que possibilitem a divulgação do saber
técnico acumulado.
Arquitetura e Urbanismo nas favelas brasileiras - novos
modelos e novas funções
Considerando a realidade e a carência de serviços básicos
desses assentamentos urbanos e os níveis de pobreza de seus
moradores, poder-se-ia supor que os aspectos estéticos não
fazem parte de suas preocupações. Porém, uma observação mais
minuciosa revela que, apesar da precariedade das construções,
é possível identificar uma certa sensibilidade na aplicação de
detalhes construtivos, no emprego de materiais, nas formas,
nas estruturas - um justo desejo de qualificar e identificar
seus espaços. Trata-se de aspectos que apontam para a
possibilidade da arquitetura preencher um espaço nesse campo
de atuação, o que pressupõe um debate sobre a arquitetura e
sua função nesse novo setor.
Assim, os arquitetos brasileiros passaram a ter nesse
contingente de moradores da cidade um cliente
especial/coletivo a ser atendido, cujas características e
necessidades, que tangenciam a esfera do "público",
diferenciam-no do cliente individual/privado, tradicionalmente
conhecido. Esta questão, cada vez mais presente no cotidiano
da vida profissional dos arquitetos, representa não só um
grande desafio no que diz respeito à busca de soluções para
intervenção numa realidade complexa - a realidade da
diversidade - mas também, a possibilidade de atuação em um
mercado de trabalho que, até a década de 80, era desconhecido
para a maioria dos profissionais brasileiros.
Com a certeza, adquirida ao longo da última década, do papel
privilegiado que a cidade desempenha em relação ao
desenvolvimento social, econômico e cultural da humanidade, os
arquitetos brasileiros têm assumido
responsabilidades crescentes por meio de propostas e projetos
que têm como objetivo a promoção da qualidade dos espaços
construídos por meio da integração das áreas periféricas e
degradadas da cidade ilegal aos espaços urbanos da cidade
formal regulamentada.
Para os arquitetos e urbanistas brasileiros trabalhar para
esse segmento da população significa, cada vez mais, construir
um projeto de futuro vinculado não só à construção de novas e
dignas moradias, mas também à superação de um conjunto de
déficits relacionados à infra-estrutura, acessibilidade,
equipamentos e serviços públicos. Para a população de
excluídos o significado de pertencer à cidade torna-se
condição básica para a conquista do direito primordial à
cidadania.
A cidade, quando é assumida como espaço privilegiado das
relações humanas e como foro eminentemente democrático,
permite que valores opostos coexistam e sejam confrontados,
contradizendo os conceitos conservadores dos agrupamentos
isolados. Este papel privilegiado que a cidade assume - espaço
de convivência democrática - também está relacionado com a
possibilidade da extensão de acesso às oportunidades a todos
seus habitantes.
Favelas Upgrading - uma contribuição dos arquitetos para as
cidades brasileiras
Como contribuição ao tema da 8a Mostra Internazionale de
Architettura da Bienal de Veneza, que sugere a investigação
sobre o futuro próximo por meio das respostas que os
arquitetos têm apresentado frente aos desafios do novo
milênio, a Fundação Bienal de São Paulo traz uma seleção de
projetos de arquitetos brasileiros que, nos últimos anos, vêm
buscando soluções para a reestruturação de espaços
marginalizados de modo a permitir sua integração ao território
e à estrutura urbana da cidade formal e legalmente
reconhecida.
A mostra brasileira é constituída por dois módulos: o primeiro
trata de uma leitura da realidade destes assentamentos
realizada a partir da visão de fotógrafos brasileiros
retratando diferentes tipos de ocupações: a inserção das
favelas na cidade, situações de risco, abrigos improvisados,
"proteções" criadas sob viadutos, construções precárias sobre
palafitas, favelas em áreas de risco e cortiços em prédios
deteriorados.
A segunda ala do pavilhão foi destinada para mostrar exemplos
de intervenções que caracterizam a atuação dos arquitetos
frente a essa questão. Foram selecionados 23 projetos - de um
universo bem mais amplo de
intervenções realizadas - para compor um outro mosaico - o de
propostas que visam modificar a condição de precariedade das
favelas. Esta parte da mostra caracteriza-se pela apresentação
de urbanizações de favelas nas cidades do Rio de Janeiro, São
Paulo e Salvador. São projetos implantados nos últimos cinco
anos, selecionados, em sua maioria, por concursos públicos de
arquitetura e que permitem ao visitante compreender o novo
conceito de urbanismo e os novos métodos que estão sendo
adotados para as intervenções em áreas pobres das cidades
brasileiras.
Grande parcela dos projetos selecionados compõe um conjunto de
programas de grandes dimensões que vêm sendo implantados nas
principais cidades brasileiras. Atualmente, já alcançam um
universo de centenas de favelas, objeto dos novos parâmetros
urbanísticos de qualificação dos espaços que visam sua
integração às áreas vizinhas e lhes conferem a condição e o
reconhecimento como um novo bairro. O conceito central desse
tipo de intervenção é o da permanência dos moradores e da
garantia de continuidade dos investimentos realizados na
construção da moradia.
As propostas de intervenção decorrem da identificação das
características, demandas e expectativas dos moradores,
levantamento este que resulta de um intenso trabalho de longo
prazo realizado junto às comunidades afetadas. Além de
apresentar soluções para os problemas de saneamento, drenagem,
acessibilidade, estabilidade e eliminação de riscos, os
projetos exploram a morfologia urbana e arquitetônica
existentes, as condições topográficas e os terrenos
disponíveis para criar um todo articulado, onde cada morador
tenha acesso aos serviços básicos de infra-estrutura, aos
novos equipamentos públicos e aos espaços coletivos. Essa
necessidade de articulação de espaços e equipamentos públicos
de forma a propiciar áreas de convivência social trata-se, na
verdade, do desafio central no sentido de possibilitar o
exercício dos processos de sociabilidade e cidadania.
Favela-Bairro (Rio de Janeiro), Guarapiranga e Lote Legal (São
Paulo) e Novos Alagados (Salvador) - o novo urbanismo em
construção
Apesar da história e culturas distintas, Rio de Janeiro, São
Paulo e Salvador têm em comum um cenário urbano de contrastes
- resultado dos complexos e crônicos problemas que as
principais metrópoles brasileiras, à
semelhança de outras tantas, enfrentam no seu cotidiano.
Também têm em comum um conjunto de novas políticas urbanas que
vêm sendo implantadas por meio de programas de grandes
dimensões, caracterizados pela adoção de novos padrões
urbanísticos que têm como base o conceito da permanência e
fixação, em
contraposição ao da remoção e reassentamento.
O Programa Favela-Bairro, no Rio de Janeiro, os Programas
Guarapiranga e Lote Legal, em São Paulo, e o projeto de Novos
Alagados, em Salvador, buscam, de modo amplo e consistente,
não mais a remoção compulsória das ocupações inadequadas
visando simplesmente à erradicação dos assentamentos
precários, onde vivem milhares de famílias, mas a sua
integração urbanística como suporte básico para o
desenvolvimento social e para a melhoria das condições de
habitabilidade destas comunidades. Como resultado essas
áreas, antes degradadas, são integradas à cidade na forma de
novos bairros.
Outra característica comum aos programas está relacionada aos
novos métodos de elaboração dos projetos que têm como base um
constante processo de mediações e readequações, conseqüência
da realidade dos assentamentos e das reivindicações do
conjunto dos moradores. Considerando as diferentes
características morfológicas das ocupações - planos, morros,
lindeiras a córregos, orlas de baía, entre outras - os
projetos apresentam peculiaridades relacionadas a cada
situação e, portanto, são necessariamente diferenciados. A
diversidade cultural das comunidades, fator relevante para a
definição dos partidos arquitetônicos a serem adotados, aliada
aos processos de participação democrática na definição dos
rumos do projeto, também contribuem para garantir a
diversidade das intervenções.
Os projetos apresentam como característica comum a preocupação
com a qualificação dos espaços públicos de modo a assegurar o
respeito às preexistências ambientais e culturais e a
diluição das fronteiras urbanísticas e simbólicas entre a área
antes marginal e o bairro formal. Cria-se uma rede referencial
de espaços públicos e atribui-se significado cultural a esses
espaços, como fator decisivo para a vinculação desse novo
bairro à cidade legalmente constituída.
A complexidade da diversidade - desafio central para o
conjunto dos 23 projetos aqui apresentados (que representam a
síntese de conjunto bem maior que vem sendo implantado nessas
cidades) - resultou em mudanças significativas e de impacto
positivo na qualidade de vida das cidades. Os assentamentos,
antes degradados, assumem uma nova dimensão urbanística e
social. Para os moradores, o acesso às qualidades e benefícios
reconhecíveis até então apenas na cidade formal, eleva-os a
uma nova condição de cidadania. Para a cidade apresenta-se uma
nova possibilidade em que o tema da inclusão e integração
passa constituir-se elemento decisivo no caminho do
desenvolvimento social.
Nota
1
Texto sobre a representação brasileira na 8ª Mostra
Internazionale di Architettura da Biennale di Venezia, 7 de
setembro a 3 de novembro de 2002.
A mostra nacional contará com dois segmentos, o primeiro com
Ensaios Fotográficos de André Cypriano, Lalo de Almeida e
outros. O Segmento 2 conta com participações dos seguintes
arquitetos e respectivos projetos: 1. Jorge Mario Jáuregui
(Rio de Janeiro), Favela/Bairro - Fernão Cardim, Vidigal, Rio
das Pedras, Fubá e Campinho; 2. Pablo Benetti (Rio de
Janeiro), Favela/Bairro - Ladeira dos Funcionários, Divinéia e
Quinta do Caju; 3. Archi 5 Arquitetos Associados - Alder
Catunda, Bruno Fernandes, Octávio Henrique Reis, Pedro da Luz
Moreira, Roberto de A. Nascimento (Rio de Janeiro),
Favela/Bairro - Parque Royal e Complexo do Sapé; 4. Manoel
Ribeiro (Rio de Janeiro), Favela/Bairro - Serrinha; 5. Casulo
- Humberto Kzure-Cerquera Arquitetura e Urbanismo (Rio de
Janeiro), Favela/Bairro - Favela Canal das Taxas; 6.
ArquiTraço - Daniela Engel Aduan, Gerson Feres
Biscotto, Kátia Brakarz, Maria Cláudia Faro, Solange Carvalho,
Tatiana Terry (Rio de Janeiro), Favela/Bairro - Projeto Bela
Favela e Chácara Del Castilho; 7. Demetre Anastassakis
(Salvador), Programa para Novos Alagados; 8. Paulo Bastos (São
Paulo), Programa Guarapiranga - Imbuias e Jardim Floresta; 9.
Raymundo de Paschoal Arquitetura e Planejamento Urbano (São
Paulo), Programa Guarapiranga - Jardim Esmeralda e Iporanga;
10. João Walter Toscano, Odiléia Helena Setti Toscano,
Massayoshi Kamimura, Guilherme Filipe
Toscano, Marta Maria Lagreca de Salles, Marcos Boldarini,
Stetson Lareu (São Paulo), Programa Guarapiranga - Parque
Amélia; 11. Tecton Planejamento e Assessoria S/C Ltda. -
Pascoal Guglielmi (São Paulo), Programa Guarapiranga -
Viela do Colégio e Jardim Boa Sorte; 12. Portela Boldarini -
Marcos Boldarini, Eulália Portela, Ronaldo Pezzo, Gláucia
Varandas, Rita Canutti (São Paulo), Programa Lota Legal -
Parada de Taipas 1 e 2, e Alpes do Jaraguá; 13. Marta Maria
Lagreca de Sales, Marcos Boldarini e Stetson
Laureu (São Paulo), Programa Lota Legal - Morada do Sol.
Os três últimos sábados
na vida deste carioca aqui. No dia 20 de novembro, a
equipe do guia "Rio Botequim" voltava de uma excursão
pelos subúrbios quando trombou com o tradicional tiroteio
noturno na Linha Vermelha.
No dia 27, a equipe do GNT esperava cessar o tradicional
tiroteio matinal na Rua Itapiru para começar a gravar o
quadro "Sem controle".
No dia 4 de dezembro, três amigos moradores do Jardim
Botânico se queixavam que haviam sido acordados por um
intenso tiroteio nas ruas do bairro.
Contei-lhes que, lá pelas três da matina, o réveillon
parecia ter sido antecipado em Laranjeiras, onde sou
vizinho da Sra. Rosângela Matheus e do Batalhão de
Operações Especiais (Bope) da PM, tal a quantidade de
fogos a saudar a chegada de pó num morro da região,
difícil dizer se Pereirão, Vila Alice ou Cerro Corá na
madrugada.
Não tenho mais nenhuma indignação, nenhuma palpitação a
lhes relatar. O que me chamou a atenção nos três ou
quatro episódios - houve um outro tiroteio, vespertino,
na subida para Santa Teresa, coisa banal, ouvida de casa -
foi a aguda sensação de normalidade. Em mim, nos outros,
nos circunstantes. Estávamos em paz.
Na altura da Favela da Maré, confrontados com o fogo
cruzado, os carros e ônibus davam meia-volta,
simplesmente, organizadamente, resignadamente, sem pânico
ou buzinas. No desfiladeiro do Rio Comprido, os
moradores continuavam a ir às compras entre as salvas de
AR-15. Meus amigos lamentavam mais ter perdido o
sono do que a tranqüilidade. E eu me regozijava de
que ainda não tinha dormido quando do foguetório.
Ocorreu-me, então, o seguinte.
Tanto os defensores da tolerância zero quanto os
pregadores da tolerância máxima tratam a violência como
uma disfunção do sistema. Se sanadas determinadas
falhas (falta de policiamento, falta de condições dignas
de sobrevivência etc.), ela naturalmente desapareceria,
este é o seu credo comum. Era o meu. No último mês,
caiu-me a ficha: a violência é o sistema ou, ao menos, o
seu mais rentável produto.
Lembrei-me da frase "guerra é paz".
Uma das características dos grandes livros é que eles
miram no que vêem e (também) acertam no que não vêem.
George Orwell tinha em mente os horrores do nazismo e do
stalinismo quando, em 1948, escreveu "1984". No
processo, explicava a Guerra Fria, a paz armada entre as
superpotências nucleares, cada qual com sua órbita de
influência. Contudo, talvez sem plena consciência
disso, Orwell criava um modelo válido na interpretação de
certas situações de força. Inclusive as do Brasil e,
em particular, do Rio.
Em "1984", o mundo tem três superpotências: Oceania
(Américas, Austrália, Inglaterra, África do Sul), Eurásia
(Europa e Rússia) e Lestásia (China e Japão). Numa
ou noutra aliança circunstancial, elas vivem em estado de
guerra permanente entre si, apesar de não terem mais
lançado mão de seus arsenais atômicos depois da guerra de
1950.
O herói do livro é Winston Smith, burocrata subalterno do
Ministério da Verdade, encarregado de reescrever
continuamente os arquivos do jornal londrino "The Times"
de modo que o passado não desminta o presente. Certo dia,
entretanto, ele descobre um livro proscrito: "Teoria e
prática do coletivismo oligárquico", de um certo Emmanuel
Goldstein.
Às escondidas, Smith lê que, no seu mundo, nada é bem o
que parece. Constatado o equilíbrio de forças entre as
três superpotências, o único objetivo da guerra
crudelíssima entre elas é a própria guerra crudelíssima,
(i)mobilizadora das consciências, com a conseqüente
eternização do status quo das oligarquias de Oceania,
Eurásia e Lestásia.
"A guerra, tornando-se contínua, mudou fundamentalmente de
caráter", escreve Golstein/Orwell. "No passado a
guerra era, quase por definição, algo que mais cedo ou
mais tarde chegava ao fim, em geral em inconfundível
vitória ou derrota. (...) A guerra de hoje é, portanto,
uma impostura. É como os combates entre certos
ruminantes, cujos chifres são dispostos em ângulo tal que
não podem ferir um ao outro." E aqui estamos quase ao
final de 1984 + 20.
Nossas Oceania, Eurásia e Lestásia atendem por tráfico,
polícia e Estado. Os traficantes eternizam seu poder
sobre as comunidades não só pela violência mas como
alternativa local à polícia e à ausência do Estado.
A polícia, por sua vez, financia sua necessidade para a
sociedade com sua truculência, com mineiras, venda de
armas tomadas de uma facção criminosa a outra, vista
grossa ao transporte de drogas aos morros, que não as
produzem, etc. O Estado, entendido como executivos,
legislativos e judiciários, todos no mesmo saco, não tem
interesse em acabar com tal situação, seja valorizando a
polícia, seja dando à população uma vida decente, porque a
guerra é rentável politicamente, quando não pela ligação
direta com o crime. O Estado ainda quer criar o
Ministério da Verdade.
A violência, por conseguinte, não é uma anomalia do
sistema. É seu ganha-pão. Por isso, de nada adianta a
óbvia constatação de que há bons PMs ou deputados.
Eles são neutralizados pela estrutura. Acabar com a
carnificina, então, é acabar com este Brasil.
Pergunta a ser respondida, clássica nos romances
policiais: a quem interessa o crime?
Há muita teoria conspiratória no que está escrito acima. Temo, porém, que só ela explique por que eu quero paz, tu queres paz, ele quer paz - mas nós queremos violência
Entre as muitas bombas-relógio que ameaçam a sociedade
brasileira, a crise habitacional é, a cada dia, mais visível.
Desde as favelas, até os barracos esparsos construídos às
margens dos rios, embaixo de viadutos, ou sob redes de alta
tensão, a precariedade das moradias é atestado vivo e
crescente das disparidades sociais e da ausência de uma
política nacional de habitação, extinta no momento em que o
BNH foi liquidado, na década de 80.
Moradias precárias com famílias inteiras dormindo num só
cômodo, sem água, esgoto e coleta de lixo. Altas taxas de
desemprego. Abandono do poder público, que só costuma ser
notado pela brutalidade das operações policiais. Deste quadro
se aproveitam as organizações criminosas, que transformaram as
favelas em bases de operações.
A política habitacional tem sido uma sucessão de equívocos e
omissões, ao longo das últimas décadas. A remoção pura e
simples de favelas em áreas valorizadas, com os moradores
sendo transferidos para conjuntos
habitacionais periféricos, longe do mercado de trabalho, criou
guetos urbanos, igualmente geradores de violência.
A tentativa de enquadrar os mais pobres nas leis formais do
mercado, no momento de pagar as prestações da casa própria,
levou a um colossal calote, uma das causas da falência do
antigo Sistema Nacional de Habitação.
Criou-se, então, o programa de lotes urbanizados, de custo bem
mais baixo, e por isso mais acessível. Já era tarde. O rombo
promovido pelo calote em massa havia levado o banco ao
descrédito.
Outro erro fatal foi a dissociação entre a política
habitacional e a necessidade de um planejamento urbano
integrado, que tornassem os programas mais funcionais.
A construção de moradias populares deve ser parte de um plano
diretor da cidade, que inclua uma rede de transportes capaz de
assegurar acesso fácil e barato para o trabalho. É tarefa
prioritária reorganizar a expansão urbana, sob pena de todos
ficarmos imobilizados em cidades que assustam mais do que
funcionam.
Esta visão se opõe a algumas políticas segregacionistas, que
isolam os mais pobres em mega conjuntos, nas áreas mais
longínquas da periferia.
Sem infra-estrutura adequada e sujeitos a condução cara e
demorada, esses monstrengos degradam ainda mais as condições
de vida dos habitantes. Os exemplos se sucedem de conjuntos
deteriorados, depredados ou simplesmente abandonados pelos
seus moradores.
Só tardiamente a burocracia do Banco Nacional de Habitação
descobriu que os mais pobres simplesmente não tinham condições
de adquirir uma casa no mercado formal.
Após 18 anos de letargia, urge repensar o sistema. O mecanismo
de financiamento da casa própria deve ser adaptado à realidade
do país. Os subsídios para as classes de poder aquisitivo mais
baixo precisam ser estendidos. Assim também, a construção
civil deve ser incentivada a participar desse esforço, já que
até agora só o nicho de mercado para as classes A e B tem se
mostrado mais atrativo.
Moradias dignas para todos numa cidade mais humana, que tenha
normas urbanas viáveis e respeitadas, sob condições mínimas de
segurança. O que parece utopia pode pelo menos ficar menos
distante, com medidas simples e eficientes.
O dinheiro da privatização de serviços de água e esgotos, por
exemplo, pode ser acoplado à obrigatoriedade de utilizar os
recursos decorrentes em programas de habitação e transportes.
A política de aproveitar áreas subutilizadas nos centros
urbanos, com infra-estrutura já instalada, tem mostrado bons
resultados, pois é mais barata que a transferência de
favelados para áreas periféricas. Muitas
destas áreas são terrenos públicos, o que torna o programa
ainda menos oneroso.
A reforma urbana, conduzida com seriedade, sem demagogia, é,
enfim, a melhor das práticas preventivas, nas áreas da saúde,
segurança e educação. Sua implantação, sobretudo nas maiores
metrópoles, é urgente, antes que se transformem num grande
aglomerado de favelas.
Para Cesar, se não houver planejamento familiar e programas federais de habitação, comunidades continuarão crescendo
A roupa alaranjada usada na campanha eleitoral está de volta ao armário. Reeleito no primeiro turno, o prefeito Cesar Maia
reabilitou a camisa e o casaco azuis, uniforme que lembra o do ex-governador Leonel Brizola. Mas ainda está despachando no Palácio da Cidade, em Botafogo, onde recebeu O
GLOBO e costura alianças politicas para o segundo turno com candidatos do interior. Apesar da opulência do palacete, que já abrigou a embaixada da Inglaterra, o prefeito
diz que ali não se sente confortável, preferindo a praticidade do Centro Administrativo, na Cidade Nova:
- Em 1993, abri uma gaveta e encontrei um documento do ex-prefeito Marcello Alencar de 1989. Liguei para ele e perguntei a razão do esquecimento. Ele me recomendou sair
daqui, lembrando a falência do Rio no período Saturnino Braga, que despachava no palácio - conta Cesar. - Para administrar o Rio é preciso estar próximo dos secretários. O
palácio é bom para recepção.
Para Cesar, foi-se o tempo de elogios ao ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani e das citações sobre a América Latina.
Ele agora conta e reconta a história do Rio e as suas ações na prefeitura desde 1993. E fala pouco sobre o que pretende realizar. Cesar promete acabar com a
Superintendência Municipal de Transportes Urbanos (SMTU) e não alterar o IPTU. Diz ainda que pretende fazer mudanças no Plano Lúcio Costa, para conter o esvaziamento do
Centro.
Ainda este fim de ano, quer aprovar projetos na Câmara na área urbanística e regulamentar parcerias público-privadas que
tirem planos de transporte da gaveta. Para conter a favelização, a lista inclui a proposta de liberar a construção de condomínios no Alto da Boa Vista. As favelas,
reconhece, tendem a continuar a se expandir e uma das razões é a alta taxa de natalidade. Embora não comente, ele enfrenta outra dificuldade: a vitória de Nadinho, eleito
vereador pelo PFL do prefeito. Nadinho é líder comunitário de Rio das Pedras, em Jacarepaguá, uma das favelas que mais crescem no Rio.
O que a população pode esperar de seu terceiro mandato? O Cesar Maia impetuoso da primeira gestão, ou um prefeito mais racional com intervenções mais pontuais da segunda
administração?
CESAR MAIA: Do ponto de vista dos grandes vetores de intervenção da cidade, como o Rio Cidade e o Favela-Bairro, o segundo
governo foi uma continuidade do primeiro. Isso se complementa no segundo governo com a idéia da reconversão do Rio numa cidade de serviços, de entretenimento, de lazer,
culturais e esportivos. A grande questão dos governos não são as ações operacionais. É a visão estratégica. O governo Lacerda, por exemplo, teve acertos na área
administrativa, nos investimentos de infra-estrutura. Mas cometeu um erro de diagnóstico. O Hélio Beltrão, que foi secretário de Planejamento do Lacerda, identificou que a
economia era decadente.
O senhor acha que o Rio é uma cidade decadente?
CESAR: Do ponto de vista social e cultural, é uma cidade ascendente. Os indicadores sócio-culturais são espetaculares.
A sensação do carioca é de que as favelas crescem, de que a cidade está perdendo espaços urbanos...
CESAR: Há dois problemas de percepção. Um deles é a violência, que cria uma sensação de decadência, de pânico. Por outro
lado, o Rio é uma cidade que só é percebida pelos intelectuais no corredor da Zona Sul e por meio de intervenções focalizadas. Eles conhecem Vigário Geral, a Mangueira.
Não conhecem boa parte da Zona Norte e a Zona Oeste. Voltando ao Lacerda, ele teve um erro estratégico, que foi imaginar o Rio como pólo industrial. O momento era de
iniciar a reconversão para uma cidade de serviços.
O senhor acha que já houve essa reconversão do Rio?
CESAR: De jeito nenhum. O Rio vive um ciclo de decadência econômica de longo curso.
Chegamos ao fundo desse ciclo econômico?
CESAR: Em economia e em sociedade não existe fundo. Quando se diz que a violência chegou ao máximo, sempre pode piorar.
O senhor tem algum projeto para impedir a expansão das favelas?
CESAR: O grande problema do crescimento das favelas, a partir dos anos 80, é a taxa de fertilidade da favela, superior à da
não-favela. Outra questão é a migração, que na época de recessão é muito forte e só pode ser resolvida com intervenções metropolitanas.
Como a prefeitura pode se mexer num ambiente desses? O fato é que as favelas estão crescendo...
CESAR: As favelas vão continuar crescendo no Rio enquanto a taxa de fertilidade da favela for muito maior do que a da
não-favela. Uma nova classe média também se instalou na favela. Ela é fortemente atingida pela falta de uma política efetiva de habitação popular no Brasil. O processo de
recessão sistemática foi jogando a classe média para baixo. Agora é que o governo federal começou a obrigar os bancos a cumprirem a lei e a aplicar recursos na área
habitacional.
As prefeituras não poderiam ser mais ativas em termos de habitação popular?
CESAR: Só se você tiver uma base de financiamento forte. O que as prefeituras em geral podem fazer são urbanizações na
margem e construir alguma coisa, como temos feito.
Há um projeto da prefeitura de permitir condomínios de classe média em encostas para impedir a favelização. O senhor
pretende implementá-lo?
CESAR: Houve resistência em algumas áreas. Então, suprimi Santa Teresa e Gávea. Fiquei com o Alto da Boa Vista. Neste fim de
ano, decidi me empenhar para tentar aprovar o projeto de lei flexibilizando a construção no Alto. Flexibilizar não é conceder em gabarito. É inviável ter uma casa no meio
de um grande terreno. Queremos permitir a construção de condomínios.
Isso seria uma solução para conter as favelas? Poderia ser estendida a outras áreas da cidade?
CESAR: A questão não é conter a favela, mas a degradação. Hoje, o que se chama de favela é uma área que é demandada por
setores médios. As favelas que vão se consolidando têm um perfil social razoável.
Mas a cidade não pode se contentar com isso...
CESAR: Não estou dizendo isso. Estou dizendo o que está acontecendo. Qual a alternativa? A favela é um produto de remoções,
que foram desintegradas de outras ações.
Mas qual a ação que o senhor vai implementar?
CESAR: Isso não é assim, não. Você é seu pai, seu avô, seu bisavô. Uma cidade é muito mais que isso. Uma cidade se constitui
em 200, 300 anos. Não num peteleco jurídico. Fui constituinte em 1988. Nós, constituintes, resolvemos o problema da pobreza, da falta de educação, na Constituição. E eles
estão aí. Você precisa ter fôlego para realizar intervenções.
A proporção de adolescentes grávidas nas favelas é elevada. O senhor desautorizou um programa de distribuição de
preservativos para adolescentes. Poderia rever essa decisão?
CESAR: Não é tão simples. Há uma proporção muito elevada de partos de jovens pobres com menos de 19 anos, 20% mais ou menos.
Mas ter um filho é um momento sublime para a mulher. Para uma mulher pobre, esse é o momento da vida dela. Ela quer repeti-lo muitas vezes. Então, é uma questão de
intervenção em nível cultural. A prefeitura tem, nas escolas, um programa de orientação. Nos nossos postos de saúde também temos um programa. Mas inevitavelmente é
necessário o envolvimento das igrejas para a redução da taxa de fertilidade nas favelas. As igrejas têm uma capilaridade que ninguém tem. Estou falando de planejamento
familiar, não de controle da natalidade.
No caso dos transportes, o que a prefeitura pode fazer para aperfeiçoar o sistema?
CESAR: O ideal é que todo o transporte sobre trilhos dentro do município fosse concessão municipal. Já pedi isso aos
governadores, mas não consigo. Na atual divisão, a prefeitura ficou com o transporte rodoviário. Até 1992, muitas vias do Rio eram estaduais. Foi o governador Brizola quem
municipalizou a Avenida das Américas, a Ayrton Senna, a Lagoa-Barra, o Viaduto Paulo de Frontin, a Perimetral, a Avenida Automóvel Clube (atual Martin Luther King Jr). Só
falta a Linha Vermelha.
O senhor vai continuar pleiteando a Linha Vermelha?
CESAR: Há muito tempo pleiteio. A prefeitura tem condições de manter essas vias. Além disso, as parcerias com o metrô estão
dando certo. Primeiro, foi a integração na Zona Sul, com ônibus do próprio metrô. Depois, as empresas de ônibus se convenceram de que podiam fazer a integração em outros
lugares. Implantamos Tijuca e Muda. Depois, entraram Grajaú e Andaraí. E já foi aprovada a ligação de Del Castilho ao Fundão.
O senhor tem novas propostas para o sistema de transportes?
CESAR: Na Zona Oeste, ele está inviabilizado, porque a tarifa única para funcionar precisa de uma câmara de compensação, que
é privada e implodiu. Em junho, os empresários de ônibus decidiram entregar as linhas da região. Dei um tranco forte neles: o Ônibus da Liberdade (transporte escolar)
entrou para suprir a ausência de ônibus. É um subsídio cruzado, embora não seja direto às empresas. A prefeitura paga ônibus para que as crianças possam chegar às escolas.
Preciso ainda oferecer à população uma saída na Central. Se a população na Central puder pegar o metrô e ir para onde desejar, está feita a integração.
Estamos, então, numa sinuca nessa questão dos transportes? Há problemas econômicos difíceis de superar...
CESAR: Sinuca, mas não é de bico. O governo federal tem recursos da Cide para a recuperação de estradas e para o transporte
metropolitano. Ele precisa aplicá-los. Da minha parte, alterei o projeto de lei que oferecia como garantia para a Linha 4 a arrecadação da dívida ativa. Agora, o serviço
da dívida servirá como garantia para parcerias público-privadas em transporte sobre trilhos e rodoviário. Quero aprovar a lei este ano.
Seria o caso de fazer uma parceria para implantar o corredor T5 (Barra à Penha) para facilitar o deslocamento durante o
Pan-Americano?
CESAR: O Pan será na segunda quinzena de julho e, com gerência de tráfego, não haverá problema de transporte. Hoje, no Rio,
o problema de transportes não é grave. Mas daqui a dez anos será gravíssimo. Estamos na fronteira dos investimentos para o Rio não dar um nó. Para o corredor T5, fiz a
licitação do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) em 1994. Dizem que houve pressão de empresários de ônibus e nenhuma empresa participou da licitação. Consegui alargar o prazo
de concessão na Câmara. Agora, as empresas de ônibus estão se dizendo dispostas a participar da licitação. Se isso é verdade, a prefeitura faz a obra e as empresas, a
operação com ônibus adequados àquele corredor.
'Eu sou amado de uma maneira racional'
Prefeito diz que informa, critica e até defende os seus secretários, que se traumatizam com notícia negativa
No atual mandato, o senhor prometeu levar ordem à Zona Sul e progresso à Zona Oeste. Mas ficou uma impressão de que, no caso da ordem, não fez o
papel de dona de casa. A cidade tem problemas de conservação. O que houve?
CESAR MAIA: Em um período de recessão, você tem uma impressão negativa da cidade devido à migração de indigentes, a população de rua e ao aumento
do número de camelôs. Então, há uma sensação de que a desordem aumentou. A gente está gerindo num período de recessão. Quando a pessoa tinha alternativa, minha política de ordem urbana foi
muito dura. Agora eu tive que flexibilizar.
Mas faltam detalhes, como por exemplo instalar câmeras nos túneis da Lagoa-Barra para facilitar o socorro. O senhor não sente necessidade de
aprimorar?
CESAR: Não sei se alguém tem um sistema capaz de captar a necessidade dessas intervenções. Sabe como funciona o nosso sistema de ouvidorias? São
milhares de pessoas que acionam nossas ouvidorias e têm uma resolutividade de 80%. O prefeito também é uma espécie de ouvidor.
E na futura gestão? Qual será o mote? A ordem chegará com a contratação de 120 fiscais de posturas municipais já autorizada pela Câmara?
CESAR: Um dos muitos erros do ex-prefeito Saturnino Braga foi acabar com esta categoria de fiscais. Quem está fazendo a fiscalização de posturas é
a Guarda Municipal, quando na verdade a Guarda tinha que apoiar.
A cidade não está muito escura? Segundo a Rio Luz, a carência é de 35 mil pontos.
CESAR: Não acho. Vá a Paris, ou qualquer cidade do mundo e compare com o Rio de Janeiro. Eu governo sempre olhando para trás. Sei que está
melhorando. Quantos pontos de luz instalamos nos últimos 12 anos? Nós dobramos. A Rocinha parece um presépio à noite. Quando a gente olha para frente tem a sensação que falta muito. É verdade.
Mas temos que olhar para trás e ver o que já foi feito.
Além dos projetos urbanísticos, o senhor tem algum outro na lista de prioridades?
CESAR: Vou encaminhar à Câmara de Vereadores um projeto que acaba com a SMTU (órgão que fiscaliza ônibus, táxis e o transporte alternativo) como
autarquia. Sua estrutura será absorvida pela Secretaria municipal de Transportes. Estudamos também uma revisão do Plano Lúcio Costa para evitar que se continue a tendência de escritórios se
transferirem do Centro para a Barra da Tijuca.
Acabar com a SMTU levaria ao fim das denúncias de corrupção e de falta de estrutura para trabalhar no órgão?
CESAR: Acho que vai dificultar desvios de conduta. Todos os técnicos da secretaria e da SMTU serão transferidos para um prédio que trocamos com o
Senac, em Botafogo.
E quanto ao IPTU? A atual planta de valores (usada na base de cálculo do Imposto) é de 1996. O senhor pretende atualizar a legislação?
CESAR: Na hora que sentirmos que a planta de valores está defasada contra o contribuinte, nós iremos mudar. Neste momento não é o caso.
Na área cultural houve avanço nos setores de cinema e audiovisual. Mas, em artes plásticas, tem algum plano?
CESAR: Nós estamos recuperando. Mas como formular isso? A primeira idéia era o projeto do Museu Guggenheim. Todos os grandes artistas cariocas
eram a favor.
O senhor ainda quer construir o Guggenheim?
CESAR: Não dou o caso por perdido. Depende da Justiça. Fiz uma proposta para a Fundação Guggenheim e o Jean Nouvel (arquiteto francês que projetou
o museu) aceitou, mas a direção do museu não. Queria separar o contrato em dois, para fazer o projeto já que a decisão judicial se referia ao contrato com a fundação. Se eles tivessem
concordado, haveria possibilidade de construir o museu mesmo antes da decisão final da justiça sobre o acordo.
Seu melhor desempenho nas urnas foi na Zona Sul. O senhor acredita que está relacionado com a política preservacionista das Apacs?
CESAR: Em parte. As Apacs neutralizaram o Conde (Luiz Paulo Conde, candidato do PMDB) como alternativa, pois o jogaram para o eleitorado do
Garotinho. O Conde desapareceu na classe média. Na região, o voto foi de caráter mais político para evitar que o Crivella (candidato do PL) chegasse ao segundo turno.
O resultado das urnas mostra que, apesar de eleito no primeiro turno, o senhor não ganhou um cheque em branco da população do Rio ...
CESAR: Aqui no Rio é assim. No dia seguinte você precisa começar a ganhar a eleição de novo. Vencer a eleição significa ganhar o apoio da
população para governar.
Como o senhor define sua relação com o Rio? O senhor não é um carioca típico.
CESAR: Sou a caricatura do carioca em Paris: alegre. Preservo os momentos em que eu preciso que essa simbologia seja marcante. E um deles é no
carnaval quando me comporto como se tivesse menos 20 anos. Acompanho os desfiles e não vou dizer que sambando, pois seria um exagero da minha parte. Mas me mexo. Quantas pessoas me vêem na
avenida? Por baixo, 80 mil.
E como o senhor definiria a sua relação com a imprensa?
CESAR: É muito boa. Hoje uso muito a imprensa como controle de qualidade. A imprensa não é um partido político. Tem a lógica dela, e nós a nossa.
Diariamente leio os jornais pela manhã. Informo ao secretariado o que achei importante e critico aquilo que não achei importante. Defendo o secretariado, que se traumatiza com notícia negativa.
Explico qual é o papel do jornal, que não existe um comitê central dos jornais decidindo o que vai sair. Isso permanentemente.
O senhor se sente amado pelo carioca?
CESAR: Eu sou amado de uma maneira racional. A população sabe que eu posso fazer as coisas que precisam ser feitas. Mas também já fui vaiado, na
época de baixa popularidade, no primeiro governo. O negócio de factóide gerou desgaste. Não estavam enxergando que o governo estava agindo.
Mas o senhor era muito marqueteiro, prefeito...
CESAR: Aquela visibilidade (do factóide) me ajudou a entrar no imaginário da população. Mas corri riscos grandes. Ficava entre o louco e o
realizador; o corajoso e o idiota.
Qual será seu lema agora?
CESAR: Tenho que pensar em três coisas nesta futura gestão. Em primeiro lugar, na cidade. Além disso, no meu grupo político. E, por fim,
humildemente, em mim. Em 2008, terei 63 anos.Tenho ambições nacionais ou não? Vou aproveitar essa força em nível regional, esperar a próxima eleição de dois senadores e me eleger com
facilidade? Eu tenho que ser simplesmente a quarta etapa do mesmo governo, que acrescenta alguns aditivos? Como o caso por exemplo da expansão da ofertas serviços de lazer, de cultura, de
entretenimento. Seria só isso: expandir? Ou preciso agregar uma imagem para lá na frente ter um quadro de alternativas maior do que aquele que eu tenho hoje? Estamos pensando.
Talvez para se candidatar à presidência da República?
CESAR: Aí não é o caso. O PSDB mostrou uma posição hegemônica nesse momento. Nós, do PFL, teremos que nos agrupar no vetor de centro para sermos
em algum momento uma alternativa de poder. E para isso essa aliança com o PSDB foi bastante importante.
Qual vai ser o papel do vice-prefeito eleito (Otávio Leite) e do PSDB no seu governo? O PSDB vai ficar mesmo com três secretarias?
CESAR: Se o Otávio Leite quiser ser secretário, terá que ocupar uma pasta de primeira grandeza. O PSDB terá de fato três secretarias, sendo que
duas efetivas e uma extraordinária.