Jornal do
Brasil, Cidade, domingo, 11 de junho de 2000
Projeto recebe
críticas do Banco Mundial por
não atender à população carente da cidade
JOÃO CARLOS LEAL
Foto de Marcia
Moreira
A aprovação ao
programa Favela-Bairro deixou de ser unânime. O mais
importante projeto social da Prefeitura do Rio, que
conta com financiamento e monitoramento do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) e vinha
recebendo elogios dentro e fora do país, mereceu um
puxão de orelhas do Banco Mundial (BIRD). Segundo um
relatório da instituição, concluído em meados do ano
passado e ainda inédito no Brasil, o Favela-Bairro
apresentaria uma grave distorção: ele simplesmente
não atende à população mais pobre do Rio.
O relatório, ao
qual o JORNAL DO BRASIL teve acesso com
exclusividade, reconhece que o valor urbanístico do
programa. Mas condena o fato do Favela-Bairro não
"estar indo tão bem, quando avaliado do ponto de
vista da amenização da pobreza". Conclusão da qual o
prefeito Luiz Paulo Conde discorda. Seu gabinete, no
Palácio da Cidade, exibe uma carta, emoldurada, de
Enrique Iglesias, presidente do BID, que trata o
programa como "um projeto estrela do banco". Para o
prefeito, "não há projeto social melhor no mundo" e
é a ele que, acredita, o Rio deve a redução dos seus
índices de pobreza.
O relatório do
BIRD, porém, acredita que o Favela-Bairro teve uma
motivação mais estética do que social. No entender
dos técnicos do banco, o projeto "pode ter vindo de
um programa de embelezamento e melhoria urbana, o
Rio Cidade, que teve como alvo os bairros mais
ricos". Para a instituição, foi o medo de ser
"criticada por só melhorar as áreas freqüentadas
pela elite", que fez a Prefeitura estender o esforço
de melhoria urbana às favelas vizinhas. O que teria
sido um erro: o relatório afirma que menos de um
terço da população mais carente mora em áreas
faveladas, no Rio. O Favela-Bairro, por conta disso,
teria atingido, até agora, "menos de 10% dos
pobres".
Produzido ao
longo do ano de 1997, com base em dados do IBGE, da
Prefeitura e pareceres de técnicos brasileiros da
Fundação Getúlio Vargas (FVG) e de outras
instituições, o relatório do Banco Mundial é
assinado por Indermit Gill, economista-líder da
Equipe de Desenvolvimento Humano da Região da
América Latina e Caribe. No entender do analista,
que confirmou ao JORNAL DO BRASIL, na sexta-feira,
as conclusões do relatório, o Favela-Bairro tem
méritos do ponto de vista urbano, mas existiriam
outras políticas "bem mais eficientes para combater
a miséria"
O relatório
ainda deixa claro que, ao optar por uma comunidade
em detrimento de outra, a prefeitura teria, na
verdade, sido tentada pela relação custo-benefício
da obra. De acordo com o Bird a escolha foi feita
"de modo que a urbanização completa pudesse ser
conseguida a custos que não excedessem R$ 4 mil por
domicílio". Mas prosseguir nessa linha, alerta o
relatório, seria arriscado por dois motivos: "em
primeiro lugar, dois terços dos pobres não vivem em
favelas; e, em segundo, seria muito caro implementar
projeto semelhante nas favelas mais pobres e menos
urbanizadas".
Um pesquisador
brasileiro que participou da produção do estudo do
Banco Mundial, afirmou que essa opção acabou por
criar um êxodo de moradores de uma favela não
reurbanizada para outra, beneficiada pelo
Favela-Bairro. O que foi comprovado pelo JORNAL DO
BRASIL numa visita à favela Parque Royal e à vizinha
Vila Joaniza, ambas na Ilha do Governador. A
primeira, beneficiada pelo Favela-Bairro, teve a sua
população aumentada de 4.000 para 7.200 pessoas.
Muitas delas vindas, segundo a associação de
moradores local, de Vila Joaniza.
Tamanho faz
diferença
Alheias ao
debate sobre se o Favela-Bairro é ou não uma
eficiente forma de combater a pobreza, as
comunidades disputam um lugar no topo da lista dos
futuros alvos do programa. Guerra que, segundo o
Bird, não tem favorecido quem mais precisa. Levam
vantagem as favelas de médio porte, com alguma
infra-estrutura, enquanto as maiores e mais carentes
ficam de lado. Um técnico do BID, que rebateu a
crítica, garantiu que existem várias regras para
classificar as favelas. Oficialmente, contudo, o
Banco não quis se manifestar sobre o conteúdo do
relatório.
Mas basta
visitar uma das primeiras favelas beneficiadas pelo
projeto, o Parque Royal, e a vizinha e abandonada
Vila Joaniza, ambas na Ilha do Governador, para
entender o que o Bird quer dizer. A primeira favela
tem ciclovia, creche, centros comunitários - que
oferecem cursos diversos -, praça e ruas melhor
definidas e abertas ao trânsito de caminhões de lixo
e ambulâncias. E isso, estando relativamente próxima
do bairro da Portuguesa. Vila Joaniza, bem mais
isolada e com uma população três vezes maior,
continua, porém, como estava.
"Eles começaram
pelas pequenas para poder mostrar serviço rápido",
critica João Herculano da Silva, que presidiu a
Associação de Moradores de Vila Joaniza durante os
últimos 13 anos. Para o motorista aposentado, Mário
Gomes, 74 anos, a razão é um pouco diferente. "O
parque fica perto da estrada e dá para os bacanas
verem a obra. Nós estamos distante de tudo, por isso
nem asfalto eles jogam. É só borra, mesmo", reclama.
No Parque Royal,
a opinião é outra. No lugar de insalubres palafitas
- visitadas por lacraias e ratos - há agora uma bela
ciclovia. Agora, as ruas têm nome, as casas têm
relógio de luz e os ex-favelados, endereço certo.
"Sabe como era chamado isso aqui? Maruim. A gente
tinha vergonha de morar num lugar com nome de
mosquito", lembrou Cristhiano Félix Mendes, 26 anos.
Transformada em Parque, a favela aumentou de
população e desenvolveu um comércio próprio. Os
imóveis acompanharam o progresso e já dobraram de
preço.
Críticas do
BIRD
Do modo como
está atualmente implementado, refletindo o seu
enfoque de melhoramento urbano, o programa
Favela-Bairro, no momento, se direciona para as
favelas em melhores condições. Isto reduz ainda mais
a sua eficiência em termos de direcionamento, ou
seja, a fatia de benefícios que vai para os mais
pobres do Rio. Com esse programa, o município parece
ter escolhido ajudá-los ao invés de ajudar as
pessoas mais pobres na cidade, fora dessas favelas
relativamente melhores de vida, que talvez sejam
mais difíceis de alcançar, ou que tenta ajudar
através de outras intervenções.
A motivação do
Favela-Bairro parece ter vindo de um programa de
embelezamento e melhoria urbana, Rio Cidade.
Enquanto o
Favela-Bairro obviamente teve como alvo áreas mais
pobres que o Rio Cidade, suas raízes vêm do
melhoramento urbano, não da diminuição da pobreza.
Há mais de duas
vezes o número de pobres fora das favelas que dentro
delas
Um em cada cinco
domicílios favelados é, na verdade, mais rico que o
domicílio médio da cidade.
Herança do
histórico de intervenções
O Favela-Bairro
tem uma longa história. O programa nasceu do
amadurecimento de uma série de intervenções do poder
público nas favelas do Rio iniciada, em 1968, com a
Companhia de Desenvolvimento Comunitário (Codesco),
que urbanizou duas delas. A Codesco foi desativada
pouco depois e a política de melhoramentos
substituída pela de remoções. Uma prática que não
deu certo, mas durou muito. Só em 1983, quando o
governo estadual criou o Programa de Favelas da
Cedae, voltaram a ser objetos de investimentos
públicos.
O Programa de
Favelas da Cedae era, contudo, restrito. Se dedicava
a levar água e, menos ativamente, esgoto. Mas um
desdobramento social não demorou a surgir, um ano
depois, em 1984, quando a prefeitura cria o Mutirão
Remunerado. O esgotamento sanitário passou, a partir
daí, a contar com uso de mão-de-obra local,
desempregada, ou subempregada. Em 86, a prefeitura
amplia programa, incluindo obras de melhoramento
urbano e utilizando o mutirão para a pavimentação de
becos e vielas e a construção de escadarias.
Dois anos
depois, foi a vez de uma desgraça, as fortes chuvas
de 1988, tornarem urgentes, e não apenas justos, os
investimentos nas favelas. Em 1989 nascia o Projeto
de Urbanização Simplificada. O reflorestamento e as
obras de contenção de encostas acabaram abrindo
caminho para a construção de creches - 48 foram
construídas, entre 91 e 92 - e projetos de educação
sanitária. Iniciativa que deu tão certo que acabou
recebendo a primeira injeção de dinheiro de fora do
estado: o mutirão recebe recursos do governo federal
e, ao final do programa, mais de 100 favelas foram
beneficiadas.
A interferência
política, curiosamente, também ajudou quando parecia
atrapalhar. De governo para governo, as prioridades
mudavam e as favelas a serem beneficiadas pelo
mutirão também. De um lado, nada era levado até o
fim. De outro, ajudou os técnicos a desenvolverem um
panorama geral da situação das favelas no município
que acabou servindo, mais tarde, para formar a base
do Favela-Bairro.
Briga de pais
Conde e César
proclamam paternidade
Filho feio, diz
a sabedoria popular, não tem pai. Mas aos bonitos
sobram candidatos. O programa Favela-Bairro é um bom
exemplo. Nem bem começou a corrida eleitoral e sua
paternidade já é disputada em horário nobre de
televisão, durante as propagandas dos partidos
políticos. O prefeito Luiz Paulo Conde, não
pestaneja no seu espaço e garante: é o pai. Já o
ex-prefeito César Maia dá um sorrisinho, quando
perguntado por uma senhora sobre a autoria do
projeto, e prefere um discreto "o seu coração é que
sabe".
E a briga
promete esquentar. Esta semana, com a exoneração da
coordenadora do Favela-Bairro, Maria Lúcia Petersen,
na quinta-feira passada, o programa passou a ter
também uma candidata à mãe. Na sexta-feira, Maria
Lúcia anunciou a disposição de lançar a sua
pré-candidatura à Câmara Municipal, pelo PTB de
César Maia, e se despediu dos colegas, por e-mail,
num tom de até logo.
Por trás da
disputa estão os votos que o Favela-Bairro pode
render. Até agora, o programa beneficiou mais de 50
favelas e tem financiamento garantido para atingir
60% das comunidades faveladas da cidade, ou cerca de
800 mil pessoas. Alguns estudos garantem que nas
favelas estão 25% dos eleitores do Rio.
Criadores
rebatem as críticas
As críticas
contidas no relatório produzido pelo Banco Mundial
sobre o Favela-Bairro foram rechaçadas por
integrantes do governo e técnicos que participaram
do projeto. E de maneira nada acadêmica. "Isso é
ciúmes que o BIRD tem do BID", criticou a
ex-secretária municipal de Desenvolvimento Social,
Wanda Engel, atual secretária de Direitos Humanos do
governo federal. "Admira-me pagarem por um trabalho
desses. Aliás, o BIRD que fique à vontade para nos
oferecer recursos para combater a miséria", reagiu,
irritado, o secretário municipal de Habitação,
Sérgio Magalhães.
A fuzilaria não
parou por aí. "Essa avaliação não passa de um monte
de bobagens", detonou Maria Lúcia Petersen, até
terça-feira passada, quando entrevistada pelo JORNAL
DO BRASIL, coordenadora do Favela-Bairro. "Os
técnicos do BIRD erraram de foco", avaliou, mais
gentil, a professora Maria Alice Resende, do
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro (Iuperj), que participou de uma avaliação do
projeto entre 1996 e 1997.
Mas a condenação
ao plano também se sustenta sobre argumentos. Para
Wanda Engel, por exemplo, o BIRD não soube
reconhecer que "a pobreza tem um ciclo produtivo e
reprodutivo". Traduzindo: por reinserir a favela na
cidade e fornecer serviços sociais o programa
retiraria a comunidade da miséria e impediria que
ela se reproduzisse. No que Sérgio Magalhães avança:
"O Favela-Bairro é o mais abrangente projeto de
combate a miséria do país".
Nem todos os que
apóiam concordam com isso. A professora Maria Alice
acredita que o programa não combate a pobreza, mas a
desigualdade. "O Banco está analisando o projeto
fora do seu contexto", alertou. Para ela, o projeto
se reporta a um tempo em que as favelas pareciam
enclaves independentes. "O projeto partiu de uma
visão urbanística, de afirmação da cidade como um
lugar de encontro e de baixa estima do carioca pelo
Rio", teorizou. E lembrou uma frase, segundo ela do
próprio Sérgio Magalhães, que afirmou não ser o
objetivo do programa "dar casa, mas dar cidade a
quem tem casa".
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