Artigos 2005

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"Quem pensa que extorquir traficantes é atrativo se engana. Atrativo mesmo é "mineirar" ilustres consumidores de cocaína". Prefeito Cesar Maia 
ARTIGOS (5ª parte)
 

Artigos 2005

 
Tópico 1 Um Estado autônomo
Tópico 2 A boa política de Negrão para as favelas
Tópico 3 Não ao Rio-favelão
Tópico 4 Projeto viável
Tópico 5 Caos em marcha
Tópico 6 Favela S.A. x Rio, urgente
Tópico 7 Queremos mais favelas?

Tópico 8 Favelas: regularização fundiária

Tópico 9 Flores Fétidas
 
Artigos 2006
 
Tópico 10 Atrás de voto
Tópico 11 Dilema da habitação
Tópico 12 Imprevisível x A Voz do Morro
Tópico 13 A decadência do Rio de Janeiro
Tópico 14 Caos urbano
Tópico 15 Geografia carioca
Tópico 16 Favela Rio Sul
Tópico 17 Por que a Rocinha?
Tópico 18 A mídia e a Violência nas fortalezas da Barra da Tijuca
Tópico 19 Violência além do limite
Tópico 20 A desfavelização do Estado do Rio
Tópico 21 Plano Diretor participativo
Tópico 22  Espaço Urbano Contemporâneo e subjetividade: um foco especial sobre as favelas do Rio de Janeiro
Tópico 23 Começa assim
Tópico 24  Exotismo da favela dá dinheiro
Tópico 25 O voto das milícias
Tópico 26 Desigualdade de renda e situação da saúde: o caso do Rio de Janeiro
 
 
                           Artigos 1996, 1997, 1998, 1999
                     Artigos 2000, 2001

                           Artigos 2002, 2003

                          Artigos 2004

Artigos 2007

             Artigos 2011

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Um Estado autônomo

Jornal O Globo, Rio, 09 de outubro de 2005


SÉRGIO MAGALHÃES

A construção de um edifício com onze andares na encosta da Gávea, em plena Rocinha, revelada por reportagem do GLOBO, põe em evidência uma das questões cruciais da cidade.

Por que o espigão gera polêmica? É porque se construiu um edifício alto na encosta? É porque o edifício alto ajudou a desmatar a floresta? É porque é ilegal, não foi licenciado pela prefeitura? É porque ele evidencia aumento da favela? É porque ele sinaliza a perenidade da ocupação? A polêmica seria uma reação ao uso em lugar “ímpio” de um símbolo “sagrado” do progresso moderno, o edifício alto? Todas estas questões podem ser respondidas afirmativamente, o que qualifica o tema. Mas não o esgotam.

Nos anos setenta, os cariocas reagiram à invasão dos espigões que estavam destruindo a ambiência da Zona Sul. Um movimento vocalizado pelo “Pasquim”, com Millôr à frente, pôs-lhes uma barreira legal. O edifício alto ficou estigmatizado no conjunto Selva de Pedra, que substituiu a incendiada favela da Praia do Pinto, no Leblon. Aquele movimento teve desdobramentos, como a consolidação da consciência coletiva de preservação do espaço carioca, o apoio à criação das Áreas de Proteção Ambiental e Cultural, a defesa da insolação máxima na praia impedindo edifícios altos na orla, entre outras vitórias da cidade. O edifício alto se mudou para a Barra da Tijuca.

A reação do prefeito, dizendo ser preferível um espigão na Rocinha do que à beira-mar, pode aparentemente estar referenciada a essa polêmica superada; pode, também, ser interpretada como uma ironia em relação à crítica contra a favela; e, ainda, como um reconhecimento da incapacidade de a prefeitura regular o solo urbano.

As cartas de leitores, as reportagens, os editoriais reafirmam o significado da questão para a cidade. Todavia, há um aspecto que assume o caráter de matriz de todos eles. Proponho que esse episódio seja compreendido mais amplamente -onde de fato ele se situa: trata-se da consolidação da Rocinha como um estado autônomo.

As condições indispensáveis para a existência de um estado autônomo estão postas: há um território próprio, há uma população submetida às suas leis, há um governo. O território desse estado autônomo era, antes, parte integrante do Estado brasileiro. Nesse estado, autônomo do Brasil, não houve um “grito” que promovesse a sua independência; ela se constituiu pouco a pouco, em um tempo que já pode ser medido secularmente, mas que se acelerou nas últimas décadas.

No espigão da Rocinha moram famílias que não estão protegidas pelas leis verde-amarelas. Lá não vigora a lei do inquilinato, mas o mais violento dos capitalismos selvagens, onde o dono do dinheiro pode impor seus “contratos” e exigir pagamentos sem ressalvas; e sem a mediação da Justiça. No capitalismo da Rocinha, o dono do gás é o dono do transporte, dá as regras de convívio, dirige a vida e a morte. Enganam-se os que pensam que o espigão da Rocinha não foi aprovado.

Mas não estigmatizemos a Rocinha, ela é apenas mais evidente, por sua inserção na Zona Sul. É uma evidência exemplar da constelação de territórios onde as leis do Brasil não mais protegem seus cidadãos. Esses territórios são favelas, do Rio e de outras cidades, são loteamentos suburbanos, são, ainda, centenas de conjuntos residenciais, construídos pelos governos, onde mandam outras leis. Programas como o Favela-Bairro não são uma panacéia, embora sejam indispensáveis se quisermos a retomada desses territórios.

Empurrados à própria sorte, sem financiamento habitacional, sem transporte adequado, à mercê do capitalismo mais selvagem, esses brasileiros estão sem a proteção do Brasil. Proponho que o espigão da Rocinha seja um símbolo da retomada verde-amarela dos milhares de loteamentos, conjuntos e favelas que permanecem ilhados na anomia e subjugados pelos donos de tudo, dos edifícios, das leis, da vida e da morte. Proponho a República do Brasil para todos os brasileiros.
SÉRGIO MAGALHÃES é arquiteto.
 

 

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A boa política de Negrão para as favelas

Jornal O Globo, Rio,Opinião, 16 de outubro de 2005

SILVIO FERRAZ

O prefeito Cesar Maia definitivamente escolheu o morro. A cidade fica relegada ao quinto plano em suas preocupações e seus habitantes-contribuintes de elevados impostos, como o IPTU, assistem à favela placidamente tomar conta do espaço urbano, da mata atlântica, dos símbolos da cidade, como exemplarmente vem documentando este jornal. Além dessa invasão, os moradores do asfalto ainda são obrigados a ouvir do prefeito absurdos como “o morro é deles” e “a remoção é impossível”. Para temperar mais a salada de absurdos, o prefeito salpica frases como “a verticalização no morro é melhor do que na orla, porque sombreia as praias”.

Prefeito, a remoção não é a única solução para o crescimento desordenado dos chamados aglomerados subnormais, terminologia ao gosto de arquitetos, urbanistas e antropólogos. O governador Francisco Negrão de Lima, último a ser eleito pelo voto popular antes de a ditadura instituir a votação indireta pelo Congresso e assembléias, penou sob o tacão dos militares e dos tecnocratas que com ele compartilharam o poder em todo o seu mandato. Ditadura que tomou de assalto o falecido Banco Nacional de Habitação e fez da remoção sua única bandeira para as favelas. Remando contra a maré, Negrão teve a coragem de criar a Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (Codesco) com o objetivo de resolver a questão das favelas: urbanizar ou desadensar

O lema da Codesco, atuante miniestatal com apenas 40 funcionários, era urbanizar favelas passíveis de integração aos bairros adjacentes. Novas ruas poderiam se ligar às existentes no bairro, assim como as redes de esgotos e águas pluviais. Integrá-las nas vantagens e desvantagens. Nada de construir creches ou escolas para o gueto modernizado. Os moradores da favela integrada teriam que entrar em filas junto aos vizinhos dos bairros do asfalto. Para as parcialmente urbanizáveis, a solução seria reduzir a densidade — removendo a parte remanescente para terrenos urbanizados, do Estado ou desapropriados, o mais próximo possível da ex-favela, para que continuassem próximo a seus empregos e não se apagassem os vínculos de convívio de seus moradores.

As chamadas favelas inurbanizáveis — que agrediam o coração da cidade, e cuja topografia e condições geológicas não possibilitariam a implantação de redes de esgoto sanitário, fornecimento de água e tampouco a ampliação de ruelas permitindo a passagem de ambulâncias, viaturas do Corpo de Bombeiros e polícia, estas, sim, seriam removidas integralmente.

Como a estatal de Negrão para esta finalidade só foi criada nos dois últimos anos de seu governo, apenas a então favela de Brás de Pina, com quase dez mil habitantes, foi totalmente urbanizada. E a favela Morro União — metade no plano e metade no morro — com cerca de sete mil habitantes, foi parcialmente urbanizada. O êxito começou pela aceitação dos moradores. O traçado de suas ruas foi escolhido democraticamente. O segundo fator que contribuiu para o êxito foi o financiamento do material de construção concedido pelo Estado, com recursos do BNH. Aí sim, tivemos uma política social — acesso às fontes de financiamento a juros reduzidos para a classe social que não podia enfrentar as tabelas price da vida. A inadimplência não ultrapassava 2% e as casas construídas pelos próprios favelados eram mais amplas que as do BNH.

O que seria feito, à época, nas favelas da Rocinha e do Dona Marta? Seriam removidas, aos poucos, para a região de Santa Cruz, nas vizinhanças do Distrito Industrial, então em construção. A proximidade com as fábricas garantiria empregos. Mesmo assim, a título de incentivo, os ex-favelados teriam isenção do pagamento de taxas municipais e estaduais durante uma década e transporte subsidiado até o limite da Zona Sul, para quem preferisse seu emprego. Tudo isso, no entanto, seria feito na base do convencimento, do diálogo. Naquela época, diga-se, os morros não eram depósitos de drogas, tampouco as quadrilhas os haviam ocupado. Havia clima para diálogo.

Hoje, há ainda condições para a recriação desse clima. Desde que o governo não chegue lá impondo sua fórmula — como no caso favela-bairro. Nesta última tentativa de intervenção habitacional, o governo sempre chegou com o bolo pronto. Quem quisesse comer, comesse. Não é assim. Bandido é uma coisa, favelado é outra. É gente boa. Favelado pode e deve opinar, como faz nas urnas. Dialogar é possível. O que o prefeito lamentavelmente está mostrando aos contribuintes é ter tomado irreversível partido pelos não-contribuintes, embora tanto um como outro compareçam às urnas com seus votos. Cesar fez sua escolha. Façamos a nossa: pagar IPTU, só na Justiça.
SILVIO FERRAZ é jornalista e foi diretor-executivo da Codesco, empresa estatal que urbanizou favelas do Rio no governo Negrão de Lima.

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Não ao Rio-favelão

Jornal O Globo, Rio, 09 de outubro de 2005
 
PAULO RABELLO DE CASTRO

Tudo na vida depende da nossa perspectiva.  Vista de baixo, qualquer barreira parece mais alta.  Visto de cima, nenhum obstáculo é intransponível.  Que o diga quem já experimentou a sensação de haver chegado ao topo da sua montanha.

Os problemas do Rio são múltiplos, crônicos e entremeados.  Daí a dificuldade do seu equacionamento.  Saídas existem sim.  Aliás, a maioria delas já foi alguma vez pensada e, até mesmo, aplicada em algum tempo passado.  A grande reforma urbana de Pereira Passos, no início do século passado, é apenas uma lembrança de alguém que ousou mudar a cidade para melhor... e conseguiu!

Estimo e respeito o prefeito Cesar.  Mas não posso concordar com sua perspectiva “de baixo”.  Ele vendeu desesperança e inação em sua infeliz entrevista ao GLOBO, ao contestar a busca de soluções a respeito da ocupação ilegal do solo na nossa cidade.  A população do Rio quer ter, da sua liderança maior, a perspectiva “de cima”, a visão de superação dos problemas, por mais difíceis que pareçam.

Tudo começa por admitir nossa realidade, nua e crua.  O Rio está morrendo.  E ponto.  Mas não um ponto final.  Estamos vivos, embora presos, como náufragos na cidade que afunda lentamente.  O declínio econômico da ex-capital federal deve ser visto como dado fundamental da favelização.  É a nossa classe média, mal remediada, que se acomoda nas encostas da informalidade.  Não são bandidos que promovem a favelização.  É a inapetência sucessiva de dirigentes que não dirigem.

A reversão de expectativas, no entanto, deve se dar até antes da retomada da prosperidade.  É decisão voluntarista, porque política.  O Rio exige um reordenamento urbano amplo.  Ele começa pela titulação integral dos atuais ocupantes e posseiros.  A propriedade, imitida ainda que por fração ideal das áreas ocupadas, emulará o ímpeto de progresso de cada novo cidadão-proprietário.  O diálogo prefeitura-proprietário, ou estado-proprietário, será, daí para a frente, um diálogo de igual para igual. 
Sem assistencialismos.  Sem os vícios da esmola política.  A fase seguinte será mais fácil:  com os especialistas, reprojetar o espaço urbano e redefinir como habitáveis apenas as áreas acessíveis e seguras.  Acessibilidade e segurança, especialmente ambiental, são as chaves.

Não haverá remoção de favelasHaverá eventual mudança de endereço do cidadão, por decisão do próprio, sujeita a critério técnico e recompra da fração titulada, acompanhada de transporte fácil e confortável, com os serviços essenciais, na nova moradia.

Difícil de implantar?  Certamente.  Mas não impossível, isso nunca.  Temos é que suar a camisa em prol da Cidade Legal.

Um programa como esse seria capaz,
numa só gestão administrativa, de mudar a cara do Rio, tendo como principal desdobramento, à parte o impacto bilionário de valorização patrimonial para milhões de cariocas, ricos e pobres, o resgate da tão necessária e perdida segurança pública.

Auto-estima, também.  Porque tudo depende da perspectiva.
 O Rio não será nada enquanto, para ele, não pensarmos nem sonharmos nada.  De fato, a perspectiva “de cima” nasce da capacidade de sonhar.  É o sonho que nos faz levitar e voar.

PAULO RABELLO DE CASTRO é economista.
 

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Projeto viável

 
Jornal O Globo, Rio, Editorial, 26 de outubro de 2005


A favelização se expande em função de certos fatores. No caso do Rio, o populismo cumpriu e cumpre papel destacado na formação e no crescimento da verdadeira cidade de barracos distribuída em praticamente todos os bairros. Hoje, com uma população na faixa do 1,2 milhão de pessoas, ou pouco mais de 20% do total dos cariocas, o conjunto de favelas, ou de habitações “subnormais”, pelo jargão técnico, já representa um curral eleitoral avantajado, à disposição de especialistas em pavimentar carreiras públicas explorando grotões urbanos. E dessa forma as favelas se eternizam, sob a proteção de deputados, vereadores etc.

Há também a falta de programas de habitação popular capazes de atender à enorme demanda por residências formais existente entre os favelados. Extinto o Banco Nacional da Habitação — em que pese o BNH também ter funcionado como instrumento de transferência de renda para a classe média — ficou um vazio no sistema de financiamento habitacional. Estados e municípios criaram mecanismos próprios, mas na maioria dos casos incipientes. Porém, agora, com a aprovação da lei 11.124, acabam de ser criados o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social e um fundo nacional para subsidiar os mutuários. Originada há 13 anos de movimentos de sem-teto ligados à Central Única de Trabalhadores, a idéia da lei foi apoiada por um abaixo-assinado de milhares de pessoas e, na condição de projeto de origem popular, como previsto na Constituição, foi encaminhado ao Congresso. Terminou apoiado pelo setor da construção civil, e agora precisa ser regulamentado e receber o aporte de recursos necessários do Tesouro para subsidiar, como é imprescindível, parte dos empréstimos.

O importante é que surge um instrumento para viabilizar projetos habitacionais que poderão estancar e reverter a favelização. No Rio, empresários tiveram a boa idéia de propor a criação de bairros, com toda a infra-estrutura urbana — a maior parte da qual já existe — às margens da Avenida Brasil.

Para a execução desse e de outros projetos o município e o estado têm de aderir ao programa. Se tudo acontecer segundo o melhor cenário, recursos financeiros não faltarão. Será preciso, então, haver vontade política nos governos e vencer a tentação do populismo.
 

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Caos em marcha

Jornal O Globo, Rio, 27 de outubro de 2005

Pode-se ter qualquer posição sobre as favelas. Só não se pode deixar de reconhecer que a favelização está no centro da crise do Rio - até mesmo por ter uma relação direta com a criminalidade. A existência de duas cidades,a formal e a informal, vem de muito longe. Há até um marco histórico: no final do século XIX, a construção de casebres, na área do Morro da Providência,por ex-soldados combatentes da Guerra de Canudos.O problema,porém, é que a cidade à margem das leis e das normas - que constrói sem licenças, rouba energia elétrica, não paga impostos e assim por diante - cresce em alta velocidade e já sufoca o Rio formal, o que cumpre alei,financia os gastos públicos por meio dos tributos. E que por causa desse processo de degradação se sente cada vez mais acuado pelo Rio informal. Os bairros de Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes e adjacências servem de termômetro dessa degradação: em dez anos, de 1991 a 2000, segundo o IBGE, a população de 29 favelas existentes na região aumentou em 123%, contra um crescimento de 69% no número de habitantes dos bairros formais, o asfalto. A deterioração da cidade por causa da ocupação desordenada das encostas e das margens de lagoas (Zona Oeste) e o avanço de favelas em áreas outrora industriais (Avenida Brasil) já há algum tempo alerta para a necessidade de um programa amplo, de emergência, com a participação dos governos municipal,estadual e da União, para conter a favelização e fazê-la retroceder. Para o bem de todos, incluindo, claro, os favelados, hoje cerca de 20% da população total de cariocas (7% em 1950). Projetos tópicos não têm mais possibilidade de êxito: favelas-bairros, ecolimites, controle do desmatamento. É tratar câncer com aspirina. Muito menos é sensato esperar que um longo (e incerto) ciclo de crescimento econômico venha transformar a Rocinha e o Vidigal em reproduções de vilarejos da Côte D'Azur e da Costa Amalfitana. A única semelhança entre a Niemeyer, São Conrado e Gávea com a costa européia no Mediterrâneo são o mar e a montanha.

Mudanças na lei

O crescimento das favelas foi certamente um dos fatores que favoreceram a perda, no Estado do Rio de Janeiro, de exuberantes faixas de Mata Atlântica. Mas se não se pode simplesmente culpar as ocupações, elas tiveram um papel preponderante e histórico, a exemplo do que ocorreu nos ciclos econômicos extrativista e agrícola, com o adensamento da ocupação urbana na Região Metropolitana. Por isso, quando o percentual de moradores em área urbana em nosso estado ultrapassa os 93% da população, o restabelecimento de um debate sobre a expansão dessas comunidades vem em boa hora! Pois, de fato,enfrentamos muitas dificuldades em coibir tais invasões. Atesto isso nestes quase 15 anos como ocupante de sucessivos cargos públicos na área de meio ambiente. Só obtemos sucesso quando da remoção de construções ainda não consolidada se, mesmo assim, dependendo da ocupação estar ou não ocorrendo em propriedade privada. A Fundação Instituto Estadual de Florestas (IEF/RJ), que presido desde 2003,ampliou, consideravelmente, suas ações de demolição em áreas inseridas em Unidades de Conservação da Natureza. Vale registrar que ampliamos, em 2004,em 850% o número de demolições feitas em 2002, passando de sete demolições para 43. Apesar disso, enfrentamos embargos que têm buscado impedir a diligente ação de nossos fiscais, em áreas de residências e construções de alta e de baixa renda. Precisamos, sim, rever a legislação, e com urgência, para assegurar em nosso estado os valiosos 17% de remanescentes da floresta tropical atlântica. Para isso são necessárias leis mais eficazes e uma ação efetiva do poder público na fiscalização, informação, educação e controle ambiental.

MAURICIO LOBO é presidente da Fundação Instituto Estadual de Florestas

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Favela S.A. x Rio, urgente

Jornal O Globo, Opinião, segunda-feira, 31 de outubro de 2005
Favela S. A.

JÚLIO LOPES

Recentemente, durante um debate na Firjan sobre revitalização do Rio, o secretário de Segurança Pública, Marcelo Itagiba, declarou que o município havia se transformado em uma grande favela com pequenos pedaços da Cidade Maravilhosa em volta. Exageros à parte, a afirmação do secretário tem um fundo de verdade. Em 1980, segundo o IBGE, havia 637.518 moradores nestas áreas. Em 2000, pulou para 1 milhão.

Mas por que as favelas crescem tanto? Há a questão social, mas, tão importante quanto ela, está o conjunto de atividades econômicas das favelas e que estimulam seu crescimento, comprometendo a segurança de todos. Uma dessas atividades é a especulação imobiliária informal que domina favelas como Rocinha e Vidigal. Protegidos por milícias armadas, os donos desses imóveis conseguem, à margem da lei, construir prédios e lojas em proporções geométricas. São os verdadeiros donos dos morros.

Na região do Boiadeiro, na Rocinha, uma pesquisa feita por meu gabinete apontou a existência de 149 prédios com 1.200 apartamentos. Todos irregulares. Ao invés de coibi-los, o prefeito Cesar Maia reforça essa situação ao publicar um decreto, de 12 de julho, em que isenta de taxas de licença estabelecimentos comerciais nas favelas.

Esse mercado clandestino fortalece, em alguns casos, milícias armadas que cobram taxas dos donos desses imóveis para terem a certeza que seus inquilinos pagarão em dia o aluguel. Já aquele que mora num imóvel clandestino não tem a garantia que, ao voltar do trabalho, continuará na sua casa.

É preciso fazer um pacto pela legalidade. Ou seja: realizar uma ampla regularização fundiária para trazer ao mercado formal milhares de pessoas que hoje vivem na ilegalidade. Uma das saídas para este problema está na regularização fundiária referenciada por satélite (georreferenciamento). Este trabalho é precedido de um questionário, aplicado in loco , para levantar o número real de domicílios da favela, identificando seus moradores, condições socioeconômicas, bens de consumo e regime de ocupação do imóvel. As informações colhidas no campo formam um banco de dados, digitalizados e importados para uma base cartográfica.

A partir daí, os dados dos domicílios são georreferenciados por satélite, tornando-se possível a produção de mapas para um projeto de regularização. Com o georreferenciamento, pode-se desenvolver não só a legalização da terra em comunidades como a Rocinha e o Vidigal, como também monitorar por satélite seu crescimento.

Ao dar cidadania àqueles que não a têm, a regularização fundiária colabora com a segurança pública, pois corta o vínculo entre o mercado informal de imóveis e as milícias armadas.
JÚLIO LOPES é deputado federal (PP-RJ).

Rio, urgente!

EDSON SANTOS

A discussão sobre favelização é oportuna e, felizmente, está gerando ações concretas do Poder Público. Nos últimos 10 anos, não tivemos políticas habitacionais que fizessem frente ao crescimento populacional.

Em nossa cidade estamos marcados pelo crescimento urbano desordenado. Nenhum dos recentes governos municipais executou qualquer política que permitisse a oferta de moradias populares dignas, em locais com infra-estrutura básica de saneamento, iluminação, transportes e serviços públicos. O mesmo acontece em relação a moradias para a classe média, que ficou à mercê da especulação imobiliária, e, exaurida por perdas econômicas, acabou sendo empurrada para cada vez mais longe dos locais de trabalho. Ou pior, tendo que morar em condições precárias para poder garantir acesso ao emprego e aos serviços básicos.

Infelizmente, o prefeito do Rio demonstrou falta de sensibilidade à questão e fez da inércia sua política habitacional. E em uma tentativa de se eximir de suas responsabilidades, tentou inculpar apenas a Câmara dos Vereadores, dizendo que a legislação precisava ser alterada para que a prefeitura pudesse agir. Para o bem da cidade, no entanto, o debate levou Cesar Maia a reconsiderar sua defensiva posição. Quase caímos numa discussão maniqueísta sobre as remoções quando o principal não é isto.

A prefeitura diz que poderia construir oito mil casas por ano. O Sindicato da Indústria da Construção Civil tem diversos projetos, assim como estudiosos do setor. O governo federal tem, por meio do Ministério das Cidades, diversos programas habitacionais. A Caixa Econômica Federal tem financiamentos e programas para moradias populares e de classe média.

É urgente unir esforços. Precisamos agir rapidamente para que o déficit de mais de 126 mil moradias na cidade seja reduzido, e para isso precisamos também estar atentos à revisão do plano diretor. Áreas que eram estritamente industriais ou agrícolas e hoje estão esvaziadas como a Avenida Brasil, por exemplo, podem ter permissão de uso alterada para garantir a construção de moradias populares. Há também diversas áreas, especialmente na Zona Oeste, que podem ser tratadas como áreas de expansão.

O que propomos é a geração de novos espaços residenciais para moradias de diversas faixas de custo. Mas temos que oferecer alternativas reais, porque só assim teremos uma cidade como merecemos.
EDSON SANTOS é vereador (PT) no Rio.

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Queremos mais favelas?

Jornal do Brasil, Aloísio Araújo, 28/dez/2005

Com efeito, nos últimos anos não paramos de incentivá-las, à custa da habitação formal. De saída, destruímos nosso sistema financeiro de habitação, que, embora precário, fornecia algum crédito ao segmento popular. E isto era importante para um país cuja população urbana se multiplicou por 12 em um período de 50 anos. A favela num certo sentido substitui o crédito, pois, ao contrário da habitação formal, ali é possível construir aos poucos, substituindo o pagamento das prestações pela compra de tijolos. E isto se agrava com as exigências absurdas de nosso código de obras que dificulta construções de alta e baixa rendas. Nosso esforço para a destruição do crédito habitacional foi intenso, desde a criação de condições para a inflação alta ao populismo primário que perdoou a dívida da classe média com as fórmulas de ajuste de prestação abaixo da variação dos preços.

Pior que isto são as boas intenções de nosso Judiciário, que evita ao máximo o despejo e a repossessão, protege os poucos que já tiveram créditos e prejudica os muitos que poderiam tê-lo não fosse o desencorajamento dos credores.

Mas aí vem a parte mais desastrosa, o incentivo direto à construção na favela. Para isto colaboram muitos de nós, os economistas. Estou me referindo aos programas como o Favela-Bairro, distribuição de títulos de propriedade, micro-crédito, etc. Em vez de inverter esta situação, o que se tem proposto é justamente agravá-la ainda mais através da adoção das idéias do economista peruano Hernando De Soto, de titulação massiva de propriedade urbana. O maior erro é o de não considerar os efeitos perversos dos incentivos que se criam para novas invasões. É como apagar incêndio com gasolina. Uma das principais razões que o programa de reforma agrária não gerou uma reação semelhante foi que se criou uma regra de que a terra invadida não estaria sujeita à desapropriação.

É preciso inverter a situação, adotando-se as seguintes medidas a) suspender a titulação de terras invadidas; b) diminuir a intensidade do Favela-Bairro; c) suspender o microcrédito para regiões não legalizadas; d) mudar a lei orgânica do estado e do município para permitir remoções de favelas ou setores de favelas que estejam em áreas de riscos ambientais ou de deslizamento, ou impedindo o bom funcionamento da cidade como a livre circulação e finalmente impedir todas e quaisquer novas invasões.

É importante a criação de um amplo programa de subsídio de juros para o financiamento de construção para a baixa renda. O setor privado cuidaria da construção e o governo se encarregaria de pagar uma parte substancial dos juros, dando uma parcela da TR. Isto deveria ser feito em caráter de urgência e pelos três níveis de governo. O momento é muito propício para um programa desta natureza, pois existem recursos sobrando para o financiamento habitacional. Com o governo custeando parte dos juros, a prestação cairia e novos compradores poderiam se habilitar. Em um cálculo aproximado, há 300 mil habitações informais no Rio de Janeiro. Se quiséssemos formalizar 10% destas a um custo de R$ 30 mil por habitação com a prefeitura pagando 10% anuais de juros, teríamos um custo anual de R$ 90 milhões.

Restabelecida a capacidade do setor formal de competir com o informal, teríamos a chance de observar uma dinâmica virtuosa: muitos favelados venderiam suas casas para dar entrada na compra de novas moradias no setor formal. Assim, os preços na favela começariam a cair e se desestimulariam novas construções. As favelas finalmente murchariam.

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Favelas: regularização fundiária

Jornal do Commercio, 21 de dezembro de 2006
Luiz Oswaldo Norris Aranha

Por mais estranho que possa parecer, da mesma forma em que os moradores das favelas recusam-se a ocupar casas mais afastadas, apesar da perspectiva de obter conforto mais elevado, o sentido da propriedade é muito forte e a grande maioria é agarrada ao barraco que construiu ou comprou. Esse ponto deve ser explorado positivamente. Lembrando o poeta Adoniran Barbosa, ao se derrubar a maloca, cada tábua que caía, doía no coração! Trata-se de sentimento autêntico, pelo qual os favelados, ao obter a titulação de seu terreno, passam a se considerar efetivamente cidadãos. Lembre-se que a conta de luz já trazia status bem mais elevado e produzia orgulho, mesmo que significasse parcela bem pequena desse processo.

Sem dúvidas, a regularização fundiária é fundamental. O processo é, contudo, extremamente difícil, envolvendo extraordinário montante de áreas públicas que não poderão ser simples objeto de doação, bem como milhares de terrenos de propriedade privada, de tamanhos variados, cujo valor é hoje, na prática, quase nulo, mas cujos proprietários veriam, se aberta a discussão, a oportunidade de negociar e recuperar algum dinheiro. Há dois formatos básicos a considerar, na solução do problema. O gradual que não vem dando certo, pois o crescimento ilegal vem se realizando em velocidade bem maior do que a regularização. E o geral, que dependerá de ampla discussão pela sociedade e firme posicionamento do Congresso.

O debate deve ser público, afastando os viéses de moradores do morro ou do asfalto. Para os primeiros, cabe deixar de lado a postura de coitadinhos, passando a assumir a discussão do problema, na qualidade de cidadãos que ocupam um pedaço de terra urbano, há muitos anos, com direitos morais e legais e, sobretudo, com o legítimo desejo de se tornarem proprietários. Deverão, de algum modo, contribuir para tal, inclusive pagando, mesmo que em módicas prestações, pelo pedaço de terra que passará para seu patrimônio, de forma definitiva, com registro em cartório. Com esta disposição, seria possível pressionar por soluções coletivas e ultrapassar as barreiras legais que vêm impedindo a almejada regularização fundiária.

Propostas para o impasse

Do lado dos moradores do asfalto, não basta permanecer reclamando das agruras do crescimento das favelas e das ameaças que vêm sofrendo à integridade física, em função dos tiroteios entre traficantes. Precisam participar intensamente da discussão do problema, tendo em conta que a proximidade de população mais pobre também lhes traz consideráveis vantagens, em termos da prestação de serviços e que cabe aos mais ricos, intelectualmente mais preparados, desenvolver propostas que possam resolver o impasse. Devem lembrar que é melhor perder os anéis do que os dedos e que, no final, pode-se encontrar situação racional para todos, reduzindo a insegurança e buscando a paz e harmonia, para toda a sociedade.

O papel mais relevante é o do Congresso Nacional. O mero equacionamento do uso capião urbano não resolve o problema, pois transfere, para a esfera judicial, a discussão de situações isoladas que se arrastam, por décadas. Recair-se-ia no caso da solução gradual que vem fracassando redondamente, pois os novos barracos que são construídos, o são em número muito maior do que aqueles que se regulariza ou mesmo se derruba. A situação é de extrema gravidade, crescendo assustadoramente e envolvendo aspectos os mais contraditórios. Além dos debates públicos, dando-se ênfase para os diretamente interessados e ouvindo aqueles que já vivenciaram o problema, cabe gerar regras definitivas, para a propriedade urbana.

Enquanto não houver disposição para resolver o problema da regularização fundiária urbana que está na raiz dos demais, é difícil encontrar trégua que, ao menos, limite o crescimento desmesurado das favelas e, mais que isso, o domínio que os traficantes sobre elas exercem. Estabelecidas regras legais, durante o processo de ajuste, as aberrações urbanísticas poderão ser resolvidas, neste caso assumindo o Estado o ônus que eventualmente for causado a moradores. Lembre-se que, mesmo no asfalto, quando se impõe a abertura de nova via de acesso, ou outro tipo de melhoria, é possível desapropriar propriedades legalmente constituídas. Este fato deve ocorrer, apenas, priorizando o interesse público, sem favorecer a quem quer que seja.

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Flores fétidas

Jornal O Globo, 21/11/2005

Dói, dói sim e muito, quando a gente vê se escoarem aos olhos indignados dos que amamos esta cidade de São Sebastião as possibilidades de resgatar o Rio da favelização avassaladora. Pois todos estamos fartos de saber que o ilegal da favelização é orgânico, de berço, de origem. Embora o ilegal seja até justo para os favelados, essas grandes vítimas do descaso dos administradores que não lhes provêem casas decentes, como seria o exigível. As áreas públicas —- especialmente os verdejantes morros cariocas — teriam que ser defendidas, a ferro e fogo, pela autoridade pública.

Nem vou levantar aqui as razões históricas e sociais que fizeram as favelas brotarem como flores fétidas nas cidades. É um encadeamento a não mais acabar de péssimas políticas públicas. E, é claro, de olhares vesgos, quando não populistas, lenientes e preguiçosos, dos prefeitos de certas cidades.

O edifício que apareceu na Rocinha, de repente e obscenamente, nos fez gritar “o rei está nu”. E fez este jornal deflagrar uma das mais úteis campanhas que a cidade já mereceu para se inteirar do estado de degradação a que chegou. A indignação é geral.

O nosso alcaide chegou a comparar os prédios da orla que deitam sombras nas areias de Copacabana (prédios, de resto, autorizados por prefeitos anteriores, não menos criminosa e irresponsavelmente) aos que irrompem agora nas favelas, justificando essa anomalia monstruosa como “até mais amável” para a cidade. Francamente...

Não, não é de hoje que todos sabemos que as favelas abrigam suas máfias da especulação imobiliária, além das máfias dos traficantes. Ambas as infestam. E sempre sinalizaram para a imediata contenção das favelas, a fiscalização permanente da prefeitura, a remoção em muitos casos. A palavra remoção, aliás, acabou por virar palavrão, nas sentenças de certas cabeças que ainda pensam que o Brasil vive em estado edênico de riqueza opulenta, de ordem e ética irrepreensíveis, de políticos suíços, de segurança pública londrina, de transporte coletivo germânico.

O concreto e trágico: as favelas proliferam a olhos vistos em quase todo o país e as autoridades municipais não conseguem impedi-las. E nem sequer as limitam.

Esse crescimento desenfreado vai inviabilizando todos os planos assistencialistas, como os “favelas-bairros”, os “bairrinhos”, e que tais. A tragédia é inevitável, e ponto final.

O pior de tudo é que as soluções são cada vez mais remotas. Cadê uma política severa de habitações populares, a partir do governo federal e do seu inoperante Ministério das Cidades? Cadê a imediata contenção e fiscalização permanentes da prefeitura? Cadê os planos para a não favelização, anunciados a cada vez que a imprensa e as cartas dos leitores gritam mais alto como agora?

Resta-nos clamar pelo Ministério Público. Portanto, daqui ecoa um apelo aos representantes da Justiça: vamos intimar as autoridades a circunscrever as favelas a limites rígidos, obrigando-as a defender a ordem urbana. E vamos começar a tirar da prisão uma palavra-idéia, uma simples palavrinha que virou palavrão: Remoção.


RICARDO CRAVO ALBIN é jornalista e escritor.
 

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Atrás de voto

Jornal O globo, Opinião, 09 de fevereiro de 2006

Em fase de hiperatividade, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou na terça-feira um conjunto de medidas para estimular a construção civil, com especial atenção às faixas de renda mais baixa. Numa solenidade com direito a claque, foi apresentado um pacote de conteúdo diversificado. Nele se misturam a liberação de recursos para reforçar linhas de financiamento imobiliário, mais recursos para o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social e redução da carga tributária (IPI) sobre uma série de materiais de construção. O próprio Lula tomou a iniciativa de frisar a inexistência de qualquer interesse eleitoreiro nesse conjunto de medidas. Precisará exercitar bastante o poder de convencimento.

Não se pode deixar de elogiar o corte do imposto. Num país onde a carga tributária atinge o paroxismo, qualquer alívio é bem-vindo. O fato, porém, de boa parte dos recursos anunciados não ser do governo, mas das cadernetas de poupança; e uma outra parcela já ser conhecida, prevista no Orçamento da União e no FGTS, denuncia o caráter político-promocional do pacote. Dos R$ 18,7 bilhões citados como reforço às linhas de financiamento, apenas R$ 550 milhões são dinheiro novo.

A redução do IPI, em alguns casos eliminação, para estimular o consumo de 26 tipos de materiais de construção, comprova o interesse eleitoral. É evidente a intenção de agradar a quem compra esses materiais para transformar o barraco em casa de alvenaria ou expandir com mais uma laje o imóvel erguido na informalidade, em favelas e precários bairros nas periferias. Não é sequer garantido que o comércio repassará a margem criada pelo corte do IPI.

Mas como o objetivo é afagar a massa, tudo é válido. Mesmo que se incentive a favelização país afora. Sintomaticamente, medidas efetivas para atacar o problema da casa própria ou não foram tomadas ou ficaram aquém do necessário. Nas discussões internas no governo tratou-se de um regime tributário especial destinado a projetos imobiliários para a baixa renda. Ficou de fora do pacote. E o bilhão de reais do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social precisaria ser multiplicado por cinco para subsidiar como é preciso as prestações do pobre. Mas são medidas de difícil compreensão num momento em que o importante é atrair voto.

 

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Dilema da habitação

Jornal do Commercio, 02/Fev/2006

O conjunto de medidas que contemplam desde a criação de incentivos fiscais até o reforço dos programas de crédito, em vias de ser anunciado pelo Governo e que se vincula ao objetivo de revitalizar a política habitacional e, a um só tempo, estimular a indústria da construção civil - cujos efeitos multiplicadores em relação à geração de empregos diretos e indiretos são amplamente reconhecidos - marca uma tomada de posição em setor cuja essencialidade é inconteste em qualquer estratégia econômica, com os desejáveis reflexos em termos de bem-estar social. Se por um lado houve, ao que se sabe, divergências entre áreas técnicas da Fazenda e as de outros ministérios, como o das Cidades, do Desenvolvimento e da própria Casa Civil, sobre a extensão dos benefícios fiscais a serem, para esse fim, concedidos, por outro não há dúvida quanto ao alcance econômico e social da iniciativa, sobretudo por sua influência potencial na redução do déficit de habitação, o qual permanece em níveis socialmente inaceitáveis, sobretudo no segmento da chamada habitação de interesse social. Informa-se, por isso mesmo, que entre as medidas examinadas para beneficiar o setor da construção civil figura a possível redução da carga tributária que incide sobre os lucros das empresas. A idéia, a esse respeito, é a de reduzir o Imposto de Renda e contribuições como a Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL) e PIS/Cofins, incidentes sobre receitas advindas da construção de casas populares, seja mediante cortes na alíquota seja na base de cálculo tributário. Os estudos sobre a questão, em cujo curso as referidas divergências técnicas não deixaram de se manifestar, particularmente em um ponto delicado, qual seja o do volume da renúncia fiscal pretendida, voltam-se, não obstante enfoques diversos quanto à sua implementação, ao objetivo de beneficiar um setor cujo potencial de geração de empregos é singular, tendo, ademais, condições de influir na expansão do Produto Interno Bruto (PIB), ou seja, na soma das riquezas produzidas no País, numa fase particularmente delicada assinalada, afinal de contas, pelo ano eleitoral já iniciado. Veja-se, a propósito, e em referência à isenção do IPI, a qual se anuncia virá a ser objeto de decreto presidencial, que um dos cuidados pincipais consiste, precisamente, na seleção rigorosa dos produtos a serem beneficiados, figurando entre os mais prováveis, na lista de materiais de construção, azulejo, vidro, tintas, vergalhões, cimento, esquadrias e louças. Por outro lado, ao tempo em que reconhece que a desoneração de uma série de produtos do IPI permitirá a redução dos custos da construção habitacional, o presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil de São Paulo, João Claudio Robusti, destaca a necessidade de estimular o mercado formal, e não a informalidade: "Se este cuidado de direcionar o estímulo ao segmento formal da construção não for tomado, cada vez mais a atividade do setor será informal, principalmente na habitação popular. Desse jeito, continuaremos estimulando a implantação de construções precárias, em vez de contribuir para a erradicação do déficit habitacional por meio de políticas públicas bem formuladas". Um desafio que se coloca, afinal, de forma inarredável, para que os efeitos econômicos e sociais das medidas anunciadas se façam sentir por inteiro e em estrita conformidade com as razões que as inspiram

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Imprevisível x A Voz do Morro

Jornal O Globo, Rio, Opinião, 13 de fevereiro de 2006

Imprevisível

O problema é nacional, mas no Rio, por várias razões, ele mostra sua verdadeira dimensão. A favelização carioca atinge toda a população, esgueira-se em todos os bairros. Mesmo os nobres. O mais recente fruto desse grave processo de degradação é a expansão da Favela Chácara do Céu por sobre o Alto Leblon, nas franjas do Dois Irmãos, o mais novo candidato a se transformar numa Rocinha ou num Vidigal.
O crescimento desordenado dessas comunidades corrói já há algum tempo uma das melhores características da cidade: o saudável convívio entre classes sociais. Pena, pois foi essa miscigenação que moldou o espírito carioca, forjou a criatividade artística do Rio, com destaque para a música. Tudo está sob risco.
A sucessão de governos descuidados com o problema, por incompetência, populismo e demagogia operosos, criou a cidade partida e tem prejudicado toda a população por afugentar investimentos e turistas.
Passou o momento de teorizações e posturas politicamente corretas diante da questão. Agora, quando o governo federal, por razões eleitoreiras, decide estimular a venda no varejo de materiais de construção, e com isso incentiva a favelização por todo o país, o problema se torna ainda mais grave.
É preciso atropelar preconceitos antigos para efetivamente se começar a desfavelizar o Rio. Para o bem de todos, a começar dos próprios favelados. Ninguém deseja viver de forma precária, ainda mais subjugado por gangues.
Estamos com aproximadamente 5,5 milhões de habitantes, cerca de 20% dos quais são favelados (1,2 milhão). Esse contingente da população cresce à razão de 30 mil pessoas por ano, ou aproximadamente mais 8 mil barracos a cada doze meses. É fácil concluir que as formas usuais de manejar as favelas são incapazes de impedir a sua expansão.
Antes que a metástase se alastre ainda mais é preciso agir com vigor. Recursos pode se conseguir. Mas sem vontade e mobilização políticas, o futuro do Rio é incerto. Numa visão otimista.

Voz ao morro

AYRTON XEREZ

A própria dificuldade em conceituar demonstra a complexidade do tema: favela, para os que nela moram, tem outro nome — comunidade. Só isso já indica o grau de complexidade de se fazer uma abordagem. De que lado está quem fala? Portanto, é arriscado se afirmar que “ninguém mora em favela porque gosta”.
Também não se aponte como solução a “abertura de possibilidade de moradia nos extremos menos densamente povoados da região oeste”. Os moradores da Zona Oeste estão cansados desse discurso. É ponto de vista de quem se sente incomodado com a favela, e quer mandá-la para longe. Com ele, degradaram-se áreas verdes com amontoados de prédios impessoais, verdadeiros pombais, ou casas toscas (Antares, Cesarão, João 23, Nova Sepetiba, por exemplo), sem que o mínimo de infra-estrutura lhes fosse oferecido.
O Censo do IBGE e os dados do Instituto Pereira Passos trazem uma surpresa: a população carioca tende a estabilizar-se em torno de 6 milhões de habitantes, até o ano 2010. Mesmo as favelas, onde a natalidade é maior, acompanham essa tendência. Se confirmada, a desaceleração demográfica dá uma trégua ao poder público. Que será de pouca valia, se não for aproveitada para um enfrentamento rápido e consciente dos problemas habitacionais. E a solução desse desafio não pára no asfalto. Exige que se dê voz e vez ao morro, como no samba de Tom e Vinicius.
A prefeitura tem implementado bons programas, como o Favela-Bairro, organizando as ruas, permitindo a coleta de lixo e a implantação do saneamento básico. As ações de reflorestamento já promoveram o plantio de mais de 4 milhões de árvores, mantendo o nível de cobertura vegetal da cidade e desestimulando novas invasões. No entanto, por mais eficientes que sejam os esforços municipais, o problema é nacional e depende de políticas públicas de âmbito federal.
AYRTON XEREZ é secretário de Meio Ambiente da prefeitura do Rio.

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A decadência do Rio de Janeiro

Folha de São Paulo (26/02/06)

JOSÉ ALEXANDRE SCHEINKMAN

O recente episódio de guerra na Rocinha entre dois bandos rivais foi mais um marco na decadência do Rio de Janeiro. Como é comum nessas ocasiões, as autoridades estaduais alegaram que não havia muito a fazer e que a responsabilidade era do governo federal, que não consegue controlar o fluxo de armamentos e de drogas.

É verdade que o governo federal poderia fazer mais. Assim como no resto do mundo, a proibição da venda e consumo de drogas é um fracasso no Brasil. Um trabalho recente do qual o professor de Chicago e Prêmio Nobel de Economia Gary Becker é um dos autores demonstra que, se o objetivo é diminuir o consumo, uma política de taxação de drogas é muito mais eficiente do que a interdição. É preciso aprofundar a discussão sobre a proibição de drogas no Brasil, mesmo sabendo que mudanças nessa política provavelmente vão gerar uma resposta histérica da atual administração em Washington. Também cabe ao governo federal reprimir o contrabando e o comércio interestadual de armas.

Drogas e armas seriam excelentes desculpas se as cenas de guerra urbana com que os cariocas já se acostumaram ocorressem com a mesma freqüência em outras capitais. O fato é que o grande responsável pela situação do Rio são os fluminenses, que elegeram uma seqüência de governos incompetentes. Entre as "contribuições" dos homens e mulheres que governaram o Estado do Rio destaca-se uma polícia em que a inaptidão do comando só é comparável à sua violência. Em 2003, a polícia do casal Garotinho matou, em proporção à população, mais de duas vezes o já inaceitável número de mortos pela polícia de São Paulo.

A falta de uma política consistente de ocupação do solo contribui para a favelização. As condições da baía de Guanabara testemunham a longa ausência de uma política ambiental. A degradação da qualidade de vida na cidade causou grande êxodo de empresas privadas que tinham sede no Rio e a conseqüente queda na qualidade dos empregos.

Mas o declínio do Rio não é um problema apenas para os cariocas. As grandes cidades formam um recurso formidável para as nações. É nesses centros que nasce a maioria das idéias em arte, literatura, tecnologia ou ciência. É principalmente numa metrópole que se encontra a densidade de talentos que facilita a troca de conhecimento e tem um efeito multiplicador no processo inventivo de cada indivíduo. Pessoas com talento migram para Nova York ou São Paulo porque lá serão mais criativas. Um grupo de economistas que estudou patentes concedidas a americanos em 1975 observou que 30% delas foram registradas por inventores em quatro cidades que totalizavam apenas 18% da população.

O Rio de Janeiro sempre teve papel extraordinário na construção da cultura no Brasil. A bossa-nova, o neoconcretismo e o Cinema Novo estão intimamente ligados à cidade. Menos conhecidas são instituições como o Instituto de Matemática Pura e Aplicada, o melhor centro de pesquisa matemática na América Latina, que ainda dá uma contribuição singular à formação de matemáticos, economistas e cientistas no país. O Brasil com um Rio decadente tem menos chance de se tornar realmente desenvolvido.

A teórica do urbanismo Jane Jacobs escreveu que "cidades vibrantes, diversas e intensas contêm as sementes do seu renascimento". Com sua beleza ímpar, algumas instituições que ainda restam de um passado melhor e uma população cheia de imaginação e relativamente educada, o Rio tem muito daquilo que é necessário para se tornar de novo a grande cidade que foi. Resta saber se os políticos fluminenses vão deixar

José Alexandre Scheinkman, 58, professor de economia na Universidade Princeton (EUA), escreve quinzenalmente aos domingos nesta coluna.
E-mail - jose.scheinkman@gmail.co

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Caos urbano

Folha de São Paulo(26/02/06)
 

Ferreira Gullar

As montanhas que cercam a cidade ora estão cinzentas, ora de cor negra, ora lilás. A luz dança por entre elas, atravessa bairros, relampeja no verde da floresta da Tijuca e roça as costas na areia batida por águas azuis. Na praia Vermelha, nesta manhã, as vagas vão e vêm cobertas de dejetos: garrafas vazias de plástico, restos de papelão, cascas de frutas que bóiam ou se depositam na areia. Um banhista oculta-se atrás de uma barraca e urina. Um menininho se solta da mãe e corre trôpego atrás da bola.

Na rua Duvivier, na esquina com a Ministro Viveiros de Castro, arma-se na calçada uma loja de móveis usados, a céu aberto: estrado de cama, fogão velho, estante, duas cadeiras, uma poltrona puída, um sofá. Recostado nele, um homem barrigudo, nu da cintura para cima, cochila; sentado numa das cadeiras, um rapaz fuma e coça os dedos do pé. Um ônibus de turismo estaciona do outro lado da rua em frente ao hotel. Uma caminhonete de frete ocupa a passagem de pedestres. Ali perto, dois guardas da Vigilância Municipal conversam alheios ao que se passa à sua volta. Na banca de jornais, um cartaz escrito a mão: "Por favor, não faça xixi na banca".

Na avenida Nossa Senhora de Copacabana, o atropelo de ônibus e automóveis, vans e caminhões, que disputam freneticamente cada palmo da rua. A poluição sonora alcança níveis insuportáveis quando uma ambulância liga no máximo sua sirene ensurdecedora. Ondas negras de fumaça emanam dos motores que queimam óleo diesel e rugem. Os transeuntes respiram o ar pesado da avenida que lhes queima os pulmões. Um ciclista que desliza em alta velocidade numa das calçadas entupidas de gente choca-se contra uma senhora numa cadeira de rodas e cai sobre a banca de um camelô que vende CD pirata. Um cego, sentado à porta de um edifício, estende a mão aos que passam, fingindo não vê-lo.

Um grupo que segue em direção à praia joga no chão copos de plástico e papel de picolé, enquanto, da janela de um carro, alguém se livra de uma bola de papel amassada. "A rua não é lixeira", grita uma senhora. Ao dobrar a esquina da Djalma Ulrich, vê-se numa janela um jarro com miosótis.

Mendigos instalados numa rua do Rio Comprido enrolam os colchões sujos em que dormiram e os escondem junto a um depósito de lixo. Um deles, com mãos negras de ceroto, tira de um saco um pedaço de pão e começa a mastigá-lo; outro atravessa a rua e entra num boteco em busca de um trago. Pouco adiante, pivetes, sentados na escada de um edifício, fumam maconha e riem. Uma senhora, que leva um menino pela mão, muda de calçada, com medo. Na esquina próxima, vê-se estacionado um carro de polícia, com uma porta aberta; um policial, recostado nele, observa as pessoas com indiferença, mas é despertado por disparos vindos de um beco no fim da rua. Em Ipanema, um ladrão, ao roubar o rádio de um carro, morre fulminado por um enfarte. Bandidos assaltam 33 turistas ingleses num ônibus de turismo ao entrar no aterro do Flamengo. Mesmo assim, Cláudia consegue voar entre os móveis de seu quarto, na rua senador Eusébio.

A noite, como um fumo negro, subiu do asfalto e foi tomando a cidade inteira. Os carros acenderam os faróis e, ali no Centro, os edifícios têm os seus pavimentos iluminados. Pouco a pouco, a escuridão tinge todos os objetos, todas as pessoas. No Centro Cultural do Banco do Brasil, o cinema está lotado. As salas de exposição já se fecharam, mas, no térreo, alguma pessoas ainda conversam junto ao balcão onde se servem café e refrigerantes.

As primeiras horas da noite são de tensão e ansiedade. Mas, com o passar das horas, o tráfego intenso que ocupara as grandes avenidas foi diminuindo até fluir normalmente. As garagens dos edifícios residenciais se enchem de veículos, as mães, os pais de família estão agora em suas casas e, depois do jantar, em diferentes bairros, acompanham na televisão as histórias implausíveis das novelas de TV. Os jovens, os homens solitários, as mulheres inquietas enchem os bares espalhados por toda a noite carioca e se embebedam. Um adolescente drogado, na Ilha do Governador, com uma faca de cozinha, degolou a avó que se negara a lhe dar mais dinheiro para comprar cocaína e agora está deitado em seu quarto, que estremece ao som de um rock pesado.

Amanhece. A luz do sol desfaz a neblina que o frio da madrugada acumulara sobre os tetos A cidade começa a despertar, as primeiras pessoas caminham para a estações de trem e pontos de ônibus; uns vão para o trabalho, outros à procura de emprego. Na porta dos hospitais longas filas de enfermos que esperam atendimento desde a noite anterior.

Um avião cruza o céu do Rio de Janeiro, a caminho da Europa. Dá para ver lá embaixo a cidade aparentemente tranqüila entre as águas e as montanhas. Nem buzinas, nem disparos, nem queixas, nem risos, nem soluços, nada disso se pode ouvir voando sobre ela a 800 km por hora.

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Geografia carioca

Jornal O Globo, 21 de março de 2006  


Gente Boa   
Joaquim Ferreira dos Santos
genteboa@oglobo.com.br

O Rio ganhou nova favela. Fica atrás da Rua General Ribeiro da Costa, na altura do Hotel Acapulco, no Leme. Cresceu dois barracos este fim de semana e caminha célere — ninguém segura este país! — para se fundir com a favela do Chapéu Mangueira. Não tem nome, mas Ary Barroso, em homenagem ao compositor que morava por ali e fez “Aquarela do Brasil”, seria justo, justíssimo.

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Favela Rio Sul


Jornal O Globo, , 19 de Abril de 2006

Joaquim Ferreira dos Santos
Está surgindo uma nova favela em Botafogo e seu destino é cercar todo o Shopping Rio Sul. Ela fica, por enquanto, atrás do Instituto Benjamin Constant, em plena Avenida Pasteur. Começou com funcionários construindo casas atrás do centenário prédio. Ao calçar os becos, colocar placas de sinalização e lixeiras, a prefeitura estimulou a ocupação. Hoje a favela sobe um barraco por dia pelo morro da Babilônia, destruindo área verde e caminhando para cercar o Rio Sul, que talvez lhe dê o nome no futuro. Em todas as ruelas, a marca do Comando Vermelho.

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Por que a Rocinha?

Folha de São Paulo (02/05/06)

CESAR MAIA

A Rocinha -comunidade carioca com 70 mil habitantes, segundo o IBGE- ocupa periodicamente espaços na imprensa por conta de tiroteios provenientes da disputa pelo controle da venda de drogas. Por que os traficantes se interessam tanto pela Rocinha? Ela é uma favela com IDH maior que todos os Estados do Nordeste. A meta de oferta de vagas no Pró-Jovem, lá, não foi atingida, pois não há tantos jovens sem o primeiro grau completo. Se excluirmos os migrantes e os maiores de 40 anos, não haveria analfabetismo na Rocinha. É uma comunidade que conta com todos os serviços comerciais, com agência de banco, supermercado, dezenas de lojas de aluguel de vídeos e até com uma estação de TV comunitária, a TV ROC.

Então, por que a Rocinha? Porque ela fica no meio de bairros de classe média/alta, como Gávea, Jardim Botânico, Lagoa, Leblon e São Conrado. Com isso, tornou-se o maior macrovarejista de drogas do Rio. Estudos dos setores de inteligência policial calculam que a Rocinha é responsável por 35% do total da venda de drogas no varejo na cidade do Rio. Para isso, precisam distribuir espacialmente esse comércio e contam com mais de 40 bocas-de-fumo ou pontos-de-venda de drogas.

A demanda dos bairros que cercam a Rocinha é atendida de três formas: uma, através dos que vão até lá e compram diretamente. Outra, através do serviço de motodelivery, ou seja, os motoboys que entregam a droga a domicílio. E, finalmente, pela ação dos repassadores, que compram ali e vendem em outro lugar. Não é incomum ter uma relação de proximidade entre visitantes ilustres e traficantes. O exemplo mais emblemático disso unia o nome do traficante Lulu -morto pela polícia há um ano e meio- a pessoas muito conhecidas.

Um entreposto desse tipo, que abastece a classe média e média-alta da zona sul -e, certamente, acima disso-, é de alto valor comercial, e por isso o controle da área é tão disputado. Sem esquecer que é também uma área de alta atratividade para certos policiais. Quem pensa que "mineirar" (extorsão por parte de policiais) traficantes é atrativo se engana. Atrativo mesmo é "mineirar" ilustres consumidores de cocaína ou pais de jovens viciados de classe média, que pagam o pedágio para evitar o flagrante. Por essa razão, as escutas telefônicas -grampos- na Rocinha são generalizadas. Identificado e localizado o consumidor, avalia-se o seu poder aquisitivo e se vai "mineirar" sem riscos e com alta taxa de retorno. As listas de nomes grampeados não são de difícil acesso. Recentemente, soube-se que um importante empresário, possuidor de certa quantidade de cocaína que excedia o consumo pessoal, pagou R$ 300 mil pelo "esquecimento" dos policiais.

Quando acontecem os tiroteios, o foco, geralmente, é a favela, e as opiniões e relatos da imprensa criminalizam o lugar e a própria existência da comunidade. Esquecem-se que a atratividade da área é dada pelo volume e pela renda dos consumidores de drogas. Uma análise, ou mesmo uma cobertura jornalística isenta, deveria abordar também esse aspecto, de modo que não ficasse a impressão aos desavisados de que tudo se explica pela existência das favelas em área nobre.

Aliás, a própria existência da Rocinha, e de outras favelas, se dá pela proximidade de um mercado de trabalho ativo, numa situação em que não há transporte público de massa, onde os salários são historicamente baixos e na qual inexiste uma política de habitação popular subsidiada. Se tomarmos a proporção de pessoas que vivem em favelas no Rio -algo entre 18% a 19%-, constatamos que essa proporção não variou desde o final do século 19, embora naquela época se tratasse basicamente de cortiços. Um censo do final dos anos 40, que apresentava essa porcentagem, foi adulterado, enquanto o censo de 1950 mudou parâmetros para não chegar aos mesmos números. Lembro que a taxa de mortalidade infantil nas favelas, nos anos 40, quase alcançava 40%, e a expectativa de vida não chegava aos 45 anos.

Portanto a sustentação da mesma porcentagem é, em si mesma, uma importante contenção. Pelas razões de mercado, há quase um coeficiente constante entre presença de classe média e entorno de trabalhadores, ocupando historicamente os espaços disponíveis. O que cabe fazer é urbanizar, integrar e potencializar essa marca de diversidade e solidariedade que o Rio possui e que não pode ser afetada para reconstruir no imaginário da classe média preconceitos sociais. A sociodiversidade cultural e espacial do Rio é uma marca de sua formação e identidade que não deve ser desmontada depois de décadas de construção de uma cidade integrada.

Cesar Epitácio Maia, 60, economista, é prefeito, pelo PFL, do Rio de Janeiro
 

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Para Além das Grades: A mídia e a Violência nas fortalezas da Barra da Tijuca

Ricardo Ferreira Freitas2
Roberta Lessa3

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Resumo

A violência é uma das temáticas mais presentes na mídia brasileira e, especialmente, na carioca. Neste artigo, estudamos as argumentações publicitárias e jornalísticas relacionadas à violência na mídia impressa do Rio de Janeiro, tendo como campo de análise o bairro da Barra da Tijuca. Nesse bairro, proliferam fortalezas urbanas como shopping centers, condomínios fechados e centros empresariais. Objetivamos levantar que apelos publicitários, em relação aos argumentos de lazer, de consumo e de segurança, favorecem a permanência dos moradores nos condomínios fechados, assim como dos consumidores nos shopping centers, e que contradições são sugeridas pelas apurações jornalísticas. Para tanto, foram selecionados matérias e anúncios sobre a Barra da Tijuca publicados no Jornal O Globo no período de janeiro de 2003 a abril de 2005.

Palavras-chave

Comunicação; cidade; violência; consumo; lazer

Introdução

Os enclaves privados e fortificados cultivam um relacionamento de negação e ruptura com o resto da cidade e com o que pode ser chamado de um estilo moderno de espaço público aberto à livre circulação. Eles estão transformando a natureza do espaço público e a qualidade das interações públicas na cidade, que estão se tornando cada vez mais marcadas por suspeita e restrição. (CALDEIRA, 2000, p. 259)

1 Trabalho apresentado ao NP 21 – Comunicação e culturas urbanas, do V Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom.
2 Ricardo Ferreira Freitas é professor adjunto da Faculdade de Comunicação Social da UERJ. Doutor em sociologia pela
Universidade Paris V/Sorbonne, mestre em comunicação e cultura pela ECO/UFRJ e graduado em relações públicas pela Uerj. Autor de Centres commerciaux: îles urbaines de la post modernité. Paris, L’Harmattan, 1996. Organizador, com Luciane Lucas, de "Desafios contemporâneos em comunicação". São Paulo, Summus editorial, 2002. Email:
rfreitas@uerj.br

3 Roberta Lessa é bolsista de Iniciação Científica, Pibic/CNPq, no projeto de pesquisa "Entre grades e muros: um cenário de comunicação, consumo e lazer na Barra da Tijuca". É aluna de graduação do curso de Relações Públicas da Faculdade de Comunicação Social da Uerj. E-mail: roberta_lessa@terra.com.br

As grandes cidades contemporâneas têm se pautado por uma espécie de cultura de risco que evidencia a suspeita e o perigo como vilões do cotidiano. A mídia, por sua vez, reforça essa tendência ocupando boa parte do tempo de seus usuários com denúncias e matérias jornalísticas centradas na escalada da violência. Nesse panorama, o homem urbano contemporâneo se sente acuado, impotente, para enfrentar os desafios da metrópole. Assim, cria espaços de fuga e constrói sua história de vida entre grades e muros. Nos últimos anos, a exemplo do que acontece em outras partes do mundo, as metrópoles brasileiras assistem ao crescimento do número de shopping centers, condomínios fechados, centros empresariais, empresas de vigilância e companhias de seguros. O Rio de Janeiro é uma cidade-tipo para o estudo dessas fortalezas contemporâneas já que elas se multiplicam de forma exponencial em vários de seus bairros.

Neste texto, interessa-nos discutir as representações midiáticas da violência que afetam os moradores do Rio de Janeiro, mais especificamente da Barra da Tijuca4, nos seus espaços urbanos de circulação, de trabalho e de moradia. Os shopping centers e os condomínios fechados merecem destaque nesse cenário por congregarem argumentos, em nome de uma suposta segurança entre paredes, que propõem consumo e lazer como grandes referências de opção de vida. Nesses lugares, há uma série de reproduções mal formuladas de grandes monumentos europeus e norte-americanos, como a Torre Eiffel e a Estátua da Liberdade, e a cidades consagradas pela mídia, especialmente pelo cinema, como Londres e Veneza. Pode-se estar em qualquer lugar do planeta, menos no Rio de Janeiro. Na Barra da Tijuca, também proliferam os agentes de segurança fardados, além de ser um dos paraísos das seguradoras.

Para estudar o quadro descrito, levamos em consideração o pensamento contemporâneo sobre a violência, o risco e o medo, tendo como parâmetros de estudo de campo os anúncios publicitários e as matérias jornalísticas sobre a Barra da Tijuca. A idéia principal é mostrar as contradições na mídia impressa visto que a propaganda publicada nos grandes jornais cariocas apresenta um mundo de segurança, o "paraíso eterno" fora de perigo, enquanto as matérias jornalísticas demonstram que os ambientes entre-muros que se proliferam na Barra da Tijuca não deixam de fazer parte do mesmo estado de emergência dos demais bairros da cidade do Rio de Janeiro. Enfatizaremos o

4 A Barra da Tijuca é o bairro que mais cresce no Rio de Janeiro. No Censo do IBGE de 2000, constatou-se que os 98 mil habitantes de 1991 transformaram-se em 174 mil em 2000. Durante essa década, uma importante parcela dos anúncios de imóveis nos grandes jornais do Rio foi ocupada por propagandas de vendas de casas ou apartamentos em condomínios fechados do bairro. Ao mesmo tempo, o número de shopping centers e centros empresariais aumentou exponencialmente. enfoque sobre os condomínios fechados e os shopping centers por serem os empreendimentos imobiliários que mais se multiplicam no bairro, ocupando sistematicamente o tempo e o espaço da mídia, seja na publicidade seja no jornalismo.

Os resultados, aqui apresentados, são fruto de uma pesquisa realizada com recortes do jornal O Globo, nos quais a Barra da Tijuca era o cenário, veiculados no período de janeiro de 2003 a abril de 2005. A análise dos materiais coletados foi sustentada por uma leitura da bibliografia da antropologia, da sociologia urbana, das teorias da comunicação e da publicidade, referente ao tema, valorizando especialmente a produzida nos últimos dez anos, acompanhada de observação direta no bairro.

O medo na mídia e os espaços de proteção no cotidiano urbano

Se as sociedades contemporâneas são marcadas pela proliferação de riscos, isso não significa necessariamente que elas são mais perigosas: é a nossa relação com o perigo que mudou, ou seja, nossa relação com o mundo, com os outros e com nós mesmos. (Peretti-Watel, 2001, p. 19)

O risco está em toda parte, portanto, é preciso se proteger dele. Esse tem sido o argumento principal das empresas imobiliárias e das seguradoras nas últimas décadas. O consumo e o lazer estão cada vez mais associados um ao outro e isso implica procurar espaços fechados, ou pelo menos protegidos com guardas particulares, para se ter a sensação de liberdade. Essa, por sua vez, não reside mais no simples direito de ir e vir, mas, sim, nas garantias que um lugar oferece em termos de proteção ao patrimônio material e corporal do cidadão. No caso da população carioca, por exemplo, os impostos ficam por conta de obrigações a que o povo deve responder, não significando, no entanto, que o Estado corresponderá a seus deveres de manutenção da integridade das pessoas e dos espaços públicos. Assim, os consumidores herdeiros da ex-classe média5 aderem, em seu cotidiano, aos mais diversos tipos de contratos para manter alguma segurança. Procuram lugares protegidos e todo perigo pode se transformar em um sinistro a ser coberto por uma seguradora. Por esses motivos, interessa-nos aqui trabalhar com os espaços urbanos que se multiplicam em função do imaginário de horror que cada

5 Acompanhamos a idéia de Patrice Bonnewitz (2004) que propõe uma nova discussão sobre as estratificações e mobilidades sociais contemporâneas. vez mais se consolida em algumas partes do mundo. Os shopping centers e os condomínios fechados são os espaços elencados para essa discussão.

Após a Segunda Guerra, a confusão comunicacional passou a se manifestar no cotidiano de várias regiões do mundo. Nas grandes cidades dos Estados Unidos, por exemplo, devido aos engarrafamentos de veículos e pedestres nos pólos comerciais, os consumidores desejavam fazer suas compras e passear em lugares onde pudessem estacionar seus carros tranqüilamente. O consumo no pós-guerra apresentou vários labirintos à sociedade urbana: a explosão da comunicação de massa, o marketing, a criação dos hipermercados (Freitas, 1996, p. 80/102). Neste contexto começou o início dos malls como os conhecemos hoje: grandes construções, geralmente fechadas, com alto número de opções de lazer e consumo. A partir desse momento, os shopping centers podem ser considerados como um novo meio de comunicação, onde as notícias são veiculadas nas vitrines, nos eventos, nos sistemas de sonorização, deixando o perigo do lado de fora. A moda está ligada ao estar-junto dentro de um ambiente repleto de emissões de informações que desencadeiam um espetáculo de máscaras, telas e mapas, dando a impressão que o risco é algo distante. A comunicação interna dos centros comerciais privilegia uma impressionante pluralidade de imagens motivando a construção de redes de comunicação que podem também ser entendidas como redes de esteticidade. Poderia-se arriscar a falar de um certo "narcisismo coletivo" (Maffesoli, 1990, p. 35) que se pulveriza entre os públicos dos shopping centers, não somente através das telas, dos mapas ou da música-ambiente, mas, sobretudo, através das máscaras e de todo o "aparathus estheticus" da pós-modernidade. Na década de 80, Baudrillard defendia que a sociedade caminhava para um desinvestimento do sistema dos objetos em favor de uma hiper-realidade onde as coisas e as pessoas misturam-se em terminais de múltiplas redes: "Hoje, nem palco nem espelho, mas uma tela e uma rede.

Nem transcendência nem profundidade, mas (...) a superfície lisa e operacional da comunicação" (Baudrillard, 1987, p.12). O quadro, vinte anos depois, não é muito diferente do que comentava Baudrillard, porém os objetos são cada vez mais efêmeros, apesar de estarem, como nunca, impregnados ao imaginário do cotidiano urbano, o qual, sem comunicação, não parece ter mais sentido.

As redes de comunicações humanas e tecnológicas instaladas nos shopping centers são signos de uma sociedade que valoriza uma certa espetacularização da informação no cotidiano. A pluralidade de objetos e as múltiplas redes moldam personagens urbanos mais ligados à encefalização eletrônica que às categorias tradicionais de atores sociais.

Por outro lado, os shopping centers se instalam em um imaginário urbano onde a família pós-moderna troca os lugares tradicionais de lazer para reafirmar uma antiga opção de recreação: o mercado, hoje travestido de "malls". Não é difícil encontrar economistas que falam sobre a metamorfose da sociedade do fim do século XX como nova revolução industrial sob o impulso da microeletrônica, das telecomunicações, da biotecnologia e das novas formas de gestão do sistema produtivo. O homem se acostumou a perceber o outro através de máquinas (telefone, televisão, Internet) e dentro de novos espaços (shopping centers, condomínios fechados, centros empresariais).

Simultaneamente, os condomínios fechados, especialmente os da Barra da Tijuca no Rio de Janeiro, também simulam mini-cidades onde edifícios residenciais verticais6 são construídos no meio de grandes áreas muradas com várias opções de lazer: piscinas, pátios, pracinhas, saunas, áreas de recreação para as crianças. Neles, há opções de prédios para famílias de variados tamanhos, assim como para pessoas que moram sozinhas. Os habitantes do condomínio podem contar com transportes coletivos para o centro da cidade e outros serviços (estacionamento, lavanderia, salão de festas) sob a gestão da administração central.

Escolas, mercados, ciclovia, Internet e TVs a cabo fazem parte do pacote – tudo dentro de um mesmo espaço murado ou gradeado. Um dos maiores argumentos de venda das imobiliárias reside justamente no fato de que seus moradores, se preferirem, não precisam sair de sua nova circunscrição espacial, já que ali encontram academia de ginástica, quadras de esportes, saunas, salas de projeção, webcafés, entre outros equipamentos esportivos e de lazer que fazem parte do cotidiano do cidadão com algum poder aquisitivo. Os outros produtos e serviços não contemplados no pacote imobiliário podem ser pedidos por telefone ou por Internet no próprio bairro, o que alimenta ainda mais a possibilidade de enclausuramento voluntário.

O sistema de ilhas urbanas da Barra da Tijuca consolida uma segunda cidade do Rio de Janeiro que apenas utiliza-se da paisagem da praia e das montanhas para compor o cenário. Na verdade, o cotidiano é estabelecido em arquipélagos formados de ilhas urbanas: condomínios, shoppings, centros empresariais. A violência parece estar distante, pois, encerrados, seus habitantes e freqüentadores sentem-se protegidos pelos mais diversos tipos de seguros e de aparatos eletrônicos de vigilância que, apesar de mudarem radicalmente os conceitos de anonimato e individualidade, dão-lhes a sensação de estarem a salvo. Para Peretti-Watel, nesse imaginário, os perigos são previsíveis e calculáveis, fazendo com que os sistemas de vigilância e as companhias de seguros acabem substituindo, muitas vezes, o papel da justiça e mesmo da polícia (Peretti-Watel, 2001, p. 9). Nessa análise, Peretti-Watel considera os riscos aos quais toda a humanidade está sujeita, como a questão da camada de ozônio e das grandes epidemias, mas também aquelas que ganham valor local ou comunitário por fazerem parte da história social e cultural do grupo em questão.

Com os condomínios fechados, o espaço urbano também ganha dimensão protegida entre-muros como no caso dos shopping centers. As novas gerações de moradores lidam, devido ao medo da violência, com cidades fechadas. Mas nem por isso as drogas e a violência em geral estão distantes dessas ilhas: com códigos próprios, os conflitos da cidade aberta entram nos condomínios, injetando seus valores. Brigas entre gangues e escândalos com tráfico nas dependências dos condomínios fechados fazem parte do noticiário local, nacional e internacional dos últimos anos. De qualquer forma, esses empreendimentos se multiplicam e são, hoje, uma realidade urbanística pesada do Rio de Janeiro.

Os shopping centers e os condomínios fechados são fenômenos de uma nova cultura de massa que se confirma como segmentada e, ao mesmo tempo, globalizada. Por esta ambivalência, passam os principais atrativos desses espaços urbanos enquanto consumo e lazer, ao mesmo tempo que colaboram para várias mudanças na interpretação sobre os limites entre público e privado, seja na esfera do espaço seja na esfera da notícia. A Barra da Tijuca é um bairro repleto de espaços que comunicam por si só. A cultura dos centros comerciais e dos condomínios fechados é transnacional, baseada na pluralidade de códigos, e assimila somente uma pequena parte dos emblemas de cada região onde estão instalados. Esta característica, própria do fenômeno da globalização, exige a atenção da academia além dos caminhos da economia (área que despertou para a importância da análise da globalização há bastante tempo); as ciências da comunicação e da informação clamam por estudos que situem melhor o imaginário que está sendo desenhado na contemporaneidade, especialmente, em relação às cidades – palco evidente das grandes decisões das comunidades desde o início da erosão do conceito de Estadonação que se dá em várias partes do planeta.

Nesse sentido, devemos manter nossa atenção sobre a globalização imaginada, como defende Canclini, na qual convivem esferas micropúblicas, mesopúblicas e

6 Existem também, porém em menor quantidade, os condomínios fechados de casas e alguns poucos mistos. macropúblicas7. Consideramos os empreendimentos aqui estudados híbridos das três categorias com forte influência da primeira, porém pervertidos na sua subjetivação crítica, visto que sua implantação tornou-se um dos principais estímulos para a organização de setores altos e médios das grandes cidades que não costumavam participar de movimentos sociais: "seu peculiar modo de exercer a cidadania consiste em isolar-se da conflituosidade urbana mediante a privatização de espaços supervigiados e a restrição da sociabilidade ou dos encontros indesejáveis" (Canclini, 2003, p.163).

Nesta ótica, nossa proposta almeja explorar os sentidos de público e privado fornecidos pelo medo, pelo consumo e pelo lazer e, mais especificamente, observar como se dão esses processos no bairro que mais cresce na orla do Rio de Janeiro.

Crescimento que se dá, sobretudo, devido à esperança de se fugir da violência urbana, apesar das contradições que a mídia apresenta sobre essa premissa publicitária. Novas comunidades se formam em nome da fuga. Alguns mais abastados ou desesperados fogem. Outros se enclausuram. Sempre com um toque especial da mídia.

A Barra da Tijuca e a Mídia

Se acompanharmos a informação jornalística sobre as grandes cidades latinoamericanas, observaremos o crescimento das notícias sobre insegurança e violência, decomposição do tecido social e privatização do espaço público para proteger o privado e o individual. Estudos como os de Miguel Angel Aguilar, no México, e Teresa Caldeira, em São Paulo, mostram como os imaginários dessas megalópoles vêm sendo modificados pelas novas formas de segregação e violência. (Canclini, 2003, p. 163)

A geografia e a distribuição da população no Rio de Janeiro é peculiar em relação a outras cidades brasileiras. Os morros ocupados por comunidades carentes e pelo mercado de drogas estão espalhados em quase todos os bairros cariocas. A proximidade com o tráfico e o marcante contraste social traz insegurança a moradores e turistas da cidade. Pelo menos, é isso que tem sido visto na mídia nos últimos anos. A Barra da Tijuca pretende ser uma exceção no imaginário de perigo do Rio. Com um projeto urbanístico diferenciado do resto da cidade, o bairro tenta se proteger dos perigos físicos da contemporaneidade. Os grandes condomínios fechados e os shopping centers buscam

7 Em "A globalização imaginada", Canclini utiliza, com críticas, os conceitos desenvolvidos por John Keane sobre as esferas micropúblicas, mesopúblicas e macropúblicas. As primeiras são espaços locais em que intervêm dezenas, centenas ou milhares de participantes; exemplos: as reuniões de vizinhos, as igrejas, os bares e os movimentos sociais que funcionam como laboratórios locais de comunicação e cidadania. Já as esferas mesopúblicas são de alcance nacional ou regional, em que milhões de pessoas debatem sobre o poder, por exemplo, em jornais como The New York Times, Folha de São Paulo ou Le Monde. A esfera macropública é representada por agências de notícias que cobrem todo o planeta e por transnacionais multimídia (Canclini, 2003, p. 175/176). oferecer uma idéia de proteção total aos seus moradores e freqüentadores através de circuito interno de televisão, grades, muros, detectores de metais e guardas particulares.

A utopia de segurança não é a única questão que separa a Barra da Tijuca do restante da cidade do Rio de Janeiro. As construções e seus respectivos nomes estão repletos de referências estrangeiras. Os shoppings New York e Barra World possuem simulacros de monumentos de países europeus e dos Estados Unidos, evidenciando a negação da cidade e a valorização de outras culturas. Da mesma forma, vários condomínios fechados, especialmente os construídos nos últimos dez anos, remetem-se a expressões estrangeiras como Barra Golden Green, Barra Summer Dream e Waterways

Residencial.

A Região Administrativa da Barra da Tijuca (Recreio, Vargem Grande, Vargem Pequena, Camorim, Joá, Itanhangá, Grumari e Barra da Tijuca) cresce de forma vertiginosa. Segundo o Instituto Pereira Passos (IPP), em 2020, a R.A da Barra da Tijuca terá 507.520 habitantes. Grandes empresas, como a Amil, CBF, Esso e Michelin, também têm escolhido a Barra da Tijuca para instalar suas sedes em busca de maior segurança e infra-estrutura. O Rio de Janeiro possui um déficit de prédios comerciais de alta tecnologia. Para suprir essa necessidade do mercado, as construtoras têm investido em empreendimentos que ofereçam sistema de co-geração de energia, facilidades de telecomunicações e controle administrativo por computador e outros diferenciais, como spa, academia, piscina e salão de beleza. A Barra da Tijuca é o destino da maioria desses empreendimentos por, além de outros motivos, possuir extensos terrenos para construção.

Os anúncios de centros comercias e condomínios residenciais trazem argumentos como segurança, lazer e ecologia para atrair compradores. Os grandes condomínios fechados oferecem diferentes formas de lazer como quadras de esportes, parques infantis, piscina e academias de ginástica. O consumo também pode ser feito sem precisar atravessar as fronteiras do condomínio, já que muitos contam com lojas de conveniência ou até mesmo pequenos "malls".

Os fortes esquemas de segurança, cada vez mais avançados, oferecidos por esse empreendimentos, trazem uma idéia de liberdade vigiada aos seus usuários que parecem estar a salvo dos perigos existentes fora dos muros. As novas construções têm valorizado o meio ambiente, oferecendo a seus moradores uma extensa área verde longe da poluição e do cinza da cidade. Por outro lado, o bairro é um dos mais problemáticos em relação aos sistemas de tratamento de esgotos e a outras questões graves de poluição ambiental.

Enfim, a Barra da Tijuca pretende se configurar como um paraíso auto-suficiente que possui toda a comodidade da alta tecnologia existente nas grandes cidades, as formas de lazer e consumo urbanas acompanhadas da segurança e tranqüilidade imaginada para o campo. Contudo, na contra-mão das promessas de segurança feitas em anúncios, os jornais trazem notícias, cada vez mais freqüentes, de crimes ocorridos no bairro. Roubos de carros e quadrilhas especializadas em assaltos a residências mostram que, apesar do alto investimento em segurança, a Barra da Tijuca sofre com os mesmos problemas de outros locais da cidade. Como agravante desse quadro, muitos crimes são cometidos pelos próprios moradores. Brigas entre vizinhos ou entre grupos jovens rivais, tráfico de drogas, prostituição e discriminação racial ocorridos nas dependências dos condomínios configuram o paradoxo entre as promessas e a realidade da Barra da Tijuca.

Outras considerações

Nas última décadas, em cidades tão diversas como São Paulo, Los Angeles, Johannesburgo, Buenos Aires, Budapeste, Cidade do México e Miami, diferentes grupos sociais, especialmente das classes mais altas, têm usado o medo da violência e do crime para justificar tanto novas tecnologias de exclusão social quanto sua retirada dos bairros tradicionais dessas cidades. Em geral, grupos que se sentem ameaçados com a ordem social que toma corpo nessas cidades constróem enclaves fortificados para sua residência, trabalho, lazer e consumo. Os discursos sobre o medo que simultaneamente legitimam essa retirada e ajudam a reproduzir o medo encontram diferentes referências.

(Caldeira, 2000, p. 09)

O imaginário de consumo que leva os compradores de imóveis da Barra da Tijuca a associarem o bairro ao lazer stricto sensu é povoado pela fantasia de se poder estar em outra cidade que, favorecida pelas novas tecnologias e sistemas de segurança, os isenta do medo e do risco. A Barra da Tijuca é proposta nos anúncios publicitários como um lugar asséptico onde as pessoas que tenham renda média ou alta poderão usufruir de um mundo de tranqüilidade e diversão longe dos malefícios da cidade. O problema e a grande frustração é que o bairro é, mais do que nunca, parte integrante do caos urbano ainda que sua estética seja diferente da restante do Rio de Janeiro. Povoada por outdoors luminosos, a Barra da Tijuca convida seu morador ou freqüentador a um imaginário de consumo e lazer que tenciona ser alternativo aos que podem pagar pela segurança privada. A Barra da Tijuca sugere, assim, um importante quadro de estudos em diversas áreas acadêmicas. No entanto, pouco tem sido produzido sobre o assunto. Algumas dissertações de mestrado e doutorado, poucos artigos e alguns livros foram dedicados a estudar esse bairro até o presente momento. Por isso, insistimos na importância de as universidades desenvolverem mais pesquisas analíticas sobre a região.

Além dos desafios mundiais a que todos estão sujeitos em qualquer parte do planeta, é evidente a ausência dos poderes públicos nas grandes cidades brasileiras assim como no campo. Nesse quadro, como sabemos há muito tempo, a mídia acaba exercendo um papel de construção e controle importante nas representações sociais. Por isso, insistimos nos contrapontos entre os discursos jornalísticos e os discursos publicitários, não para demonizar a publicidade e a propaganda a favor de um jornalismo correto e humanitário.

Seria muito inocente essa proposta. Mas, sim, para contribuir com a área de comunicação social no sentido de construir novos elementos de análise do papel da mídia nas novas formas de práticas sociais.

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VIOLÊNCIA ALÉM DO LIMITE

http://brasil.indymedia.org/
 
SOARES em 31-05-2006 às 13:27:49



 

VIOLÊNCIA ALÉM DO LIMITE

A violência no Brasil acaba de ultrapassar o limite do suportável. A sociedade, que trabalha e paga seus impostos, está acuada. O direito de ir e vir do cidadão está cerceado, e o medo vem marcando as ações e relações nas grandes cidades. A recente crise em SP só fez acentuar esta sensação de medo, insegurança e indignação. A ousadia e a desfaçatez com que os criminosos vêm desafiando o estado e a sociedade, a reação tardia e titubeante do governo paulista, e a demagogia oportunista com que o governo de Lula se aproveitou dos trágicos acontecimentos para tirar proveito político, só fez aumentar a sensação de que a sociedade encontra-se entregue a sua própria sorte.

Nos diversos debates que trataram do assunto ,promovidos pela mídia, ouvem-se ,da parte de “especialistas”, jornalistas e políticos poucas opiniões sensatas e muitas opiniões estapafúrdias. Predomina, é claro, aproveitando-se do estado emocional em que se encontra a sociedade, a idéia de que a criminalidade deve ser combatida exclusivamente pelo aumento da repressão , um equívoco que só poderá gerar um ciclo vicioso de aumento da criminalidade, seguido de mais repressão, seguida de mais aumento da criminalidade,e assim sucessivamente. Não é por aí.

O fato é que a questão da criminalidade no Brasil é muito mais ampla e complexa do que parecem crer aqueles que defendem a solução exclusiva do uso da força. Envolve raízes que vão desde o descaso do governo pelo tema até a completa desarticulação dos órgãos de repressão, passando pela impunidade patrocinada pela leniência do Judiciário, pelo desprezo secular pela educação pública e por um ambiente social degradante, que possibilita a proliferação do crime. Neste último ponto, é bom acentuar um aspecto que tem dado margem às opiniões deturpadas e mal intencionadas.

Na tentativa de isentar o quadro de pobreza e marginalidade em que se encontra a maioria da população de qualquer responsabilidade pela consolidação da criminalidade no país, partem para argumentos tais como “se a pobreza fosse a causa da criminalidade , a favela da Rocinha já teria invadido a Barra da Tijuca, e o caos total já teria sido estabelecido”. Como se nota, trata-se muito mais de um sofisma mambembe do que de um argumento sério.

É evidente que quando muitos atribuimos ao quadro de pobreza e degradação social a sua (grande) parcela de culpa pelo aumento da criminalidade, especialmente do crime organizado, não estamos querendo dizer que o pobre tem uma tendência inevitável ao crime. Estamos afirmando, e isto é fato, que a degradação social cria um ambiente propício à proliferação do crime. Ambiente este que é usado pelos chefões do crime organizado – muitos deles vivendo em bairros de luxo- para , por exemplo, contratar mão de obra barata , ou para instalarem os seus quartéis generais e seus pontos de distribuição de drogas e de armas fora da vigilância dos agentes do estado. Portanto, muito mais do que a classe média é a classe pobre a que mais tem sofrido com a instalação das organizações criminosas em suas comunidades .Desprezar, portanto o fator social como um dos determinantes para o estagio em que a criminalidade chegou ,além de tangenciar o núcleo da questão conduz apenas à soluções paliativas e imediatistas.

O que fazer, então? É óbvio que à curto prazo faz-se necessário um aperfeiçoamento na política de segurança pública, através de um projeto viável para o setor, que inclua a integração entre os governos federal, estaduais e municipais .Este projeto abrangeria a capacitação, a integração das forças de segurança para o desempenhos suas funções, a reestruturação do sistema penitenciário de modo que não se torne foco de rebeliões nem centro de comando da marginalidade, uma reforma do Códigos Penal e do Código de Processo ´Penal ,visando a adequá-lo à realidade atual e torna-lo mais rigoroso quanto à aplicação das penas. Isto é o básico. São medidas que terão efeito a curto prazo e imprescindíveis para estancar a onda de crimes que paralisam o país.

Mas todas estas providências serão insuficientes se não forem atacadas as raízes sociais da questão da segurança pública. E isto consiste praticamente em fazer com que o estado se torne efetivo junto às comunidades pobres. E esta presença se faria, basicamente, com reurbanização, saneamento, escolas e postos de saúde e postos policiais nos locais hoje dominados pelo tráfico. À longo prazo, uma revolução educacional acompanhado de um projeto de crescimento econômico capaz de multiplicar os negócios e gerar empregos certamente possibilitariam uma solução final para o problema.

O fato é que a busca de soluções unilaterais, paliativas e imediatas para um problema que é muito amplo e complexo faz apenas com que fiquemos eternamente a andar em círculos sem avançar, sem encontrar soluções concretas e definitivas, e continuando a alimentar projetos eleitoreiros de políticos demagogos que usam o tema segurança para se promoverem .
 

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A desfavelização do Estado do Rio

Jornal O Globo, Alexandre Arraes, 29/junho/2006

O Rio de Janeiro vem sofrendo longo processo de esvaziamento econômico e desestruturação administrativa. Estamos no derradeiro degrau a caminho do caos na gestão pública, através da institucionalização da informalidade e ilegalidade. Presenciamos os setores informais e clandestinos da sociedade conquistando espaços na economia e nos setores públicos. A sensação de que é mais fácil alcançar sucesso por vias alternativas e escusas contaminou as relações entre o mercado, Estado e terceiro setor. Cresce com isso a criminalidade e a parcela de excluídos, uma vez que o interesse coletivo cada vez importa menos nas decisões em políticas públicas.

A região metropolitana do Rio de Janeiro segue continuamente perdendo importância econômica em relação às demais regiões metropolitanas e à Bacia de Campos. Os problemas estruturais se agravam sem qualquer plano de ação para revertê-los. A discrepância de valores de IDH entre cidades da região metropolitana chega a aproximadamente 100 anos de evolução. Este padrão também existe entre bairros contíguos da cidade do Rio. A despeito da relativa melhora do IDH na última década, o novo fenômeno que deve ser monitorado é a violência urbana. Taxas de mortalidade de homens jovens já impactam na expectativa de vida masculina nesta região.

Pobreza e violência não estão necessariamente correlacionadas. Por outro lado, é direta a relação da pobreza com o maior número de moradores por residência, ou seja, aglomerados populacionais com mais de dois moradores por cômodo por habitação. Assim, a pobreza se encontra espalhada para além das divisas das áreas favelizadas. Entretanto, quando se fala em violência urbana, a correlação se dá com áreas favelizadas.

A característica desestruturada do meio urbano da favela contribui sobremaneira para este fenômeno. Políticas públicas convergentes específicas para esta parcela da população serão mais eficazes se alterado o meio ambiente urbano. A recuperação estética dos aglomerados habitacionais é fator importante para elevação da auto-estima de seus moradores e da própria cidade.

Hoje é fundamental que se desenvolva um projeto estadual de desfavelização que contemple individualmente as regiões onde seja mais grave o passivo habitacional e onde estejam mais claros os efeitos de décadas de políticas públicas segregacionistas. São necessárias intervenções definitivas do tamanho dos problemas. Deve-se observar as conquistas desta população como: proximidade dos centros empregadores, transporte e lazer. Esta é a oportunidade de equacionarmos o atual impasse fundiário. A concessão de titularidade dos imóveis após as intervenções é uma questão de justiça. Habitação digna, revolução educacional, administração pública descentralizada, economia solidária, saneamento e prevenção na saúde devem ser compromissos do Estado atual, mais facilmente executados, se alterado o meio ambiente urbano.

É tal a magnitude do problema que as instituições e suas formas de relacionamento clássicas dificilmente darão conta de resolvê-lo. Há que serem criadas novas formas institucionais onde prevaleça o compromisso com metas de resultados, a transparência administrativa e orçamentária, o controle social, a competência técnica e a participação equânime na gestão dos diversos segmentos sociais e onde haja mecanismos eficazes de proteção contra a descontinuidade administrativa e os efeitos do ciclo político-eleitoral.

Um projeto institucional que vise à criação de um tripé composto por uma agência executiva, um conselho deliberativo e um fundo de habitação de interesse social de múltipla composição é a forma mais adequada de desenvolver o programa de desfavelização que indiscutivelmente mudaria a cara e a alma da região metropolitana do Rio de Janeiro e interromperia o processo de favelização em curso nas médias cidades do Estado. Sem medo de errar, este seria o maior projeto de inclusão já desenvolvido no país. Beneficiar populações alijadas e historicamente segregadas dos efeitos de políticas públicas ditas universalistas é sem dúvida uma questão de justiça social e redução das desigualdades, objetivo principal de toda ação afirmativa.

 

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Plano Diretor participativo

O Globo, 16/julho/2006

César Maia

O Rio de Janeiro foi, certamente, o primeiro grande município brasileiro a ter seu Plano Diretor na forma da Constituição de 1988, tendo sido sancionado em 1991. A sua vigência é decenal e, portanto, em 2001 a prefeitura do Rio apresentou uma proposta de revisão para o debate da Câmara de Vereadores. Mais tarde, o chamado Estatuto da Cidade tornou essa tarefa - a de aprovar planos diretores - compulsória para os municípios e, como desdobramento, fixou-se uma data-limite - outubro deste ano - para aqueles que ainda não tinham um plano diretor.

Desde 1991, o Rio já tem esta tarefa cumprida e o que cabe, agora, é atualizar o seu Plano Diretor. Isso está sendo feito pela Câmara Municipal, sem açodamento. Uma comissão especial foi eleita pelos senhores vereadores para definir o documento base, a partir do qual serão feitas as emendas que considerarem necessárias e, finalmente, proceder às votações. Estima-se que essa etapa final ocorrerá no último bimestre de 2006 ou no primeiro trimestre de 2007. O Conselho Municipal de Política Urbana (Compur), criado por lei municipal com representação governamental e dos segmentos sociais diretamente interessados, como moradores, profissionais e empresários, debruçou-se sobre o plano vigente, sobre a experiência de sua aplicação, sobre os novos desafios da cidade, e desenhou um longo e extenso documento, na forma de proposta de novo Plano Diretor.

Mesmo que seja um documento que vai além das funções de um plano, entrando no terreno da legislação de rotina, ele passou a ser um guia de discussão. Alguns queriam que a prefeitura o adotasse, ou desenhasse uma proposta a partir de sua coluna vertebral, e encaminhasse como emenda substitutiva geral à Câmara Municipal. Decidiu-se entregar a proposta do Compur diretamente aos senhores vereadores da Comissão Especial, e que esses a apresentassem, na forma de proposta interna, à própria Comissão. Essa metodologia torna o processo de discussão mais democrático, mais amplo e mais participativo.

O Poder Executivo irá acompanhando os debates através da liderança do governo na Câmara e através de seus secretários e técnicos, de modo que sua opinião seja mais uma em discussão nesta etapa. Uma vez concluído o documento base, e se houver um ou mais pontos divergentes, se apresentarão emendas diretamente ou através da liderança do governo. Os limites do Plano Diretor estão em seu próprio escopo: definir prioridades, restrições, critérios, instrumentos e princípios que venham nortear a legislação ordinária e delimitar os atos administrativos. Há questões consensuais, como a redefinição destas e apenas cinco áreas de planejamento, que obrigam o Executivo a desmembrá-las para torná-las operacionais e práticas. AP-3, por exemplo, agrupa toda a Zona Norte, de Anchieta ao Méier. A Zona Sul está agregada à Tijuca e à Vila Isabel. Bangu está agregado a Santa Cruz. É necessário, portanto, desenhar novas subdivisões.

Questões como antigas regiões agrícolas, que já não cabem mais, podem ser revistas sem que se confunda o escopo do Plano Diretor com o de um PEU - Plano de Estruturação Urbana. Deve-se discutir quais instrumentos alocados anteriormente ao Poder Executivo devem se tornar decisões legislativas e vice-versa. Deve-se separar com mais clareza o conceito de interesse social daquele de interesse urbano ou de interesse privado. Explico, usando como referência o solo já definido ou a ser criado. No primeiro caso, o poder público pode até transferir imóveis seus para regularização da propriedade em comunidades mais pobres. No segundo, pode induzir e estimular a ocupação, abrindo mão de compensação pelo solo criado, para evitar a degradação urbana. E, no terceiro, não pode abrir mão de compensação - mais-valia - pelo solo criado por se configurar interesse privado em condições de mercado.

O Plano Diretor define as regras, mas não as regulamenta, deixando para a lei ordinária e permitindo que o tempo possa indicar correções através de novas legislações. Um tema pouco abordado diz respeito à administração pública, que mais do que nunca deve ser parte integrante do Plano Diretor, como por exemplo pela exigência de um sistema de controle de dois grandes vetores: o financeiro e o jurídico. É importante que, de acordo com a Constituição e com base no Plano Diretor atual, sejam rediscutidas as regiões de expansão induzida e as áreas prioritárias para habitação popular, com os estímulos correspondentes. É importante que temas como Transportes, Área Social, Saúde, Educação e Meio Ambiente ganhem maior profundidade.

Enfim, estes são meros exemplos da riqueza deste debate, que já começou. E que não se pense um plano diretor como tarefa apenas de urbanistas. Se as audiências públicas do Plano se tornarem maciças, seja pela presença de moradores, profissionais ou empresários, seja pelo envolvimento das faculdades, não há dúvida que, partindo-se de um bom documento, como o Plano atual, se chegará a um plano diretor melhor ainda e de acordo com as necessidades da cidade.

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Espaço Urbano Contemporâneo e subjetividade: um foco especial sobre as favelas do Rio de Janeiro
Contemporary Urban Space and Subjectivity: a special focus on the slums of Rio de Janeiro

 Ana Lúcia Gonçalves Maiolino*

Resumo

              A pesquisa “Espaço urbano contemporâneo e subjetividade: um foco especial sobre as favelas do Rio de Janeiro”, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ, a partir de maio de 2005, tem como objetivo a análise da história e das características da diferenciação e da segregação socioespacial, desenvolvidas na cidade do Rio de Janeiro, bem como da produção de estigmas sociais e territoriais, confrontando teorias existentes com a realidade carioca. Igualmente, são avaliados os impactos de políticas públicas - como o Programa Favela-Bairro - sobre a população e os embates travados na tentativa de integração das favelas aos bairros formais da cidade. O trabalho caminha na interface da Psicologia com as Ciências Sociais, mantendo sempre em cena o interesse em ampliar o entendimento da produção de subjetividade do homem urbano contemporâneo. 

 

Palavras-Chave:

Espaço urbano; subjetividade; políticas públicas; segregação territorial; exclusão social.

       A pesquisa “Espaço urbano contemporâneo e subjetividade: um foco especial sobre as favelas do Rio de Janeiro” vem sendo desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da UERJ, a partir de maio de 2005, com financiamento da CAPES, através do Programa de Apoio a Projetos Institucionais com a Participação de Recém-Doutores – PRODOC. O trabalho insere-se na linha de pesquisa “Contemporaneidade e Processos de Subjetivação” do PPGPS e tem como objetivo institucional a ampliação, no Programa, das pesquisas relativas à temática “Espaço Urbano e Subjetividade”.

                Um primeiro núcleo de estudos volta-se à análise das características da ocupação do solo urbano da Região Metropolitana e em especial na cidade do Rio de Janeiro, confrontando a extensa produção teórica sobre as grandes cidades mundiais contemporâneas com a realidade local. Nesse âmbito, são avaliados tanto os aspectos históricos da ocupação desta área, como a configuração de sua distribuição socioespacial.  Na reconstituição histórica, são utilizadas como referências as obras de historiadores e geógrafos, como Maurício Abreu, Luís Felipe Alencastro, Carlos Kessel, Maria Ângela D´Incao e Robert Pechman. Nos processos de configuração socioespacial de grandes cidades ocidentais, no final do século XX, relevam-se os estudos de sociólogos urbanos, arquitetos e urbanistas como Saskia Sassen, Edmond Preteicelle, e Marie-France Prévôt Schapira, enquanto a situação brasileira é mapeada pelos trabalhos de Ermínia Maricato, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Luciana Corrêa do Lago e Carlos Vainer, dentre outros, destacando-se a importância da produção do Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal e do Observatório das Metrópoles – IPPUR-UFRJ/FASE.

                 A partir deste específico cenário de ocupação do solo urbano, são analisados os fenômenos de exclusão social e a produção de estigmas territoriais e sociais. A discussão da exclusão social orienta-se em ampla literatura européia, produzida por sociólogos como Robert Castel, Serge Paugan e Loïc Wacquant, este uma referência também nos estudos sobre os estigmas. A análise do contexto brasileiro é realizada a partir de estudos realizados por sociólogos, urbanistas e psicólogos, como Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Luciana Corrêa do Lago, Lúcio Kowarick, Maura Veras, Bader Sawaia, Deise Mancebo e Ana Lúcia Maiolino.

Uma segunda vertente da pesquisa teórica volta-se às favelas cariocas e às políticas públicas direcionadas a estes espaços, envolvendo as seguintes sub-temáticas:

(a) A constituição e a caracterização do espaço das favelas cariocas, a partir dos trabalhos de urbanistas e sociólogos, destacando-se Lícia do Prado Valladares, Luciana Côrrea do Lago, Alba Zaluar e Marcos Alvito, além da ampla bibliografia disponível no site “Armazém de Dados”, do Instituto Pereira Passos/SMU/PCRJ;

(b) A história das políticas públicas direcionadas às favelas e seus efeitos sobre a população alvo, que toma como referência básica publicações de Lucia Lipp Oliveira, Lícia do Prado Valladares, Adauto Lúcio Cardoso, Marcelo Baumann Burgos e Ermínia Maricato;

(c) O levantamento crítico das recentes discussões e novas diretrizes jurídicas, urbanísticas e sociais sobre a regularização fundiária de assentamentos irregulares e a produção da moradia popular, realizadas por entidades de pesquisa, representantes de movimentos sociais e órgãos governamentais, com destaque para o próprio Ministério das Cidades.  A base teórica dessa sub-temática, obrigatoriamente multidisciplinar, compõe-se de trabalhos de sociólogos, urbanistas, arquitetos, historiadores e advogados, lançando-se mão de autores representativos nessas discussões como Ermínia Maricato, Rachel Rolnik, Martim Smolka e Betânia Alfonsin, dentre outros.
         Ao lado deste trabalho de cunho teórico, a pesquisa “Espaço Urbano Contemporâneo e Subjetividade: um foco especial sobre as favelas do Rio de Janeiro”, realizará estudo empírico em favelas no Rio de Janeiro, submetidas a programa de urbanização, como o Programa Favela-Bairro, em curso, desde 1994, pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, discutindo as seguintes temáticas: a inclusão da favela à cidade formal, após a intervenção urbanística; as repercussões psicossociais geradas nesse campo (estigmas, violência, comportamentos face à alteridade, dentre outras); alterações na vida cotidiana das populações alvo destas intervenções, com destaque para os significados da casa, necessidades e desejos investidos em objetos, espaços e práticas domésticas, comparando-os aos vigentes em momentos anteriores ao da intervenção.

        Observa-se que esta pesquisa utiliza e permite dar continuidade aos estudos teóricos e empíricos realizados para a elaboração da tese de doutoramento intitulada “Espaço Urbano e Subjetividade: um foco especial sobre a favela do Canal das Tachas”, defendida no PPGPS/UERJ, em fevereiro de 2005, por Ana Lúcia Gonçalves Maiolino, e orientada pela professora Deise Mancebo.

        Cabe ainda destacar que a pesquisa caminha na interface da Psicologia com as Ciências Sociais, mantendo sempre em cena o interesse em ampliar o entendimento da produção de subjetividade do homem urbano contemporâneo, estabelecendo, neste sentido, uma interlocução com diversos autores e, mais estreitamente, com Fernando Gonzalez Rey, Félix Guattari, Suely Rolnik, Jurandir Freire Costa, Luis Antônio Baptista e o filósofo Francisco Ortega, com suas recentes discussões sobre “a amizade na cidade”.

        A pesquisa está sendo desenvolvida por Ana Lúcia Gonçalves Maiolino, através da com bolsa de Pós-Doutorado Prodoc/CAPES, contando com a professora Deise Mancebo como responsável institucional. Em momento futuro, pretende-se que venha a agregar alunos da graduação do Instituto de Psicologia da UERJ interessados na temática.

NOTAS
Doutora em Psicologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da UERJ. Bolsista Pós-Doutorado Prodoc/CAPES, vinculada ao PPGPS/UERJ. Professora Visitante do Instituto de Psicologia da UERJ.

Abstract

        “Contemporary Urban Space and Subjectivity: a special focus on the slums of Rio de Janeiro” has been developed on the Program of Pos-graduation in Social Psychology of the UERJ since may 2005. It aims to analyse the history and the characteristics of the differentiation and the socioespacial segregation, developed in the city of Rio de Janeiro, as well as the production of social and territorial stigma, comparing general theories with the peculiar reality of the city. Further, the impacts of public politics, such as the “Programa Favela-Bairro, on the population are evaluated, and also the conflicts resulting from the attempt of integrating the slums to the formal quarters of the city. The present work – proceeding in the interface of Psychology and Social Sciences – aims at adding to the understanding of the production of subjectivity of the contemporary urban man.

 

Keywords

Urban space; subjectivity; public politics; spacial segregation; social exclusion.

Recebido em: 28/06/05
Aceito para publicação em: 15/09/05
Endereço: e-mail anamaiolino@br.inter.net

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COMEÇA ASSIM


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Publicado por Xico Vargas - 17/07/06

No Rio de Janeiro nem as decisões da Justiça são garantia de coisa alguma. Moradores do condomínio Floresta, em Jacarepaguá, conseguiram apoio do Greenpeace e atenção do Ministério Público, e processaram um grileiro que havia criado loteamento irregular e liquidava uma encosta de mata nos fundos do condomínio.
O espertalhão foi condenado a dois anos de prisão (como era primário, presta serviços no Jardim Botânico), multado em 40 mil pratas e recebeu ordem de reflorestar a área que havia destruído. Para isso, porém, a prefeitura deveria retirar as casas e barracos erguidos no terreno.
Segundo os autores da ação, o então secretário fez que não era com ele. Tempos depois, deixou a secretaria de Urbanismo para ser candidato, justamente pelo PV. A prefeitura fingiu que não sabia de nada e o loteamento, hoje uma favela, caminha para a consolidação. Avança maciço da Tijuca acima para encontrar-se com uma jovem favela do Grajaú.

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 Exotismo da favela dá dinheiro

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Segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Carla Rodrigues

Autora de “A invenção da favela”, lançado no Brasil ano passado, a socióloga Lícia Valladares acaba de levar seu amplo conhecimento sobre o tema para a França, onde vive e publicou versão francesa do livro, intitulada “La favela d’un siècle à l’autre”, editada pela Maison des Sciences de L’Homme, casa editorial dos melhores sociólogos franceses, como Alain Tourraine e Pierre Bourdieu. Pesquisadora de reconhecimento internacional, Lícia discute, na obra, os três dogmas que acompanham o imaginário social criado em torno das favelas cariocas, responsabilidade, em grande parte, da própria pesquisa sociológica que ela corajosamente contesta. Singularidade, unicidade e pobreza são mitos que interessam a muita gente, inclusive aqueles que ganham apoios para projetos de pesquisa de campo. Nesta entrevista, ela explica a quem interessa cristalizar as visões exóticas sobre a favela: “O exotismo atende a interesses de muita gente”.

No livro você fala em três dogmas sobre as favelas que estão sendo construídos desde o início do século 20. Quais são?
O dogma da especificidade, o dogma da favela como território da pobreza e o dogma da favela como unidade continuam vigindo. Por exemplo, o dogma da especificidade sobrevive porque não há estudos comparativos. Assim, sem comparações, sempre se encontra especificidades de um objeto naquele universo. Isso é reforçado por existir, de fato, uma especificidade geográfica. O espaço da favela é diferente, irregular, não é legalizado, tem normas próprias. Porque é geograficamente diferente, é como se fosse socialmente diferente. Nada comprova que é socialmente diferente. Porque? Para comprovar as diferenças sociais seria preciso comparar o perfil social dos moradores de favela com o perfil social dos moradores de outras áreas. Compara-se favela com não-favela, mas esse universo é extremamente heterogêneo: loteamentos irregulares, loteamentos clandestinos, cortiços, casa de cômodos, bairros de periferia. Tudo isso também é muito pobre. Essa associação do social com o geográfico é muito rápida. Porque a favela corresponde a um território diferente, se diz que as pessoas na favela têm um modo de diferente.

E a afirmação de que favela é território de pobres também é um dogma? Por que?

Há uma associação direta de favela com pobreza. Mas essa visão que legitimou a favela como território da pobreza evita pensar que na favela tem uma classe média cada vez maior diversidade social. Há extratos sociais diferenciados lá dentro. A idéia de que os pobres moram nas favelas não é mais necessariamente verdade, porque morar na favela já se tornou caro. O terceiro dogma é o da unidade. Não existe “a favela carioca”, mas “as favelas”. Não existe essa unidade. A favela é tão diversa. Não se pode achatar uma categoria que tem 100 anos de história.

Quais são as principais implicações desses três dogmas?

Em primeiro lugar, tem a implicação política. Esses dogmas têm servido para determinar as políticas públicas em relação à favela. Ou seja, se a favela é diferente, se a favela é território dos pobres, se a favela é uma categoria, ela de tratamento especial. Tanto nas políticas contrárias às favelas, como na política favorável às favelas, esse dogma da unidade tem sido útil. Ou para propor a destruição, por que é diferente, ou para integrar, também por que é diferente. A política atual do Favela-Bairro é uma política integradora e integra o que é diferente. E a política de remoção destrói o que é diferente. Na disso dá conta da especificidade de cada uma das favelas.

E a quem os dogmas interessam?

Interessa, por exemplo, às associações de moradores como forma de defender que se aplique dinheiro nas favelas e não em outras áreas. As ONGs internacionais têm que defender a especificidade da favela para garantir que os recursos sejam destinados para aquela área e não para outra. Os sociólogos são, em parte, responsáveis pela afirmação desses dogmas. Eles deveriam ser os primeiros a negar qualquer visão redutora ou simplista, da favela. Mas de certo modo a favela se tornou um “bom negócio” para os pesquisadores. Como explicar essa enorme quantidade de teses, de livros, de artigos sobre favela? A produção é cada vez maior, principalmente nas universidades. Os pesquisadores também têm um registro pragmático, que tem a ver com a possibilidade de obter financiamento. Favela, e sua associação com pobreza, está, digamos assim, na moda entre os órgãos internacionais de financiamento. É mais fácil para um pesquisador levantar recursos para estudar favelas do que para investigar o que está acontecendo em bairros de classe média e alta, por exemplo. Para um pesquisador, ir pra favela representa uma verdadeira aventura antropológica. Ao mesmo tempo, é um confronto com o diferente que se dá de forma bem próxima, porque as favelas do Rio estão próximas de onde se mora.

Você cita a expansão dos diplomas universitários nas favelas como fator que, a longo prazo, pode vai influenciar nas pesquisas. Como?

Vai influenciar porque a tendência atual é a afirmação de quem está vendo de dentro, o que dá propriedade a quem fala. Acontece o mesmo no movimento negro: quem é negro afirma ter mais condição de falar do que quem é branco. Acho que os ‘doutores de favela’ vão acabar provocando um conflito de legitimidade.

Como a mídia contribui para a consolidação desses dogmas?

Não se pode generalizar totalmente, mas a mídia convencional, não tenho dúvida nenhuma, é favorável à extinção da favela e divulga esse estereótipo da favela e dos favelados. Ao mesmo tempo, o uso da palavra comunidade é um subterfúgio muito usado pelas ONGs, pelas associações de moradores, pela política pública, mas é uma palavra que escamoteia os conflitos internos na favela. Acho estão sempre em disputa duas visões da favela: a favela como campo de batalha e a afirmação da positividade da favela.

A afirmação dessa positividade da favela, interessa a quem?

Ela interessa, sobretudo, àquele que defende a favela, aos moradores de favela, às associações de moradores, interessa às ONGs, interessa até a uma parte do governo que está fazendo trabalho social em favela. No livro, faço uma análise dos sites de favela. Há uma enorme gama de sites (consulte links abaixo) que defendem a positividade da favela, alguns de natureza puramente comercial, como os de turismo. Eles também estão afirmando a positividade das favelas para vender melhor produtos os mais variados.

Ao mesmo tempo essa visão positiva, essa positividade convive com a discriminação em relação à favela?

Exatamente. Grande parte da população do Rio de Janeiro identifica favela com violência.
E faz essa associação entre favelado e bandido. Isso é muito ruim. Em primeiro lugar, o tráfico de drogas não está somente nas favelas e a grande maioria da população das favelas não tem nada a ver com tráfico de drogas. Ao se localizar o tráfico de drogas como um problema específico da favela, faz com que uma série de outras questões sejam descartadas, como a da corrupção policial.

Você acha que o interesse pelas favelas ainda é crescente?

É uma coisa impressionante o número de pessoas que me procuram, alemães, americanos, franceses, e que querem vir ao Brasil estudar favela. Está aumentando o número de estrangeiros estudando favela no Brasil. O interesse é crescente porque a imagem exótica da favela no exterior é cada vez mais forte. Esses dogmas estão reforçando essa imagem do exótico. Quando se defende o mito da especificidade, acaba defendendo também o mito do exotismo. Tem muita gente que pegou o gancho da favela e que está transformando a favela num negócio. Não são só as agências de turismo aqui, mas no exterior também. Uma reportagem do “Le Monde” cita as sandálias Havaianas como sendo o “sapato dos favelados”. No morro da Proviência, há um museu a céu aberto, tentativa da prefeitura de entrar nessa área turística. É muito interessante, há uma visita guiada. Será que não vai se tornar um patrimônio da humanidade?

Por que o seu livro interessou tanto aos franceses?

Por que o livro vai além da favela. O que interessou mais aos franceses foi a discussão de como se contrói um objeto social. Mostro justamente esse longo processo, no qual vários atores sociais são responsáveis por diferentes representações da favela. Essas representações atendem a interesses os mais variados. Pensar a favela somente hoje não faz sentido, é preciso pensá-la como processo histórico, como ela foi sendo construída, inventada e reinventada, em diferentes conjunturas. A conclusão na versão francesa do livro é mais atualizada e leva em consideração os últimos acontecimentos relativos à favela no Rio de Janeiro. Considerei, por exemplo, a produção mais recente.

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O voto das milícias


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25.09.2006

Xico Vargas

Quando diz que é mais fácil o convívio de moradores e poder público com as milícias (eufemismo para grupos de extermínio) que dominam favelas do que com o tráfico de drogas o prefeito Cesar Maia oferece à cidade duas notícias: há muito não tira os olhos do ex-blog e não conversa com seus assessores.

Se olhasse em volta saberia que não são mais 34, mas 42 as favelas dominadas por milícias. As novas comunidades já nascem sob essa proteção. Se ouvisse o que têm a dizer os que o cercam saberia que o pessoal do Favela Bairro, por exemplo, prefere operar onde mandam os traficantes.

Com os bandidos, contam, é possível negociar o que o poder público julga interessante para a comunidade. Com as milícias, nem pensar. Onde se instalam são lei máxima, não tem negócio. Eles é que sabem o que deve ou não ser feito para a comunidade. Exemplo mais recente disso é a alteração de traçado promovida pela secretaria de Habitação na avenida que corta a favela Rio das Pedras. Apresentou um projeto e, pressionada, executou outro. Tempos depois, ofereceu um farrapo de desculpa à consulta do vereador Luís Guaraná, presidente da Comissão de Urbanismo.

Exagera, porém, o prefeito ao apresentar esse quadro como novidade com a qual o poder público busca uma forma de relação. Há mais de 10 anos Rio das Pedras e arredores estão sob esse tipo de comando. E na eleição que o botou na prefeitura o acordo político entre o PFL e a milícia de Rio das Pedras foi costurado pelo filho do prefeito. Tanto que daí resultou legenda para a liderança da milícia buscar com sucesso uma cadeira na Câmara de Vereadores. Em “O Rio está trocando de crime”, NoMínimo contou essa história em junho do ano passado.

O prefeito tem tamanha clareza sobre como deve o poder público relacionar-se com esses grupos que o número favelas dominadas por milícias na Zona Oeste multiplicou-se depois de sua posse. Pelas faixas que tomaram as comunidades após a expulsão dos traficantes fica clara a influência de Maia e de seu filho na troca de comando (haja agradecimentos a ambos). Esse teria sido o principal motivo que levou à substituição de Fernando Modolo, o jovem subprefeito de Jacarepaguá.

É no voto das favelas que reside o interesse fundamental de Cesar Maia. Na recente entrevista que deu ao “Globo”, o único trecho veraz contém sua admissão de que as milícias têm votos e os traficantes não. Juntando-se isso às declarações, no início da administração, de que as favelas lhe deram poucos votos e, a seguir, de que eram sua prioridade percebe-se que declaração restritiva à ação desses grupos é pura cascata discursiva. Fora o fato de que o prefeito diz qualquer bobagem.

Percebeu que os jornais publicam frases de autoridades ainda que somem as batatas de ontem com as laranjas de hoje. Por isso, confrontado com episódios incômodos, o prefeito tornou hábito dizer uma besteira e seguir em frente. Como isso:

- Sobre o espigão de 11 andares na Rocinha: “É melhor na favela do que na praia”.
- Sobre a incapacidade de conter as favelas: “É apenas micro-expansão vertical. Portanto, não é expansão”.

Há alguns anos, num fevereiro, indagado sobre o que achava do fim do horário de verão, disse que a cidade perderia 30 mil empregos. Ganhou manchete dos jornais. Tempos depois, indagado pelo repórter Alfredo Ribeiro sobre a origem da conta, admitiu ter sido pura lorota.

Assim, quando diz hoje que as milícias são melhores do que o tráfico de drogas, o prefeito esconde numa platitude a face política desse fenômeno. Em princípio, qualquer coisa é melhor do que o tráfico de drogas. Mas grupos organizados como as máfias são tão danosos quanto traficantes, assassinos ou ladrões. O que o prefeito realmente está dizendo e deve ser lido com atenção pelo carioca é o seguinte: Esses caras têm voto. Os outros, não.

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Desigualdade de renda e situação da saúde: o caso do Rio de Janeiro
Income inequality and health: the case of Rio de Janeiro

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 15(1):15-28, jan-mar, 1999

ARTIGO ARTICLE

1 Departamento de Informações em Saúde,
Centro de Informação Científica e Tecnológica,
Fundação Oswaldo Cruz.
Av. Brasil 4365,
Rio de Janeiro, RJ
21045-900, Brasil.
Célia Landmann Szwarcwald 1
celia@malaria.procc.fiocruz.br
Francisco Inácio Bastos 1
Maria Angela Pires Esteves 1
Carla Lourenço Tavares de Andrade 1
Marina Silva Paez 1
Erika Vianna Medici 1
Mônica Derrico 1

Abstract This ecological analysis addresses the association between income inequality and health status in the municipality of Rio de Janeiro. Data were analyzed using geo-processing and multiple regression techniques. The following health indicators were used: infant mortality rate;

standardized mortality rate; life expectancy at birth; and homicide rate among 15-29-year-old males. Patterns of income inequality were assessed through income distribution indicators: Gini index, Robin Hood index, and top 10%/bottom 40% average income ratio. The results indicate significant correlations between income distribution indicators and health indicators, providing additional empirical evidence of the association between health status and income inequality. For the homicide rate, the effect of the indicator "density of slum residents" was also relevant, suggesting that further deterioration in health standards may be due to social disruption of deprived communities and the resultant increase in criminal activity. The geo-epidemiological analysis presented here highlights the association between adverse health outcomes and residential concentration of poverty. Social policies focused on slum residents are needed to reduce the harmful effects of relative deprivation.

Key words Health Indicators; per capita Income; Geoprocessing; Epidemiology

Resumo Este estudo ecológico testa a associação entre desigualdade de renda e condições de saúde no Município do Rio de Janeiro. Utilizaram-se técnicas de geoprocessamento e de regressão múltipla, além do coeficiente de mortalidade infantil, da taxa de mortalidade padronizada por idade, da esperança de vida ao nascer e da taxa de homicídios. Os padrões de desigualdade de renda foram avaliados por meio do índice de Gini, do índice de Robin Hood e da razão da renda média entre os 10% mais ricos e os 40% mais pobres. Os resultados evidenciam correlações significativas dos indicadores de desigualdade de renda com todos os indicadores de saúde, demonstrando que as piores condições de saúde não podem ser dissociadas das disparidades de renda. Para os homicídios, a concentração de indivíduos residentes em favelas se mostrou relevante, sugerindo uma piora adicional das condições de saúde através da deterioração das interações comunitárias e do aumento da criminalidade. A análise geoepidemiológica aponta para o vínculo entre as piores condições de saúde e a concentração residencial de pobreza. Conclui-se que há necessidade urgente de se implementarem políticas compensatórias para amenizar os efeitos danosos da desigualdade social.

Palavras-chave Indicadores de Saúde; Renda per capita; Geoprocessamento; Epidemiologia

16 SZWARCWALD, C. L. et al.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 15(1):15-28, jan-mar, 1999

Introdução

Classicamente, os estudos epidemiológicos têm procurado explicar as desigualdades na saúde da população segundo fatores sociais e econômicos tais como renda, ocupação, educação, habitação, ambiente ou, de maneira geral, as assim denominadas condições de vida. Consensualmente, estes estudos mostram que a saúde da população apresenta forte gradiente social que se reproduz nos mais diferentes países, independentemente da natureza, abrangência, eficácia e eficiência dos respectivos sistemas de saúde. Invariavelmente desfavorável aos grupos socialmente menos privilegiados, a falta de eqüidade social no âmbito da saúde manifesta-se tanto nos diferenciais encontrados nas taxas de morbi-mortalidade como no adoecimento mais precoce das camadas menos favorecidas (Marmot et al., 1987). É vasta a literatura que aborda os diferenciais na saúde como reflexo das desigualdades de uma sociedade. Um estudo internacionalmente conhecido, realizado na Grã-Bretanha, "The Black Report" (Townsend & Davidson, 1990), revelou grandes disparidades na situação de saúde, demonstrando que aqueles situados no limite inferior da escala social têm condições bem piores de saúde do que aqueles pertencentes aos estratos mais favorecidos. Porém, se nos estudos epidemiológicos no nível individual as correlações encontradas para grande parte dos agravos de saúde e condições de vida são bastante claras e consistentes, não se pode dizer o mesmo a respeito dos estudos ecológicos. Neste contexto, são cada vez mais freqüentes as evidências no sentido de que a associação entre renda e saúde não é uma relação direta. Em estudo envolvendo um grupo de países europeus, Wilkinson (1992a) demonstrou a não-linearidade da relação ecológica de dependência entre as duas variáveis, já que às diferenças no nível de renda entre os países não corresponderam, proporcionalmente, diferenças semelhantes nos indicadores de saúde por ele utilizados.

O relatório "The Health Divise", atualização dos dados do "The Black Report" para a década de 80, comprovou igualmente a ausência de uma relação direta entre renda e desigualdade na saúde no nível coletivo. Apesar da diminuição da pobreza absoluta, as diferenças nas condições de saúde entre os diferentes estratos sociais não só persistiram como até se agravaram

(Townsend & Davidson, 1990).

Na mesma linha de pesquisa, Evans et al. (1994) descrevem vários exemplos encontrados na literatura tanto de "saúde sem riqueza" como de "riqueza sem saúde", isto é, sociedades que desfrutam de condições de saúde bem melhores do que as esperadas pelos seus níveis de renda e vice-versa, e sugere que outros fatores relacionados à complexidade da estrutura social podem influenciar mais profundamente a situação de saúde do que os índices de pobreza. No Brasil, Leal & Szwarcwald (1997) detectaram uma ausência de correlação entre a mortalidade infantil, calculada para os municípios do Estado do Rio de Janeiro no ano de 1991, e um índice de condições sócio-econômicas, estimado com base em informações censitárias sobre educação, renda e abastecimento d’água.

Apesar de inquestionável no nível individual, a ausência de associação significativa no nível ecológico apontou para outros mecanismos de explicação do padrão de distribuição espacial da mortalidade infantil encontrado.

Achados recentes mostram que pode ser bastante importante a inclusão de indicadores que considerem a distribuição da riqueza como característica de uma sociedade ou de um grupo. Estes estudos têm optado por enfocar indicadores de renda relativa ao invés dos tradicionais indicadores de renda absoluta (Wilkinson,

1992a; Wilkinson, 1992b; Kaplan et al.,

1996; Kennedy et al., 1996), enfatizando a relevância da pobreza relativa e a maneira como ela exclui pessoas, social e materialmente, das oportunidades proporcionadas pela sociedade. A associação ecológica entre a concentração de renda e a situação de saúde foi demonstrada empiricamente em uma série de investigações internacionais, incluindo comparações entre países industrializados europeus (Wilkinson, 1992b) e entre estados dentro dos Estados Unidos (Kaplan et al., 1996; Kennedy et al., 1996; Kawachi & Kennedy, 1997a). Estes estudos relacionaram diferentes indicadores de desigualdade de renda a vários indicadores de saúde como a esperança de vida, a mortalidade infantil, as taxas de mortalidade geral e específica por causas selecionadas, a freqüência de baixo peso ao nascer, as taxas de criminalidade, entre muitos outros. Os resultados indicaram, de forma consistente, melhores condições de saúde em sociedades com distribuição mais equilibrada de renda. No Brasil, vários trabalhos têm sugerido que o crescimento da violência é tributário, em grande parte, do aumento da concentração de renda que ocorreu nas últimas décadas (Minayo, 1994; Szwarcwald & Castilho, 1998). Entretanto, até o presente, não se dispõe de comprovações de natureza empírica desta hipótese no nosso meio. Reconhecidamente, o Brasil apresenta, no mundo, um dos níveis mais elevados de conCad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 15(1):15-28, jan-mar, 1999

concentração de renda. Adotando-se como medida de desigualdade a razão entre a renda média dos 10% mais ricos em relação à dos 40% mais pobres, para grande parte dos países este indicador tem valores inferiores a 10, enquanto, no Brasil, este parâmetro situa-se no patamar de 30 (Barros et al., 1995). Tomando-se como referencial a razão entre a renda média familiar per capita entre os dois últimos decis da distribuição de renda, este índice é menor que 1,5 nos Estados Unidos, Japão e Hungria, situase em torno de 2,3 no México e na Argentina< enquanto no Brasil ultrapassa o valor de 3,0 (PNUD/Ipea, 1996). Segundo os dados do Banco Mundial (1994), o Brasil exibe a pior situação do seu grupo (países de renda média alta), com participações correspondentes ao primeiro e ao último quintil, respectivamente, mais baixa e mais alta do que quaisquer outros países em situação comparável.

Motivado pelo quadro de grave desigualdade da distribuição de renda apresentado pelo Brasil, este estudo tem como principal objetivo analisar quantitativamente a associação entre indicadores de distribuição de renda e alguns agravos de saúde. Tomou-se o Município do Rio de Janeiro como caso particular desta investigação, por ser este município cenário de elevadas taxas de criminalidade e extremas disparidades sociais.

Material e métodos

Para este estudo, foram considerados dois conjuntos de indicadores, estimados para as regiões administrativas do Município do Rio de Janeiro, tendo como ano-base de cálculo o ano censitário de 1991. O primeiro foi constituído por indicadores de saúde e o segundo por indicadores de distribuição de renda e outros indicadores sócio-demográficos.

Para a construção dos indicadores de saúde foram utilizadas as informações referentes a óbitos do Sub-Sistema de Informações sobre Mortalidade (MS, 1997) e as informações censitárias relativas à população da Fundação Instituto de Geografia e Estatística (FIBGE, 1994). Os indicadores sócio-econômicos foram elaborados valendo-se das informações relativas às características dos chefes de domicílio, fornecidas< por setor censitário do Município do Rio de Janeiro pela FIBGE (1994), e agregadas por Região Administrativa (RA), menor unidade geográfica disponível para os dados de mortalidade.

Embora o Município do Rio de Janeiro fosse constituído em 1991 por 26 RAs, as informações de óbitos eram classificadas, até 1992, de acordo com o endereço notificado do falecido, em apenas 24 RAs, o que fez com que tivéssemos que proceder a uma redistribuição dos dados >censitários, descrita a seguir. As informações censitárias correspondentes à Região Administrativa da Pavuna (RA XXV) foram agregadas à de Anchieta (RA XXII), e as de Guaratiba (RA XXVI) à de Campo Grande (RA XVIII), considerando- se como objeto de análise o conjunto de 24 regiões administrativas assim formado.

DESIGUALDADE DE RENDA E SAÚDE 17

A seguir, são apresentados todos os indicadores considerados no estudo.

Indicadores de saúde

1) Coeficiente de mortalidade infantil – calculado como uma taxa média trienal, a partir dos óbitos em menores de um ano registrados nos anos de 1990, 1991 e 1992. A estimação dos nascidos vivos por RA foi realizada em etapas. Estimou-se o número de nascidos vivos, corrigido pelo método de Brass (1975), para a totalidade do município, por meio das informações sobre fecundidade relativas ao ano de 1991 (FIBGE, 1994). A seguir, foram estimadas as freqüências relativas de nascidos vivos por RA, baseando-se nas informações do Sistema de Nascimentos (Sinasc) fornecidas pela Secretaria Municipal de Saúde, referentes ao ano de 1994 (primeiro ano com dados fidedignos).

As estimativas por RA foram calculadas pela multiplicação de cada uma das freqüências percentuais pelo número total corrigido de nascidos vivos no Rio de Janeiro;

2) Taxa de mortalidade padronizada por idade – calculada com base nas taxas de mortalidade específicas por faixas qüinqüenais de idade, estimadas como médias trienais no período 1990-92. A população padrão foi a do Município do Rio de Janeiro;

3) Esperança de vida ao nascer – calculada por meio da construção da tábua de vida por RA, conforme a formulação de Frias & Rodrigues (1981), valendo-se das taxas centrais de mortalidade, idade e sexo, estimadas como médias trienais no período 1990-92. Foi calculada para cada sexo em separado como também para ambos os sexos;

4) Taxa de homicídios – calculada como a taxa média trienal no período 1990-92, para indivíduos do sexo masculino de 15 a 29 anos de idade. O número de óbitos compreende aqueles classificados segundo a 9a Classificação Internacional de Doenças (CID) como "homicídios e lesões provocadas intencionalmente por outras pessoas" (CID E960-969). A transformação da raiz quadrada foi usada como estabilizadora da variância (Cressie, 1993).

18 SZWARCWALD, C. L. et al.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 15(1):15-28, jan-mar, 1999

Embora se saiba que há grande subnotificação dos homicídios no Município do Rio de Janeiro (Szwarcwald & Castilho, 1986), e a despeito do fato de outros autores terem proposto a utilização de indicadores distintos (Souza, 1994), utilizou-se neste trabalho o conjunto de óbitos classificados exclusivamente como homicídios (CID E960-969). Partiu-se do pressuposto de que a subenumeração é homogênea> nas diferentes RAs, o que não afeta a hipótese de interesse. Os óbitos classificados como "lesões por arma de fogo, com intencionalidade ignorada" (CID E985-E986) acarretariam a inclusão de óbitos que podem ser auto-infligidos (suicídios) ou acidentalmente infligidos, que a literatura especializada não associa a indicadores de desigualdade de renda.

Indicadores de distribuição de renda

Os indicadores que se seguem foram construídos com os dados censitários contendo informações sobre a renda dos chefes de domicílio, classificadas em 16 classes de renda baseadas< no valor do salário mínimo para 1991. Para cada uma das 16 classes, o número de chefes de domicílio e a renda média foram usados para calcular os decis da distribuição de renda por RA.

1) Índice de Gini – uma das medidas mais conhecidas do grau de concentração de renda, varia de zero a um, este último valor correspondendo à desigualdade máxima. É derivado por meio da curva de Lorenz, gráfico que representa os percentuais acumulados de renda por decis da população. O índice é estimado consoante as diferenças entre as áreas delimitadas pela curva de Lorenz, o eixo horizontal e a reta de 45o (Hammond & McCullagh, 1978);

2) Índice de Robin-Hood – esta medida de concentração de renda é assim denominada porque indica a proporção de renda que deveria ser retirada dos ricos e transferida para os pobres para que fosse alcançada uma distribuição eqüitativa de renda. Para o cálculo matemático, deve-se, primeiramente, obter as rendas percentuais relativas de cada decil em relação à renda total. O índice corresponde, então, à soma dos excessos em relação ao valor de 10%, em todos os decis de renda cuja renda relativa percentual ultrapassar 10% (Kennedy et al., 1996);

3) Razão da renda média entre os 10% mais ricos e os 40% mais pobres – este índice é freqüentemente utilizado para a comparação internacional de níveis de desigualdade de renda, uma vez que esta medida é sensível às diferenças entre os extremos da distribuição (PNUD/ Ipea, 1996). É calculado dividindo-se a renda total do último decil pela renda total dos 40% mais pobres.

Outros indicadores sócio-demográficos

1) Taxa de analfabetismo – calculada como a

proporção de chefes de domicílios sem instrução;

2) Índice de pobreza – calculado como a proporção de chefes de domicílio com rendimento mensal menor do que um salário mínimo;

3) Renda média – média de renda dos chefes de domicílios, fornecida por RA pela FIBGE (1994);

4) Densidade demográfica – calculada pelo número de habitantes por ha. A transformação logarítmica foi usada como estabilizadora da variância;

5) Densidade de população favelada – calculada através do número de habitantes residentes em setores censitários classificados como "aglomerados subnormais" (FIBGE, 1994) por ha. A transformação logarítmica foi usada como estabilizadora da variância. Para a análise estatística, foram utilizadas técnicas de regressão múltipla, por meio do

software SPSS (1993). Os melhores preditores

de cada indicador de saúde foram escolhidos por meio de procedimentos "stepwise", sendo 5% o nível de significância para inclusão de variáveis e 10% para a sua exclusão. Para analisar a configuração geográfica dos indicadores no Município do Rio de Janeiro, foram construídos mapas temáticos, usando o

softwareMapInfo (1994). Com relação aos pontos de corte dos mapas procurou-se obedecer à divisão dos 33 centis e 67 centis, correspondendo a aproximadamente um terço das RAs reunidas em uma mesma faixa do mapa, procurando enfatizar os resultados pelo recurso de mapas de visualização. Inicialmente, as 24 RAs e seus respectivos números são apresentados na

Figura 1.

Em uma etapa final, para uma melhor compreensão dos resultados obtidos, alguns indicadores sócio-demográficos foram estimados por RA, segundo a classificação do setor de residência, se favelado ou não favelado.

DESIGUALDADE DE RENDA E SAÚDE 19

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 15(1):15-28, jan-mar, 1999

Resultados

Na Tabela 1, estão apresentados todos os indicadores

de distribuição de renda e indicadores sócio-demográficos utilizados neste estudo segundo as regiões administrativas do Município do Rio de Janeiro. Em relação à taxa de analfabetismo destacam-se os elevados percentuais encontrados nas regiões de Ramos, Santa Cruz, Portuária, São Cristóvão e Inhaúma, ultrapassando o valor de 10%. Igualmente, são muito grandes os índices de pobreza. Em onze das 24 RAs, mais de 20% dos chefes de domicílio têm renda mensal menor do que um salário mínimo. Quanto à renda média, percebe-se uma enorme amplitude de variação, de 2,4 salários mínimos em Santa Cruz a 18,1 na Barra da Tijuca. Pela observação dos três indicadores de concentração de renda, verifica-se que as distribuições mais eqüitativas de renda são encontradas para Copacabana, Barra da Tijuca e Botafogo. Estas regiões administrativas correspondem às áreas mais ricas da cidade, onde há menor concentração de pobreza. Em contraste, na região Portuária e adjacências ao noroeste, são encontradas as maiores desigualdades de renda (Figura 2). Os indicadores de saúde por RA estão expostos na Tabela 2. O coeficiente de mortalidade infantil varia de 8 por 1.000 nascidos vivos (NV), no Méier, a quase 40 por 1.000 NV em Inhaúma, o dobro da taxa estimada para o Município do Rio de Janeiro como um todo. Valores muito elevados, próximos de 30 por 1.000 NV, correspondem às regiões Portuária, Centro e Irajá. Expressão da violência na cidade, as taxas de homicídios são extremamente altas em determinadas regiões administrativas. As taxas superiores a 200 por 100.000 habitantes concentram- se na região Portuária e nas áreas vizinhas ao noroeste, como pode ser visualizado na Figura 3. Valores intermediários são encontrados para as regiões administrativas da denominada Zona Oeste, fronteiriça aos municípios da região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro. As menores taxas ocorrem nas re-

Figura 1

Localização das regiões administrativas do Município do Rio de Janeiro.

Fonte: SIG-FIOCRUZ. 20 SZWARCWALD, C. L. et al.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 15(1):15-28, jan-mar, 1999

Regiões administrativas situadas no litoral, que possuem as melhores condições sócio-econômicas. Refletindo também os efeitos da alta mortalidade entre os adolescentes e adultos jovens, os outros dois indicadores utilizados, a taxa de mortalidade padronizada por idade e a esperança de vida ao nascer exibem o mesmo comportamento espacial. As regiões Portuária, Centro, São Cristóvão, Rio Comprido, Irajá e Inhaúma apresentam as maiores taxas de mortalidade padronizadas por idade, superiores a 10 por 1.000 habitantes. Disparidades ainda maiores são encontrados para a esperança de vida ao nascer, sobretudo para o sexo masculino, nas diferentes regiões. Para regiões como Inhaúma, Centro, Portuária e São Cristóvão, a esperança de vida ao nascer entre os homens é inferior a 58 anos. Em Inhaúma, a diferença chega a ser superior a 9 anos frente à estimada para a totalidade do Município do Rio de Janeiro. A matriz de correlações entre os indicadores de saúde e os indicadores de desigualdade de renda está apresentada na Tabela 3. Constata- se, primeiramente, que todos os indicadores de concentração de renda são forte e significativamente correlacionados entre si. Adicionalmente, a hipótese de associação entre a situação de saúde e a desigualdade de renda é plenamente confirmada. Todos os indicadores de saúde se mostram significativamente correlacionados a todos os indicadores de desigualdade de renda. Os sinais das correlações (negativo apenas para a esperança de vida ao nascer) mostram que quanto maior a desigualdade de renda, pior é a situação de saúde. Observa-se ainda que o indicador de saúde mais correlacionado às disparidades na distribuição de renda é a taxa de homicídios seguida da esperança de vida ao nascer. A análise dos resultados dos procedimentos

stepwise de regressão múltipla, considerando-se

Tabela 1

Indicadores sócio-econômicos e demográficos segundo as regiões administrativas do Município do Rio de Janeiro, 1991. RA Indicadores sócio-econômicos e demográficos Taxa de Índice de Renda média Densidade Densidade Índice Índice de Razão de renda analfabetismo pobreza (em salários demográfica de população de Gini Robin-Hood 10% mais ricos/ (%) (%) mínimos) (hab/ha) favelada 40% mais pobres (hab/ha)

I - Portuária 12,9 24,1 2,7 52,2 20,1 0,61 0,48 26,4

II - Centro 4,1 12,6 4,6 76,7 0,0 0,56 0,42 20,5

III - Rio Comprido 8,0 22,5 4,4 134,7 38,0 0,60 0,47 29,1

IV - Botafogo 2,4 5,1 12,2 161,5 8,6 0,43 0,32 10,3

V - Copacabana 2,6 2,6 12,3 310,5 15,8 0,43 0,32 10,0

VI - Lagoa 7,0 9,7 16,3 98,6 25,6 0,46 0,35 16,2

VII - São Cristóvão 10,3 26,0 3,1 107,7 46,6 0,61 0,48 28,6

VIII - Tijuca 3,6 5,8 10,1 45,7 6,2 0,47 0,35 12,7

IX - Vila Isabel 3,9 7,8 8,8 152,6 16,6 0,49 0,36 14,2

X - Ramos 13,6 23,8 2,9 157,5 70,9 0,62 0,49 28,8

XI - Penha 8,5 21,2 3,2 122,1 24,5 0,60 0,46 26,0

XII - Inhaúma 10,0 21,7 3,1 143,8 52,2 0,60 0,47 26,2

XIII - Méier 4,1 13,2 5,5 141,2 12,0 0,54 0,41 19,3

XIV - Irajá 5,1 15,2 4,2 135,4 16,2 0,57 0,43 21,7

XV - Madureira 6,6 19,8 3,5 121,4 12,5 0,58 0,44 23,9

XVI - Jacarepaguá 7,8 16,4 5,2 33,5 4,6 0,59 0,45 25,3

XVII - Bangu 9,0 22,1 3,0 48,7 6,1 0,61 0,48 27,4

XVIII - Campo Grande 10,0 23,7 3,1 13,7 0,8 0,62 0,47 29,8

XIX - Santa Cruz 11,1 27,1 2,4 15,5 1,0 0,63 0,51 32,3

XX - I. do Governador 6,8 12,2 6,2 46,7 11,5 0,55 0,42 21,2

XXI - I. de Paquetá 9,7 21,0 4,4 22,1 0,0 0,58 0,44 24,4

XXII - Anchieta 9,1 22,9 2,8 102,0 21,7 0,65 0,53 34,9

XXIII - Santa Teresa 7,2 12,1 5,1 78,2 15,6 0,60 0,46 26,1

XXIV - Barra da Tijuca 6,8 6,8 18,1 5,6 0,8 0,41 0,32 11,7

Rio de Janeiro 7,3 15,9 6,8 43,7 7,0 0,61 0,47 29,3

DESIGUALDADE DE RENDA E SAÚDE 21

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 15(1):15-28, jan-mar, 1999

do como variável resposta cada indicador de saúde e como variáveis independentes o conjunto de indicadores de distribuição de renda e os indicadores sócio-demográficos, pode ser realizada com base nos dados dispostos na Tabela

4. Exceção feita à mortalidade infantil, para todos os indicadores de saúde, a variável mais fortemente correlacionada à variável resposta< é o indicador de concentração de renda "Índice de Robin-Hood". Estes achados corroboram os anteriores no sentido de que quanto maior a concentração de renda mais adversa é a situação de saúde.

Com relação à esperança de vida ao nascer e à taxa de mortalidade padronizada, após a inclusão do Índice de Robin-Hood nos modelos de regressão, nenhuma das demais variáveis independentes consideradas mostrou correlação parcial estatisticamente diferente de zero.

Já para a taxa de homicídios, a densidade de população favelada demonstrou efeito parcial< significativo. Ou seja, para os homicídios, além da desigualdade de renda, a concentração de indivíduos residentes em favelas é também fator preponderante. Já com relação ao coeficiente de mortalidade infantil, somente a renda média se mostrou importante.

A Figura 3 mostra que as áreas com maior densidade de moradores em aglomerados subnormais se situam exatamente no mesmo setor da cidade que apresenta as piores condições de saúde. Estes resultados indicam que a correlação estabelecida entre a situação de saúde e desigualdade de renda no Município do Rio de Janeiro é decorrente da alta concentração residencial de pobreza em certas áreas da cidade, o que provoca desequilíbrios nas correspondentes distribuições de renda. Comparando-se as condições de vida da população favelada com a não favelada, grandes contrastes podem ser percebidos (Tabela 5).

Qualquer que seja a região administrativa sob análise, as piores condições sócio-econômicas são encontradas para a população residente em favelas. Merecem atenção especial as diferenças em relação aos indicadores de pobreza, particularmente nas 6 regiões administrativas que detêm as piores condições de saúde. Por exem-

Figura 2

Distribuição do indicador de Robin-Hood segundo as regiões administrativas do Município do Rio de Janeiro, 1991.

Fonte: dados primários da FIBGE, 1994. 22 SZWARCWALD, C. L. et al.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 15(1):15-28, jan-mar, 1999,  exemplo, nos setores favelados situados na região administrativa Rio Comprido, 46,5% dos chefes de domicílio têm rendimento mensal menor do que um salário mínimo. Em contraste, entre os residentes de setores não favelados da mesma RA, apenas 15,0% dos chefes de domicílio estão situados abaixo do índice de pobreza.

Discussão

Ao comprovar empiricamente a hipótese de que a situação de saúde está associada à desigualdade de renda no Município do Rio de Janeiro, este trabalho traz vários aspectos para discussão. Há que ressaltar a limitação do presente trabalho ao tomar as RAs como escala geográfica de análise. Levando em conta a natureza político-administrativa da divisão por RAs, novas análises deverão reavaliar a questão utilizando diferentes níveis de agregação geográfica, sobretudo pelas reconhecidas disparidades

Tabela 2

Indicadores de saúde segundo as regiões administrativas do Município do Rio de Janeiro, 1991.

RA Indicadores de saúde

Taxa de homicídios Taxa padronizada Coeficiente de Esperança de vida de mortalidade mortalidade infantil

Total Sexo masculino Sexo feminino

I - Portuária 288,3 11,3 29,4 63,0 56,9 70,1

II - Centro 155,9 11,1 30,3 62,0 55,2 70,3

III - Rio Comprido 273,8 11,3 24,0 63,2 57,6 69,6

IV - Botafogo 50,0 5,6 15,4 73,5 69,0 77,3

V - Copacabana 48,2 6,4 18,2 71,4 65,5 76,5

VI - Lagoa 76,6 6,0 16,0 72,9 68,3 77,4

VII - São Cristóvão 170,9 10,7 22,1 64,0 58,6 69,8

VIII - Tijuca 113,8 7,4 19,1 70,2 65,1 74,8

IX - Vila Isabel 93,4 6,3 22,0 71,6 66,8 75,9

X - Ramos 194,9 9,9 22,0 65,8 60,5 71,4

XI - Penha 212,7 8,5 22,3 67,4 62,2 72,8

XII - Inhaúma 261,2 17,8 38,9 58,3 52,8 64,4

XIII - Méier 57,5 3,2 8,3 79,0 75,6 81,9

XIV - Irajá 227,6 11,3 28,7 63,5 58,3 68,8

XV - Madureira 124,2 7,5 21,6 69,4 64,4 74,3

XVI - Jacarepaguá 126,7 8,9 18,0 67,9 63,5 72,4

XVII - Bangu 174,4 9,1 23,3 66,6 62,1 71,4

XVIII - Campo Grande 123,1 8,8 21,1 67,3 62,8 72,2

XIX - Santa Cruz 155,6 9,3 25,8 66,1 61,6 71,0

XX - I. do Governador 105,6 7,4 17,7 69,9 65,5 74,6

XXI - I. de Paquetá 0,0 6,4 8,8 72,2 68,3 76,1

XXII - Anchieta 387,0 9,3 23,4 66,4 61,7 71,3

XXIII - Santa Teresa 107,0 8,7 18,7 68,1 63,6 72,6

XXIV - Barra da Tijuca 37,8 6,7 14,4 72,2 68,1 76,9

Rio de Janeiro 163,1 8,6 21,7 68,1 63,0 73,2

dades de renda que ocorrem no Brasil atualmente

(PNUD/Ipea, 1996).

A associação entre condições de saúde e a desigualdade de renda aqui encontrada evidencia a importância da pobreza relativa e os efeitos da privação social e material de grande parte da nossa população. No presente trabalho, todos os indicadores de concentração de renda mostraram-se altamente correlacionados entre si e significativamente correlacionados aos indicadores de saúde. Sendo assim, conforme observado anteriormente por Kawachi & Kennedy (1997b), a escolha do índice de concentração de renda não altera fundamentalmente os resultados. No que se refere aos indicadores de saúde, a taxa de homicídios foi o indicador mais correlacionado aos níveis de desigualdade de renda, demonstrando que a questão da violência urbana entre os jovens brasileiros não pode ser dissociada da aguda disparidade presente na nossa sociedade.

DESIGUALDADE DE RENDA E SAÚDE 23

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 15(1):15-28, jan-mar, 1999

Figura 3

Distribuição da taxa de homicídios entre indivíduos do sexo masculino de 15-29 anos segundo as regiões administrativas do Município do Rio de Janeiro, 1991. Fonte: dados primários do SIM/MS, 1997 e FIBGE, 1994.

A mortalidade infantil foi o indicador menos correlacionado aos níveis de desigualdade de renda. Tal achado, abordado com maior detalhe em trabalhos anteriores (Leal & Szwarcwald, 1996), parece secundário ao fato de que o componente dominante da mortalidade infantil no município é a mortalidade neonatal, associada principalmente à atenção ao parto e à assistência ao recém-nato do que à desigualdade de renda stricto sensu.

Entre os fatores explicativos da associação entre concentração de renda e situação de saúde, sobressai a falta de investimento em políticas sociais (Kaplan et al., 1996; Smith, 1996; Kawachi & Kennedy, 1997a). Acredita-se que sociedades com grande nível de concentração de renda são as que menos investem em programas sociais, resultando em educação pública e assistência médica insuficientes, habitação inadequada e capacitação profissional deficiente.

Neste contexto, as condições de saúde estariam refletindo as desigualdades de acesso aos serviços coletivos necessários ao bem-estar social. Uma vertente explicativa complementar entende que a desigualdade de renda tem efeitos sobre a qualidade de vida, aumentando a frustração, o stress, fomentando rupturas sociais e familiares, o que implica deterioração adicional das condições de saúde, através da dinâmica auto e hetero-destrutiva de fenômenos sociais complexos, em interação permanente com o quadro específico da saúde, como o crescimento das taxas de criminalidade e do abuso do álcool e de drogas ilícitas, e a disseminação do HIV e outras doenças de transmissão sexual (Wallace et al., 1996).

Recentemente, Kawachi et al. (1997) mostraram que sociedades com grandes desequilíbrios na distribuição de renda tendem a ser menos coesas. Foi evidenciado que indivíduos residentes em estados americanos com maior heterogeneidade na distribuição de renda julgam seu ambiente social como menos confiável, mais injusto e hostil. Uma possível interpretação destes achados empíricos é que a coesão social dentro das comunidades se deteriorou

SZWARCWALD, C. L. et al.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 15(1):15-28, jan-mar, 1999

ra à medida que aumenta o nível de privaçãorelativa, medido não em relação à própria comunidade mas comparativamente aos padrões da sociedade como um todo (Wilkinson, 1997). A análise geográfica e ecológica do presente trabalho mostra, de maneira nítida, o estreito vínculo entre piores condições de saúde e concentração residencial de pobreza. É nas áreas com maior concentração de comunidades carentes, que ocorrem os maiores coeficientes de mortalidade infantil e geral, os níveis mais baixos de expectativa de vida e as mais elevadas taxas de violência. Conforme discutido por Kawachi & Kennedy (1997a), a acentuação da desigualdade na distribuição de renda de vários países foi acompanhada por um importante crescimento na concentração residencial da pobreza. No caso

Tabela 3

Coeficientes de correlação entre os indicadores. Regiões administrativas do Município do Rio de Janeiro, 1991. Indicadores Coef. de Esperança Taxa de Taxa pa- Coef. R. 10% Índice de Dens. de Dens. Taxa de Índice de Renda mortali- de vida homicí- dronizada de Gini mais ricos/ Robin- população demo- analfa- pobreza média dade dios de morta- 40% mais Hood favelada gráfica betismo infantil lidade pobres

Coef. de 1,00 -0,91** 0,77** 0,90** 0,43* 0,39 0,44* 0,26 0,20 0,31 0,40 -0,46* mortalidade infantil

Esperança -0,91** 1,00 -0,74** -0,96** -0,60** -0,58** -0,61** -0,22 -0,07 -0,51* -0,57** 0,57* de vida

Taxa de 0,77** -0,74** 1,00 0,68** 0,60** 0,60** 0,64** 0,49* 0,27 0,40* 0,53** -0,55* homicídios

Taxa 0,90** -0,96** 0,68** 1,00 0,54** 0,52** 0,55** 0,27 0,09 0,49* 0,53** -0,51* padronizada de mortalidade

Coeficiente 0,43* -0,60** 0,61** 0,54** 1,00 0,97** 0,99** 0,15 -0,03 0,73** 0,91** -0,94** de Gini R.10% mais 0,39 -0,58** 0,60** 0,52** 0,97** 1,00 0,99** 0,12 -0,13 0,79** 0,93** -0,84** ricos/40% mais pobres

Índice de 0,44* -0,61** 0,64** 0,55** 0,99** 0,99** 1,00 0,15 -0,08 0,78** 0,93** -0,90** Robin-Hood

Densidade de 0,26 -0,22 0,49* 0,28 0,15 0,12 0,15 1,00 0,79** 0,12 0,11 -0,15 população favelada

Densidade 0,20 -0,07 0,27 0,09 -0,03 -0,13 -0,08 0,79** 1,00 -0,31* -0,15 -0,11

Taxa de 0,31 -0,51* 0,40* 0,49* 0,73** 0,79** 0,78** 0,12 -0,31 1,00 0,86** -0,56** analfabetismo

Índice de 0,40 -0,57** 0,53** 0,53** 0,91** 0,93** 0,93** 0,11 -0,15 0,86** 1,00 -0,82 pobreza

Renda média -0,46* 0,57** -0,55** -0,51* -0,94** -0,84** -0,89** -0,15 -0,11 -0,56** -0,82** 1,000

* Significativo no nível de 1%

** Significativo no nível de 5%

particular brasileiro, nas últimas duas décadas, houve uma expansão relevante de comunidades faveladas nas grandes metrópoles (Rodrigues, 1994). No Rio de Janeiro, a população residente em favelas expandiu-se aceleradamente, concentrando-se em área vizinhas à região Portuária (Corrêa, 1996).

O fato da pobreza estar concentrada geograficamente tem profundas implicações para a natureza da vida social. Em primeiro lugar, é preciso ver que se a pobreza está concentrada espacialmente, qualquer coisa relacionada à pobreza também o será. Conseqüentemente, à medida que a pobreza aumenta em uma área particular da cidade, ali crescerão a criminalidade, a mortalidade infantil, o abuso de drogas, o alcoolismo, e as doenças de uma forma geral (Massey, 1996). Adicionalmente, os moradores

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Tabela 4

Resultados das regressões múltiplas para os indicadores de saúde.
Taxa de homicídios
Variáveis incluídas Coeficientes Significância
Constante -7,99 0,072
Índice de Robin-Hood 38,83 0,001
Dens. de pop. favelada 1,23 0,011
Variáveis não incluídas Correlação parcial Significância
Dens. demográfica -0,01 0,972
Taxa de analfabetismo -0,23 0,324
Índice de pobreza -0,34 0,393
Renda média 0,15 0,647
Esperança de vida
Variáveis incluídas Coeficiente Significância
Constante 86,89 0,000
Índice de Robin-Hood -43,97 0,002
Variáveis não incluídas Correlação parcial Significância
Dens. de pop. favelada -0,127 0,470
Dens. demográfica -0,114 0,515
Taxa de analfabetismo -0,085 0,759
Índice de pobreza -0,086 0,853
Renda média 0,158 0,686
Taxa padronizada de mortalidade
Variáveis incluídas Coeficiente Significância
Constante -2,00 0,577
Índice de Robin-Hood 24,85 0,006
Variáveis não incluídas Correlação parcial Significância
Dens. de pop. favelada 0,197 0,977
Dens. demográfica 0,132 0,994
Taxa de analfabetismo 0,166 0,396
Índice de pobreza 0,147 0,142
Renda média -0,119 0,200
Coeficiente de mortalidade infantil
Variáveis incluídas Coeficiente Significância
Constante 25,45 0,000
Renda média -0,69 0,024
Variáveis não incluídas Correlação parcial Significância
Índice de Robin-Hood 0,064 0,200
Dens. de pop. favelada 0,222 0,976
Dens. demográfica 0,172 0,989
Taxa de analfabetismo 0,735 0,688

Índice de pobreza 0,840 0,331 de comunidades carentes têm de se haver com as conseqüências sociais de morar em um ambiente onde a maioria dos seus vizinhos são igualmente pobres, padecem de males semelhantes e têm as mesmas demandas por serviços de natureza diversa, o que gera efeitos ampliados sobre a comunidade enquanto conjunto de redes de interação social (Wallace, 1993).

Para o Município do Rio de Janeiro, constatou- se, através de análise multivariada para a taxa de homicídios, um efeito significativo do indicador "densidade de população residente em favelas" sobre o excesso de homicídios. Este achado indica a influência do ambiente (da favela neste caso) em que os jovens se socializam sobre a sua exposição à violência e sua eventual inserção nos circuitos de criminalidade.

Reconhecidamente, o crescimento dos homicídios nas favelas do Rio de Janeiro está relacionado ao aumento da criminalidade secundária à expansão do narcotráfico. Sob um prisma complementar, o aumento das mortes por violência pode ser examinado como um reflexo da vulnerabilidade dos jovens carentes ao engajamento na atividade criminal. Em decorrência da falta de integração social, da hostilidade crescente em relação aos mais ricos (e a discriminação em sentido oposto, correspondente) e da incapacidade de inserção no mercado de trabalho, os adolescentes e adultos jovens são facilmente seduzidos pelas ofertas de dinheiro fácil e posições de liderança trazidas pelo crime organizado (Minayo, 1994). Acabam por se envolver em disputas pelo controle dos pontos de tráfico, em assaltos e seqüestros, e, na sua maioria, morrem muito jovens (Zaluar et al., 1994).

A mortalidade precoce entre os jovens carentes já produz seqüelas relevantes nas tábuas de vida do Município do Rio de Janeiro. A magnitude do problema é melhor dimensionada

quando se constata que em certas áreas da cidade a esperança de vida ao nascer entre os indivíduos do sexo masculino é de 8 a 10 anos menor do que a estimada para o Brasil como um todo.

As relações aqui estabelecidas entre as condições de saúde e as divisões residenciais do município da capital constituem um claro exemplo da interação entre os processos sociais que se desenvolvem na cidade e a forma pela qual o espaço se estrutura (Abreu, 1988).

A situação de penúria nas comunidades faveladas caracterizada no presente estudo reflete o efeito da privação de muitas famílias de um mínimo de poder aquisitivo, evidenciando claramente que não resta a estas famílias outra opção que a de residir nestas localidades despro26 SZWARCWALD, C. L. et al. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 15(1):15-28, jan-mar, 1999

Tabela 5

Indicadores selecionados segundo tipo de setor (favelado ou não) por região administrativa do Município do Rio de Janeiro, 1991.RA Aglomeração domiciliar Taxa de analfabetismo Índice de pobreza Percentual (%) de domicílios com abastecimento d’água da rede geral

Não-favelado Favelado Não-favelado Favelado Não-favelado Favelado Não-favelado Favelado

I -Portuária 3,11 3,89 7,24 23,21 20,24 31,33 83,19 91,93

II - Centro 2,36 – 4,12 – 12,58 – 85,30 –

III - Rio Comprido 2,79 3,94 5,16 16,52 14,96 46,50 75,74 90,27

IV - Botafogo 2,70 3,81 1,59 22,94 3,90 35,53 95,22 93,38

V - Copacabana 2,53 3,71 1,69 29,93 2,33 10,50 98,18 87,25

VI - Lagoa 2,86 3,65 2,03 24,57 2,80 34,07 95,60 87,48

VII - São Cristóvão 3,06 3,84 6,04 16,46 16,63 39,69 84,63 90,21

VIII - Tijuca 2,97 3,94 1,76 18,76 4,06 21,05 92,95 55,68

IX - Vila Isabel 3,09 3,92 2,02 23,76 5,65 32,13 96,75 66,52

X - Ramos 3,47 3,76 6,63 22,80 16,79 33,63 96,87 89,45

XI - Penha 3,47 3,96 5,80 20,37 18,12 35,51 97,24 84,54

XII - Inhaúma 3,44 3,86 5,19 19,58 15,26 34,80 98,16 92,42

XIII - Méier 3,25 4,04 3,00 18,90 11,21 41,26 95,71 69,11

XIV - Irajá 3,50 4,13 3,98 14,92 13,81 27,90 98,50 83,09

XV - Madureira 3,48 3,99 5,90 18,53 17,45 44,13 97,43 70,75

XVI - Jacarepaguá 3,48 3,81 5,71 22,02 13,48 35,19 91,96 56,22

XVII - Bangu 3,73 3,96 7,86 17,02 20,10 36,95 95,92 85,00

XVIII - Campo Grande 3,85 3,90 9,47 18,11 22,46 43,17 91,21 73,85

XIX - Santa Cruz 3,95 4,08 10,43 21,33 26,43 37,28 93,03 85,18

XX - I. do Governador 3,51 3,99 3,28 19,10 7,29 29,78 95,97 87,49

XXI - I. Paquetá 2,97 – 9,70 – 21,04 – 79,76 –

XXII - Anchieta 3,72 3,95 6,38 19,87 19,96 34,90 97,11 89,94

XXIII - Santa Tereza 2,83 3,93 5,42 16,26 12,83 8,14 92,18 94,45

XXIV - Barra da Tijuca 3,19 3,98 4,64 23,07 4,23 26,21 83,21 78,45

XXV - Rio de Janeiro 3,34 3,90 5,14 20,30 13,14 32,15 94,52 82,69 vidas de toda infra-estrutura. O engajamento do jovem carente na atividade criminal vinculada ao tráfico de drogas pode ser encarado da mesma forma, não como uma opção de vida, mas como uma estratégia de sobrevivência. Entretanto, conforme apontado por Souza (1996), a mídia se concentra em focalizar as ações dos traficantes de favela, desviando a atenção da opinião pública das operações de importação, exportação e lavagem de dinheiro pelo mercado formal dos grandes traficantes. São, porém, os traficantes de favela que se expõem à violência armada, morrem precocemente ou são presos, enquanto os grandes traficantes permanecem incólumes.

O domínio das favelas pelo crime organizado, que cresceu no vácuo das políticas públicas, trouxe, por seu turno, dificuldades cada vez maiores às ações governamentais, seja na melhoria da infra-estrutura urbana, seja na integração social das comunidades à sociedade como um todo, provocando, cada vez mais, a fragmentação sócio-espacial da cidade (Souza, 1996).

Os achados deste trabalho apontam para a necessidade urgente de enfrentar os desafios e implementar medidas e políticas compensatórias para amenizar os efeitos danosos da desigualdade social. É preciso um esforço coletivo para modificar esta situação desastrosa que está sendo experimentada por grande parcela de jovens carentes e afetando gravemente as suas próprias chances de sobrevivência.

Não nos move aqui o propósito de oferecer respostas fáceis a problemas difíceis, mas de subsidiar um processo de estudos e reflexões sobre a ecologia da desigualdade, do qual possam emergir soluções que sejam a um tempo eticamente desejáveis e efetivas.

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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 15(1):15-28, jan-mar, 1999

Agradecimentos

Agradecemos ao Dr. Cláudio Noronha, gerente da Gerência de Informação Epidemiológica da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, por ter nos cedido os dados necessários à realização desta pesquisa. Este trabalho teve os seguintes apoios: CNPq (n.350025/97-5); Papes/Fiocruz (n.0250.250.369); Medical Research Council, Canada.

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