Reportagens 2001

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" Quando morei seis meses numa favela, em 1969, nunca tranquei a porta do barraco. Deixava minha bolsa lá tranqüilamente. Não havia índices altos de violência." Janice Perlman (antropóloga americana)

Reportagens ( 4ª parte)

Reportagens 2001

Tópico 1 Casa nova e popular
Tópico 2  A invasão silenciosa das favelas
Tópico 3  Cercas para frear as favelas
Tópico 4  Expansão desordenada
Tópico 5   Legalização para as favelas 
Tópico 6  Mais verbas para favelas
Tópico 7  Pobres fogem da violência do Rio
Tópico 8  A explosão da periferia  
Tópico 9  Secretários Municipais criticam Favela-Bairro 
Tópico 10 Estado põe famílias em contêineres
Tópico 11 O que vem depois da Barra  
Tópico 12 Retrato dos Municípios Brasileiros
Tópico 13 Arquitetura dos excluídos
Tópico 14 Moradores têm saudades das favelas
Tópico 15 Cidade incha pelas favelas
Tópico 16 Rio ilegal tem mais de 1 milhão de habitantes 
Tópico 17 Favela já nasce com nome e associação de moradores
Tópico 18 Rio ganha 15.717 casas populares
Tópico 19 Rachaduras abalam estruturas de casas
Tópico 20  Abandono e preconceito são estigma das favelas
Tópico 21  Linha vermelha cede e pára a cidade
Tópico 22  Cidades criam barreiras contra a migração
Tópico 23  CPI apura desvios no projeto Favela-Bairro
Tópico 24  Puxadinho muda de cores na Rocinha
Tópico 25 Moradores de favelas podem requerer título
Tópico 26  Casa própria a R$ 5.500
Tópico 27  Sonho da casa própria é caro e tem alto risco  
Tópico 28  Paraíso e inferno são vizinhos na Barra
Tópico 29  Divergências atrasam Favela-Bairro 
Tópico 30 Brazilians flock to shantytowns
Tópico 31 Líderes das favelas pregam luta racial
Tópico 32 Maioria da população vive em residência própria
Tópico 33 Medo da violência cresce nas favelas

Voltar ao Topo       TÓPICO 1

 

Casa nova e popular

 

Jornal O globo, Caderno Morar Bem, domingo, 14 de janeiro de 2001


Luciana Casemiro

 

Quando a questão é a renda, quem recebe até 12 salários-mínimos sai ganhando. Se o foco é o tipo de imóvel, quem pretende comprar uma unidade nova, independentemente do valor, leva vantagem. Ou seja, a prioridade da Caixa Econômica Federal (CEF) é para a população de baixa renda, e, de preferência, que queira adquirir imóvel novo. No Rio, por exemplo, a meta para este ano é destinar 60% dos investimentos à produção de novas unidades.

Nesse sentido, a Caixa poderá restringir este ano o financiamento de imóveis usados para a baixa renda - a exemplo do que fez ano passado com a classe média, quando limitou ao Poupanção o crédito para a compra de imóvel usado por quem ganha mais de 12 mínimos.

Isso acontecerá se o orçamento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) - usado para financiar a baixa renda - ficar comprometido, por conta do pagamento, pelo governo, das perdas que os trabalhadores tiveram com os planos Verão e Collor I. Mas, de início, a CEF espera que o volume de recursos do FGTS para 2001 seja igual ao de 2000.

- Ao investir em produção, reduzimos o déficit habitacional e contribuímos para diminuir o preço dos imóveis - diz Aser Cortines, diretor de Desenvolvimento Urbano da CEF, ao justificar por que a produção de novas unidades é prioridade.

Mas se a baixa renda também é prioridade, os construtores já estão investindo nesse filão. Antes mesmo da definição do orçamento da CEF, que só deve sair em março. Construtoras que tradicionalmente trabalhavam com empreendimentos para a classe média e média alta, como a Atlântica e a Gafisa, prometem este ano investir pesadamente na faixa de imóveis até R$ 62 mil. A primeira tem a previsão de lançar 5.500 unidades, de até R$ 45 mil. A segunda planeja fazer o lançamento de duas mil unidades, o que representa o dobro dos imóveis populares que pôs no mercado em 2000, no valor de R$ 55 mil.

- Em 99, criamos uma gerência para cuidar apenas de habitação para baixa renda. Fomos ao Chile e ao México fazer pesquisas, fechamos parcerias com fornecedores e investimos em métodos construtivos para reduzir custos. Tudo isso nos permite entrar este ano com força total nesse segmento - diz Antônio Guedes, gerente de Habitação da Gafisa.


Verifique os programas

CARTA DE CRÉDITO ASSOCIATIVA: Destinada à produção de imóveis novos, que custem até R$ 62 mil, é direcionada a quem ganha até 20 salários-mínimos (R$ 3.020). O investimento no programa vem crescendo paulatinamente: de R$ 430 milhões em 97 a R$ 972 milhões, em 2000.

INDIVIDUAL FGTS: A Carta de Crédito Individual se destina à compra de imóveis usados, até R$ 62 mil, por quem ganha até 12 mínimos (R$ 1.812).

PAR: O Programa de Arrendamento Residencial é usado em construção e reforma de imóvel residencial, para quem ganha até seis mínimos (R$ 906). Os recursos são contratados por construtores e órgãos públicos na CEF. Em 2000, a CEF liberou R$ 743,3 milhões para 38.444 unidades. Para 2001, há projetos em análise no valor de R$ 1,7 bilhão, e a verba disponível é de R$ 2,2 bilhões.


 

Para Ademi, investimento em baixa renda será forte durante dez anos

Os empreendimentos voltados para a baixa renda serão o alvo do mercado imobiliário pelos próximos dez anos. Esta é avaliação de Selmo Nissenbaum, vice-presidente da Associação dos Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi), que acredita num aumento de até 80% dos investimentos no segmento este ano:

- Em época de inflação alta e poucos recursos para financiamentos, as construtoras sequer pensavam nesse mercado, por conta da baixa margem de lucro. Hoje, elas estão preparadas para oferecer qualidade com baixo custo.

Edgar Meira Filho, gerente financeiro da construtora Brunet, investirá dez vezes mais no segmento este ano: serão lançadas 1.120 unidades, entre R$ 28 mil e R$ 38 mil, contra 120 do ano passado.

Diversificar investimentos, aumentando o público-alvo da empresa, é uma das explicações do presidente da João Fortes Engenharia, Cláudio Fortes, para o lançamento de 600 unidades, de até R$ 55 mil, todas em Jacarepaguá:

- Outra vantagem de investir neste mercado, na comparação com a classe média, é o fato de se alcançar mais rapidamente o percentual mínimo de vendas exigido pela CEF para liberação do financiamento.

Empresa tradicional em empreendimentos para baixa renda, a construtora Ecia também aumentará em 50% o número de lançamentos, chegando a 1.800 unidades.

Mas não é só o crescimento dos números desse mercado que chama a atenção. O perfil dos empreendimentos também está sofrendo uma transformação. Os novos lançamentos estão distantes do padrão dos conjuntos habitacionais do passado e se aproximam cada vez mais da concepção de condomínio adotada pela classe média. Para se ter uma idéia, todos os empreendimentos projetados pela Atlântica terão área de lazer.

- Os empreendimentos serão inteligentes, todos estarão ligados à internet - diz Oswaldo Araújo, diretor da Atlântica.

Segundo o diretor de Desenvolvimento Urbano da CEF, Aser Cortines, a instituição tem sido cada vez mais exigente quanto à qualidade:

- Hoje, no Rio, em São Paulo e no Espírito Santo, por exemplo, só obtém financiamento quem passa pelo processo de qualidade.

Além do movimento de construtoras interessadas em financiamentos para a baixa renda, o superintendente institucional da Caixa no Rio, José Domingos Vargas, aposta na parceria com a Prefeitura para tornar o setor mais atrativo:

- Tivemos uma reunião com o prefeito César Maia, na última semana de dezembro, em que ele garantiu a isenção do ISS para esta faixa de empreendimentos e prometeu também agilizar a legalização de terrenos e loteamentos.

Segundo levantamento realizado pela Ernest & Young, o investimento em empreendimentos de baixa renda é um bom negócio também para fundos de pensão e fundos imobiliários. A taxa de retorno apurada pela empresa é de 28% ao ano, já descontada a inflação.

- O risco nessa faixa não é muito alto, já que o tempo médio de produção dos empreendimentos é de dez meses. Em outros segmentos esse período ultrapassa os 20 meses - diz Antônio Carlos Robazzi, diretor da Ernest & Young.


 

CEF suspende crédito para imóvel foreiro

Mal começou a ser usada como garantia nos financiamentos imobiliários, a alienação fiduciária já está dando dor de cabeça a um grupo de mutuários: os que pretendem adquirir, via financiamento, um imóvel foreiro (localizado em área da União, Igreja etc). É que existe uma discussão jurídica sobre o fato de esse tipo de imóvel poder ou não ser alienado.

Isso porque o comprador de um imóvel foreiro não detém a propriedade, mas sim o domínio útil da unidade - e a alienação pressupõe a transferência da propriedade ao credor, até que a dívida esteja paga.

Por conta disso, a Caixa Econômica Federal (CEF) suspendeu, sem aviso prévio, os financiamentos para esse tipo de imóvel, pegando de surpresa alguns pretensos mutuários. Caso de Maria da Graça Souto Queiroz. No início de 1998, ela entrara no programa Poupanção e já tinha reunido todos os documentos para pedir o financiamento, quando lhe disseram que ela não poderia concretizar a operação porque o imóvel escolhido é foreiro.

O advogado de Maria da Graça, Álvaro José Manoel Neto Ferreira, entrou com um mandado de segurança contra a CEF e está aguardando a decisão do juiz:

- Meus clientes pouparam um ano e já estavam há um ano e meio procurando imóvel. A CEF não pode mudar as regras do jogo na última hora e prejudicar seus clientes. Essa medida prejudica o mercado como um todo.

Mas a futura mutuária poderá não precisar esperar a decisão judicial para dar entrada no processo de financiamento. A CEF está analisando a substituição, nos casos dos imóveis foreiros, da garantia de alienação fiduciária pela hipoteca comum.

Mas isso só quando o comprador não puder remir o foro - ou seja, pagar a taxa que estabelece a propriedade plena (o que não é possível em caso de imóveis foreiros da União). A proposta deverá ser analisada na reunião de diretoria da instituição na semana que vem e deve começar a valer imediatamente.

Segundo Carlos Eduardo Fleury, consultor jurídico da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip), o ideal seria que a lei 9.514/97 - que criou o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) e instituiu a alienação fiduciária como garantia dos financiamentos - esclarecesse se ela poderia ser usada em imóveis desse tipo:

- Os bancos temem que haja uma rejeição da garantia na hora da escritura no Registro Geral de Imóveis. Mas, como a lei só pode ser mudada por medida provisória ou via projeto de lei, as instituições privadas estão usando a hipoteca como garantia no caso dos imóveis foreiros.

Fleury ressalta ainda que a mudança da garantia da alienação fiduciária para a hipoteca não traz nenhum prejuízo para a negociação dos recebíveis (títulos que são vendidos no mercado secundário e servem de lastro para o financiamento via SFI).

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A invasão silenciosa das favelas

Jornal O Globo, domingo, 28 de janeiro de 2001


Fernanda Pontes e Selma Schmidt

Os números vêm confirmar o que é já percebido a olho nu. A cada mês, pelo menos uma nova favela com mais de 50 casas surgiu no município do Rio nos últimos dez anos. O censo de 2000, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela que a cidade ganhou 119 favelas a partir de 1991. O IBGE listou 513 comunidades faveladas no ano passado na capital - um crescimento de 30,2% em relação ao censo anterior, feito em 1991, e de 12,3% levando-se em consideração a recontagem de 1996. No ranking nacional, o Rio ficou em segundo lugar, só perdendo para a cidade de São Paulo em quantidade de áreas carentes. Embora menor do que na capital, o aumento percentual do número de favelas no Estado do Rio alcançou 22,7% - passaram de 661, em 1991, para 811, em 2000.

- Esses percentuais são altos, se pensarmos que o espaço urbano não cresceu - diz a professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Rosângela de Azevedo Gomes, que faz pesquisas com favelas.

Mas o ritmo de crescimento dessas comunidades é ainda maior. Rosângela lembra que o censo deixa de contar favelas com menos de 51 casas, além de conjuntos habitacionais e loteamentos irregulares favelizados. E mais: o IBGE ainda não totalizou os números referentes a domicílios e aos habitantes de favelas. Com isso, a expansão das áreas carentes não foi contabilizada.

Segundo o Censo 2000, Jacarepaguá é a região da cidade com maior número de favelas: 68, distribuídas por sub-bairros como Anil e Taquara. Depois vêm Bangu (21 favelas) e Realengo (14). Itanhangá, Recreio, Anchieta e Complexo do Alemão concentram 11 comunidades cada um.

É em Jacarepaguá que se localiza Rio das Pedras, favela de pessoas de origem nordestina que se expandiu na última década. Na recontagem de 1996, Rio das Pedras tinha 7.439 domicílios e 24.581 habitantes. Josinaldo Cruz, o Nadinho, presidente da associação de moradores, diz que hoje vivem ali 65 mil pessoas.

- De 96 para cá surgiram mais duas comunidades dentro de Rio das Pedras, Areinha e Pinheiro. Hoje, Rio das Pedras é dividida em seis partes - conta Nadinho.

Ele garante, no entanto, que com o programa Favela-Bairro, houve um freio na expansão territorial de Rio das Pedras nos últimos dois anos. O crescimento hoje, diz Nadinho, está limitado ao miolo da favela e ao gabarito de três andares.

Vila se torna favela no Itanhangá

No Itanhangá, onde o número de favelas já chega a 11, comunidades como Tijuquinha, Muzema e Sítio do Pai João dividem espaço com condomínios luxuosos. O cearense Pedro Araújo Gregório chegou ao bairro há 20 anos à procura de emprego. Montou sua casa perto de outras quatro em uma pequena vila ainda sem nome. Conhecida como Pedra do Itanhangá, a favela - que não foi classificada como tal no censo de 91 nem na recontagem de 96 - tem hoje cerca de cem domicílios, segundo a associação de moradores.

Quantidade de favelas à parte, percentualmente foi em Padre Miguel onde nasceram mais favelas. Em 91, havia no bairro uma única comunidade com mais de 50 casas; hoje existem quatro. Um aumento de 300%.

Entre os fatores citados pela professora Rosângela de Azevedo Gomes para justificar o boom das favelas estão a proximidade do mercado de trabalho e o empobrecimento da classe média baixa. A migração de moradores de outras regiões mais pobres do Brasil ainda contribui para o crescimento das favelas, embora em grau menor que no passado. Sem falar na própria cultura de apropriação do espaço.

- As famílias se instalam em favelas e criam vínculo com o lugar - afirma a professora.


Saiba mais os sobre o assunto

Para ser considerada um aglomerado subnormal (favela) pelo IBGE, a comunidade precisa ter algumas características. Uma delas é ter no mínimo 51 casas. A maioria das unidades habitacionais da área também não pode possuir título de propriedade ou documentação recente (obtida após 1980). É necessário ainda que tenha pelo menos uma das seguintes características: urbanização fora dos padrões (vias de circulação estreitas e de alinhamento irregular, além de construções não regularizadas por órgãos públicos); e precariedade de serviços públicos (a maioria das casas não conta com redes oficiais de esgoto e de abastecimento de água e não é atendida por iluminação domiciliar).


Conheça os números

CRESCIMENTO: O Censo de 1991 contou 384 favelas no Município do Rio. Em 2000, o IBGE contou 513 favelas na cidade (aumento de 30,2%). No Estado do Rio, o número de áreas carentes subiu 661 para 811 (22,7% a mais).

BAIRROS: Padre Miguel foi o bairro da cidade com maior crescimento percentual de favelas (300%), de 1 para 4 em dez anos. Em Guadalupe o aumento foi de 150% (de 2 para 5 favelas), em Anchieta de 120% (de 5 para 11 comunidades carentes), em Vargem Pequena de 100% (de 2 para 4). Em Benfica, o crescimento foi de 75% (4 para 7) e em Paciência de 67% (3 para 5).

CONCENTRAÇÃO: De acordo com o Censo 2000, Jacarepaguá é a região que concentra o maior número de favelas (68), seguida de Bangu (21) e Realengo (14). Depois vêm Itanhangá, Anchieta, Recreio dos Bandeirantes e Complexo do Alemão, com 11 favelas cada um. Rio Comprido e Cordovil têm dez comunidades carentes cada.

BRASIL: No ranking nacional, a cidade de São Paulo ocupa o primeiro lugar em concentração de favelas (612), seguida de Rio (513) Fortaleza (157), Guarulhos (136), Curitiba (122), Campinas (117), Belo Horizonte (101), Osasco (101), Salvador (99) e Belém (93).

ALUGUEL: De acordo com dados da Secretaria municipal de Habitação, o aluguel de um quarto-e-sala no Jacarezinho varia de R$ 150 a R$ 170; no Vidigal e no Pavão-Pavãozinho, de R$ 250 a R$ 300; e no Complexo da Maré, de R$ 200 a R$ 250. Em favelas do Complexo do Alemão, nos morros do Salgueiro e do Andaraí e em favelas de Tomás Coelho e Cavalcante, o aluguel de um quarto-e-sala vai de R$ 150 a R$ 200. Em Santa Cruz, o aluguel varia de R$ 180 a R$ 220.


Crescimento da Rocinha surpreende: mais 675 casas em duas localidades
Fernanda Pontes e Selma Schmidt

O crescimento das favelas do Rio é tão dinâmico que, em apenas dois sub-bairros da Rocinha, apareceram 675 novas unidades residenciais em menos de um ano. Uma espécie de censo está sendo feito pela Light desde 1998 em comunidades carentes, com o objetivo de implantar o Programa de Normalização de Áreas Informais (Pronai). Em abril de 2000, a Light cadastrou na Rocinha 24.765 domicílios. Numa segunda contagem, iniciada no fim do ano, a surpresa: a quantidade de residências tinha aumentado: na Cachopa, passara de 2.106 para 2.596 e, na Paula Brito, de 483 para 668.

- No cadastramento, encontramos postes da Light servindo de pilar para casas - conta Márcia Reed, coordenadora do Pronai na Rocinha.

Cento e quarenta favelas e loteamentos irregulares do município do Rio foram recenseados pela Light. O cadastramento é feito basicamente por jovens das comunidades, contratados por ONGs, como a Rocinha 21. Além de contar as unidades, o programa detecta os "gatos" e redimendiona a rede a ser instalada, levando em conta o número real de clientes. Ensina ainda os moradores a economizar energia, para se beneficiar dos descontos dados àqueles que consomem até 140 kw.

- Através de jogos e folhetos, as famílias aprendem a usar a energia de forma racional, como não tomar banho quente no verão - diz Ana Cláudia Peres, coordenadora do Projeto Social e Educativo do Pronai.

O primeiro cadastramento feito pela Light na Rocinha mostrou que o número de domicílios na favela mais do que duplicou na última década. No bairro, havia 11.948 unidades em 1991, conforme censo do IBGE.

Um dos trechos de ocupação recente na Rocinha fica junto ao antigo Hotel Trampolim. Loteado, o terreno ganhou casas e lojas e o Trampolim foi subdivido em apartamentos em 1999. Nos fundos do prédio, um trecho de Mata Atlântica foi desmatado para a construção de casas, demolidas posteriormente.

- As casas em frente ao Trampolim e a subdivisão do hotel foram feitas sem licença. Vamos analisar caso a caso e verificar o que poderá permanecer - diz a nova administradora regional da Rocinha,Valquíria de Souza Dias.

A Cedae também está implantando um programa voltado para áreas carentes: o da tarifa social (de R$ 6 por mês), que chegou há duas semanas ao Pavão-Pavãozinho (Copacabana) e ao Cantagalo (Ipanema). Até o fim do ano, o diretor comercial da Cedae, Márcio Paes Leme, pretende levar o programa a 120 mil famílias, de favelas como Rocinha, Vidigal e Maré.

- Além da conta com tarifa reduzida, instalamos núcleos nas favelas, para facilitar o atendimentos aos usuários.


Quatro gerações num mesmo endereço no Vidigal

O aposentado Salvino Félix da Silva, de 78 anos, é um exemplo isolado de quem fez crescer a favela onde mora há mais 30 anos. Paraibano, ele já tinha a metade dos dez filhos quando se mudou para o Vidigal. Mas foi lá que nasceram seus netos e bisnetos. Para acomodar toda a família, a casa de Salvino se transformou num prédio, hoje com quatro andares.

- Aqui é um sossego. Para cada um que nasce, arrumamos um cantinho - diz Salvino, que ganha R$ 150 de aposentadoria.

Tamanha procura fez nascer um mercado imobiliário forte nas favelas, com preços de aluguel e compra de imóveis muitas vezes salgados. Os valores são determinados pela localização da casa dentro da comunidade e pela infra-estrutura existente. No Vidigal, para comprar uma casa de três quartos, é preciso desembolsar R$ 20 mil. Na Ilha do Governador, no Parque Royal, o projeto Favela-Bairro encareceu em até 40% o custo dos imóveis, de acordo com o diretor da associação de moradores Gilson Almeida de Oliveira.

- Uma quitinete é vendida por até R$ 7 mil, dependendo da localização. O aluguel varia de R$ 150 a R$ 200.

Na Rocinha, para alugar um bom quarto-e-sala na Estrada da Gávea é preciso pagar R$ 500. Por um preço menor (R$ 450), eram oferecidos apartamentos do mesmo tamanho nas ruas Aires Saldanha e Figueiredo Magalhães, em Copacabana, nos classificados publicados em jornais do último dia 25.

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Cercas para frear as favelas

Jornal O Globo, Caderno Rio, segunda-feira, 29 de janeiro de 2001


Selma Schmidt e Fernanda Pontes

A expansão das favelas tem sido a grande vilã do verde. Para frear o desmatamento, a prefeitura decidiu criar um programa para cercar as favelas do Rio. Com a delimitação, o município quer evitar a construção de novas casas e poupar as áreas de interesse ambiental. Batizado de "Preservando o Verde do Rio" pelo secretário municipal de Meio Ambiente, Eduardo Paes, o programa terá recursos específicos e começará este semestre pelo corredor ecológico que liga os maciços da Tijuca e da Pedra Branca, já muito favelizado. Em favelas da região, vivem hoje cerca de 40 mil pessoas. Conforme dados do Censo 2000, revelados ontem pelo GLOBO, uma favela nasceu a cada mês no Rio, na última década.

- Queremos salvar a ligação entre os dois maciços - diz Paes.

Mas delimitar tão-somente não basta para conter a expansão das favelas, segundo o prefeito Cesar Maia. Ele anuncia a implantação de uma nova política habitacional, que incluirá a compra pela prefeitura de casarões no Centro e na Zona Portuária para reassentar famílias carentes:

- Há casarões nessa região por R$ 15 mil, R$ 18 mil. Queremos levar a população carente para morar nessa região. Sempre se falou em ocupar o Centro e a Zona Portuária com moradias de classe média. Por que não com residências de pessoas mais pobres? Precisamos ter uma política habitacional com h maiúsculo.

A secretária de Habitação, Solange Amaral, diz que abrigar pessoas carentes fora das favelas pode sair mais barato para o poder público. Ela conta que a prefeitura chegou a pagar uma indenização de R$ 40 mil por uma casa no Jacarezinho, por onde passará uma rua do Favela-Bairro.

O prefeito se mostra preocupado com os primeiros dados relativos a favelas do Censo 2000, do IBGE. Ao fazer contas, Cesar conclui que o crescimento do número de favelas foi mais acelerado na segunda metade da década do que na primeira:

- Entre 91 (penúltimo censo) e 96 (recontagem de população), o aumento das favelas foi de 0,25%. Entre 96 e 2000 (último censo) chegou a 1,3% - contabiliza.


Prefeitura terá fiscais ambientais

O projeto piloto do programa de delimitação de favelas cercará comunidades que estão no corredor ecológico dos maciços da Tijuca e da Pedra Branca como Mato Alto, Cachambi, Caixa d‘Água, Valqueire, Catonho e Jordão. O corredor passa pelos bairros de Vila Valqueire, Campinho, Cascadura, Quintino, Água Santa e Jacarepaguá. Segundo Paes, o que foi construído permanecerá. Para garantir que os futuros limites serão respeitados, Paes pretende criar um grupo de fiscais ambientais.

Através de iniciativas isoladas, algumas favelas já ganharam limites físicos. A técnica mais utilizada é a dos trilhos de ferro que servem como estacas, interligados por cabos de aço. Uma cerca como essa foi instalada, em 1997, sobre Túnel Rebouças, no Rio Comprido. No ano anterior, parte da Favela Paula Ramos, foi desocupada, depois que técnicos da GeoRio constataram que a estrutura do Rebouças estava sendo afetada pelo peso de 251 casas. No espaço, foram fincadas placas informando sobre área de risco, várias delas pichadas.

Em Paquetá, também são trilhos e cabos de aço que delimitam as favelas Gari, Jurema Aires e Manoel Luis. Na Reserva de Marapendi foram usados mourões de eucalipto e, na Favela do Catrambi (Usina) foi construído um alambrado entre a comunidade e a Floresta da Tijuca.

Na Rocinha, uma cerca de 1,5 quilômetro foi construída no trecho do Laboriaux para evitar a sua expansão sobre a mata. Mas a nova administradora regional do bairro, Valquíria de Souza Dias, considera fundamental cercar ainda outros três quilômetros da Vila Verde e da Dionéia. Ela incluiu a delimitação dessas áreas entre as prioridades para a Rocinha que serão objeto de uma reunião que Valquíria terá amanhã com o subprefeito da Zona Sul, Cláudio Versiani.

- O perigo de invasões na Rocinha é muito grande. Vamos também conscientizar os moradores para que denunciem sempre que vejam alguém tentando construir em local proibido, mostrando que suas casas ficariam em risco - diz Valquíria.

Segundo o prefeito, além da utilização de casarões de Centro e Zona Portuária para abrigar população de baixa renda, a nova política habitacional da Prefeitura prevê ainda a distribuição de lotes urbanizados para a construção. Cesar, porém, deixa claro que é contrário a construção de grandes conjuntos habitacionais, como o polêmico Nova Sepetiba, feito pelo Governo do estado:

- Um conjunto desse porte requer que haja escola, unidade de saúde, dentre outros serviços nas proximidades. Senão acaba transformado em gueto de excluídos.

Para coibir a expansão das favelas, o prefeito considera ainda necessárias outras ações. Uma delas é de fazer valer a tarifa única, atualmente descaracterizada pela criação de meios de transportes alternativos, como os microônibus.

- Também é preciso restabelecer a autoridade para coibir as invasões - acrescenta o prefeito.

Para implementar o novo modelo de politica habitacional, uma das idéias de Solange Amaral é cadastrar imóveis disponíveis na cidade formal para serem adquiridos pela Prefeitura e oferecidos a famílias de baixa renda. Através de entendimentos com a Caixa Econômica Federal, a secretária pretende facilitar o financiamento desses imóveis.

- Desenvolver essa política é meu grande desafio - afirma Solange.

A secretária anuncia ainda alterações no Favela-Bairro II. Alguns projetos, idealizados em anos anteriores, serão adaptados a nova realidade das favelas, que se expandiram. O assunto será discutido esta semana em Brasília, numa reunião de Solange com representantes do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que financia o projeto.

 


Dez mil famílias vivem em áreas de risco nas favelas

Na luta por um local para morar, não são poucos aqueles que erguem suas casas em encostas muito íngremes e na beira de rios e estradas. Nas contas da secretária de Habitação, Solange Amaral, dez mil famílias vivem em áreas de risco dentro de favelas. Para evitar surpresas com as chuvas de verão, a Prefeitura elegeu como prioridade o reassentamento de 585 famílias que moram nas favelas do Borel, Andaraí, Floresta da Barra, Vidigal e Anil.

O processo de reassentamento começou pelo Morro do Borel (Tijuca), onde foram removidas 30 famílias. A Prefeitura iniciou a derrubada de 136 casas em áreas de risco no Andaraí. Ainda são considerados prioridade para reassentamento 21 famílias da Floresta da Barra, oito do Vidigal e 400 do Anil.

Também têm preferência para reassentamento 374 famílias que tiveram de deixar suas casas e moram de aluguel, pago pela Secretaria de Habitação em sete favelas: Mandela da Pedra (Manguinhos), Comunidade São Daniel (Manguinhos), Mafuá (Caju), Vila Pinheiros (Maré), União Del Castilho, Parque Everest (Inhaúma) e Barão de Guaratiba (Catete).

Além do risco de o barraco desabar, os moradores de áreas de risco têm de conviver com esgoto a céu aberto, mosquitos e lixo por toda a parte, como é o caso da Favela da Xuxa, no Jacaré. Na semana passada, a Defesa Civil interditou vinte barracos de madeira que ameaçam desabar sobre o canal que corta a favela.

- Não recebemos indenização e não temos para onde ir- afirma Maria Carvalho, que continua morando em um barraco comprometido.

O balconista Antônio Bandeira Oliveira construiu uma casa de alvenaria, há dez anos, próximo à área interditada. Desde que as margens do canal foram ocupadas, ele não consegue revender o imóvel de dois andares.

- Quem que vai querer comprar uma casa ao lado de uma área de risco? - pergunta Antônio, que pede R$ 7 mil pelo imóvel.


Providência: a primeira favela do Rio

A primeira aglomeração que recebeu o nome de favela surgiu no Rio no início do século 20. As famílias que moravam em cortiços no Centro foram expulsas pelas obras de urbanização. Sem ter onde morar, montaram barracos no Morro da Providência, chamado na época de Morro da Favela, em alusão a uma elevação existente em Canudos (Bahia). O nome favela estendeu-se a todos os núcleos semelhantes em morros, áreas desvalorizadas e na periferia das cidades.

O crescimento acelerado desses aglomerados ao longo dos anos levou alguns governantes a remover a população favelada para conjuntos habitacionais. Foi no Governo Negrão de Lima (1966/1977) que aconteceram mais remoções de favelas: quatro comunidades carentes, mais de 70 mil pessoas, transferidas para Cidade de Deus, Cidade Alta e Água Branca. Para a Cidade de Deus, foram levadas famílias de favelas como a Praia do Pinto (Leblon), Catacumba (Lagoa) e Macedo Sobrinho (Botafogo).

No Governo Carlos Lacerda (1963/ 1965), também foram removidas muitas favelas (27), sendo a do Esqueleto a maior delas, que tinha mais de três mil barracos. Nesse período, favelas como a do Pasmado, Bom Jesus, Maria Angu e Brás de Pina tiveram parte de seus moradores transferidos principalmente para as Vilas Kennedy e Aliança. Durante o Governo Faria Lima (1975/78), cerca de oito mil pessoas foram removidas das favelas do Inhaúma, do Morro Azul (Catete) e da Cidade Nova para que o metrô pudesse ser implantado.

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Expansão desordenada

Jornal O Globo, Barra, quinta-feira, 8 de fevereiro de 2001


Fábio Vasconcellos e Fernanda Pontes

 

A maior favela de Jacarepaguá continua batendo recordes de crescimento. Nos últimos dez anos, a área de ocupação de Rio das Pedras expandiu-se cerca de 73%. De acordo com o Instituto Pereira Passos (IPP), em 1990 a comunidade ocupava 331.430 mil metros quadrados. Em 1999, o número chegou a 575.069. A expansão se deu principalmente no sentido na Avenida Ayrton Senna, em toda a planície entre o Maciço da Tijuca e as lagoas da Baixada de Jacarepaguá. A associação de moradores estima que cerca de 65 mil pessoas residem hoje em Rio das Pedras, quase a população de São Pedro da Aldeia (66 mil).

O crescimento da favela despertou a atenção do Departamento de Sociologia e Política da PUC-RJ, que acaba de finalizar uma pesquisa inédita sobre o lugar.

O estudo constatou que 60% dos moradores vieram de estados nordestinos, como Paraíba e Ceará. Apenas 65% da população trabalham. A média salarial não passa de R$ 300 e o nível de escolaridade é baixo: 84% não concluíram o ensino fundamental.


Condições ainda são precárias

A história do paraibano José Elias Sobrinho, de 53 anos, é um exemplo dos números levantados pelos pesquisadores da PUC. Elias veio para o Rio há 20 anos, depois de conhecer em João Pessoa um amigo que lhe contara da vida numa favela carioca chamada Rio das Pedras.

Convencido e já cansado da vida no Nordeste, o paraibano mudou-se para a favela em 1980. Quatro anos depois, ele retornou à Paraíba e trouxe mais quatro parentes. Hoje, ele é um dos cerca de 23% dos moradores que sobrevivem trabalhando como comerciante.

- Foi a forma que encontrei para ganhar uns trocados e sobreviver - conta Elias.

Morar em Rio das Pedras ainda está longe de alcançar o mínimo da qualidade de vida. Somente as ruas principais têm asfalto e todas as vielas transversais ainda são de terra batida. O desejo de pelo menos 15% dos entrevistados é de que as ruas sejam totalmente pavimentadas.

As chuvas, principalmente as de verão, transformam alguns trechos em lamaçal.

Segundo o coordenador do estudo sobre Rio das Pedras, professor Antônio Carlos Alkmim, a favela está localizada num terreno pouco favorável à construção de casas.

- A área é próxima das lagoas, onde o terreno é pouco firme, o que prejudica as condições de moradia - explica Alkmim.

Os entrevistados apontaram o esgoto (37%) e depois o saneamento básico (19%) como os maiores problemas da favela.

O crescimento também apresenta características de comunidades famosas, como a da Rocinha. Em alguns pontos a favela já tem pequenos prédios de, no máximo, dois ou três andares.

De acordo com Alkmim, Rio das Pedras é uma das poucas comunidades carentes onde não há a presença do tráfico de drogas.

- Os trabalhadores expulsaram os traficantes durante o surgimento da favela - conta Alkmim.

Por causa disso, a tranqüilidade da favela é escolhida por 21% dos moradores como o maior ponto de atração para a comunidade. Apesar disso, 27% gostariam de se mudar de Rio das Pedras.


Obras beneficiam outras áreas

Dados do Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que Jacarepaguá é a região com o maior número de favelas do município do Rio: 68, distribuídas por sub-bairros como Praça Seca, Anil e Taquara. A favela Fazenda Mato Alto foi urbanizada há um ano. Atendida pelo programa Favela-Bairro, a área na Praça Seca teve ruas pavimentadas e praças e creches reformadas. Atualmente, moram no lugar cerca de duas mil pessoas, segundo cálculos da presidente da associação de moradores, Edinea Souza da Silva.

A população parece satisfeita com as melhorias na favela, onde as ruas ficavam cobertas de lama em dias de chuva, mas ainda reclama da falta de saneamento básico e das carências na área de saúde.

- As pessoas dormem na fila para conseguir atendimento médico - afirma a moradora Estela Dias dos Santos.

O morador Jorge Santana vê falhas no sistema de abastecimento de água na favela:

- Na parte alta do morro o abastecimento é irregular.

Problemas com o tráfico de drogas, que chegaram a obrigar o comércio a fechar as portas muitas vezes, deixaram de ser freqüentes, segundo moradores. As invasões de terrenos no alto do morro também teriam parado há um ano.

- Antes, a cada dia surgia um novo barraco - diz o motorista José dos Santos.

Atualmente, a população conta com duas creches, que não atendem ao grande número de crianças, e um Ciep. Quatro igrejas evangélicas e uma católica foram erguidas no lugar. O transporte é feito por Kombis, com lotadas pelo preço de um real.


Verão aquece vendas

Moradores da Fazenda Mato Alto aproveitam para ganhar um dinheiro a mais no verão, quando trabalham nas praias da região. Dinah Ferreira Ramos, de 50 anos, e sua filha Margarete, de 37, vendem sanduíches naturais de frango e de atum, acompanhados de refresco de maracujá, a um real, na Praia do Recreio. Os salgados são preparados na cozinha da casa de Margarete, um quarto-e-sala que ela divide com o marido e os dois filhos.

- Faturamos cerca de R$ 30 nos dias de sol. Estamos sobrecarregadas de trabalho. Tivemos uma surpresa, pois achávamos que neste verão o movimento seria fraco - diz Dinah.

Carlos, de 19 anos, filho mais velho de Margarete, é um dos 15 jovens da comunidade que integram o projeto Todos pela Paz, um programa da prefeitura que incentiva jovens de áreas carentes a se dedicarem à música.

Cantor de rap, ele costuma se apresentar em casas noturnas de Jacarepaguá e na própria comunidade com outros três integrantes da banda chamada Caravana do Batuque.


Nem luz elétrica, nem saneamento

Uma das comunidades carentes de Jacarepaguá, a Favela do Guacha, que fica entre o Rio Sangrador e o RioShopping, na Freguesia, poderá ser transferida. Lá, vivem 56 pessoas em barracos de madeira. Não há luz elétrica nem saneamento básico.

- O nosso objetivo é dar um pouco mais de conforto a essas pessoas, que vivem em condições inaceitáveis - diz o superintende do shopping, Cláudio Gonçalves.

O projeto, da administração do RioShopping, foi discutido com o empresariado do bairro há dois anos e apresentado à antiga gestão municipal.

No programa, os empresários ajudariam a população com doações de material de construção e a prefeitura cederia o terreno.

- A idéia é que tenha uma escola e um posto de saúde no local, além de transporte para os moradores - afirma Gonçalves, que pretende voltar a discutir o assunto com o empresariado e apresentá-lo à prefeitura.

O morador Gilmar Rego Luiz, de 31 anos, conta que já ouve essa história há muito tempo.

- Volta e meia escuto isso, mas nada acontece. Na verdade, eu não gostaria de sair daqui - conta Rego.

Uma das mazelas que atingem a população é a construção da ponte de concreto que dá acesso à comunidade. As obras estão paradas por falta de verbas e, enquanto isso, os moradores improvisam uma de madeira que não oferecesse qualquer segurança, inclusive para a passagem de crianças.

A dona de casa Rosana Salgueiro reclama da insegurança da ponte, principalmente quando carrega pesados baldes de água.

- Não temos água encanada, que costumo pegar no posto de gasolina. É perigoso atravessar ali - diz Rosana, que muitas vezes faz o percurso ao lado filho, Romário, de 4 anos.

Com dois filhos, Márcia de Souza Silva, de 25 anos, não sabe enumerar o que a comunidade mais necessita:

- São tantos problemas que nem sei dizer direito. Acho que a falta de luz elétrica é o maior deles - diz.

Moradores contam que a Favela do Guacha nasceu quando uma concessionária foi construída perto dali. A favela foi removida para o outro lado do rio e as famílias, indenizadas.


Passaportes para o universo virtual

Elas têm muitas coisas em comum: comércio variado, restaurantes, escolas, computadores e ambas estão no roteiro turístico da cidade. Para informar moradores, curiosos e estrangeiros de qualquer parte do mundo, Rocinha e Rio das Pedras entraram na era virtual. Por meio dos endereços <www.rocinha.com.br> e <www.amarp.com.br>, as pessoas podem saber as novidades das duas maiores comunidades da região.

O autor do site da Rocinha, o designer Carlos Castilho, resolveu fazer a página na internet há três anos e gostou do resultado.

- Queríamos fazer alguma coisa pela comunidade, a maior da América Latina. Já temos até propostas de anunciantes - diz Castilho.

Em estudo realizado na Rocinha, o designer descobriu que 1.500 moradores têm computador em casa, dos quais 250 acessam a internet.

No site, há serviços para a comunidade, fotos de vários lugares, sugestões para turistas e até pesquisa do consumidor, na qual os moradores elegem as melhores marcas de sabão em pó, leite, feijão, arroz e outros produtos.

Logo na primeira página, o navegador pode escolher o idioma de sua preferência: há informações em português, inglês, alemão e espanhol. Este último é o mais visitado depois do português.

- Ficamos surpresos com a receptividade do público hispânico, sobretudo de chilenos, argentinos e espanhóis - conta o designer.

Em Rio das Pedras, o site informativo mostra o dia-a-dia da comunidade, com fotos de inauguração de obras e creches, visitas do ex-prefeito Luiz Paulo Conde, esportes e lazer.

A estimativa do Departamento de Sociologia e Política da PUC-RJ, que finalizou um estudo na favela em 2000, é de que 5% dos moradores de Rio das Pedras tenham computador em casa. Destes, 3% acessam a internet.

Nas páginas virtuais, há ensaios fotográficos que retratam cenas do cotidiano da comunidade, como crianças jogando futebol e mulheres cozinhando.

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Legalização para as favelas 

Jornal O Globo, Rio, domingo, 18 de fevereiro de 2001

Legalização para as favelas
Eliane Oliveira

BRASÍLIA

Assustado com as projeções do Censo de 2000, que apontam um crescimento do número de favelados e moradores de rua nos grandes centros bem acima da média nacional, o governo federal elegeu, entre suas prioridades para 2001, a urbanização das favelas, incluindo a concessão de títulos de propriedade e a regularização dos serviços de água, luz e redes de esgoto. Contando com R$ 700 milhões do Fundo de Combate à Pobreza para este ano, o programa - inspirado no projeto carioca Favela-Bairro - começará por São Paulo, Rio e Salvador. Outro passo nesse sentido será dado amanhã, com a publicação de uma portaria criando um grupo de trabalho para identificar áreas e imóveis que poderão ser destinados a assentamentos populacionais.

O programa de urbanização, elaborado por representantes da Agência Nacional de Águas, da Secretaria de Desenvolvimento Urbano, do BNDES, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) e consultores, será submetido ao presidente Fernando Henrique Cardoso nos próximos dias, segundo o assessor especial da Presidência da República, Moreira Franco. A idéia é atingir 145 mil famílias no primeiro ano. Ele acredita que, com a participação de estados e municípios, a verba para 2001 chegue a R$ 1 bilhão.

- Os números do Censo colocam de maneira dramática a questão urbana. Esses dados indicam com clareza que todo o discurso da concentração, da desigualdade, da pobreza e da exclusão social adquirem vida efetiva nas áreas metropolitanas. Nos últimos cinco anos, a população de favelas no Rio cresceu em torno de 8%, enquanto a população total do município aumentou 1,3% - diz Moreira.

Lei do usucapião pode ser aplicada

A identificação de terras públicas, para permitir a regularização fundiária, é uma vertente. A outra, mais ousada, seria a aplicação inédita da lei do usucapião na cidade, para que famílias que residem há décadas em áreas que não são suas se beneficiem da titulação.

- Vamos ter que enfrentar esse problema definitivamente. E enfrentar significa regulamentar, de forma mais moderna, a lei do usucapião. Esse é um desafio, porque a tradição brasileira não é essa. Temos agora que mobilizar os governos federal, municipais e estaduais para mudar o plano de definição de normas urbanísticas e de regras de ocupação de uso do solo. A realidade tem que ser respeitada. Não adianta querer fazer exigências de códigos de edificações e posturas - enfatiza Moreira Franco.

O secretário de Desenvolvimento Urbano, Ovídio de Angelis - que assinou anteontem a portaria que será publicada amanhã no Diário Oficial - diz que a regularização de áreas públicas deve demorar, no mínimo, 180 dias. Ele explica que prédios e fábricas desocupados também entrarão na lista de alternativas destinadas não apenas a moradias, mas a escolas, pequenas indústrias e outras finalidades que serão decididas pelas prefeituras, moradores, organizações não governamentais e entidades civis em geral.

Já Moreira Franco esclarece que o processo de urbanização das favelas tende a se concentrar nos chamados assentamentos subnormais e em áreas degradadas. Pelo programa, a seleção será feita, prioritariamente, pelos municípios.

A estrutura de gerenciamento deverá ser a mesma aplicada no Avança Brasil, com gerentes de projeto. Os gastos estarão limitados a R$ 8 mil por família (no caso de urbanização) e R$ 1.500 (para melhorias habitacionais). Esses valores foram estabelecidos pelo governo como parâmetro de gasto para definir o alcance do programa. Ainda não está decidida a forma como esses recursos chegarão a cada uma das famílias, se entregues diretamente por linhas de financiamento ou pela contratação de empresas para executar os serviços.

- O título de propriedade e as contas de luz, água e telefone são documentos essenciais para o acesso ao financiamento - completa Ovídio de Angelis, acrescentando que, atualmente, 68% das moradias no país são regularizadas. - O problema é que faltam 32%.

A nova política de urbanização que está sendo esboçada pelo governo é diferente da usada na década de 70 e no início dos anos 80. Perdeu a validade a idéia de organizar o espaço urbano partindo do centro. Os elaboradores querem começar pela periferia. Só assim, ressalta Moreira, será possível que avanços nas áreas de saúde e educação, por exemplo, cheguem a áreas mais pobres. Segundo ele, a urbanização deverá incluir outras ações desenvolvidas pelas prefeituras, como o Favela-Bairro, no Rio, e anexar programas federais, como microcrédito, qualificação de mão-de-obra e bolsa-escola. Estes programas, na opinião de Moreira Franco, nem sempre chegam aos excluídos.


Rio tem 150 comunidades atendidas
Paula Autran

 

 

Berço do programa Favela-Bairro, que serviu de inspiração para o projeto que será apresentado ao presidente Fernando Henrique, o Rio de Janeiro já vive a experiência de ver 150 favelas sendo reurbanizadas nos últimos seis anos, beneficiando mais de 400 mil moradores, principalmente de comunidades de tamanho médio, com 500 a 2.500 residências. Segundo Sérgio Magalhães - ex-secretário de Habitação da administração de Luiz Paulo Conde, um dos pais do programa, juntamente com o prefeito Cesar Maia, em seu primeiro mandato - cerca de sete mil famílias já receberam títulos de propriedade de suas casas desde então. Tanto Magalhães quanto a atual secretária municipal de Habitação, Solange Amaral, e o secretário estadual de Governo, Fernando William, sabem que este número ainda é pequeno e dizem que a colaboração do Governo federal será fundamental para estender o benefício da propriedade de seus imóveis aos demais favelados.

- A partir do momento em que estas comunidades forem regulamentadas, seus moradores passam a ter regras a obedecer e podem integrar ao resto da cidade. Além disto, essas pessoas ganham dignidade e auto-estima - diz Fernando William, destacando que um dos grandes empecilhos para isto é o fato de não existir a figura do usucapião coletivo na lei. - O usucapião já é um direito legal, mas o problema é que cada um tem que procurar um advogado ou defensor público para mover ação individual. Se for criado o usucapião coletivo, será um passo fantástico.

Solange Amaral concorda, mas destaca que a concessão de títulos de propriedade pouco avançou até agora na cidade também por causa da dificuldade de fazer isto em terrenos da União ocupados por favelas:

- A grande ajuda que o governo pode dar será entregar logo ao município áreas como o Caju, pois o maior número de títulos de propriedade já concedidos é justamente para moradores de favelas como a Fernão Cardim, no Engenho de Dentro, que cresceu num terreno da prefeitura.

A desempregada Andrea Pereira de Figueiredo, de 35 anos, é uma das beneficiadas. Moradora há oito anos da favela Parque Royal, na Ilha do Governador, ela recebeu das mãos de Cesar Maia, há cinco anos, a documentação provisória que a tornou dona de um apartamento de dois quartos num prédio de quatro andares da favela.

- É um alívio porque, como o apartamento está em meu nome, em usufruto da minha família, ninguém pode nos tirar daqui - diz ela, que vive com o marido, dois filhos e um neto no imóvel. - Mas lamento que o documento definitivo ainda não tenha sido entregue, o que me impede de vendê-lo ou alugá-lo e não dá a sensação de que ele é realmente meu. Um dia penso em vendê-lo para comprar algo melhor na Região dos Lagos.

 

Sérgio Magalhães destaca que muitas das famílias cujas comunidades foram atendidas pelo Favela-Bairro receberam documentos provisórios da prefeitura, que são um reconhecimento público de que estão em processo legítimo de obtenção do título de propriedade. Mas esteja a favela numa área pública ou privada, a regularização fundiária é sempre um processo complexo.

- Sempre há muita burocracia. Entre outras coisas, é preciso mais agilidade nos cartórios - observa o ex-secretário.

O projeto, no entanto, não agrada a todos. O presidente da Associação de Moradores de Ipanema, David Catran, acredita que este tipo de iniciativa incentiva a expansão das favelas:

- Não tenho nada contra favelas como Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, que estão na minha área, mas acho que concedendo estes títulos se compactua com a ilegalidade.


Em 40 anos,ritmo acelerado

 

Nos últimos 40 anos, as políticas públicas direcionadas às favelas cariocas tiveram que se adequar ao crescimento acelerado dessas comunidades. Na década de 60, quando 950 mil pessoas já viviam em favelas, a solução encontrada pelo governo foi remover seus habitantes para conjuntos habitacionais. Em 1964, foi removida a do Morro do Pasmado, primeira de uma série de 41 favelas retiradas até 1971.

Só no Governo Negrão de Lima, na segunda metade da década de 60, mais de 70 mil pessoas de quatro comunidades carentes foram transferidas para Cidade de Deus, Cidade Alta e Água Branca. Para a Cidade de Deus, foram levadas famílias de favelas como a Praia do Pinto (Leblon), Catacumba (Lagoa) e Macedo Sobrinho (Botafogo). Já no Governo Carlos Lacerda, na primeira metade da década de 60, foram removidas 27 favelas, sendo a do Esqueleto a maior delas: tinha mais de três mil barracos. Nesta época, além de afastar a pobreza da Zona Sul da cidade, a remoção das favelas abria caminho para a especulação imobiliária.

Nos anos 70, embora o ritmo das retiradas tenha sido bastante diminuído, ainda pairava no ar o fantasma das remoções. Foi na década seguinte, em 81 - quando a população favelada do Rio já chegava a 1,7 milhão de habitantes - que a prefeitura começou a avaliar a possibilidade de dar aos favelados a posse da terra. Em meados da década de 90 foi criado o projeto Favela-Bairro para urbanizar e reintegrar essas comunidades ao resto da cidade.

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Mais verbas para favelas

Jornal O Globo, Rio, segunda-feira, 19 de fevereiro de 2001

Mais verbas para favelas
Paula Autran

Além dos R$ 700 milhões que o governo federal pretende investir em 2001 na urbanização das favelas de Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador - incluindo a concessão de títulos de propriedade e a regularização dos serviços de água, luz e esgoto, como O GLOBO informou ontem, com exclusividade - também a prefeitura do Rio e o governo do estado vão destinar verbas para projetos em comunidades carentes. Só o prefeito Cesar Maia disse ontem que vai aplicar R$ 700 milhões neste tipo de projeto até o fim do ano que vem e que poderia ter o governo federal como parceiro. Segundo Cesar, R$ 240 milhões deste total já foram liberados este mês para melhorias em favelas. Já o secretário estadual de Governo, Fernando William, anunciou que o estado tem cerca de R$ 1 bilhão em caixa para investir em programas no Rio - mas não apenas em comunidades carentes.

Moreira Franco, assessor especial da Presidência da República, acredita que, com a participação de estados e municípios, a verba para o programa de urbanização chegue a R$ 1 bilhão este ano. É ele quem, nos próximos dias, vai submeter ao presidente Fernando Henrique Cardoso o projeto, elaborado por representantes da Agência Nacional de Águas, da Secretaria de Desenvolvimento Urbano, do BNDES, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) e consultores com base no bem-sucedido Favela-Bairro carioca.

- Com certeza vamos colaborar - disse Fernando William, que considera a iniciativa do governo federal fantástica. - O Rio de Janeiro é hoje um dos estados com maior capacidade de investimento do país. Só a arrecadação do ICMS cresceu mais de 60% desde 1998. Fora os recursos próprios, também podemos conseguir dinheiro através de convênios.

Cesar quer investimento em projetos já existentes

Embora classifique como eleitoreiro o lançamento de um programa como este um ano e meio antes do fim do mandato presidencial, Cesar Maia não dispensa a ajuda federal:

- Qualquer coisa que eles colocarem a mais para nós é ótimo. Mas ninguém vai inventar intervenções em favelas. Os recursos têm que ser aplicados nos programas já existentes. O próprio governo federal já investiu na segunda etapa do Favela-Bairro, porque na época a prefeitura não dispunha de recursos suficientes.

De acordo com Cesar, a prefeitura hoje está fazendo obras ou vai começar a fazer em pelo menos metade das 700 favelas da cidade. Para ele, a grande contribuição da União para as favelas do Rio seriam duas: a reabertura de linhas de crédito da Caixa Econômica para programas de saneamento básico e a doação de terras favelizadas para o município, a fim de que a prefeitura possa conceder títulos de propriedade aos moradores:

- Por que o governo federal não reabre as linhas de crédito da Caixa? Ninguém da iniciativa privada quer investir em saneamento de favelas porque sabe que é a fundo perdido.

A identificação de terras públicas, para permitir a regularização fundiária, é uma das vertentes do programa do governo. Portaria assinada pelo secretário de Desenvolvimento Urbano, Ovídio de Angelis, criando um grupo de trabalho para identificar áreas e imóveis que poderão ser destinados a assentamentos populacionais, está sendo publicada hoje no Diário Oficial. Segundo Moreira Franco, o processo de integração das pessoas que vivem em favelas à cidade começa depois da recuperação urbana dos loteamentos dessas áreas.

Ele destacou a necessidade de a periferia conquistar maior independência econômica, para que as áreas centrais, densamente ocupadas, sejam desafogadas. Hoje, nas grandes cidades como Rio e São Paulo, há uma população que trabalha no Centro e dorme nas ruas por não ter dinheiro para voltar para casa todos os dias.

O programa federal trata ainda da questão ambiental, sob a ótica da limpeza urbana. O esgoto a céu aberto e o despejo de lixo nas ruas ameaçam o abastecimento de água, devido à degradação dos recursos hídricos. Moreira Franco admitiu que um ano e meio de mandato que resta para o governo Fernando Henrique pode ser pouco para tantas aspirações. Mas assegurou que haverá empenho para que sejam obtidos resultados a curto prazo.

COLABOROU Eliane Oliveira (Brasília)


Concessão de títulos de posse enfrenta dificuldades

A doméstica Elialdina da Silva foi uma das contempladas com a documentação provisória que a tornou dona de um apartamento de dois quartos na Favela Fernão Cardim, no Engenho de Dentro, há cinco anos. Por estar num terreno da prefeitura, foi lá que o programa Favela-Bairro mais concedeu títulos de posse aos moradores. Mas, segundo o prefeito Cesar Maia, a concessão destes títulos não vingou ainda porque os donos dos terrenos ocupados por favelas, mesmo os do setor público, querem sempre contrapartida para cedê-los.

- É o caso do INSS, que quer terrenos na Barra para ceder uma área de favela na Vila Vintém onde temos planos de construir uma vila olímpica para a comunidade. Por estas e outras a concessão de títulos fica inviabilizada. Nossa procuradoria está trabalhando neste assunto - disse ele, que também encontrou obstáculos dentro das próprias favelas para conceder os títulos. - Mais de 50% dos barracos são alugados e as próprias imobiliárias das comunidades criam dificuldades.

Ex-capital federal, grande parte das terras favelizadas do Rio pertencem à União. Para Cesar, se o governo federal agilizasse os processos de concessão de títulos de posse que já estão em andamento, pelo menos 20% dos casos estariam resolvidos.

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Pobres fogem da violência do Rio

 

Jornal do Brasil, 12 de fevereiro de 2001

Pesquisa mostra que a periferia da capital está avançando para o outro lado da Baía, rumo ao município de Itaboraí

ISRAEL TABAK

A periferia do Rio está alargando os seus limites. Fugindo da violência e do preço alto das moradias nas áreas mais adensadas da cidade, os pobres estão indo para cada vez mais longe. E o eixo da fuga se inverteu. Agora, os migrantes tendem a atravessar a Ponte e seguir em direção a Itaboraí e Tanguá, onde o preço da terra e do aluguel é mais barato. Do outro lado, a rota de fuga, menos intensa, já chega a Itaguaí, como mostram estudos do Ippur, (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional) da UFRJ.

Para agravar o problema, os últimos indicadores habitacionais do estado revelam números alarmantes: em torno de 3,5 milhões de pessoas moram em domicílios com deficiência de infra-estrutura e cerca de 1,5 milhão reside em moradias inadequadas, que teriam de ser substituídas. A velocidade da progressão de novas favelas, em áreas invadidas e cada vez mais distantes, assusta os moradores da Zona Oeste e da Baixada Fluminense.

A crise habitacional fez nascer um novo e florescente comércio na periferia, que vem sendo pesquisado pela arquiteta Luciana Corrêa do Lago: o aluguel de pequenas construções improvisadas, geralmente localizadas nos fundos dos lotes, com um dormitório e banheiro. Os inquilinos não têm mais condições de alugar cômodos nem mesmo em favelas situadas nas áreas mais privilegiadas da cidade como Rocinha, Vidigal e Pavão-Pavãozinho.

Os pesquisadores convergem no diagnóstico: a disparidade de renda no país, aliada à ausência de uma política habitacional definida para a população de baixa renda, praticamente inviabiliza a possibilidade de moradia decente para quem ganha até cinco salários mínimos: ''Não existem linhas de financiamento para as faixas mais baixas. E mesmo assim, pelo menos parte do custo teria que ser subsidiado'', observa a arquiteta Dayse Gois, que coordenou uma pesquisa sobre o déficit e as carências habitacionais no estado.

A disparidade de renda também serve para explicar o que os estudiosos chamam de cidades duais. ''É o modelo da urbanização brasileira. Em qualquer cidade, a cada novo pólo de desenvolvimento, corresponde uma favela. Quem trabalhará para os veranistas de uma cidade turística que se expande? Cada novo shopping-center, por exemplo, precisa de um batalhão de empregados, trabalhando na limpeza e na manutenção, com salário muito baixo. Todos são candidatos a uma favela'', analisa o urbanista Adauto Cardoso, coordenador de pesquisas do Ippur.

Até há alguns anos, o morador de uma favela que quisesse morar numa casinha modesta, mesmo longe do local de trabalho, tinha a opção de comprar um lote à prestação em algum município da Baixada e fazer a construção aos poucos: ''Isto está acabando. A terra valorizou na região, que hoje está atraindo a classe média baixa. Registramos muitos casos de condomínios murados, com casas de menos de 40 metros quadrados. Além do muro alto, diversos condomínios têm segurança própria e piscina, repetindo os padrões de moradia da classe média alta que se encastela na Barra, por exemplo'', observa Luciana Corrêa do Lago, professora de planejamento urbano do Ippur.

''Na realidade, as metrópoles estão se expandindo. Os mais pobres, que continuam trabalhando nos centros urbanos, são obrigados a morar cada vez mais longe. No tempo do BNH, muitos moradores de favela eram encaminhados para novos conjuntos habitacionais, que ficavam longe das antigas moradias, mas ainda dentro da cidade. Isso acabou. Hoje, sem uma ajuda oficial, cada um se vira como pode'', analisa a arquiteta.

Sem infra-estrutura

No Estado do Rio, 32,48% dos domicílios - pouco mais de um milhão - têm alguma carência séria de infra-estrutura de serviços (água, esgoto, luz, coleta de lixo) enquanto 9,35% são inadequados, ou seja, teriam que ser substituídos por outros. Estes são alguns dos principais dados de uma pesquisa da Fundação Cide (Centro de Informações e Dados do Rio de Janeiro) em convênio com o Ippur (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional) da UFRJ, que será divulgada oficialmente nas próximas semanas.

Segundo a urbanista Dayse Góis, coordenadora da pesquisa na Fundação Cide, os dados sobre a carência de serviços mostram que os principais problemas enfrentados pelos moradores são a ausência de uma coleta regular de lixo e de um sistema de esgotos. Casas sem luz ou sem algum sistema de abastecimento de água aparecem com números baixos na pesquisa Índice de Qualidade dos Municípios-Necessidades Habitacionais..

Dos 3.369.768 domicílios pesquisados, 761.573 (22.60%) não têm coleta regular de lixo enquanto 668.680 (19.84%) não dispõem de sistema de esgotos. Quanto à água e iluminação, a situação melhorou nos últimos anos: só 99.051 residências (2,93%) não têm algum sistema de abastecimento de água (incluindo poços artesianos) enquanto apenas 51.852 (1.53%) não têm luz.

Quando se analisa a situação por município, aparecem surpresas. Cidades mais ricas como Petrópolis e Friburgo, estão ao lado de outras, das áreas menos desenvolvidas do estado, na faixa máxima de carência: entre 80 e 100%. Friburgo tem 91.93% de residências com algum tipo de problema sério de infra-estrutura enquanto em Petrópolis o percentual atinge 90.89%.

Para o urbanista Adauto Cardoso, do Ippur, que desenvolveu a metodologia da pesquisa, a explicação não é difícil: ''São cidades em expansão, atraindo veranistas mas também prestadores de serviço pobres. As novas construções, muitas em regiões afastadas dos centros urbano, acabam agravando o problema crônico da deficiência de coleta de lixo e esgoto.

Faltam serviços básicos

O Rio de Janeiro, ao lado de cidades do Vale do Paraíba, como Resende e Volta Redonda, além de Niterói, aparecem como os melhores municípios em serviços básicos de infra-estrutura. Os piores índices, próximos a 100%, vão para Trajano de Morais, São Sebastião do Alto, Santa Maria Madalena, Macuco e Cordeiro. Pela pesquisa, cerca de 3,5 milhões de habitantes do estado moram em domicílios com carência de algum serviço básico.

Para dimensionar o número de moradias inadequadas, onde vivem cerca de 1.5 milhão de pessoas, foram registradas as que não podem ser mantidas ou reformadas e de material improvisado. Também entraram nesta categoria aquelas em locais impróprios, sob viadutos, por exemplo, explica a urbanista Dayse Góis.

No município do Rio, 163.725 habitações (10,79% do total), onde moram cerca de 700 mil pessoas, teriam que ser substituídas. As piores médias de déficit vão para Trajano de Morais, Parati, São Sebastião do Alto, Macuco e Mangaratiba. As melhores em Iguaba Grande, Cardoso Moreira, São João da Barra, Rio das Ostras e São Pedro da Aldeia.

Preço e tranqüilidade

Maria das Dores é doméstica e veio do Vidigal. Joelan é pedreiro e saiu da Rocinha. Hermes é bancário e deixou Bento Ribeiro. Luciano, funcionário público, morava em Bonsucesso. Luiz Carlos, mecânico de carros, abandonou Botafogo e passeia pelas ruas com sua cabra de estimação. Cada um do seu jeito, todos vivem hoje em Manilha, segundo distrito de Itaboraí, a 45 quilômetros do centro do Rio.

Mas todas estas histórias convergem. Os novos moradores de Manilha vieram do Rio em busca de moradia mais barata e de tranqüilidade. Ninguém se arrepende. Mesmo que a maioria esteja muito distante do trabalho e tenha de pagar mais pela condução. ''Não volto para o Vidigal de jeito nenhum. O Rio está todo muito violento, Além disso, lá no morro eu não ia conseguir alugar uma casinha igual à que eu moro hoje por menos de R$ 300. Aqui não sai por mais de R$ 150'', explica Maria das Dores Nascimento, que trabalha como doméstica no Jardim Botânico e mora numa casa inacabada de dois quartos, com o marido, o vigia aposentado Custódio Souza.

O que os pesquisadores do Ippur constataram, os novos moradores de Manilha confirmam: escolheram o local porque a Baixada Fluminense, segundo eles, também está muito cara e violenta. Muitos chegaram a pesquisar preços em localidades como Caxias, Nilópolis e São João de Meriti. E, comparando, acabaram chegando a Manilha. Algumas vantagens alegadas: a água de poço seria de ótima qualidade e não há violência. ''Posso deixar meus filhos à vontade na rua'', conta a dona de casa Márcia Sá, que veio de Bento Ribeiro. E mais: a terra ainda é barata (é possível comprar lotes de 700 metros quadrados, por menos de R$ 5 mil, facilitados).

E quanto ao transporte, que seria o principal fantasma para atrapalhar a mudança, a concorrência acabou favorecendo os novos migrantes: os ônibus que vêm para o Rio baixaram o preço da passagem para R$ 1,50, para levar vantagem sobre as vans, que cobram R$ 2,50.

O resto é como nos demais loteamentos pobres: ruas esburacadas, lixo espalhado em terrenos baldios, casas inacabadas. Mas todo mundo se diz satisfeito: ''Aqui tem menos gente, é bem fresquinho e mais calmo'', comenta o pedreiro Joelan da Hora, que veio da Rocinha. (I.T.)

 

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A explosão da periferia  

 

Revista Veja, 24 DE JANEIRO DE 2001

A explosão da periferia

Crime, desemprego e miséria: uma tragédia brasileira em torno das grandes metrópoles

Alexandre Secco e Larissa Squeff
               

          Atenção, se você acha que as metrópoles brasileiras já são lugares quase irrespiráveis, de tanto crime, bagunça no trânsito, horas perdidas e também feiúra arquitetônica, prepare-se para coisa muito pior, se nada for feito para reverter a situação. Observe:

  • Nos últimos dez anos, a população das oito regiões metropolitanas (Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Vitória, Porto Alegre, Curitiba, Recife e Salvador) saltou de 37 milhões para 42 milhões de habitantes. Agora, o mais surpreendente: nesse período, a taxa de crescimento das periferias dessas cidades foi de 30% contra 5% das regiões mais ricas.

  • Ampliando-se a análise para as 49 maiores cidades do país, que abrigam 80 milhões de pessoas, obtém-se uma visão mais completa do fenômeno. Nos últimos vinte anos, a periferia dessas cidades correspondia a um terço da população. Agora, equivale a quase metade do total dos moradores. Deverá ser maioria em cinco anos.

  • De 1996 para cá, a renda per capita nas cidades médias brasileiras aumentou 3%. No caso das periferias das grandes cidades, a renda caiu 3%.

  • Há dez anos, a periferia das grandes cidades apresentava taxas na casa de trinta homicídios por 100.000 habitantes. Atualmente, em algumas dessas áreas pobres o índice chega a 150 mortos por 100.000 habitantes - padrão colombiano. O aumento dos índices coincidiu com um período de pesados investimento feitos em segurança por quase todos os Estados. Apesar dos investimentos em armas, viaturas e presídios, além de programas de assistência social, a criminalidade não perdeu seu vigor.

O contraste

A tabela mostra algumas diferenças entre o centro das grandes cidades e as regiões mais pobres* 

      CENTRO         PERIFERIA
Número de homicídios por grupo de 100.000 habitantes  14, em média até 150
Total de moradores desempregados 5 18
Casas atendidas por sistema de esgoto (%) 70 30
Moradias abastecidas com água encanada (%) 100, tudo oficial 70, a maioria com ligações clandestinas
Residências com energia elétrica (%) 3 20
Taxa de analfabetismo (%) 15.300 reais 2.600 reais
Leitos  hospitalares por grupo de 100.000 habitantes  530 180
Tempo gasto para ir de casa ao trabalho 40 minutos 2 horas
Largura das ruas 6 metros 2 metros
Com que freqüência vai ao dentista a cada 6 meses a cada 6 anos
Carro Vectra Brasília
Total de conhecidos assassinados 1 20
Brinquedo da moda entre as crianças patinete pipa ou papagaio
Atividade esportiva musculação futebol
Fatia do salário gasta com alimentação (%) 15 30
Refrigerante mais consumido Coca-cola tubaínas
Casas pintadas (%) 100 10
Freqüência com que o caminhão de lixo passa na rua 1 dia 4 dias
Total de dias com falta de água no último mês nenhum 7 dias
Eletrodoméstico mais caro computador geladeira
Valor do imóvel 80.000 reais 3.000 reais

* médias estimadas em oito capitais


           
         Em outras palavras, o alarme da periferia está soando - em alto e bom som. As periferias estão ficando mais inchadas, mais violentas e mais pobres. De acordo com um estudo publicado pelo economista Hamilton Tolosa, do Conjunto Universitário Cândido Mendes, se o Brasil crescer a taxas moderadas, de 4% a 5%, durante uma década, as desigualdades sociais tendem a melhorar em todo o país, mas devem piorar consideravelmente nos grandes centros urbanos e, em particular, nas áreas metropolitanas. "As autoridades precisam agir logo. A bomba está estourando agora", diz o urbanista brasileiro Jonas Rabinovitch, uma autoridade mundial em cidades.


O poder dos templos

As igrejas evangélicas encontram nas periferias um terreno fértil para seu crescimento

  • Ao lado dos bares, os templos são os primeiros estabelecimentos que costumam surgir na periferia

  • O número de evangélicos no subúrbio é três vezes maior que o registrado nos centros das cidades.

  • A igreja de maior penetração é a Assembléia de Deus


         O inchaço da periferia e a deterioração das cidades são tema de discussão mundial e atingem principalmente as megacidades, quase todas localizadas em países pobres ou em desenvolvimento.

         Cinturões de miséria semelhantes aos que se vêem no Brasil podem ser encontrados na Cidade do México, em Bombaim, na Índia, em Jacarta, na Indonésia, e na Cidade do Cabo, na África do Sul. Nesses lugares, o subúrbio paupérrimo é fruto de um crescimento desordenado. O caso brasileiro, no entanto, é único sob certo aspecto. Todas as nações que enfrentam o problema convivem com um, dois ou três casos de expansão da periferia. No Brasil, esse fenômeno pode ser constatado em quase cinqüenta cidades. Isso acontece porque, no bloco dos países mais pobres com grande população, nenhum possui a taxa de urbanização
brasileira, hoje acima de 80%. Na Índia, 72% do país vive no campo. Na China, as
cidades agrupam 31% da população. "O tipo de problema é o mesmo dos demais países, mas a extensão não tem paralelo em todo o mundo", diz a urbanista Raquel Rolnik, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.


PATROCINADOR   CIDADE PROJETO
Netinho São Paulo Mantém um centro de educação esportiva e musical para 220 crianças
Carlinhos Brown Salvador Constrói e reforma casas no subúrbio.Mantém escola de música e cursos para 200 crianças
Paulo Coelho Rio de Janeiro Investe 36.000 reais por mês em uma instituição que trabalha em favelas


                  A periferia sempre foi um lugar tremendamente ameaçador para seus moradores. Quem acharia razoável viver numa região que reúne praticamente todos os defeitos que uma cidade pode ter? As ruas não têm calçamento e se alagam quando chove. Os bairros não possuem hospital nem dentistas. Em boa parte das
casas, a água encanada e o esgoto são obtidos apenas com ligação clandestina - de forma que, em muitos casos, os detritos correm a céu aberto. Praça e área verde são artigos de luxo. Como não há coleta de lixo, os moradores servem-se dos rios e vivem num ambiente poluído e cheio de doenças. As casas são erguidas em lotes sem calçada e o terreno é tão estreito que não estimula o plantio de árvores. Isso sem falar no policiamento, que é raro, nas taxas de criminalidade, nos donos das bocas-de-fumo, nas chacinas. E o que dizer do salário? Para atingir o rendimento anual do morador de um bairro mais central, o habitante da periferia precisa trabalhar durante quase seis anos.


Socorro aos mais pobres

A pediatra e sanitarista Zilda Arns foi indicada na semana passada para o Prêmio Nobel da Paz pelo governo brasileiro. Coordenadora nacional da Pastoral da Criança, Zilda dedica-se a melhorar as condições de vida nos bolsões de pobreza dos pequenos e médios municípios.

  • A pastoral atua em 3.277 municípios brasileiros

  • São 130.000 voluntários

  • Mais de 90% dos locais concentram-se na periferia das cidades

  • Atende por mês 60.000 gestantes e 1,5 milhão de crianças

  • Nas áreas em que atua, a pastoral conseguiu reduzir pela metade os índices de mortalidade e desnutrição infantil


                Os moradores desses bairros populares querem melhorias e têm direito a isso. Na verdade, sairiam da periferia para bairros mais bem assistidos, se pudessem. A novidade é que, além de castigá-los, a periferia incomoda também o habitante dos bairros de classe média alta e da elite. É como se uma espécie de Muro de Berlim tivesse sido derrubado. As regiões mais abastadas das metrópoles
estão conhecendo de perto, e com grande intensidade, o impacto da chegada da miséria. Como a periferia não oferece hospitais, as unidades de saúde dos bairros mais centrais vivem lotadas. Muitas das vilas de periferia se situam em áreas de
mananciais, que alimentam rios e represas usados para captação de água. Como na periferia não há coleta regular de lixo nem sistema de esgoto, tudo acaba sendo jogado nos córregos que vão poluir os rios mais adiante. Isso quando bairros populares não surgem diretamente em torno das represas urbanas. A manifestação mais preocupante, no entanto, verifica-se no campo da segurança. Até alguns anos atrás, apenas os moradores das áreas populares viviam em pânico, não saíam à noite e corriam o risco de ver um amigo ou parente ser assassinado por marginais. Embora a criminalidade seja ainda muito mais acentuada nos bairros pobres, o medo que antes era só deles migrou para as áreas mais ricas das grandes cidades.


A polícia que funciona

Uma boa arma no combate à criminalidade na periferia tem sido o policiamento comunitário. Ele já é adotado em mais de 100 cidades. Veja como o sistema funciona
  • As mesmas equipes de policiais fazem a ronda no bairro, o que ajuda a criar um vínculo maior com os moradores

  • Os policiais participam de discussões sobre os principais problemas de segurança da comunidade

  • Em São Paulo, o sistema reduziu o índice de roubos de 49% para 33%

  • Em Belo Horizonte diminuiu em 6% as tentativas de homicídio

              O surgimento da periferia é decorrente de uma transformação profunda ocorrida no Brasil nas últimas décadas, que é a urbanização. Quando o campo entrou em colapso por excesso de gente e falta de oportunidades, começou uma intensa migração rumo às capitais industrializadas. Em apenas duas décadas,
20 milhões de pessoas se mudaram em busca dos confortos e das oportunidades que imaginavam desfrutar nas grandes cidades. Foi um dos processos de urbanização mais acelerados e caóticos já vistos no mundo. Em 1970, pela primeira vez, a população urbana superou a rural. A migração não produziria grandes problemas se as cidades às quais as periferias estão ligadas pudessem gerar riqueza suficiente para oferecer condições de vida satisfatórias aos que chegam. O Brasil não conseguiu fazer isso.


O lazer

Os estudiosos dizem que is ao bar é uma das únicas distrações dos moradores da periferia. O quadro mostra quais são as principais características desses locais 

  • A maioria dos bares da periferia são clandestinos

  • A bebida mais consumida é a cachaça

  • Uma dose de pinga é cotada a 15 centavos

  • Nos finais de semana, os índices de violência dobram nos bares da periferia 

  • Um terço dos crimes no Brasil é cometido por pessoas embriagada     

               O governo federal tentou minimizar o problema abrindo um banco, o BNH, para financiar projetos habitacionais. Os Estados criaram as Cohabs para executá-los e as prefeituras contribuíram com a abertura de enormes loteamentos. Por muitos anos, a construção de casas populares foi plataforma obrigatória dos políticos. Vendia-se a idéia de que a solução fora encontrada, mas o que não se falava é que ao empurrar centenas de milhares de pessoas para conjuntos na periferia os governantes estavam apenas adiando a solução real do problema. De um dia para o outro surgiram bairros enormes sem transporte, sem lazer, sem posto médico. Nos últimos trinta anos, a área das metrópoles aumentou muito. No caso de São Paulo e Porto Alegre, por exemplo, a mancha urbana que ocupam ficou cinco vezes maior no período. Mas o grosso dos equipamentos públicos ficou restrito àquele pequeno núcleo original que definia as capitais nos anos 70. Não se distribuiu pela enorme mancha urbana que se foi espalhando em volta das metrópoles.

               Toda vez que os povos mudam de lugar, ou seja, migram, o impacto social é brutal. E existe uma ligação umbilical entre as transformações que atingem um país e as correntes migratórias. A História registra migrações nos casos de transformação política nas sociedades: colonização, guerras e trocas de regime político. As correntes também ocorreram quando a transformação tinha origem econômica. Quando os povos mudam de lugar, fica para trás a estrutura que montaram ao longo de uma vida. A frente, há apenas barro, mosquito e a esperança de um amanhã melhor. Com a Revolução Industrial, as cidades inglesas passaram a drenar a população do campo. Surgiram os distritos industriais e os bairros dormitório. Em 1801, Londres tinha 864 000 habitantes. Em 1891, ultrapassou a casa dos 4 milhões de pessoas. Em menos de um século sua população havia quintuplicado. Em toda a Inglaterra, o número de cidades com mais de 100.000 habitantes passou de duas para trinta entre 1800 e 1895. O processo se repetiu por toda a Europa, principalmente na Alemanha e na França - e atingiu os Estados Unidos. Como o crescimento é desordenado, ele ocorre quase sempre em velocidade superior à capacidade das autoridades de contê-lo.


A casa

Observe no quadro quais são as características típicas de uma residência de periferia

  • A construção é de alvenaria sem acabamento nem pintura

  • É habitada por cinco pessoas, em média

  • Possui 12 metros quadrados de área útil

  • Vale 3.000 reais no mercado


                No caso de Londres, que se transformou na maior cidade do mundo na virada do século XX. com 6,6 milhões de habitantes, contabilizava-se 1 milhão de pessoas vivenda em condições miseráveis. Famílias inteiras, com até oito pessoas, ocupavam um único quarto. As taxas de crime eram preocupantes. Bandidos e pivetes atacavam os transeuntes nas principais ruas da cidade, como a Regent e a Oxford Street. Ganhavam num dia de roubo o mesmo que ganhariam se conseguissem vender 1.300 caixas de fósforo. Londres era um lugar tão ruim no final do século passado que um editorial de jornal escreveu sobre o horror dos cortiços: "O grande problema doméstico que a religião, o humanitarismo e as instituições políticas da Inglaterra têm o imperativo dever de resolver. O assunto virou tema de uma Comissão Real para o Problema das Classes Trabalhadoras, uma espécie de CPI daquele tempo. Descobriu-se o que hoje se considera óbvio. Os ingredientes daquela miséria eram uma mistura de pobreza, aluguéis altos, governo incompetente, corrupção e falhas no que diz respeito aos valores morais. No caso de Londres, o inchaço da cidade não fez surgir a periferia. Ao contrário, ela apareceu como uma forma de redistribuir as pessoas, tirando os miseráveis dos cortiços. Foram acomodados em casas decentes longe do centro.

                Um dos maiores desafios de uma cidade, e ele deve envolver as forças políticas, empresários e líderes comunitários, é erradicar a pobreza. A conclusão da tarefa é uma daquelas utopias, mas não dedicar tempo e energia a isso é uma insanidade. Nas metrópoles brasileiras se observam hoje manifestações de pobreza em diferentes estilos, por assim dizer. Há os moradores de rua, muitos deles crianças. Entre os diferentes estágios da pobreza, essa é a mais fácil de combater. Outra manifestação são as favelas erguidas nas regiões mais centrais da cidade. Diferentemente da periferia, têm ônibus na porta, escolas, hospitais e até mesmo lazer de final de sete mana. Em alguns casos, como na favela o da Rocinha, no Rio de Janeiro, oferecem aos moradores locadoras de vídeo, bancos e academias de ginástica. Anunciou-se recentemente a construção de uma universidade na Rocinha.


Favela é diferente

Incrustada num morro do Rio de Janeiro, a Rocinha é uma das maiores favelas da América Latina. Pela estrutura que oferece, pouco se parece com a periferia. A Rocinha possui.

  • 2 supermercados

  • 2 bancos

  • 5 academias de ginástica

  • 7 videolocadora

  • 9 farmácias


                 A vida é muito mais dura na periferia. Do ponto de vista geográfico, periferia é a fatia mais externa de uma cidade, a camada mais distante do centro. Do ponto de vista social, a periferia é aquele pedaço de 5 chão que está mais distante do aparelho do Estado, é um lugar onde o ônibus não vai, só as vans. Percebe-se que a periferia está próxima quando os outdoors e o comércio tradicional vão ficando para trás e as avenidas largas, cercadas por construções espaçadas, começam a se bifurcar em ruas cada vez mais estreitas ladeadas por casas
- grudadas umas nas outras. É para economizar espaço e aproveitar a parede do vizinho, explicam os moradores.


O transporte

As vans se tornaram o principal meio de transporte coletivo nas regiões periféricas

  • Cerca de80% das vans em circulação são utilizadas para fazer o transporte de passageiros entre o subúrbio e o centro das cidades

  • Em São Paulo a frota de vans supera a de ônibus

  • Os perueiros chegam a faturar 2.000 reais por mês


                 Tais bairros não conhecem redes de supermercados, redes de drogarias e cadeias de fast food, pois esses estabelecimentos não se instalam na periferia com medo de assalto. Em praticamente toda rua funciona algum tipo de comércio precário: bares, mercadinhos, farmácias, lojas de quinquilharias. Mais de 90% das casas da periferia são erguidas pelos próprios donos. Um modelo padrão ocupa terreno de 50 metros quadrados e tem quatro cômodos sem reboco. Tudo, com o terreno. fica em 3000 a 10 000 reais, no máximo. As casas debruçam-se sobre ruelas tortas que se vão bifurcando e estreitando até ficarem com 2,5 metros de largura onde os carros não podem chegar. Milhares dessas vias tortuosas se combinam numa teia de aranha. Existem apenas algumas ruas que, como artérias para o coração, permitem a passagem dos veículos que coletam passageiros ou entregam mercadorias em pequenos bares e mercearias.


Discurso feroz

Oriundos da periferia, os grupos de rap fazem sucesso narrando as mazelas da vida nos bairros pobres

GRUPOS MAIS FAMOSOS

Racionais MC's, Thaíde e DJ Hum, X, Pavilhão 9 e 509E, todos de São Paulo

ÁLBUM MAIS VENDIDO

Sobrevivendo no inferno, Racionais MC's: 1 milhão de cópias

TEMAS MAIS COMUNS NAS LETRAS

Violência policial, pobreza e desemprego


               Como a periferia se concentra nos limites de cada município, muitas vezes fica difícil saber qual prefeito o responsável por seu destino. O esclarecimento da dúvida não autoriza um prefeito a jogar a responsabilidade para o outro lado da fronteira. Por essa razão, não se pode discutir o assunto como se periferia fosse um problema local. Virou um assunto municipal, estadual, federal. E, na verdade, o chamado "problema de todos nós. Muitos já perceberam isso, como o cantor Netinho, que realiza um belo trabalho na periferia de São Paulo, e a sanitarista Zilda Arns, indicada pelo governo brasileiro para o próximo Prêmio Nobel da Paz. Zilda cuida  de crianças em mais de 3000 municípios em parceria com a Igreja Católica. Outro trabalho importante é realizado pelos evangélicos, que são os primeiros a se instalar nos bairros longínquos. Só os botequins chegam antes deles.

               São iniciativas bem-vindas e devem ser estimuladas, mas nenhuma delas tem o poder de combater a miséria com eficácia. Para isso, o Estado precisa agir com energia e responsabilidade. A primeira medida a ser adotada é tentar frear o processo de periferização. Os especialistas gostam de citar o exemplo de Londres. Após a II Guerra, as autoridades londrinas se viam às voltas com um processo de  expansão veloz da cidade. O problema foi contido com a criação de um cinturão verde de produção agrícola à sua volta. A faixa de plantação funcionou como uma barreira vegetal. Freado o crescimento, é preciso adotar medidas de duas ordens. Onde houver construções irregulares que ofereçam risco para quem lá mora, a única saída é a remoção das pessoas.

               Para melhorar a qualidade de vida nos bairros populares, há várias experiências bem-sucedidas. Nos países asiáticos, os prefeitos estão formando consórcios para otimizar os recursos públicos disponíveis nas regiões metropolitanas. Os países mais ricos investem pesado na reconstrução de bairros inteiros. Só nos Estados Unidos, mais de 100 000 moradias localizadas em conjuntos habitacionais de regiões pobres foram demolidas para que a população seja espalhada por bairros com características sociais e econômicas mais heterogêneas. No Brasil, já há alguns prefeitos se mexendo. O ABC paulista já conta com um consórcio de prefeitos. Em menor grau, alguns bairros também estão sendo reconstruídos, prioritariamente os localizados em áreas de risco. Contudo, o modelo mais comum adotado no país é a urbanização dos bairros periféricos. Nessa área o país coleciona experiências bem- sucedidas e os especialistas acham que podem aproveitá-las. Os estudiosos em administração pública, no entanto, são unânimes: ninguém vai resolver o problema sem acabar com a demagogia e o desperdício de dinheiro público. ·


Megapobreza

O quadro mostra quais eram as maiores cidades no começo do século passado, quais são elas hoje em dia e quais devem ser em 2015. Observe que as megacidades se tornaram um fenômeno do Terceiro Mundo (em milhões de habitantes)

1900           POPULAÇÃO 2001           POPULAÇÃO 2015            POPULAÇÃO
Londres                       6,6 Tóquio                           29 Tóquio                            29
Nova York                  3,4 Cidade de México         18 Bombaim                        26
Paris                           2,7 São Paulo                      17 Lagos, Nigéria                25
Berlim                        1,9 Bombaim                       17 São Paulo                       20
Chicago                      1,7 Nova York                    16 Karachi, Paquistão         19
Viena                          1,7 Xangai                           14 Daca, Bangladesh           19
Tóquio                        1,5 Los Angeles                  13 Cidade do México          19
Wuhan, China              1,5 Lagos, Nigéria              13 Xangai                            18
Filadélfia                    1,3 Calcutá                          13 Nova York                      18
São Petersburgo          1,3 Buenos Aires                 12 Calcutá                           17

Kristhian Kaminski, Patrícia Queiroz e Ricardo Mendonça, de São Paulo, Diogo Shelp, de Porto Alegre, Leonardo Coutinho, de Salvador, Lucila Soares do Rio de Janeiro, Marcio Pacelli, de Brasilia, e Raul Juste Lores, de Buenos Aires

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Secretários Municipais criticam Favela-Bairro  

 

Jornal O globo, Barra, 1º de março de 2001

Secretários municipais criticam Favela-Bairro
Fábio Vasconcellos e Fernanda Pontes

O programa Favela-Bairro, criado por Cesar Maia em 1995, é alvo de críticas dos atuais secretários de Urbanismo, Alfredo Sirkis, e de Obras, Eider Dantas. Eles acreditam que o projeto é uma faca de dois gumes: de um lado as favelas são urbanizadas, melhorando a qualidade a vida dos moradores. Em contrapartida, afirmam, isso acaba contribuindo para o crescimento das comunidades.

- Costumo dizer que o Favela-Bairro é um hardware sem software. Você melhora a condição de uma determinada favela e, com isso, atrai mais moradores para o local. Viramos vítimas do próprio sucesso - diz Sirkis.

Já Eider Dantas acha que o Favela-Bairro ainda não conseguiu atender à população carente, como fora previsto no início do projeto:

- Não atingimos aquilo que chamamos de população excluída. O programa não deve acabar, mas precisa ser reformulado, aperfeiçoado.

Enquanto os secretários teorizam sobre o projeto, os moradores de comunidades carentes criticam a inércia da prefeitura.

Juarez Fernandez, presidente da Associação de Moradores da Favela Barra América, cobra há dois anos a inclusão da comunidade no programa:

- Quem me dera se tivéssemos um Favela-Bairro aqui na comunidade. Já pedi à prefeitura que inicie as obras, mas não obtive resposta.


Fiscalização da própria população

Como solução para o crescimento desordenado das favelas em conseqüência do programa Favela-Bairro, o Secretário municipal de Urbanismo, Alfredo Sirkis, propõe um projeto de autolimitação das comunidades carentes no município do Rio.

Chamado de Mutirão de Reflorestamento, o projeto foi coordenado por Sirkis quando era secretário municipal de Meio Ambiente, na primeira gestão de Cesar Maia, e está pronto para ser executado, caso a prefeitura tenha interesse.

No projeto, a secretaria financiaria o pagamento de mão-de-obra regular e mensal, orientação técnica, sementes, mudas e ferramentas para uma média de 12 a 15 pessoas que atuariam como fiscais em cada comunidade.

- Por meio do mutirão, os moradores fariam o reflorestamento, a coleta e a reciclagem do lixo e ainda dariam sugestões à população sobre educação ambiental. Mas há um preço: caso o programa não obtenha adesão, ele é suspenso. É uma troca.

Segundo o secretário, algumas favelas já foram beneficiadas pelo projeto no governo Cesar Maia e não apresentaram crescimento sobre as áreas verdes durante o período:

- Com isso, conseguimos na época reflorestar 600 hectares e dar trabalho para aproximadamente 800 pessoas. Reunir ingredientes de urbanização não é o suficiente para transformar a favela num bairro. Ela só se tornará uma parte da cidade quando for submetida à lei.

Para Sirkis, a construção de praças e campos de futebol é importante, mas não basta para a transformação das favelas.

Josinaldo da Cruz, presidente da Associação de Moradores de Rio das Pedras, concorda com o secretário e também vê falhas no programa. Em dez anos, a favela apresentou um crescimento de 73% na sua área de ocupação.

- Não existe Favela-Bairro sem saneamento básico. A população de Rio das Pedras cresceu absurdamente, ganhamos quadras e moradias, mas ainda não temos rede de esgoto, que é lançado nos rios - afirma Cruz.


Moradores terão título de posse

A entrega de titularidade das casas para moradores de comunidades carentes poderá estar sendo posta em prática, já no segundo semestre. É que o governo federal está finalizando um programa que vai destinar cerca de R$ 700 milhões para o combate ao crescimento das favelas nos grandes centros do país, principalmente no Rio de Janeiro.

O programa prevê a entrega dos títulos de propriedade e ainda a regularização dos serviços de água, luz e rede de esgotos. Os recursos dos programa sairão do Fundo de Combate à Pobreza.

Além disso, o governo já criou uma comissão que percorrerá cidades como Rio, São Paulo e Salvador, em busca de áreas que possam servir de assentamento para famílias que hoje moram em áreas de risco. A idéia é baseada no programa Favela-Bairro.

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Estado põe famílias em contêineres

Jornal O Globo, Coluna Ricardo Boechat, quinta-feira, 21 de janeiro de 1999

Os encaixotados

Quase 60 pessoas de nove famílias do Morro Dona Marta completam, este mês, 11 anos vivendo dentro de oito contêineres.

Cada um tem apenas 7m2. Quando seus barracos desabaram, nas chuvas do verão de 1988 prometeram-lhes casas popu1ares "para breve".

O Palácio da Cidade, sede da Prefeitura, fica ao lado da favela.


A solução apresentada pelo Prefeito arquiteto Luis Paulo Conde:

Jornal O Globo, terça-feira, 2 de março de 1999

PROTESTO NO PALÁCIO

Sete famílias que desde 1988 moram em contêineres no Morro Dona Marta, em Botafogo, fizeram ontem manifestação em frente ao Palácio da Cidade. Elas reivindicam lugar para morar porque perderam as casas numa enchente. O prefeito Luiz Paulo Conde determinou que três famílias recebam indenizações, no total de R$ 16.970,00, para comprar casas ou voltar para o Nordeste.


Jornal O Globo, Quarta-feira, 31 de março de 1999

CASAS PARA DESABRIGADOS

Na quinta-feira serão destruídos os contêineres ocupados por famílias do Morro Dona Marta que ficaram desabrigadas nas enchentes de 1988. A Prefeitura liberou os cheques para a compra de novas casas. Os contêineres serão destruídos para não sejam mais ocupados.


Jornal O Globo, Rio, sexta-feira, 2 de março de 2001

Estado põe famílias em contêineres 

Moradores de região afetada por doença misteriosa serão transferidos
Marcelo Dias

 As famílias que vivem à beira do Rio Quebra-Coco, na divisa entre Japeri e Queimados, na Baixada Fluminense, devem começar a deixar as suas casas a partir da próxima semana, para morar em contêineres de ferro de 15 metros quadrados. A região foi marcada no ano passado pela morte de nove pessoas, vítimas de uma doença ainda misteriosa e investigada pelo Centro de Controle de Doenças de Atlanta, nos Estados Unidos.

Os contêineres servirão de moradia por seis meses, até que sejam construídas casas populares pelo Governo estadual. Entretanto, outra solução será negociada pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, Chico Alencar, que esteve ontem no local:

- Os R$ 183 mil gastos pelo governo no aluguel de 68 contêineres poderiam ser usados em uma solução mais viável. Eles são verdadeiros fornos, que lembram campos de concentração. A temperatura ao meio-dia de hoje (ontem) foi de 38 graus. Só a pessoa que os alugou está satisfeita - afirmou o deputado.

Chico Alencar vai encaminhar hoje um ofício ao governador Anthony Garotinho. O parlamentar quer saber o resultado dos laudos da doença e o cronograma de construção das casas populares.

OS CONTÊINERES que servirão de moradia têm 15 metros quadrados.

 

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O que vem depois da Barra  

Jornal O Globo, Morar Bem, domingo, 4 de março de 2001


Luciana Casemiro

Barra da Tijuca não é mais a mesma. Em breve, o bairro - que vem concentrando desde 1980 o maior número de lançamentos imobiliários da cidade - dividirá seu trono com vizinhos como Recreio e Jacarepaguá. Pesquisa do Sindicato da Construção Civil no Estado do Rio (Sinduscon-RJ) registrou queda no número de lançamentos residenciais na Barra: de 99 para 2000, sua participação no mercado carioca caiu de 31,1% para 29,9%. Já o Recreio fechou o ano com 11% dos novos projetos (mais 5,4% sobre 99), em terceiro no ranking. Ao lado de Jacarepaguá (o segundo, com 15,2%), os três bairros detêm 56%.

- A Barra da Tijuca vive um momento de maturação dos empreendimentos comerciais. Agora, os bairros vizinhos trilham o caminho que ela iniciou há quase duas décadas, com a segunda geração de imóveis residenciais - avalia Antônio Carlos Mendes Gomes, diretor do Sinduscon-RJ.

Em abril, Jacarepaguá ganhará seu primeiro shopping. Com 180 lojas e quatro cinemas, o Center Shopping Rio, incorporado e construído pela Ecia Irmãos Araújo, já tem 90% das unidades ocupadas.

- Em setembro último, lançamos uma superacademia de ginástica em Jacarepaguá, que já tem mais de três mil alunos. A meta é fazer com que os moradores do bairro se desloquem cada vez menos para a Barra - diz a arquiteta Mônica Bittar, da Ecia, informando que a empresa tem ainda condomínios residenciais previstos para Freguesia e Taquara.

Mas não são só Recreio e Jacarepaguá que vêm atraindo o interesse de construtores e pretensos compradores. Vargem Grande e Vargem Pequena também vêm conquistando um público interessado em qualidade de vida e nos preços, mais acessíveis do que os da Barra. Segundo o arquiteto Afonso Kuernez, que tem mil unidades projetadas para a região, o que impede o crescimento desta área específica, que inclui também o Pontal, é a legislação: a área mínima é de três a dez mil metros quadrados por unidade residencial, porque é zona agrícola:

- A legislação é do fim da década de 60 e inviabiliza vários projetos, abrindo espaço para loteamentos irregulares. O governo precisa agir para que não se tenha uma ocupação desordenada - diz ele.

Segundo o secretário municipal de Meio Ambiente, Eduardo Paes, o governo está agindo:

- Ainda neste primeiro semestre deve ser encaminhado à Câmara dos Vereadores um projeto de revisão dessa legislação. Mas os ambientalistas podem ficar tranqüilos que a qualidade de vida será preservada.

E, enquanto isso, o desenvolvimento da região segue em frente. Prova disso é o Shopping Vargem Grande, primeiro da área, com 147 lojas, que será inaugurado em julho de 2002.

- As cerca de 50 mil pessoas que circulam pela região sentem falta de banco, correio e consultórios médicos e dentários - garante Francisco Botelho, incorporador do shopping, que está lançando um empreendimento residencial com 360 apartamentos, até R$ 80 mil, e um condomínio com 36 casas, de R$ 200 mil, em Vargem Pequena.

A demanda por casas para classe média e média alta na região é crescente. A Sebe Engenharia, por exemplo, tem um projeto em fase de aprovação, de 46 casas, a partir de R$ 270 mil, numa área de 166 mil metros quadrados, em Vargem Grande.

- A área de crescimento da cidade será ampliada até Campo Grande, com a construção do Túnel da Grota Funda - diz Bernardo Svaiter, sócio da Sebe, à espera de que a prefeitura retome o projeto de realização da obra.


Corrida por preço e qualidade de vida

Imóveis avaliados por menos da metade do valor de empreendimentos similares em Botafogo, áreas verdes preservadas e boa qualidade de vida. Esses são alguns atrativos de Jacarepaguá, segundo o presidente da Associação dos Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi), José Conde Caldas.

- Além disso, com a Linha Amarela, Jacarepaguá ficou ainda mais atrativa. Afinal, agora quem mora no bairro está a 25 minutos do Centro e a dez minutos das praias e dos centros de consumo da Barra - diz Conde Caldas, informando ainda que a sua construtora, a Concal, que tem 50% de um empreendimento residencial vendido na Freguesia, está procurando áreas em Jacarepaguá e no Recreio para outros lançamentos residenciais.

Construtora tradicional da Zona Sul carioca, a RJZ lançou no ano passado um condomínio de casas, de R$ 180 mil, em Jacarepaguá. A experiência foi tão boa, que a empresa pretende repetir a dose: está à procura de terrenos no bairro e também em Vargem Grande.

Quanto à nova legislação para a área agrícola de Vargem Grande e Vargem Pequena, o secretário municipal de Urbanismo, Alfredo Sirkis, garante que nenhuma modificação será feita em detrimento das áreas de preservação ambiental:

- Há áreas disponíveis na região, sem vegetação com valor de preservação, para as quais a legislação propõe um adensamento muito baixo, o que acaba por estimular a ocupação irregular e descentralizada. A meta é ordenar essa ocupação, criando áreas de adensamento.

Voltando a Jacarepaguá, a João Fortes está finalizando um empreendimento para a classe média baixa, com unidades de R$ 50 mil, financiadas pela Caixa Econômica, e desenvolve outros projetos semelhantes no bairro. Para o Recreio, entretanto, a construtora vislumbra um outro perfil de investimento.

- O Recreio se parece com o Jardim Oceânico e exige empreendimentos com sofisticação como o Nova Barra, totalmente inspirado nos condomínios do bairro vizinho. Os preços no Recreio, no entanto, ainda estão entre 10% e 15% mais baratos do que o da Barra - diz Cláudio Fortes, presidente da construtora.

Marcos Levy, diretor de incorporações da Brascan, diz que o preço dos terrenos na Barra estão proibitivos para empreendimentos de casas:

- E hoje a grande demanda a região é por casas. Por isso, o interesse crescente, principalmente de jovens casais, entre 25 e 30 anos, por empreendimentos em Recreio, Vargem Grande e Vargem Pequena. Essas famílias estão crescendo e precisando de mais espaço. Nesses bairros, os preços são mais acessíveis e há boa qualidade de vida - diz Levy.

Com forte atuação em Botafogo, Laranjeiras e Flamengo, a Construtora Brunet também está investindo firme na região. Em abril, lança um condomínio de casas no Recreio, de quatro a cinco quartos, com valores que variam entre R$ 350 mil e R$ 460 mil, além de 120 unidades de dois quartos, em Jacarepaguá, com preços até R$ 60 mil, financiados pela Caixa Econômica.

- Estamos estudando condomínio de casas de R$ 250 mil, em Jacarepaguá. Ainda no bairro, estamos à procura de um terreno para construção de prédios, com 280 unidades ao todo, entre R$ 90 mil e R$ 95 mil - diz Edgar Meira Filho, gerente comercial da Brunet.

Meira Filho está investindo ainda na Vila Valqueire, onde vai lançar unidades de sala, dois quartos e mais um reversível, com preços entre R$ 90 mil e R$ 110 mil. A Ecia também aposta no bairro: inicia este mês a construção de dois prédios, com apartamentos de dois quartos.

- Vila Valqueire hoje é como Jacarepaguá era há dez anos. No bairro, teremos a terceira onda de crescimento residencial de toda aquela região - avalia a arquiteta Mônica Bittar, da Ecia.

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Retrato dos Municípios Brasileiros

Jornal O globo, O País, quarta-feira, 18 de abril de 2001

O Brasil visto por suas cidades

Pesquisa inédita do IBGE mostra que maioria dos municípios tem menos de 20mil moradores e sofre com falta de infra-estrutura

A distribuição da população, ainda mais desigual que a divisão de renda, fez do Brasil um lugar onde as ofertas de lazer, cultura e serviços públicos que garantem direitos do cidadão praticamente inexistam em 75% dos 5.506 municípios do país. Pesquisa inédita feita pelo IBGE, com base em informações fornecidas pelas prefeituras, revela que apenas 0,4% desses municípios que concentram 33,9 milhões de pessoas tem delegacias ou núcleos para o atendimento de mulheres. Somente 5% contam com comissões de proteção ao consumidor. Em 98% dos municípios cuja população não ultrapassa 20 mil habitantes não há uma única sala de cinema.

No outro extremo, os municípios mais populosos dispõem de todos esses serviços, mas sofrem mais com a favelização. As favelas estão presentes em todos os 26 municípios com mais de 500 mil habitantes e em apenas 20% daqueles que têm até 20 mil moradoress. No total, 28% dos municípios brasileiros têm favelas e 10% registram a presença de cortiços.

- Há uma grande concentração da população em poucos municípios, muito maior do que a renda, gerando grandes distorções. No Brasil, o índice Gini, em relação à distribuição de renda, é de 0,57. No que se refere à concentração da população é 0,69. Quanto maior esse índice, pior a distribuição populacional - disse o cientista político do IBGE Antônio Carlos Alkimin, um dos responsáveis pela elaboração da inédita publicação "Perfil dos Municípios Brasileiros".

Uma outra conclusão do estudo é a de que os 1.307 municípios criados a partir da Constituição de 1988 (23% do total) sofrem mais com a falta de infra-estrutura e oferta de serviços. Até mesmo a Lei Orgânica, legislação básica municipal e obrigatória desde a aprovação da Constituição, inexiste em 12% desses novos municípios.

Com pouco mais de quatro anos de existência, o município de Tanguá, a 90 quilômetros do Rio, reflete essa situação. Apesar dos esforços de seus administradores para a criação de infraestrutura, a cidade já nasceu na condição de terceiro lugar mais pobre do Rio.

A diretora de Pesquisas do IBGE, Martha Meyer, explicou que os dados do perfil foram coletados em 1999. A partir de agora, ressaltou, a publicação será anual, com dados atualizados.


Um continente de habitações irregulares num só país
Carter Anderson, LetíciaLins e Débora Ribeiro

RIO, RECIFE e SÃO PAULO. A pesquisa do IBGE revela que, apesar dos esforços municipais, ainda há muito o que fazer para resolver o problema habitacional. Segundo as prefeituras, há loteamentos irregulares em 46% dos municípios. Quase metade dessas prefeituras (49%) sequer cadastraram esses loteamentos. Nos 1.540 municípios com favelas, o problema é semelhante: 47% também não cadastraram os moradores.

Os pesquisadores consideraram expressivo o número de prefeituras (67%) que desenvolvem programas habitacionais, mas apenas 9% dos prefeitos se preocuparam em regularizar os loteamentos. A providência mais comum é a construção de habitações, iniciativa tomada em 53%, que beneficiaram 340 mil famílias, informou o IBGE.

São os grandes centros urbanos os que mais sofrem: a favelização é comum aos 11 maiores, onde vivem 29 milhões de habitantes. Recife, por exemplo, tem 500 favelas e déficit de 200 mil unidades, segundo a prefeitura. Cerca de 600 mil pessoas (50% da população) residem em habitações precárias, em morros ou alagados, normalmente às margens do Rio Capibaribe ou de canais.

Em palafitas com paredes de madeira e telhados de papelão ou zinco, e cômodos que muitas vezes são invadidos pelas águas da maré alta, moram aqueles que o poeta João Cabral de Melo Neto chamou de homens-caranguejos, pois vivem com os pés na lama. É o que ocorre na Favela dos Coelhos, no Centro. Nos morros, a situação também preocupa. Segundo a prefeitura, há 10.500 áreas de risco. São casas que podem não resistir a uma chuva.

- Em Recife, há favelas onde não há sequer condições de fazer a limpeza pública - explica a secretária de Planejamento,Tânia Bacelar.

Segundo Tânia, antigas favelas viraram bairros pobres, como o de Brasília Teimosa.

- As mais novas são as mais problemáticas, porque precisam de investimento, mas foram erguidas em lugares não edificantes. Nessas, as pessoas fizeram palafitas até dentro de canais. São famílias que precisam ser remanejadas.

Os números não chegam a surpreender porque 50% da população recebe até dois salários-mínimos. Segundo a prefeitura, 80% das áreas de baixa renda são formadas por favelas

Favelas como a Abençoada por Deus, onde moram José Severino Filho e a mulher, Edileusa de Lima Severino. Com aposentadoria de R$ 210 e responsável pelo sustento de dois filhos ainda em casa, invadiu uma área do bairro da Torre, próxima ao Rio Capibaribe. Sua casa tem telhas de amianto e madeira que recolheu no lixo e em demolições. Não há esgoto, saneamento, água e energia. O banheiro leva os dejetos para o chão e água e energia são clandestinamente puxados da rua.

São Paulo cresceu desordenadamente e vive um caos por falta de política de planejamento urbano. Cerca de dois milhões de pessoas moram nas 612 favelas. Mais 600 mil dividem um espaço exíguo nos 8.744 cortiços, sobretudo no Centro. Nos 4.600 loteamentos irregulares, 2,5 milhões de moradores vivem sob a ameaça constante do despejo. Os números são da Secretaria de Habitação e da Central dos Movimentos Populares (CMP).

- Falar que é o caos é pouco. São Paulo está à beira de um colapso. É isso que vai acontecer se nada for feito, se o estado e o município não apresentarem políticas efetivas. Medidas tímidas não adiantam, porque a demanda é gigantesca. Já está tudo superlotado. Replanejar a cidade é um dos grandes desafios - disse o diretor da CMP, José Albino de Melo.

Segundo ele, a atual administração petista faz "um esforço enorme" para organizar um cadastro de favelas, cortiços e loteamentos clandestinos.

- A prefeitura está tentando ter um dado real sobre a situação nessas áreas, até para tentar fazer frente ao problema. Vamos ver o que vai dar - disse.

Cerca de 25 prédios públicos no Centro estão ocupados por famílias, que chegam a dividir, em alguns casos, um mesmo quarto. As ocupações promovidas pela CMP reúnem sem-teto que vivem nas ruas e famílias que não suportaram pagar aluguel. Uma vez instalados, em instalações precárias, dividem-se em turnos na vigilância para evitar a entrada de estranhos e, sobretudo, a ação da polícia.


Segurança e cidadania: divisores de águas entre grandes e pequenos

RIO, JEQUIÁ (AL) e ARARICÁ (RS) Os serviços públicos de segurança e de defesa da cidadania são um divisor de águas entre os grandes e os pequenos municípios brasileiros. As delegacias e núcleos de atendimento a mulher, que começaram a ser criadas no Brasil na década de 80, existem em 6% dos municípios, mas podem ser encontradas em 85% dos municípios com população entre 200 e 500 mil habitantes e em todos aqueles com mais de meio milhão de moradores. Entre os menos populosos (até 20 mil habitantes), só 0,4% dispõe desse serviço.

- Esse é um problema sério. Basta lembrar que os maiores indicadores de violência contra a mulher no Estado do Rio são registrados no interior, justamente nos municípios com menor população - diz o cientista político do IBGE Antônio Carlos Alkimin.

Os habitantes das cidades menos populosas também não têm como resolver rapidamente seus pequenos conflitos, revela o estudo do IBGE. Os juizados de pequenas causas, cuja existência é registrada em pelo menos 90% dos municípios acima de cem mil habitantes, só podem ser encontrados em 16% daqueles com até dez mil moradores.

Já o perfil de implantação das guardas municipais, existentes em 18% dos municípios brasileiros, intrigou os pesquisadores. Na Região Nordeste, 30,8% dos municípios montaram suas guardas, o dobro do índice registrado na Região Sudeste (15,6%). A Bahia, segundo Alkimin, é um caso à parte: lá 242 dos 415 municípios dispõem de uma guarda própria.

Nos municípios criados desde a Constituição de 1988, como Araricá, no Vale dos Sinos (RS), a presença do poder público é ainda mais rarefeita. Com cinco mil moradores, o município, emancipado há seis anos, não tem cinema, delegacia de mulheres, juizado de pequenas causas, favelas e guarda municipais.

A milhares de quilômetros de Araricá, em Jequiá da Praia, no litoral norte de Alagoas, a situação é semelhante: não há guarda municipal, muito menos outros equipamentos básicos para garantir a segurança dos seus 12 mil habitantes. A primeira eleição em Jequiá aconteceu este ano e a primeira prefeita eleita, Rosa Jatobá Linha (PSDB) tem dois objetivos que pretende realizar este ano.

- Quero comprar uma ambulância e uma viatura policial para a nossa comunidade.

Jequiá não tem delegacia policial. Numa casa antiga, trabalha o efetivo da cidade: seis PMs. Com a falta de ambulância, a prefeita ajuda os enfermos com um carro particular.

Sem atividade econômica relevante, municípios como Jequiá são exemplos daqueles criados desde 1988, com o objetivo primordial de abocanhar uma parcela do Fundo de Participação dos Municípios (FPP), segundo Alkimin.

Segundo o IBGE, municípios recém-criados têm uma média de 40% de vias urbanas pavimentadas, abaixo do índice nacional (60%), outro sintoma de sua falta de infra-estrutura.


Em Alfredo Wagner, êxodo de 15,6%

FLORIANÓPOLIS. Situada entre a Serra do Mar e o Planalto catarinense, a cidade de Alfredo Wagner detém um título emblemático no Brasil atual. É o município em que houve maior êxodo rural no estado que lidera o ranking de movimentação de pessoas do campo para as cidades. Conforme dados do último censo, o êxodo do campo aumentou 15,6% entre os alfredenses, enquanto o índice geral chegou a 13,13% em Santa Catarina. A situação foge ao normal, porque 65% da população de 8.824 habitantes vivem em 42 comunidades rurais. Há dez anos, a população chegava a 9.187 moradores.

Com a economia voltada para a agricultura, principalmente para as culturas da cebola e do fumo, o município, a 120 km de Florianópolis, tem uma vida pacata na qual nem os telefones interferem. Os celulares simplesmente não funcionam na cidade. As antenas das operadoras estão a quilômetros da cidade, em alguns pontos da BR-282, a rodovia que liga a capital a Lages.

Meia dúzia de ruas forma o núcleo urbano do município, todas calçadas e limpas.

Para o prefeito Sérgio Blasi Silvestri (PPB), a situação só não está pior porque este ano o preço da cebola está bom. Dos R$ 210 mil mensais que o município arrecada em média, 51% estão comprometidos com a folha de pessoal, 25% com educação e 9% em saúde. O que sobra, segundo ele, mal dá para manter os dois mil quilômetros de estradas vicinais.

"Quando nasci a cidade se chamava Nova Palmeira. Depois virou Vila João Correa e em 1943, voltou a ser Nova Palmeira. Em 1945 passou a ser definitivamente Araricá. Com um nome ou outro, sempre foi um lugar sossegado", relembra.

Agitação no passado só ocorreu no início do século XX, no episódio dos Muckers, grupo de fanáticos religiosos alemães, que atuavam na área de colonização alemã e praticavam táticas de guerrilha, levando medo e insegurança à região. "Quando eles desciam os morros, roubando e matando, meu pai contava que tinha que esconder seus porcos e galinhas, nas despensas dentro de casa, senão eles levavam tudo, Eram eles e os farrapas que aterrorizam todo mundo", diz Wally carregando no sotaque alemão.

O soldado da Brigada Militar, Roberto Claudenir Costa, lotado no destacamento de seis militares que servem na cidade, confirma a fama de sossego de Araricá. "O registro policial mais freqüente é de furto e de pequenas ocorrências como brigas domésticas. Assalto a mão armada e outras violências comuns a centros maiores, raramente acontecem. Nos quatro meses que estou na cidade, nunca houve. Homicídio então, nunca ouvi falar. E sou daqui da região, essas informações circulam", afirma o soldado.

Assim, o trabalho mais comum da Brigada Militar é de controlar o tráfego de veículos na principal rua da cidade, a única pavimentada com asfalto. " A gente fica atento nos guris e suas bicicletas. Há muitas na cidade e embora não haja registro de atropelamentos e acidentes de carro, nós temos que ficar de olho", conta Costa.


Poucos cinemas, teatros, museus e livrarias, os males do Brasil são
Arnaldo Bloch

"Muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são" - era o bordão de Macunaíma, o herói sem caráter de Mário de Andrade. Se vivo estivesse, e desse uma olhada na pesquisa Perfil dos Municípios, do IBGE, o escritor talvez pensasse numa palavra que rimasse com "pouca cultura", sob o risco de ver Macunaíma (o livro, a peça, o filme e o samba-enredo) engolidos pelas saúvas da ignorância. Afinal, revela o IBGE, dos 5.506 municípios brasileiros, 93% não têm sequer uma sala de cinema; aproximadamente 85% não têm museus ou teatros; não existem livrarias nem lojas de CDs e fitas em 65%; um quarto deles não têm bibliotecas; e 69% têm apenas uma, pública, isso sem que se esclareça em que estado estão os acervos. Por outro lado, o Brasil, oitavo maior mercado editorial do mundo, tem livrarias em apenas 35% dos municípios e, como se sabe, o que aparece nas vitrines pouco tem a ver com a informação e a formação do cidadão.

- O problema no Brasil é que falta demanda. Se o brasileiro fosse viciado em livro como é em remédio, teríamos uma livraria para cada farmácia. Talvez com o maior acesso da criança ao ensino fundamental, tenhamos em alguns anos um quadro melhor - opina o presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL), Raul Wasserman.

A posição de lanterninha das salas de cinema, entretanto, é o dado mais gritante da pesquisa, até porque é paralela ao crescimento da produção audiovisual nos últimos anos, associada à chamada retomada dessa indústria.

- O custo de construção de uma sala é do exibidor, que prefere áreas de maior poder aquisitivo. E o Banco do Brasil, agente financeiro do projeto "Mais Cinema", do Governo federal, não aprova nada. Falta visão e vontade política. Com isso, uma geração de brasileiros cresce sem ter o cinema como opção de lazer - ataca Ugo Sorrentino, presidente da Federação Nacional dos Exibidores de Cinema (Fenec).

O executivo chama a atenção para o fato de o público alvo dos Multiplex - circuitos que vêm substituindo as salas antigas - ficar superexposto ao cinema americano. O que, segundo ele, faz da questão um problema social e político.

Dados externos à pesquisa do IBGE revelam que aproximadamente 32 milhões de brasileiros jamais entraram num cinema, por razões geográficas ou orçamentárias. E que o universo de espectadores hoje não supera os 8 milhões. No ano passado, 67 milhões de ingressos foram vendidos. Na década de 80 este número ultrapassava os 100 milhões. Por outro lado, o crescimento das salas de cinema de arte é um alento, ao menos nos centros urbanos: na década de oitenta, no Rio, eram menos de cinco; hoje chegam a 29, sem contar as que proliferam em São Paulo.

- Em Paris, são 49. Quer dizer, neste particular não estamos tão mal assim. As pontas estão se ligando, estes dois extremos devem sobreviver, mas as salas individuais perderam a disputa com as outras mídias - acrescenta o pesquisador Paulo Sérgio de Almeida, amparado pelos dados do IBGE, que mostram 65% dos municípios possuindo pelo menos uma locadora de vídeo.

- O crescimento das videolocadoras não é um fato negativo. Ao menos, mais pessoas têm acesso ao produto audiovisual - comenta o secretário de Audiovisual do Ministério da Cultura, José Álvaro Moysés. - O índice de uma sala para 100 mil espectadores, entretanto, é deplorável. Nos EUA, há uma sala para cada cinco mil. - acrescenta Moysés.

O crescimento do número de espectadores do cinema nacional - de 1,3 milhão em 1995 para 7,5 milhões em 2000 - é apontado pelo secretário como contraponto, ao mesmo tempo que ele lembra de fatores como a deterioração econômica e a política cultural dos anos Collor.

- O cinema nacional ganha prestígio, e produções como "Central do Brasil", "Eu tu eles", "Orfeu" e "O auto da compadecida" mostram esta nova vitalidade. No dia 25 de abril, o grupo executivo instituído pelo presidente FH para estudar os desafios da indústria cinematográfica vai apresentar os primeiros resultados. - diz o secretário.

Autor de uma tese sobre a história dos teatros no Brasil, o cenógrafo José Dias observa com preocupação, por sua vez, a situação das salas de espetáculos no país.

- A região Sul é privilegiada em termos de teatro, enquanto no resto do país o panorama é bastante precário. No Rio, o número de salas de teatro vem aumentando, mas elas estão se concentrando em locais inadequados como shoppings-centers, e sendo alugadas para fins outros, como cultos religiosos.

Ao analisar as principais vertentes da pesquisa, a recém-empossada secretária de cultura do Estado do Rio, Helena Severo, procurou apontar alternativas, sob a ótica de sua plataforma de projetos:

- Nem todo município tem que ter um museu se não há acervo. Quanto aos cinemas, em maio o Estado anunciará o Fundo Estadual de Incentivo, destinando R$ 12 milhões para produção, exibição e construção e reforma de salas. Mas no que se refere aos teatros, parece-me que a questão está na formação de público. É caro? Certo, mas as pessoas às vezes preferem gastar R$ 20 com uma bobagem a ir a um espetáculo. Os centros integrados de cultura que estão sendo planejados parecem ser uma boa solução. São polivalentes e ampliam a oferta do produto cultural, aproximando-o das comunidades.

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Arquitetura dos excluídos

Revista ISTO É, 17 de fevereiro de 1999

H A B I T A Ç Ã O


Moradores de rua buscam alternativas diante dos obstáculos criados nas cidades que os impedem de se abrigar em espaços públicos

LUÍSA ALCALDE

 

Fotos: MANOEL MARQUES -
Infográfico: JOCA/ALFER
HOMEM-TATU
Sebastião Barbosa é paraplégico e escavou sua casa embaixo da banca em que trabalha

QUARTO-E-SALA
No túnel de cinco metros não há janelas, mas o piso é recoberto por ladrilhos

ESCADA
Um alçapão dá acesso aos três cômodos. Ele tem que se arrastar pelos degraus

A doméstica desempregada Elizabeth Aparecida Ferreira fez do espaço público sua morada. Aos 46 anos, ela nunca teve uma casa e acaba de ser despejada do viaduto em que se abrigava, em São Paulo. O paulista Sebastião Barbosa dormiu muito ao relento antes de conseguir cavar e transformar um buraco em residência. As portas que já se fechavam para essas pessoas estão ainda mais cerradas desde que nas grandes cidades pontes começaram a ser protegidas por grades, marquises excluídas de projetos arquitetônicos, obstáculos pontiagudos instalados em fachadas, potentes holofotes colocados em prédios para impedir que qualquer ser humano pegue no sono, enfim tudo para evitar que moradores de rua façam desses locais um teto, mesmo que provisório. Denominado por urbanistas como "arquitetura dos excluídos", esse "movimento" ganha destaque na paisagem metropolitana a cada dia. Sem que se apresentem alternativas de habitação, esse arsenal de defesa do patrimônio serve para empurrar para bem longe de pontos turísticos e do centro um contingente formado só em São Paulo por 5.334 pessoas, segundo a defasada contagem da Secretaria Municipal de Bem-Estar Social, de 1997. "Essas intervenções não são para expulsá-los, mas para preservar o espaço público e privado dos vândalos. O problema é que os moradores de rua vão juntos nesse roldão", diz o secretário da pasta, Deniz Ferreira Ribeiro.

 

Foto: ALAN RODRIGUES
Edno Santos vive numa árvore em Brasília: "Deus é o dono da natureza, então eu posso morar aqui"

Essa "cidade" que cresce à margem da cidade formal se torna mais evidente porque o desemprego e a crise econômica ajudam a despejar mais miseráveis nas calçadas. "Com o desemprego o perfil mudou. Agora são jovens, mulheres e famílias inteiras na rua", alerta o vigário do movimento do Povo da Rua, Júlio Lancelotti. Nos últimos três meses a procura por albergues cresceu 80%, segundo dados da Pastoral da Rua. Há menos de um ano a Comunidade São Martinho de Lima, na qual o padre trabalha, atendia 150 pessoas diariamente. De dezembro para cá esse número passou para 400. "Não bastam albergues. É urgente uma política pública para essa área", diz Lancelotti. No Rio de Janeiro, não há nenhuma estatística sobre a população de rua, mas uma das preocupações do prefeito Luís Paulo Conde é desocupar os espaços urbanos. "Rua não é lugar de moradia", costuma dizer. Em sua gestão, nove viadutos foram desocupados e devidamente gradeados.

Paredes invisíveis Mesmo que a segregação seja resultado muitas vezes de uma política de preservação do patrimônio, a paulista Elizabeth Aparecida e seus companheiros sabem que cercar o viaduto em que vivem foi uma solução velada para afastá-los de uma das regiões mais nobres da cidade, o Ibirapuera. A grade desmontou a "casa" imaginária de três cômodos com muros invisíveis, "cozinha" equipada com fogão e armários, "sala" com sofás e "quarto" com colchões. Fiscais da Prefeitura levaram tudo. "Perdi as contas de quantas vezes isso aconteceu, mas daqui não saio", afirma. Os obstáculos à ocupação clandestina não se limitam às barreiras de ferro. Em São Paulo onde a iniciativa privada encampou um projeto de revitalização do Centro, o chão de fachadas comerciais e bancárias se transformou em camas de faquir e prédios antigos são iluminados evitando a depredação, mas, ao mesmo tempo, como ficam acesos à noite, impedem que mendigos se acolham. Na estação de metrô Parada Inglesa, os paralelepípedos foram assentados em pé sob o viaduto. Alguns prédios recorrem a chuveirinhos de água, mecanismos contra incêndio, que jorram das marquises à menor presença de moradores de rua.

 

Fotos: FELIPE GOIFMAN
A família Paiva descobriu que a pequena porta num elevado no Rio escondia uma área de 75 m2

"Essa profilaxia urbana é um reflexo mundial e não acontece apenas no Brasil", afirma Maria Cecília Loschiavo dos Santos, pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Em Nova York, lembra ela, a operação tolerância zero também tirou os mendigos de pontos turísticos. Para Oscar Niemeyer, que hoje vê o Plano Piloto em Brasília ser engolido pela miséria das cidades satélites, a arquitetura deveria evoluir em função da técnica e do progresso social. "Está tudo muito ruim. Teríamos que ser mais humanos. Para retirar os sem-teto das ruas, é preciso oferecer um lugar a eles. Por que querem esconder o Brasil?"

Mesmo com todas as adversidades os moradores de rua encontram maneiras de resistir à exclusão social. Para Sebastião Barbosa, alçapão é porta e porta é janela. Paraplégico sem ter onde se abrigar, escavou durante quatro anos um túnel de cinco metros de profundidade por três de largura embaixo de sua modesta banca em que vende gibis usados. O "homem-tatu", como é conhecido em Sapopemba, bairro da zona leste de São Paulo, caprichou no acabamento. Colocou lajotas, rebocou as paredes, fez uma laje, conseguiu instalações clandestinas de água e luz e equipou a casa com televisão, ventiladores e chuveiro. Tem dois colchões extras. "É para quando minhas filhas vierem me visitar", diz. Ele continua escavando, quer mais um cômodo.

Em Brasília, a dois quilômetros do Congresso Nacional, próximo ao eixo Monumental, o eletricista Edno Silva Santos construiu sua casa numa paineira. Migrante de Porto Seguro que buscava a sorte no Paraná, ele cochilou na parada feita na capital e perdeu o ônibus. Ficou desabrigado, com a mulher e a filha, na época, com seis meses. Por isso, a solução foi morar numa árvore. Montou o piso a 1,2 metro do chão, ao redor do tronco, com três folhas de madeirite. As paredes são de zinco e o teto de madeira. O acesso é feito por uma escada elevadiça, presa por roldanas e cordas. O material de construção foi garimpado nas ruas, enquanto ele recolhia latinhas que vende para reciclagem. "Quando vim morar aqui, pensei: quem é dono da natureza? Deus. Ora, eu sou filho de Deus. Então posso morar aqui", explica ele, que já foi expulso do local pelo governo do Distrito Federal, mas voltou.

 

Fotos: MANOEL MARQUES
Com a venda das casas de bonecas e de cachorros, a família Jesus construiu até um playground sob o viaduto

No Rio, Severino Gomes, 47 anos, improvisou um quarto na fenda de uma pedra, próximo à pista de cooper Cláudio Coutinho. Morador de rua há 20 anos, ele acredita ter encontrado o lugar certo, já que dispõe de vista para o mar e está cercado pela mata. Foi também um vão que Geraldo Francisco de Paiva, a mulher, Maria, e as duas filhas transformaram em moradia. O espaço vazio fica debaixo do viaduto e entra-se nele através de uma abertura retangular de um metro de altura, no elevado da Perimetral, que liga a avenida Brasil ao Aterro do Flamengo. Quem passa por ali imagina que a família espreme-se no buraco. Nada disso. As estruturas da Perimetral escondem uma área livre de 75 metros quadrados que eles souberam aproveitar muito bem. Maria Dalva e o marido, José de Jesus, fizeram de um terreno debaixo do viaduto da cadeia pública, na marginal do rio Pinheiros, em São Paulo, uma espécie de chácara. Em frente ao barraco de três cômodos, eles construíram um playground para os sete filhos com direito a um balanço e um carrossel. O antigo quartinho onde a família toda dormia espremida hoje já virou um "closet". As melhorias são resultado do dinheiro conseguido com a venda das casinhas de cachorro e de bonecas que eles fazem na serralheria que montaram ali mesmo.

Sobras da metrópole A urbanista Suzana Pasternak, professora de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, que estuda há anos o modo de vida dessa população com a ajuda da psicóloga social Elaine Rabinovich, analisa essa ação "sanitária" das administrações e dos comerciantes e as soluções dos moradores de ruas como mais uma prova do aprofundamento do abismo entre as classes. "Fazendo suas casas com as sobras da cidade, eles mostram o lado dramático da apropriação urbana evidenciando uma distância física cada vez menor entre pobres e ricos numa distância social cada vez maior." É como se a cidade fosse se autodigerindo. E esse processo fere o olhar até dos mais insensíveis. Em um dos canteiros da marginal Tietê, próximo à ponte da Casa Verde, a reportagem de ISTOÉ encontrou um homem recolhido em um tubo de esgoto coberto por um plástico preto. A improvisação, em casos como esse, fica aquém da dignidade humana.

Colaboraram: Valéria Propato (RJ) e Raquel Mello (DF)

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Moradores têm saudades das favelas

Jornal do Brasil, Cidade, domingo, 27 de maio de 2001


Antigos favelados que participaram de uma pesquisa há mais de 30 anos dizem que viviam em um 'lugar tranqüilo'

ISRAEL TABAK

Quando, em 1968 e 1969, fez uma pesquisa sobre a vida nas favelas do Rio, a cientista política americana Janice Perlman ouvia um comentário freqüente: os favelados diziam estar se sacrificando para que os filhos pudessem ter uma vida melhor. O que aconteceu com o sonho de 32 anos atrás? Uma pista é o depoimento recente dado à pesquisadora Joana Wheeler numa das favelas estudadas por Janice: uma moça de 18 anos, revelou que estava apta, depois de muito esforço, a fazer vestibular para medicina. Mas a família entrou em pânico. Se um dia os traficantes soubessem que havia uma médica na favela, poderiam obrigá-la a tratar em casa os feridos do movimento. E a recusa, com certeza, significaria risco de vida.

O aumento generalizado da violência, que chega a níveis insuportáveis nas comunidades pobres, é uma das principais queixas que a cientista política (também americana) Joana Wheeler tem ouvido nas novas entrevistas com as mesmas pessoas pesquisadas por Janice Perlman na década de 60. Foram localizados cerca de 40% dos 750 entrevistados, ou seus descendentes. O objetivo da nova pesquisa é simples: saber o que aconteceu com os favelados: Melhoraram ou pioraram de vida? Estão mais ou menos felizes?.

Os resultados obtidos com a primeira leva de entrevistados já permitem algumas conclusões: mais de três décadas depois, a grande maioria das famílias continua pobre como antes: a mobilidade social foi diminuta e os salários permanecem minguados. Mas também é verdade que elas vivem com mais conforto -com serviços de que não dispunham na época- e o interior das casas está mais rico: há um número maior de aparelhos eletrodomésticos, entre outras comodidades.

Discriminados - As queixas? Eis algumas: além da violência, os entrevistados continuam se sentindo excluídos, discriminados, sem oportunidades, como antes. E os que moravam em favelas removidas, como a Catacumba, na Lagoa, são quase unânimes em lamentar uma perda: a do ambiente de camaradagem e da intensa cooperação comunitária que garantem ter existido no tempo dos barracos de madeira e zinco. E mais sentida é essa lembrança quando se compara o passado com a atual mistura, como os entrevistados chamam as novas relações de vizinhança após a remoção da favela.

Nas conclusões do seu trabalho, que depois virou livro (O mito da marginalidade) publicado no Brasil em 1977, Janice Perlman critica a concepção de que os favelados constituem populações marginalizadas, alienadas politicamente e com tendência ao crime. Afirma, ao contrário, que eles são socialmente organizados, economicamente produtivos e, culturalmente, copiam as normas e valores da classe média. Politicamente, não seriam nem alienados , nem radicais. ''A pesquisa mostra que eles estavam inseridos na sociedade, mas de forma assimétrica. Davam muito mais do que recebiam'', complementa hoje Joana Wheeler. Ela integra a equipe de Janice e está coordenando a nova etapa da pesquisa.

Melhorias - Em 1968 e 1969 foram ouvidos os moradores da Catacumba, de Nova Brasília (Complexo da Maré) e das favelas Vila Operária, Central e Mangue, em Caxias. Os entrevistadores também ouviram habitantes de cinco bairros operários, em Caxias. A nova pesquisa começou no início de maio e deve estar concluída no fim de julho.

''Hoje muita gente, como os que foram removidos de favelas para conjuntos populares, tem água encanada, esgoto, construções mais sólidas. Há menos analfabetos. Mas muito poucos realizaram o sonho de ver o filho cursando uma universidade. E a maioria continua muito pobre'', observa Joana, com base nos depoimentos já computados. Algumas percepções dos entrevistados são curiosas. Como a de uma moradora do conjunto Guaporé, em Brás de Pina (Leopoldina) para onde foi removida parte dos moradores da Catacumba. Ela ganha R$ 450 por mês e se considera ''de classe média. Tem muita gente em situação muito pior do que a minha, sem dinheiro para comer'', justificou-se para Joana.

A queixa sobre o aumento da violência é unânime. E a antiga favela é vista como um lugar tranqüilo: ''Os entrevistados se queixam que, muito ao contrário do que ocorria antigamente, hoje vivem enfurnados dentro de casa, presos, pois é arriscado sair à rua. Sob este aspecto, a qualidade de vida piorou muito em relação ao período da pesquisa original'', diz Joana Wheeler.

No tempo em que a 'patroa' subia o morro

Ninguém chegaria ao extremo de dizer que era boa a vida nas antigas favelas da Zona Sul, removidas nos tempos do regime militar. Mas quem reencontra, mais de 30 anos depois, alguns dos antigos moradores da Catacumba, por exemplo, se impressiona com o clima de nostalgia. A julgar pela maioria dos relatos, a favela, a exemplo da letra do samba, ainda mora no coração de quem foi obrigado a abandoná-la.

E é uma nostalgia que leva a extremos, como o das pessoas que deixaram os conjuntos habitacionais para onde foram removidas e engordaram outras favelas, como as do Piquiri ou da Mangueirinha, em Brás de Pina. ''Não saio daqui por dinheiro nenhum. Me sinto melhor e mais seguro na favela que no asfalto'', brada Walter Cesário da Conceição, ex-morador da Catacumba, que fez uma casa de alvenaria na Mangueirinha, próximo ao conjunto do Quitungo, para onde havia sido removido.

Não se pense que os antigos e agora novos favelados desprezam as construções mais seguras com água encanada e esgoto. A maioria que permanece nos conjuntos valoriza as melhorias mas se queixa do resto: a localização (cotejada com o antigo privilégio de morar de frente para a Lagoa) o tamanho dos apartamentos (uma desculpa para passá-los adiante e construir casas maiores nas favelas próximas) e o transtorno que até hoje representa a mudança para lugares muito distantes dos antigos empregos e patrões da Zona Sul. ''Na época da mudança isso aqui era um deserto. É como se a gente saísse da cidade e fosse para a roça'', conta o pedreiro José Clécio Rezende.

Retorno - ''Se fizessem um favela-bairro na Catacumba eu voltaria para lá correndo'', afirma o agente de portaria aposentado Ismael dos Santos, 62 anos, que hoje vive no conjunto Guaporé, em Brás de Pina. Wilson Barros, 53 anos, que foi jogador profissional do Madureira, concorda com o vizinho: ''Não há quem não sinta saudades daquela época. Era um lugar tranqüilo onde todo mundo se conhecia'', diz Wilson, que começou a carreira de jogador no antigo campo às margens da Lagoa.

O funcionário público aposentado Hélio Luís Martins, o Hélio Grande, 73 anos, antigo líder comunitário, conseguiu melhorar de vida, mora num pequeno apartamento na Glória, mas está sempre visitando os velhos amigos: ''Naquele tempo não havia grupos criminosos organizados, nem conflitos com balas perdidas. E os poucos que faziam coisa errada não mandavam no morro nem a gente dependia deles para nada''.

Os antigos favelados também se referem a relações familiares com os patrões, quase todos moradores ou comerciantes dos bairros mais chiques da Zona Sul. E eram empregos que apareciam a toda hora, possibilitando uma renda familiar crescente. Eunice Aparecida Rezende, 61 anos, conta o episódio de uma patroa que foi à festa de casamento da empregada, no alto do morro:

Cadillac na favela - ''Ela chegou de cadillac rabo de peixe, deixou o carro em frente à favela e ficou a noite toda na festa. Isso era comum. Não havia perigo''.

Se não havia conflito no morro, houve uma guerra que os favelados não tinham como ganhar: a luta contra a remoção. Nos tempos da ditadura, a antiga Coordenação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (Chisam) foi criada com um projeto ambicioso: acabar, até 1976, com todas as favelas do Rio. A justificativa oficial era a ''recuperação econômica, moral, social e higiênica das famílias faveladas''. Os urbanistas, no entanto, diziam que os interesses imobiliários estavam por trás da retirada das favelas, sobretudo nas áreas mais valorizadas.

Os tempos autoritários acabaram, a Chisam foi extinta e hoje a acentuada favelização da cidade, incluindo áreas em que este fenômeno era raro -como a Zona Oeste- se transformou numa das principais dores de cabeça das autoridades.

Urbanista diz que problema se agravou

A favela está hoje ainda mais estigmatizada do que há 30 anos, na opinião do urbanista Luiz Cesar Queiroz Ribeiro, coordenador do Observatório de Políticas Públicas e Gestão Municipal, da UFRJ. Vista como um local de disseminação da marginalidade e do crime, ''é cada vez menos aceita pelas classes mais abastadas'', diz o especialista.

''Chega a ser dramático o descompromisso das elites com a relação às medidas que a sociedade deve tomar para minorar o problema'', afirma Luiz Cesar. ''A tendência é o isolamento, com a formação de guetos protegidos, como é o caso dos condomínios da Barra'', analisa. A verdade é que a antiga cidade cordial está acabando. As relações das comunidades próximas com a favela se deterioram a cada dia'', afirma Luiz Cesar Queiroz Ribeiro.

O urbanista enumera alguns fatores que explicam o alastramento das favelas. Além da disparidade de renda, que permanece, como há 30 anos, outra causa seria a ''precarização das relações de trabalho. O desemprego é alto e hoje há menos empresários assinando carteiras. Estamos na época do biscate, e é difícil fazer um projeto de vida nessas circunstâncias''.

Terreno -''Antigamente, se alguém quisesse sair da favela, comprava um pequeno terreno em suaves prestações na Baixada Fluminense. Mas isso pressupunha empregos estáveis''. Outro fator é que as tarifas de ônibus estão crescendo em proporção bem maior que os salários - acentua o urbanista. Isso também contribui, segundo ele, para que os pobres abandonem o antigo projeto de ''comprar um terreninho'' e invadam áreas um pouco mais próximas, formando novas favelas.

E morar em favela da Zona Sul já não é para qualquer um: ''Pesquisas mostram que quem está nesses locais tem renda familiar em média 20% maior do que em outras áreas''. Conseguir uma moradia nessa região privilegiada ficou caro, o que também explica o surgimento de novas aglomerações em áreas mais distantes''.

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Cidade incha pelas favelas

Jornal O Globo, Rio, terça-feira, 29 de maio de 2001


Selma Schmidt

Um estudo feito pela Diretoria de Informações Geográficas do Instituto Pereira Passos (IPP), a partir de dados do IBGE, soou como um alerta para o secretário municipal de Urbanismo, Alfredo Sirkis. Os técnicos do IPP constataram uma mudança de tendência no crescimento da população do Rio: a quantidade de habitantes da cidade aumentou quatro vezes na segunda metade dos anos 90, em relação ao início da década. Enquanto entre 1991 e 1996 a população cresceu 1,3% (de 5,48 milhões para 5,55 milhões, o que significa uma média anual de 0,26%), de 1996 a 2000 o aumento disparou para 5,36%, ou 1,31% ao ano. Com a confirmação dos dados do Censo 2000, que estão sendo checados pelo IBGE, a partir de 1996 o município terá ganhado 300 mil novos moradores, o equivalente à população total de Petrópolis.

Embora as informações oficiais sobre migração entre 1996 e 2000 só vão estar disponíveis em 2002, o secretário de Urbanismo, o diretor de Informações Geográficas do IPP, Paulo Bastos Cezar, e a coordenadora do Comitê do Censo 2000, Alícia Bercovich, encontram nesse fenômeno a hipótese mais provável para a mudança do perfil de crescimento da cidade. E eles vão mais longe: creditam o aumento à expansão de favelas, especialmente as da Baixada de Jacarepaguá, e de loteamentos irregulares, sobretudo em bairros periféricos da Zona Oeste.

&mdash; Além da migração, especialmente da Baixada Fluminense, acho que pode ter ocorrido o que chamamos de baby boom do Plano Real. Ou seja, nessas áreas mais carentes, as pessoas passaram a ter mais mais filhos motivadas pela estabilidade da moeda &mdash; especula Bastos Cezar.

Itanhangá inchou mais: 95,84%

Dos 300 mil moradores que a cidade ganhou entre 1996 e 2000, mais da metade (163 mil) está na Zona Oeste. Um terço do crescimento total do Rio (105 mil habitantes) ocorreu em bairros das regiões administrativas de Barra e Jacarepaguá. Mas foi o Itanhangá o lugar com o maior percentual de aumento da população, pulando de 11 mil para 21 mil habitantes (mais 95,84%).

&mdash; O que cresceu no Itanhangá foram as favelas, que ficam cada vez mais inchadas. Pessoas de mão-de-obra não qualificada se instalam em favelas do Itanhangá (Muzema, Cambalacho e Tijuquinha, entre outras), estimuladas pela proximidade da Barra, onde encontram mercado de trabalho &mdash; explica Marco Antônio Candelot, presidente da Associação de Moradores do Itanhangá.

Bastos Cezar lembra que, desde a década de 60, o percentual de crescimento da população do Rio vinha diminuindo. Segundo ele, a mudança de perfil também ocorreu em outras capitais como São Paulo (de 0,40% ao ano entre 1991 e 1996 e 1,41% ao ano entre 1996 e 2000) e Belo Horizonte (de 0,70% ao ano entre 1991 e 1996 e 1,65% ao ano entre 1996 e 2000).

Cosme Velho perde 1/3 de moradores

Nas últimas décadas, Barra, Jacarepaguá e o restante da Zona Oeste têm liderado o ranking dos bairros com maior aumento populacional. Na segunda metade da década passada, no entanto, o crescimento dessas áreas foi tanto (de 18,2% na Barra e em Jacarepaguá e de 11,7%, na Zona Oeste) que alterou a tendência da cidade. Em termos percentuais, outros campeões de crescimento populacional são o Recreio dos Bandeirantes (84%) e Vargem Pequena (77%). Em Jacarepaguá, onde está localizada a Favela de Rio das Pedras, o crescimento foi de 32,53%.

No período 1996/2000, quase todos os bairros da Zona Sul, o Alto da Boa Vista, o Rio Comprido e o Centro seguiram a tendência histórica de redução da população. Pelos dados preliminares do IBGE, Cosme Velho foi o bairro que mais perdeu população: um em cada três moradores deixou o lugar. Sirkis e Bastos Cezar, porém, acreditam que essa redução (de 32,18%) pode estar superestimada.

&mdash; Moro no Cosme Velho e acho que o número de moradores diminuiu, mas não em um terço &mdash; comenta Sirkis.

Copacabana tem 8.800 habitantes a menos do que tinha em 1996 (menos 5,7%). O Rio Comprido perdeu ainda mais: 15,1% ou seis mil pessoas. O Alto da Boa Vista ficou 11,3% mais vazio. Juntos, os bairros da Região Administrativa de Botafogo (entre Urca e Glória) perderam 11.500 moradores, ou seja 4,6% da população que tinham em 1996.

Outras 3.123 pessoas deixaram o Centro desde 1996 (menos 7,39% de habitantes). Segundo o estudo do IPP, a população da RA da Lagoa só ficou estável (redução de 0,21%) por conta do crescimento do Vidigal (23,72% a mais de 1996 a 2000).

No Leme, a população cresceu 6,12%, o que Sirkis atribui sobretudo ao aumento do Morro Chapéu Mangueira. O secretário estima ainda que o crescimento expressivo de Paquetá possa se dever a favelas.

O IPP ainda não encontra explicação para a redução do número de moradores da RA do Jacarezinho (menos 5,4%). Em contrapartida, a Rocinha cresceu 23,53%, o Complexo da Maré 7,3% e o Complexo do Alemão 2,5%.

Pelos dados iniciais do IBGE, a região conhecida como AP-3 (de Ramos à Pavuna) voltou a crescer, em termos demográficos, a partir de 1996. Só a Ilha do Governador ganhou 12 mil habitantes (mais 6%). Outro núcleo de expansão é a RA da Penha (cresceu 4,7%), sendo que mais da metade desse aumento ocorreu nos bairros de Brás de Pina e Vigário Geral. O IPP chama a atenção ainda para bairros de classe média da AP-3, que tiveram queda da população. É o caso de Lins de Vasconcelos, Sampaio, Vila da Penha e Vaz Lobo.

Secretário defende rigor urbanístico

Tamanho crescimento das favelas do Rio motiva o secretário de Urbanismo a considerar a questão como um desafio a ser enfrentado com urgência. Sirkis entende que são fundamentais programas para conter a expansão das favelas e impedir que continuem avançando sobre as áreas verdes.

&mdash; O problema tem de ser tratado com rigor urbanístico. Mas é necessário o apoio das comunidades para se conter o crescimento das favelas &mdash; diz Sirkis.

O secretário defende ainda a regularização fundiária e programas de geração de emprego para as áreas faveladas:

&mdash; O projeto Favela-Bairro não pode apenas se limitar a benfeitorias nos lugares onde é realizado. É preciso fazer bem mais do que isso.

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Rio ilegal tem mais de 1 milhão de habitantes 

Jornal O Globo, domingo, 24 de junho de 2001

Rio ilegal tem mais de um milhão de habitações
Alba Valéria Mendonça e Selma Schmidt

O Rio real está bem longe de ser um Rio legal. Segundo o sociólogo Luiz Cesar Ribeiro, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), da UFRJ, pelo menos metade das habitações construídas na cidade é irregular. Seja porque os imóveis foram erguidos em terrenos invadidos, como acontece com as favelas, seja porque não foram cumpridas as normas urbanísticas, como o respeito ao gabarito. Levando-se em consideração que o Censo 2000 contabilizou 2,1 milhões de residências no município, mais de um milhão de habitações são irregulares.

O quadro pode ser ainda mais negro. As conclusões de Luiz Cesar se respaldam em pesquisa na qual compara números anuais de habite-se com os de novas ligações à rede da Light, observando uma série histórica. O pesquisador, no entanto, não leva em conta aqueles que duplicaram a cobertura ou fizeram um “puxadinho” colado à casa licenciada, que não precisam solicitar ligação elétrica.

No Recreio, o desrespeito à legislação urbanística é flagrante. Numa área onde o gabarito é de dois pavimentos mais cobertura, não são poucos aqueles que constroem mais um andar. Criam uma cobertura dúplex, que muitos já conseguiram regularizar com a chamada mais-valia — um mecanismo, suspenso há cerca de dois anos, para legalizar obras mediante pagamento.

Mesmo sem mais-valia, a construção de coberturas duplas não parou no Recreio. A do administrador Jorge Ramos, na Rua Mário Faustino, é uma exceção. Por força de uma liminar, obtida pelo morador de um prédio vizinho, a obra está parada desde março.

— Os terrenos no Recreio ficaram caros e não tem sentido deixar de aproveitar o espaço. Até porque 90% dos prédios já construídos têm a cobertura dupla — argumentou Ramos.

Além de discutir o assunto na Justiça, Ramos procurou o Distrito de Licenciamento e Fiscalização da Secretaria de Urbanismo no Recreio. E o feitiço virou contra o feiticeiro: seu vizinho denunciante acabou notificado por ampliar sua cobertura além do que foi pago na mais-valia.

Longe da Justiça e da fiscalização, o proprietário da cobertura do prédio 165 tem mais sorte: sem serem importunados, na sexta-feira operários trabalhavam na conclusão do quarto andar do edifício.

Para tentar pôr ordem na casa, o secretário municipal de Urbanismo, Alfredo Sirkis, decidiu incluir no pacote de reforma urbanística que pretende enviar à Câmara dos Vereadores, em agosto, dispositivos para ao mesmo tempo regularizar e coibir as construções irregulares. Ele, no entanto, quer excluir a orla do benefício e limitar a cinco metros a altura passível de regularização.

O desestímulo às construções irregulares, segundo o secretário, será o valor cobrado pela legalização, bem superior ao da mais-valia. Sirkis quer fixar o valor para a regularização entre 200% e 300% do preço de mercado do imóvel para construtores e entre 75% e 150%, para proprietários.

Para favelas e loteamentos, o valor cai. A idéia é os que tiverem condições pagarem de 25% a 120% sobre o preço de mercado. Os que comprovarem ser carentes poderiam trocar a regularização da casa por prestação de serviços às comunidades nas áreas de saneamento, reflorestamento, coleta de lixo, urbanização, educação ou saúde.

No seu livro “Donos do Rio, em nome do rei”, a professora Fania Fridman, coordenadora de pesquisas do Ippur, mostra que grande parte das favelas do Rio foi erguida em áreas públicas. É o caso dos morros São Carlos, Vidigal, Chapéu Mangueira, Pavão-Pavãozinho e Alemão. Ordens religiosas são donas, por exemplo, de terras invadidas no Morro do Catumbi e na Vila Santo Amaro. Segundo a professora, na Rocinha há terras do Banco do Brasil, da prefeitura, do DER e do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal.

— Mas não podemos pensar que as ocupações de terras se restringem às favelas — lembra a professora.

O procurador Marcelo Marques, responsável pela área de patrimônio e desapropriações da Procuradoria Geral do Município (PGM), conta que, entre as 189 ações judiciais para desocupar áreas públicas, há algumas visando à retomada de 20 terrenos às margens da Avenida Armando Lombardi. Na área, destinada a um parque, existem casas, lojas, um minimercado e dois templos evangélicos. Uma ação da PGM visa desocupar logradouros do Mercado São Sebastião, explorados como estacionamento. A Com decisão favorável para demolir 13 casas na Rua 2 W, no Recreio, a PGM aguarda a ordem de desocupação para agir.

Para o professor Luiz Cesar, a situação das construções no Rio se repete nas grande capitais brasileiras, sendo um reflexo do problema habitacional do país. A saída, segundo ele, não pode excluir uma política habitacional adequada:

— A maioria das pessoas acaba ficando à margem do mercado imobiliário, já que os preços dos imóveis são altos — conclui Luiz Cesar.

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Favela já nasce com nome e associação de moradores  

Jornal do Brasil, Cidade, terça-feira, 10 de julho de 2001



RENATA VICTAL


Fugindo da fome, Silma Maria Santos Silva, de 42 anos, saiu do Maranhão em 1984 rumo ao Rio de Janeiro. Em 1996, uma enchente levou o que tinha construído. Alugou um quarto por R$ 180, mas ficou desempregada e teve que entregar o imóvel. Ontem, com um serrote na mão, colocava de pé seu novo lar. Silma e outras 5.000 pessoas ocuparam dois terrenos particulares em Jacarepaguá, com quase 10.000 metros quadrados cada. Chegaram à meia-noite com lonas, lençóis e pedaços de madeira. Menos de seis horas depois, estava criada a mais recente favela carioca. À frente da invasão está Marco Aurélio França Moreira, o Marcão, mineiro, de 34 anos, que afirma contar com o apoio de pastores evangélicos para manter o acampamento nos dois terrenos. Em agradecimento ao Senhor, os moradores da nova favela se reúnem duas vezes por dia para orar. Sempre acompanhado por cinco homens, que ora diz serem seguranças, ora de uma comissão de moradores, Marcão apresenta os barracos com orgulho e um discurso de político: ''Todos aqui perderam suas casas na enchente de 1996. Agora temos um pedaço de chão.'' Declarando-se surpreso com a invasão, o dono dos terrenos, o engenheiro Paulo Danilo Farina, vai pedir a reintegração de posse à Justiça.

A ocupação dos terrenos seguiu uma ordem meticulosamente planejada com oito meses de antecedência. A invasão começou à meia-noite do último dia 21. Às 6h, cerca de 650 barracos estavam de pé. Precariamente fincadas no chão com pedaços de madeira e cobertas com plástico preto e lençóis, as ''construções'' chegam a abrigar famílias de até 11 pessoas. As mais caprichadas têm telhas. Algumas têm pouco mais de três metros quadrados, quase o tamanho de uma barraca de camping para três pessoas. A nova favela já nasceu com nome - Comunidade Novo Rio -, e com associação de moradores.

O presidente da associação, Marco Aurélio França Moreira, mais conhecido como Marcão, também é uma espécie de líder religioso dos invasores, que se reúnem diariamente às 8h e às 18h para orar. Sempre que ele fala, a comunidade segue, agradece ao Senhor e aplaude. Cercado por seguranças da própria favela, Marcão mostra com orgulho e discurso de político em época de eleição o resultado da invasão que comandou: ''Todas estas pessoas perderam suas casas na enchente de 1996. Eu mesmo cheguei a comer rato frito. Elas moravam de favor na casa de parentes ou pagavam aluguel. Esta área está largada há mais de 20 anos e acabou virando um depósito de lixo. Limpamos tudo e construímos barracos. Agora cada um aqui tem um pedaço de chão''.

Discurso - Foi Marcão quem descobriu, há oito meses, os terrenos vazios ao lado da granja em que trabalha. De boca em boca, recrutou as cerca de 650 famílias que, unidas, ergueram a favela. Ontem, quase 30 homens trabalhavam sob sol forte para construir uma creche. Tudo na Novo Rio funciona em regime de mutirão. A cabeleireira Conceição Aparecida Lourenço, de 43 anos, que se mudou com a família de cinco pessoas para a favela, é uma das voluntárias. Durante a semana ela trabalha no ''salão do seu Menezes'', na Taquara, mas ontem, dia de folga, cortou gratuitamente o cabelo de adultos e crianças da comunidade. ''Vou cortando sem parar, é só sentar aqui que eu faço o serviço'', disse.

Na cozinha, o trabalho fica por conta de Vera Lúcia Macedo, de 47 anos. ''Estou desempregada e por isso dou uma força para o pessoal'', contou Vera, que mora com a filha e cinco netos na favela. Ontem, o cardápio tinha peixe cozido, ensopado de legumes, arroz e feijão. A comida foi distribuída para a comunidade. Tudo obra de Marcão, que disse ter conseguido os alimentos com a Ceasa. ''Graças ao Senhor eles estão ajudando a gente. Pena que a comida que temos só dá para hoje. Pela manhã tive que implorar para conseguir 200 pães, mas valeu a pena'', contou.

Carteirinhas - O presidente da associação de moradores da favela garante que antes da invasão, os terrenos, localizados na Avenida Isabel Domingues, serviam como depósito de lixo. ''Todos os comerciantes da redondeza jogavam lixo aqui. Agora o terreno está limpo e todas as famílias estão cadastradas'', disse Marcão que providenciou carteirinhas com fotos 3 por 4 de cada um dos cinco mil invasores. ''Quando a secretaria de Habitação vier aqui, todas os moradores já estarão cadastrados, não vai ter mutreta, nem como colocar parente de ninguém. Temos uma ficha para cada pessoa''.

Enquanto martela mais um prego no pequeno barraco que está construindo, a desempregada Silma Maria dos Santos Silva conta que pretende abrigar naquele espaço exíguo os filhos que ainda vivem no Nordeste. ''Eles estão passando fome e, se Deus quiser, vou conseguir trazer os dois para perto de mim''.

A ocupação passo-a-passo

PLANEJAMENTO: A organização da invasão, segundo Marco Aurélio França Moreira, o Marcão, começou em novembro do ano passado. Os dois terrenos, com dez mil metros quadrados cada, ficam próximos à granja onde Marcão trabalha como segurança.

COMISSÃO: Um grupo de moradores do bairro de Gardênia Azul, em Jacarepaguá - de acordo com Marcão, todos eles desabrigados pelas enchentes de 1996 - cria a associação que vai promover a ocupação da área.

AÇÃO: Às 23h do dia 21 de junho, cinco mil pessoas se reuniram em frente aos dois terrenos baldios na Avenida Isabel Domingues, em Jacarepaguá.

MATERIAL: Cada família tinha que levar o material para a construção do seu próprio barraco. Uns levaram só lona, outros já chegaram com placas de madeira.

RAPIDEZ: À meia-noite começou a invasão. Seis horas depois, 650 barracos estavam de pé. Cada família construiu sua casa como quis ou pôde. Alguns já levaram até móveis e eletrodomésticos.

Seguranças e pastores

Líder diz ter ajuda de evangélicos e guarda-costas



Solteiro, 34 anos, Marco Aurélio França Moreira, o Marcão, líder da favela Novo Rio, diz contar com o apoio de pastores evangélicos para manter o acampamento nos dois terrenos. ''Não temos mais comida para amanhã (hoje), vou ter que pedir aos comerciantes. Os pastores das igrejas evangélicas do bairro estão divulgando as nossas dificuldades e pedindo ajuda. Já recebemos muitas doações'', conta.

Segundo ele, três pastores moram no terreno recém-invadido. ''Eles fazem o culto e por isso não temos boca-de-fumo e ninguém anda armado por aqui'', garante Marcão. Evangélico, o mineiro que aos 14 anos veio ganhar a vida no Rio de Janeiro, diz que trabalha à noite como segurança de uma granja. De dia, a rotina que descreve consiste em bater de porta em porta em busca de alimentos, roupas e remédios para as cinco mil pessoas que estão sob seu comando.

Forte e alto, Marcão chama a atenção em meio às barracas. Anda sempre acompanhado por cinco homens, a quem ora se refere como uma comissão do acampamento, ora como ''meus seguranças''. Como os demais, afirma ter perdido o barraco que tinha na beira de um rio em Gardênia Azul, Jacarepaguá. A idéia de invadir os terrenos, segundo ele, surgiu por não poder mais pagar o aluguel de R$ 350. ''As pessoas perderam tudo e foi ali que comecei a ajudar todo mundo. Consigo falar com todos, até mesmo com as pessoas das comunidades vizinhas. Sou bem conhecido'', afirma.

Paes exonera assessor

Em solidariedade aos invasores, o secretário da Diretoria de Planejamento da Secretaria Municipal de Meio Ambiente Mário Esteves visitou ontem o terreno de Jacarepaguá. Como político, ele prometeu emprestar um carro e até mesmo levar material de construção para os que ainda têm barracos de lona ou cobertos com plástico. Prometeu ainda montar hoje um posto médico no local para atender as 500 crianças, que pela proximidade com esgoto a céu aberto e péssimas condições de higiene estão quase sempre doentes.

Irritado com as declarações de Mário, o secretário municipal de Meio Ambiente, Eduardo Paes, exonerou no início da noite de ontem o assessor. ''A prefeitura é contra a invasão. Estamos tentando tirar aquelas pessoas de lá. Aquilo é um absurdo, um escândalo. A exoneração do Mário vai estar amanhã (hoje) no Diário Oficial'', disse o secretário que completou: ''Aquela turma que invadiu o terreno é profissional. São todos grileiros que se aproveitam de pessoas carentes''.

Antes de saber que estaria fora do governo, Mário dizia que ajudaria os invasores no que pudesse. ''A situação aqui é irregular, mas já que é difícil remover essa gente, vamos fazer de tudo para ajudar. Amanhã (hoje) vou dar uma solução para aquelas crianças, dar um encaminhamento médico'', disse ele que antes de ir embora levou consigo uma lista com as principais reivindicações dos moradores. Apesar dos 10 mil votos que teve nas últimas eleições, Mário Esteves não conseguiu se eleger vereador pelo PMDB. Filiou-se então ao PL, quando conseguiu o cargo na Secretaria municipal de Meio Ambiente.

Proprietário - Os dois terrenos ocupados irregularmente na Avenida Isabel Domingues, em Jacarepaguá, são de propriedade do engenheiro Paulo Danilo Farina, de 63 anos. Ele foi informado da ocupação irregular no fim de semana e, já na segunda-feira, entrou na Justiça com uma ação de reintegração de posse. ''Já vi isso acontecer mil vezes, agora calhou de ser comigo'', lamentou.

O engenheiro preferiu não acionar a polícia para a retirada das famílias do terreno. ''Não é com polícia que se resolve esse tipo de coisa. Vou esperar por uma decisão do juiz'', disse. Farina contou que comprou os dois terrenos - cada um tem 10 mil metros quadrados - em 1976. ''Na época eu tinha uma empresa de engenharia e minha idéia era construir galpões ali para guardar as coisas da firma'', lembrou.

Farina acabou vendendo a empresa e abandonou a idéia da construção dos galpões. Por precaução, no entanto, cercou os dois terrenos com muros. O engenheiro não lembra quanto pagou pelas duas áreas, mas garante que, apesar do tamanho, elas estão bastante desvalorizadas. ''Há uma favela em frente, a uma distância de cinco metros dos terrenos'', disse.

A secretaria municipal de Meio Ambiente tem conhecimento da ocupação, mas informou que nada pode fazer a respeito, uma vez que se trata de terreno particular e a prefeitura só pode agir em áreas públicas.

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Rio ganha 15.717 casas populares  

Jornal O Dia, Sábado, 7 de julho de 2001.

PROGRAMA

Caixa libera financiamentos este semestre para construção de novas moradias para baixa renda

Cristiane Campos

O Estado do Rio vai ganhar 15.717 casas populares para famílias de baixa renda através do Programa de Arrendamento Residencial (PAR), anunciou, em entrevista exclusiva ao DIA , o superintendente da Caixa no Rio, José Domingos Vargas. A prestação inicial do financiamento é de R$ 140 para imóveis de R$ 20 mil e R$ 175 para construções de R$ 25 mil. A mensalidade corresponde sempre a 0,7% do valor do imóvel. Os candidatos devem ter renda familiar entre três (R$ 540) e seis salários mínimos (R$ 1.080).

No PAR, o reajuste das prestações é anual, pelo índice de correção do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Para Domingos, o sucesso do programa está associado às parcerias com prefeituras e Governo do estado. “As prefeituras fazem uma pré-seleção entre os interessados na compra da casa própria e oferecem descontos e até isenções dos impostos, o que ajuda os construtores a ter fôlego para começar a obra”, ressalta Vargas.

Outro incentivo é o Programa Morar Feliz. O estado premia os arrendatários que pagam as prestações em dia com um bônus mensal de R$ 75, que pode ser usado na compra de alimentos nos supermercados credenciados.

Guapimirim, Niterói, Maricá e Mangaratiba terão o PAR

Instituído pela Medida Provisória 1.823 de 29 de abril de 1999, o PAR lançou no Brasil um novo conceito de financiamento de moradias: o arrendamento residencial, no qual o morador paga, durante 15 anos, uma taxa mensal de arrendamento. Depois desse período, é que se torna proprietário do imóvel.

“O programa começou nas regiões metropolitanas do Rio e de São Paulo. Em seguida, com o sucesso, foi estendido a outros estados e capitais”, conta Vargas. O candidato não pode ter financiamento no Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e deve declarar não ser proprietário de imóvel. É necessário ser maior de 21 anos ou emancipado. Outra exigência é que o imóvel seja usado somente como residência, e não pode ter o projeto alterado.

No segundo semestre, entram na parceria as prefeituras de Guapimirim, Maricá, Mangaratiba e Niterói para a construção de novos empreendimentos. Até o momento, já foram entregues 2.127 casas populares. Há mais 3.398 em construção.

As inscrições para compra da casa própria podem ser feitas nas seguintes prefeituras:

Rio de Janeiro – Praça Pio X 119, 3º andar, Cidade Nova.

Belford Roxo – Rua Rocha Carvalho 1.436, Centro.

Duque de Caxias – Rua Alameda Dona Esmeralda 206, Jardim Primavera.

Nova Iguaçu – Rua Ataíde Pimenta de Moraes 495, Centro.

Itaguaí – Rua General Bocaiúva 636.

Itaboraí – Praça Prefeito R.P. dos Santos 63, Centro.

Magé – Avenida Simão da Mota S/N na Secretaria de Ação Social.

São Gonçalo – Rua Sá Carvalho 35, Centro na Secretaria de Desenvolvimento Social.

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Rachaduras abalam estruturas de casas  

Jornal O Globo, Barra, quinta-feira, 26 de julho de 2001


Fernanda Pontes

Pelo menos cinco casas tiveram as suas estruturas abaladas após a conclusão do Favela-Bairro na comunidade Vila do Sapê, em Jacarepaguá, em setembro do ano passado, segundo moradores. Eles dizem ainda que o bate-estacas usado nas obras teria provocado rachaduras em pisos e paredes das residências. A Secretaria municipal de Habitação, no entanto, limita-se a dizer que está analisando a situação.

— Já estive diversas vezes na prefeitura pedindo ajuda, mas até hoje ninguém apareceu. Essas obras foram eleitoreiras — conta a moradora Lindarifa Oliveira dos Santos.

A Defesa Civil, a pedido da moradora, vistoriou a sua residência, no dia 22 de fevereiro deste ano, e constatou que havia risco de desabamento. No laudo, consta que a casa está inclinada para o lado direito e que há infiltrações generalizadas nas paredes.

Desde então, Lindarifa entrou em pânico.

— Qualquer chuva pode derrubá-la. Dez pessoas vivem na casa nessas condições — queixa-se.

As rachaduras nas paredes, no entanto, não são as únicas conseqüências do Favela-Bairro, de acordo com os moradores. As caixas coletoras de esgoto estão completamente entupidas. A água poluída volta para dentro das casas sujando o chão e causando mau cheiro.

— Não adianta limpar porque meia hora depois já está tudo sujo de novo. Já tivemos três casos de hepatite na região — conta a moradora Ana Cecília dos Santos.

Ela também teve a sua casa vistoriada pela Defesa Civil em outubro do ano passado. O laudo indica que o imóvel corre risco de desabamento.

— Quando vamos à prefeitura nos mandam voltar outro dia — reclama.


Refluxos provocam muitos transtornos

Moradores da Vila Sapê também responsabilizam o Favela-Bairro, cujas obras terminaram em setembro do ano passado, pela precariedade da rede de esgoto. De acordo com eles, uma estação de tratamento construída na Rua José Orlando nunca funcionou. O rio que passa ao lado da favela recebe diariamente esgoto in natura.

Garrafas pet, baldes, restos de comida, pneus e muito esgoto são lançados no rio, que está assoreado e exala forte mau cheiro.

— Quando chove o nível das águas do rio sobe. Fico imaginando o desastre que poderá acontecer se um dia houver um transbordamento. Mesmo o pequeno refluxo de esgoto já é suficiente para causar alagamentos em muitas casas, inclusive na minha — queixa-se a moradora Ana Cecília dos Santos, que vive no local com três filhos e um neto.

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Abandono e preconceito são estigma das favelas

Jornal do Brasil, Brasil,19 de agosto de 2001



Entrevista / MARCOS ALVITO

MÁRCIA VIEIRA

Mulheres de Atenas e Esparta. Este seria o tema de tese de doutorado em antropologia de Marcos Alvito, 40 anos, historiador carioca de rosto anguloso, fascinado por versos de Homero. Das ''estratégias de apropriação do corpo feminino'' na Grécia para o feijão de dona Marlene em Acari, favelão plano nos confins da Avenida Brasil, foi um enorme salto. Da harmonia para o caos. Da sabedoria oracular para Xangô, a quem hoje reverencia sempre que chega em casa. É o protetor das pedreiras e seu apartamento no Jardim Botânico dá de cara para uma. Também trocou horas de leitura pela pelada regada a cerveja nos fins de semana na favela onde leva o filho de sete anos e joga no ataque, na banheira, para compensar seus escassos recursos.

A aventura em que Alvito se lançou resultou no livro ''As cores de Acari - Uma Favela Carioca'', lançado pela Editora da Fundação Getúlio Vargas, que renova e atualiza em grande estilo os estudos sobre a favelização no Rio de Janeiro. A experiência não lhe rendeu apenas amizades entre os 40 mil habitantes de Acari - ''criei laços fortes com os moradores; continuo indo lá'' - mas uma compreensão mais aguda do que são as mais de 600 favelas onde vivem um milhão de cariocas. Em Acari, viu de perto a brutalidade da polícia, a crueldade dos traficantes, fervor evangélico, jovens mães viciadas em cocaína, mas também raros exemplos de sociabilidade, além de estratégias de sobrevivência de quem já se acostumou com a orfandade do poder público e cada vez tem menos oportunidades de melhorar de vida só trabalhando. ''Um ambiente de injustiça e abandono facilita a penetração de esquemas criminosos onde jovens são usados como mão de obra barata'', diz. ''O tráfico é neoliberal, vai onde tem mão de obra mais barata''.

Vista na intimidade a favela derruba suas lendas. Ali funciona o varejo da droga para alimentar o viciado da Zona Sul. Meia verdade. Cada vez mais os pobres estão se viciando em cocaína, numa proporção alarmante, depõe Alvito. Favelado não gosta de polícia, prefere os traficantes. Falso. Acari viveu dias de esplendor com uma ocupação da polícia civil. A educação é a única saída para se melhorar de vida. Outra meia verdade. Favelados fazem um imenso esforço para educar os filhos, mas mesmo com segundo grau eles não encontram emprego decente e acabam, como os pais, caixeiros na Ceasa. Não há simplificação que ajude a entender a complexidade da favela.

A vida de Alvito mudou completamente. Hoje dá aulas de História da Sexualidade. Aprendeu a tocar pandeiro. Anda até freqüentando shows de samba. Nesta entrevista para o Jornal do Brasil falou sobre o mundo das favelas, um fenômeno inexorável da vida carioca, para dizer que só é possível entendê-las, como são, jogando fora a pesada carga de preconceitos e estereótipos que desviam a atenção dos problemas reais.

Esta semana discutiu-se muito a atuação da polícia no combate ao tráfico de drogas nas favelas cariocas. Os moradores das favelas preferem a ocupação policial à presença do tráfico?

Claro. Mas existem vários tipos de ocupação policial. A ocupação feita em Acari, em 1996, foi uma ocupação de exceção. Foi a polícia civil, na gestão do Hélio Luz (Chefe da Polícia Civil), com ordens claras de ocupar a favela respeitando os moradores. Os policiais estavam ali para desmantelar o tráfico. Sem tocar na comunidade. E nos poucos meses em que a polícia civil ficou lá, pacificamente, o tráfico acabou. Mesmo. Em dois, três meses, os policiais conseguiram achar mais armas e drogas do que a polícia militar, que entrava três vezes por dia em Acari, durante 10 anos. Os traficantes foram embora. Quem era aviãozinho, quem era endolador, quem não era conhecido pela polícia ficou ali, procurou outro emprego, mudou de vida. O resto fugiu. A polícia desmontou também a possibilidade do tráfico voltar. Os moradores me diziam que a favela estava uma maravilha, que a polícia estava respeitando todo mundo. E isto é muito importante. Os moradores diziam que enquanto a polícia civil estivesse lá, agindo corretamente, não haviacondição moral para o tráfico voltar. A favela estava melhor sem ele. Os moradores têm idéia de justiça e reciprocidade muito forte. Se a polícia respeita os moradores, eles também respeitam a polícia. E aí eles não dão apoio para nenhum traficante. Pode ser um menino que eles viram crescer. Os moradores diziam na época: ''a favela está maravilhosa, está uma uva, a polícia deveria ficar aqui um milhão de anos.''

O que aconteceu quando a polícia civil foi embora?

Entrou a polícia militar. No início, eram policiais de batalhões diferentes. Portanto não dava para o traficante saber qual policial aceitava propina. Ficava difícil o acerto, o esquema da corrupção. Depois houve a entrada do batalhão de choque. Os soldados usaram Acari para treinar. Ficavam correndo pela favela de fuzil na mão, com crianças brincando na rua. Eu ficava alucinado vendo aquilo. E depois finalmente veio o 9° Batalhão da Polícia Militar. Aí todo mundo se arrepiou e os moradores prenunciaram que o tráfico ia voltar. A violência é irmã da corrupção e a corrupção é a irmã do tráfico. A linguagem da violência é a linguagem do tráfico. Quando ficou apenas o posto policial comunitário, com um número muito menor de policiais, de um único batalhão, que já tinha todo um acerto com os traficantes. Aí é óbvio que o tráfico voltou. Voltou em outras modalidades, menos ostensivo. Mas voltou.

O primeiro passo para acabar com o tráfico no Rio é ocupar as favelas nos moldes que a Polícia Civil fez em Acari?

Não, isto não é solução. Primeiro porque não tem tropa policial suficiente para ocupar todas as comunidades. Não há homens preparados para fazer este tipo de ocupação feita pela polícia civil de desmantelamento e de inteligência. E quando você ocupa uma série de favelas, as facções correm para outras. O tráfico é rápido, móvel, adaptável. Portanto não é nessa esfera do varejinho que vai se conseguir combater o tráfico. Hoje em Acari tem tráfico de drogas e corrupção policial. Onde tem corrupção tem morte porque se o traficante não paga a polícia mata. É o que o Caio Ferraz (sociólogo que dirigiu a Casa da Paz em Vigário Geral) chamava de chacina a prestação. Todo mundo se choca quando morrem 21 pessoas de uma só vez, mas na verdade toda semana morre um, dois três. E não se acaba com o poder do tráfico de uma hora para outra. A turma que tem 15 anos já nasceu na favela com a percepção de que a autoridade máxima ali é o líder do tráfico. Portanto, mesmo no momento em que a polícia tinha desmantelado o tráfico em Acari, pairava ainda nas mentes e nos corpos dos moradores o medo da volta do tráfico. Eles estavam o tempo todo pensando na possibilidade de um dia o tráfico voltar. Um dia quem não agisse corretamente teria que prestar contas. E isso é uma verdade. Portanto não são momentos de presença policial que vão apagar esta certeza. A população pobre jamais teve segurança. Ela sempre esteve abandonada à própria sorte tendo que criar seus mecanismos de sobrevivência.

Como se poderia atacar o tráfico, eliminá-lo de vez das favelas?

Para resolver a violência, tem que pensar em resolver o problema da injustiça. Tem que pensar em resolver o problema do desemprego, do preconceito racial, da desigualdade ao acesso à educação, à assistência médica. Um ambiente de injustiça, de abandono facilita a penetração de esquemas criminosos, que usam estes jovens como mão-de-obra barata. O tráfico é neoliberal. Ele vai onde tem mão-de-obra mais barata, de fácil reposição. Onde tem jovem de 15 anos disposto a arriscar a própria vida em troca daquele dinheiro, ele se instala. O dia em que a classe média empobrecer o suficiente para aceitar este dinheiro, ele também vai empregar gente de classe média. É possível desmantelar o tráfico indo ao Fórum. Quem são esses advogados que defendem os traficantes? Tem que investigar daí pra cima.

Este poder que o tráfico tem na favela se estende às associações de moradores? Até que ponto o tráfico domina estas associações nas favelas cariocas?

Em cada favela há uma relação diferente. O que pesa nesta diferença é a relação da favela com o restante da sociedade. Ela é determinante na possibilidade da associação de moradores construir alianças que permitam a ela contrabalançar o poder do tráfico. Isso aconteceu em Vigário Geral, depois da chacina de 21 pessoas que chamou atenção de todo mundo para a favela. E acontece na Mangueira, por causa da visibilidade da escola de samba. Nesta favelas fica mais fácil para a associação de moradores construir uma relação diferente com o tráfico. Acari nunca teve nada disso. Fica muito longe da Zona Sul, lá no fundo da Avenida Brasil. Em Acari não vai ninguém. O líder comunitário fica sem aliança possível. Mas mesmo em Acari houve uma resistência ao tráfico por parte da associação de moradores. Teve até um presidente que chegou a criar uma cela dentro da sede da associação para prender traficante e entregar para a polícia. É claro que depois ele teve que sair fugido para não morrer. Em Acari existem várias associações. Umas mais outras menos ligadas ao tráfico. Em uma delas a influência do tráfico era tão grande que a sede foi construída pelo Cy(ex-chefe do tráfico, já morto). Era uma baita duma sede, com dois andares.

Nestes seis anos frequentando Acari e outras favelas, o Sr.percebe um aumento do número de pessoas pobres consumindo drogas?

Em todos os lugares que fui isso me chamou muito atenção. Tinha muita esta idéia de que a favela é o lugar do varejo e que a classe média e os ricos é que consomem a droga. Infelizmente não é verdade. Eu vi coisas assustadoras. Mãe entrando com filho de 12 anos na boca-de-fumo. Mãe carregando filho recém-nascido para consumir droga. Tudo gente pobre. Vi grupos de senhores de 50 anos cheirando cocaína numa birosca. O problema da droga e da dependência química dentro das comunidades pobres é muito mais amplo do que a gente pode avaliar. A quantidade de dependentes químicos em favela hoje é enorme. Em Parada de Lucas eu via entrar uma multidão, tinha até trocador de ônibus. É claro que tinha gente que ia revender, mas a quantidade é impressionte. O próprio tráfico tem preocupação com isso. No caso do viciado que vem de fora para comprar droga, o traficante estabelece as normas disciplinares. Proíbe que ele cheire ou fume no meio da rua (no livro, Alvito revela a existência de um ''Cheiródromo'' em Acari) e até quanto tempo ele pode ficar na favela. Mas o morador não. É mais complicado. O morador fica o tempo todo olhando a boca-de-fumo, vendo onde os caras malocam as coisas. Ouvi muitas histórias em Acari sobre estas pessoas. Gente que se aproveitava das entradas da polícia na favela para roubar a drogas que os traficantes escondiam. É claro que depois eram assassinados pelos traficantes. Sem discussão.

O uso de drogas hoje é maior do que o consumo de álcool nas comunidades carentes?

Depende da geração. Na turma que hoje está com 40/50 anos o grande problema ainda é o alcoolismo. Nas igrejas evangélicas é assim: as mulheres desta idade vão lá porque têm um marido alcoólatra ou um filho viciado em drogas. Já as mulheres de 30 é meio a meio. O marido pode ser viciado ou alcoólatra. Às vezes, os dois vícios caminham juntos.

O que leva os jovens a trabalharem para o tráfico? É o desemprego, a miséria?

Não dá para fazer a associação miséria/criminalidade. Senão a India seria o país com maior índice de criminalidade no mundo. E não é. Senão o Nordeste, que é mais miserável que Rio e São Paulo, seria mais violento. E não é. Quando este jovem escolhe o rumo que vai dar na vida, ele tem opções. As opções hoje estão muito restritas, o mercado de trabalho está mais fechado, mais exigente. Antes não precisava ter segundo grau para conseguir alguma coisa. Hoje precisa e o diploma não te garante mais nada. Na favela isto é impressionante. A primeira geração que se instalou em Acari viveu uma ascensão social. Ele passou do barraco de madeira para a casa de alvenaria de dois andares. Mas a geração seguinte não avançou muito. Tirando um ou outro caso a ascensão social do pobre está barrada. O sujeito bancou o filho no segundo grau, no curso de inglês, esperando que ele conseguisse uma profissão melhor. Mas o filho hoje está carregando caixote no Ceasa. E o que é pior, o filho nunca teve a expectativa de ser carregador no Ceasa. Ele esperava mais. Isso para ele é descer na vida, ao contrário do pai, que tem orgulho do que conseguiu carregando caixote. Estudar pra quê? Estudando na escola pública, ele sabe que não vai passar para faculdade pública. Quando consegue passar, entra para carreiras menos disputadas. Vai ser assistente social, porque já é negro, favelado, então vai trabalhar com negro e favelado. Por que um morador de favela não pode ser físico nuclear ou médico? O campo de possibilidades é mínimo. Não é a miséria que leva ao tráfico. Em contato com estas expectativas insatisfeitas, o adolescente vê um outro mundo com chance de ganhar dinheiro. Traficante gosta de lasanha, gosta de pizza. Traficante gosta de uísque. Não bebe cerveja. Por que? Ele gosta de coisas que a classe média gosta. Como aquela mãe que conta no livro que tem um filho que trabalhava no tráfico. Ela diz ''até os filhos dele são metidos. São diferentes dos meus outros netos. Só comem biscoito recheado''. Mesmo entre os biscoitos há uma divisão. A sociedade brasileira é hierárquica. De repente, você tem um jovem com uma explosão de testosterona com aquela coisa de se sentir imortal, querendo inverter o sistema hierárquico em que ele é mandado. Você dá uma oportunidade para ele ganhar dinheiro, ele vai, ele entra para o tráfico. Mas os que vão são minoria. A maioria rala, sofre e se submete.

No livro, o senhor diz que o Comando Vermelho e o Terceiro Comando existem mais nos discursos da polícia e nas reportagens do jornal, do que na realidade da favela. O tráfico não é então tão organizado quanto se imagina?

Esta divisão existe na cadeia e existe principalmente como divisão simbólica, na construção da identidade dos meninos. Em escolas hoje no Rio o recreio tem que ser dividido. Os meninos que são de favela do Comando Vermelho e os que são de favela do Terceiro Comando não se misturam. Os meninos estão acostumados a esse universo dividido, maniqueísta. Do ponto de vista simbólico é assim. Agora do ponto de vista de estruturação, dos traficantes serem organizados efetivamente é uma piada. É para não se ver o que está acima deles. O que existe de fato é um conjunto de alianças que o chefe do tráfico de uma área faz com o chefe de uma outra área. São alianças localizadas, não existe um comando que determina as ações de todas as favelas filiadas.

O senhor destaca no livro a importância da religião dentro de Acari. Por que as igrejas evangélicas de um modo geral, e as pentecostais em particular, conseguiram se firmar com toda força em Acari e nas outras favelas cariocas?

Estas religiões são de salvação individual. O indivíduo dá o testemunho, ele vai se batizar, se converter, se transformar, renascer. As pessoas passam também a dispor de uma alavanca para entender o mundo em que vivem. Como analisar um mundo em que se corta a cabeça dos inimigos? Um mundo onde as pessoas são esquartejadas, colocadas dentro de um saco e jogadas para o porco comer? Como é que você vai explicar o significado do terror, do indizível, daquilo que você não consegue imaginar e que você vê ali na sua frente? As pessoas convivem com o mal absoluto. E aí entram essas religões. Elas fazem uma oposição entre o bem e o mal. Os moradores têm cotidianamente a exemplificação do mal. O mal é o crime, a droga, a arma. E aí a igreja acrescenta: o mal é a macumba, é o feitiço, são os espíritos, são os Exus. Está muito difícil praticar o candomblé nas favelas hoje em dia. De início, quando o tráfico se implantou, as religiões afro-brasileiras eram hegemônicas e tinham uma força muito grande. Então os chefes do tráfico também era das religiões afro-brasileiras. Porque ela é a mais democrática que tem. Na festa do candomblé, a porta fica aberta. Ninguém precisa se converter, nem acreditar, nem pagar o dízimo. As igrejas pentecostais colocam as religiões afro-brasileiras na conta do mal. Dizem que o traficante que matou, que estuprou, que cortou a cabeça, estava possuído por Exu. Este mesmo traficante quando se converte, diz isso: ''Não fui eu. Eu era apenas um instrumento do demônio, do diabo''. Aí ele renasce. O morador da favela identifica logo o traficante, que mata, que rouba, que destrói. Ele olha para a droga, que é motivo de morte, de destruição, de desestruturação familiar - a droga acaba sendo chamada de diabo ralado.

E por que o tráfico não impede a entrada destas igrejas na favela?

Porque como esse pensamento já se tornou hegemônico, o próprio tráfico se vê como um mal. Ele não nega que ele seja o mal. Aí ele assume e anuncia que ele não é só o mal. Ele é o terror. Aí ele tem que ser mais maligno do que o outro para levar mais pânico, mais medo, e vencer o inimigo. É a violência absoluta.

A maioria da população de Acari frequenta as igrejas evangélicas?

Não fiz nenhum trabalho estatístico. Mas em Acari são cerca de 40 mil pessoas. Existem lá 37 templos religiosos, sendo que 31 são evangélicos. Dá uma média de 1 200 pessoas por templo. E destes centros evangélicos, 80% são pentecostais. A religião que domina as conversas em Acari é a pentecostal. Do ponto de vista individual, este mecanismo é muito poderoso para reconstituir um significado do mundo. A religião ajuda a reconstruir o mundo que está diante de você. E o mundo é um garoto de 14 anos matando outro garoto de 14 anos. É o filho de 13 anos batendo no próprio pai. É um chefe de 18 anos tendo não sei quantas meninas. É a droga rolando solta. É o marido que volta em casa bêbado e espanca a mulher. É o desemprego. É a escola e o hospital que não fucionam. Enfim, é o caos absoluto. Mas você não consegue viver no caos absoluto, do ponto de vista simbólico. Quando o mundo não faz mais sentido, você enlouquece. Quando você percebe que não tem saída, você entra para a religião. Ela te dá um sistema simbólico que é muito apropriado para a situação que você está vivendo. O do candomblé é muito mais complexo de entender. Para o indivíduo, a fé é uma coisa belíssima. Individualmente faz bem. Mas para o coletivo não. O convertido se isola. Ele não pode beber, não pode ir a festas. Depois não podem nem jogar futebol com quem não é da religião, que eles chamam de ímpios. Porque se o ímpio faz uma falta mais dura é porque ele é um agente do mal que está te testando. Ele vai se isolando e passando a conviver só com quem é da igreja.

A favela tem o estereótipo de ser um lugar caótico e violento. É só preconceito?

O que é característico da favela não é a violência. É a sociabilidade, é a amizade. É este vínculo pessoal, o calor humano. Isto é marcante. A violência é uma visitante indesejada e que está presente em toda a sociedade brasileira. A favela tem uma ética comportamental que não existe no resto da cidade. Etiqueta na favela é importante. Mulher casada só pode ser chamada de ''dona''. Todo mundo fala bom dia, boa tarde, boa noite. As pessoas precisam desta relação para sobreviver. A vizinha precisa da outra para tomar conta do filho enquanto vai trabalhar. O outro precisa do vizinho para fazer um serviço de pedreiro. E assim por diante. Há outros estereótipos errados. A própria idéia de favela é uma mentira. O contexto de cada favela muda tanto que praticamente a única coisa que une as favelas é o preconceito que os moradores do asfalto têm em relação às favelas. Elas são completamente diferentes entre si. É claro que existem algumas coisas semelhantes: os moradores não tem título de propriedade, eles são todos pobres. Mas não é aquele negócio de que você viu uma favela e já conhece todas. Só é assim quando você lida com estereótipos. Cada uma tem uma dinâmica, uma riqueza. Aquilo que se acusa a favela, de ser violenta, suja, irracional, mas marcada por uma alegria excessiva, é um resumo do que se acha do negro. É a mesma visão. O negro é sujo, violento, é alegre, está sempre sorrindo, gosta de festa. O estereótipo é o mesmo.

O que estas comunidades, como Acari, precisam para se tornar lugares melhores para os seus moradores?

O grande problema da favela hoje está no asfalto. É a sociedade inteira achar que a favela é um problema. Ela não é um problema. Ela foi uma solução que a população pobre encontrou para sobreviver. A favela cheira mal porque o lixeiro não passa lá para recolher o lixo. Não é como no asfalto que a Comlurb passa três vezes por semana pela rua. Não há ajuda nenhuma de infra-estrutura urbana, e aí se diz que as ruas são caóticas.

Então a chegada do favela-bairro é boa para estas comunidades?

O morador de favela geralmente quer que chegue o favela-bairro porque ele fica feliz com qualquer coisa que ele possa ganhar. Mas a gente tem que perceber o seguinte: 80% da urbanização das favelas foi feita pelos próprios moradores. Isso é fundamental. Se isso fosse contado economicamente, imagina quanto valeria? Acari era inabitável. Era um pântano. Foi devidamente aterrado e aplainado e se tornou área habitável. Os moradores colocaram um sistema de água. Colocaram um sistema de luz, muito antes da Light entrar. A favela tem esta imagem de coisa atrasada. Mas não é verdade. Ela é antenada. Outro dia, lá em Acari, vi um bar: o Internet Beer Show. Não tem computador, mas tem o nome. O cara sabe que internet está na moda. Tem aula de aeróbica na favela. Favelado é um cara progressista. Ele é ligadão nas novidades. Ele compra o tênis da última moda, é bem verdade que o dele é o falsificado, mas ele sabe o que a Zona Sul está usando. O favela-bairro é visto como um benefício, mas ele não resolve o problema da favela porque não existe um problema arquitetônico naquele espaço. O problema é a inserção na sociedade destas pessoas que vivem em favelas. O favela-bairro aproveita o que os moradores já fizeram, coloca uma rampinha, bota a placa. Mas e o problema do emprego, da capacitação da juventude? E o problema da escola, do hospital, do tráfico? O favela-bairro tem um outro problema a médio e longo prazo. A prefeitura urbaniza, melhora a aparência. A casa valoriza. Mas se o morador continua na mesma pindaíba, uma classe média empobrecida pode querer ir morar lá, pode querer comprar a casa. Se o morador da favela está numa situação difícil, porque ele continua sem chances de emprego, ele vende a casa e vai construir um barraco lá em outro lugar. Aí é uma remoção branca. E tem outro problema. Se legalizar tudo na favela, der o título de propriedade, o Estado vai querer cobrar imposto. Vai querer regularizar a situação do comércio, exigir alvará. Então todo este projeto favela-bairro, além dos dividendos políticos, também é uma forma de a médio prazo começar a cobrança de impostos. Se os moradores de favela jamais foram incorporados como cidadãos, eles vão ser incorporados como contribuintes.

Acari foi marcado também pelo projeto Fábrica da Esperança, do pastor evangélico Caio Fábio. O projeto ficou desacreditado depois que polícia encontrou cocaína escondida no prédio. A Fábrica da Esperança era boa para os moradores?

Eu não conheci a Fábrica. Só posso dizer que ela não tinha nenhum enraizamento comunitário. Ela atendia as pessoas de Acari, mas todo o seu staff era de fora. As psicólogas que trabalhavam lá vieram me perguntar como é que eu fazia para entrar na favela porque elas nunca tinham entrado.

O Sr.passou três anos frequentando Acari e hoje mantém amigos por lá. Esta convivência com a favela mudou a sua vida de alguma forma?

Muito. Eu era ateu convicto. Achava religião uma coisa estúpida, alienada, fruto da ignorância. Mas vi que a religião é apenas uma forma de pensar o mundo. Rezar o pai nosso não significa que você acredite exatamente naquelas palavras. O mais importante na religião é a prática. É a demonstração de que você é humilde suficiente para pedir ajuda, para não se sentir todo-poderoso. Eu agora abraço todos os deuses. Os deuses gregos, os deuses do candomblé, o deus dos evangélicos, que é o deus da Dona Marlene, a matriarca de uma família que eu conheci lá e que acabei me tornando amigo. Aprendi mais coisas na favela. Aprendi que a sinceridade lá é fundamental. Ao contrário do mundo acadêmico que é hipócrita, cínico, político, na favela o que conta é manter a palavra. O principal patrimônio de quem vive na favela é a honestidade, o caráter.

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Linha vermelha cede e pára a cidade  

Jornal do Brasil, Cidade, sexta-feira, 7 de setembro de 2001

Linha Vermelha cede e pára a cidade

Incêndio mata duas crianças e abala viga de sustentação da via. Engarrafamento, na saída do feriado, chega a São Conrado

Por volta das 14h de ontem, um incêndio precedido de várias explosões destruiu 150 barracos construídos embaixo da Linha Vermelha e provocou a envergadura, em 50 centímetros, das vigas de sustentação de um trecho de 50 metros da via expressa, no sentido Baixada-Centro, na altura do Caju. A pista cedeu, formando um enorme vão.     

O incêndio, que matou duas crianças, mexeu com a cidade inteira - não só pela tragédia, mas pelas conseqüências no trânsito já congestionado na véspera do feriado do Dia da Independência. A interdição das quatro pistas da Linha Vermelha num ponto estratégico de chegada e saída paralisou o Rio. Na Auto-Estrada Lagoa-Barra, no Túnel São Conrado, na Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul; em todas pistas da Avenida Brasil rumo à Zona Oeste, entre o Caju e a Ilha do Governador, na Zona Norte, se formaram longos engarrafamentos. O caos também se estendeu da Avenida Atlântica, em Copacabana, até o Túnel Santa Bárbara. Até as 20h30m, o trânsito continuava congestionado nos elevados da Perimetral e Paulo de Frontin, no Aterro do Flamengo e na Linha Amarela.  

O fogo, que chegou a atingir 15 metros de altura, matou pelo menos duas crianças. Uma delas, Mayara Gomes Ribeiro, 2 anos, estava sentada num carrinho de bebê, quando as chamas consumiam os barracos da favela Parque Boa Esperança. Até o início da noite, outras três crianças e dois adultos ainda estavam desaparecidos. ''Queria tirar a minha filha dali. Eu tinha ido lavar roupa quando percebi a fumaça. Quando voltei para salvar Mayara já era tarde demais. 

"O fogo já tinha tomado tudo'', disse em prantos Rose Gomes Ribeiro, mãe da menina. 

Durante toda a tarde equipes do Corpo de Bombeiros e da Defesa Civil estiveram no local. Mas até o final da noite, não se havia chegado a uma conclusão sobre as causas do incêndio e da conseqüente envergadura do trecho da Linha Vermelha. 

Alguns moradores contavam versões que iam de um curto-circuito à explosão de uma panela de pressão. Outros narravam uma história envolvendo explosões de botijões de gás. Até a história de que traficantes teriam recebido a polícia e equipes de socorro à bala circulou de boca em boca. ''Ouvimos vários estrondos. Depois disso, vimos várias pessoas jogando botijões no rio. Estava todo mundo desesperado e com medo que outras explosões ocorressem'', contou Fábio de Souza, 14 anos, morador da Vila Tiradentes, loteamento vizinho ao Parque Boa Esperança. 

Panela de pressão - A tese de Fábio e de outros moradores é reforçada por provas concretas como os estilhaços de telhas para cobertura que, com a explosão, teriam sido lançados em vários pontos da pista. ''Não podemos afirmar nada antes do laudo, que só será concluído daqui a 30 dias. O que me informaram é que a mãe da Mayara havia deixado uma panela de pressão no fogo e isso teria ocasionado o incêndio'', contou o coronel João Carlos Mariano, coordenador da Defesa Civil do município. 

O trágico acidente na via expressa mobilizou o governador Anthony Garotinho, que chegou de helicóptero ao local. Ele participava da cerimônia de inauguração de uma Delegacia Legal, em Porto Real, quando soube do problema. ''Corri para cá assim que soube da gravidade do caso. A gente já conhecia essa ocupação e já havíamos oferecido novas casas. Só que os moradores não aceitaram'', disse o governador. Segundo o presidente da Associação de Moradores do Parque Boa Esperança, Carlos Roberto Pascoal de Lima, há cerca de dois anos ele vem tentando convencer as autoridades do município e do estado da necessidade de remoção da favela. Mas até ontem, não havia obtido sucesso. ''Estávamos em negociação com a subprefeitura do Centro. Fizemos várias reuniões, eles prometiam e diziam que estavam estudando o caso'', disse Carlos Roberto. 

Segundo ele, a área da tragédia já foi ocupada anteriormente por outro grupo de moradores. ''Essa é a segunda ocupação. Os que moravam aqui antes foram transferidos para moradias mais seguras do outro lado da via'', comentou. 

Ainda ontem, a Defesa Civil fez uma avaliação preliminar dos estragos na Linha Vermelha. Durante a inspeção, os dois sentidos da via ficaram fechados por mais de cinco horas. Para não prejudicar ainda mais o fluxo viário da cidade, a Defesa Civil liberou duas faixas, no sentido Centro-Baixada. Canagé Vilhena, vice-presidente do Conselho Regional de Engenharia do Rio (CREA), condenou a liberação. ''Não poderiam fazer isso sem um estudo mais preciso sobre a área afetada'', alertou.


Boa Esperança vira pó

A maioria dos 150 barracos da Favela Parque Boa Esperança virou pó meia-hora depois do incêndio que dilatou as vigas de sustentação do trecho da Linha Vermelha. No local, onde moram cerca de 300 pessoas, o cenário era de tristeza e muita revolta. Mais de 80 homens do Corpo de Bombeiros e outros 200 das Polícias Civil e Militar, Bope e Getam, tentavam sem muito sucesso conter os ânimos dos moradores. As crianças, assustadas e sem compreender muito o que estava acontecendo, procuravam se proteger da confusão se agarrando aos pais. ''Eu nunca imaginei que uma coisa dessa pudesse acontecer. Eu e minha filha estamos traumatizadas'', disse Célia de Souza que, com a menina Karina no colo, tentava se esconder em meio às cenas de destruição. 

Os moradores xingavam a polícia, debochavam das autoridades, culpavam o estado. O sargento Wilson Correia, do grupamento do Corpo de Bombeiros do Caju, tentava com tranqüilidade acalmar crianças e adultos com explicações repletas de conforto. ''Neném, não fica aí. Você pode se machucar'', dizia às crianças. ''Calma meu amigo, a gente vai salvar as suas coisas'', falava a um pai de família desesperado. Em determinado momento, a frieza imposta pela farda sucumbiu diante da tragédia. Emocionado só conseguiu fazer um único comentário: ''Não dá, né. É terrível ver uma criança carbonizada num carrinho. Não dá'', desabafou. 

O vendedor ambulante Robson Viana de Oliveira, 32 anos, não conseguia acreditar que o seu barraco não havia sido atingido pelo fogo. Apesar de não esconder uma certa alegria por não ter perdido aparelhos domésticos e as ''poucas roupas'' guardadas em um antigo armário, ele se solidarizava com os companheiros vizinhos. ''Fui o terceiro morador daqui. Conheço a todos e, quando soube, vim correndo para ajudar os meus amigos'', disse. Ele também contou que, por causa das más condições de vida que enfrentavam, um grupo de moradores foi ontem até um shopping na Barra para um protesto conjunto com o Movimento dos Trabalhadores Urbanos (MTU). ''Pode ter sido coincidência, mas também pode não ter sido'', ressaltou.


Fogo deformou a viga

O projetista da Linha Vermelha, engenheiro José Carlos Sussekind, disse ontem que, de acordo com os primeiros dados sobre o acidente, o que provavelmente ocorreu foi ''a confirmação de uma lei da física: o aço, submetido a altas temperaturas, se deforma e perde resistência''. No trecho do acidente, as vigas da estrutura da Linha Vermelha são metálicas. 

Sussekind, 54 anos, é calculista de Oscar Niemeyer há cerca de 30 anos. ''As estruturas são feitas para aguentar cargas e não para serem submetidas a um caldeirão'', afirmou. Segundo ele, para a construção da Linha Vermelha, mais de mil famílias tiveram que ser desalojadas. ''E isso foi necessário justamente com o objetivo de evitar situações como a que acaba de ocorrer. A Linha não pode ter favelas grudadas ou debaixo das pistas'', disse. Para o engenheiro ''o episódio mostra com clareza que quem é tolerante com a invasão, na realidade não está se empenhando o suficiente para evitar a perda de vidas humanas''. A ação do gás 

O pesquisador Moacyr Duarte, que trabalha na área de risco tecnológico da Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia (Coppe), da UFRJ, explica como a ação do gás pode ter contribuído para provocar o acidente: ''Quando os botijões estão totalmente envolvidos pelas chamas, ativam dispositivos de proteção que evitam a explosão. Mas o resultado é a formação de um jato de fogo, que tem a temperatura bem mais alta do que a de um incêndio comum. A altura das chamas seria suficiente para atingir as vigas e os pontos de apoio dos pilares'', assegura. Outra hipótese, segundo o especialista, é que a onda de choque das explosões de gás, causadas pela destruição das mangueiras e conseqüente vazamento, pode ter provocado um abalo na estrutura metálica, deslocando os pontos de equilíbrio da viga e gerando o afundamento da pista.

''O fato é muito grave porque evidencia alguns problemas de segurança causados pelo próprio crescimento desordenado das cidades. Assim como uma favela não pode ficar embaixo da Linha Vermelha, trens transportando combustível não podem passar no meio de Caxias e Magé, como ocorre hoje'', alerta o especialista.

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Cidades criam barreiras contra a migração

Jornal O Globo, Rio, domingo, 30 de setembro de 2001

Objetivo de municípios da Região dos Lagos é tentar evitar favelização e agressões ao meio ambiente


Paula Autran e Paulo Roberto Araújo

De um lado, o empobrecimento do Noroeste Fluminense e a violência do Grande Rio. Do outro, cidades que despontam como oásis de prosperidade graças ao crescimento do turismo e ao desenvolvimento propiciado pelos royalties do petróleo e pela indústria automobilística. No caminho, migrantes em busca do dinheiro que não esperam mais encontrar na capital do estado. Para contê-los — temendo males de cidades grandes como a favelização, que vem se intensificando nos últimos anos, e problemas ambientais causados pela ocupação de áreas de proteção — pelo menos na Região dos Lagos já há prefeitos instalando barreiras nas rodoviárias e nas estradas e criando patrulhas para evitar invasões.

Rio das Ostras foi a cidade que mais cresceu no estado

Os números preliminares do Censo 2000 do IBGE dão o tom da preocupação das autoridades desses municípios que atraem migrantes: enquanto a taxa média de crescimento anual da população do Rio foi de 0,74% de 1991 a 2000, a taxa de Rio das Ostras chegou a 8,19%, a de Iguaba Grande a 8,08%, a de Búzios a 6,3% e a de Cabo Frio a 6,1%. A taxa do estado no mesmo período ficou em 1,30%.

Os números de Rio das Ostras e Iguaba são reflexos da explosão demográfica em Macaé e Cabo Frio, cidades vizinhas e já não tão atraentes em termos de qualidade de vida. Em Porto Real (5,12% de crescimento populacional anual) e Itatiaia (4,95%), as fábricas da Peugeot-Citroën e da Volkswagen também são chamarizes.

Os migrantes do Noroeste são lavradores humildes e os do Grande Rio aposentados ou famílias que transformaram casas de veraneio em residência fixa.

— Não é difícil identificar famílias que vêm para cá sem ter onde morar. Elas trazem muita bagagem e ficam vagando na rodoviária. A maioria vem nos fins de semana do verão. Todas são mandadas para a assistente social, que depois as devolve à cidade de origem — conta o fiscal Divaldo José da Silva, que comanda as barreiras instaladas na rodoviária e nas estradas de acesso a Cabo Frio.

Em Rio das Ostras, vizinho a Macaé, o prefeito Alcebíades Sabino adotou estratégia diferente da de Cabo Frio, mas com o mesmo objetivo. Ele comprou seis motos e mantém patrulhas de fiscais circulando pelas áreas mais pobres da cidade nos sábados, domingos e feriados para evitar invasões. Quem não apresentar o título de propriedade tem o barraco destruído. Sabino não acha nada bom a sua cidade se manter à frente do ranking do IBGE:

— O cerco não é uma medida simpática politicamente, mas é a única alternativa para evitar invasões, nosso grande problema. Esperamos que o Estatuto das Cidades acabe com a especulação imobiliária e, em conseqüência, com as invasões.

O sociólogo Luiz Cesar Queiroz Ribeiro, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur/UFRJ), destaca uma máxima da expansão urbana que resume a situação.

— Para onde vai a riqueza, vai a pobreza — diz ele. — Mas a melhor forma de resolver o problema não é fazer barreiras de controle do espaço migratório, pois não se pode cercear o direito de ir e vir das pessoas. Além disso, se um prefeito age assim ele resolve o problema na sua cidade, mas as pessoas se deslocam para o município vizinho. Precisamos de um planejamento não só local, mas também regional.

O prefeito de Cabo Frio, Alair Corrêa, concorda. Para ele, o crescimento demográfico de Iguaba Grande é reflexo do controle exercido em Cabo Frio para evitar a chegada de famílias que não têm onde morar.

— A invasão é resultado da falta de empregos no Noroeste e no Espírito Santo. Os desempregados vêm para vender picolé na praia ou trabalhar na construção civil. Por outro lado, tem chegado muita gente do Rio em busca de tranqüilidade para viver numa cidade de praias limpas e com uma boa oferta de serviços — diz o prefeito.

Diretor de fundação alerta para risco de discriminação

O diretor-executivo da Fundação Centro de Informações e Dados do Rio de Janeiro (Cide), Epitácio Brunet, alerta que os critérios usados para se escolher quem pode ou não ficar na cidade tendem a ser discriminatórios. E acrescenta que tanto as prefeituras e o governo do estado quanto a iniciativa privada devem se preocupar em ordenar esta ocupação urbana.



Em busca de qualidade de vida

Todo os dias, o advogado Adilson Mendes sai de Iguaba Grande, a quase cem quilômetros da capital, para trabalhar no Centro do Rio, onde divide um escritório com a filha. A pedido da mulher e da filha, também advogadas, há três anos ele trocou o corre-corre da Tijuca pela tranqüilidade da casa de veraneio em Iguaba. E não está arrependido.

— Além da beleza natural e da tranqüilidade, aqui temos uma vida social diferente. Você não é mais um, mas uma pessoa integrada à sociedade. Tenho muitos amigos que querem fazer o mesmo, mas não conseguem por causa do trabalho ou de problemas financeiros.

Os moradores de Iguaba Grande se orgulham de a cidade ainda não ter uma delegacia de polícia. Segundo colocado no ranking de crescimento populacional nos últimos dez anos, o antigo distrito de Araruama tem um perfil populacional diferente dos demais municípios da Região dos Lagos. A maioria dos novos moradores é de aposentados ou cariocas que continuam trabalhando na capital, mas decidiram morar na cidade, que é banhada pela Lagoa de Araruama e fica a 70 minutos de carro do Centro do Rio.

—- Dependendo do trânsito, é mais rápido chegar à Iguaba do que à Barra. Além da tranqüilidade do lugar, o custo de vida aqui é muito mais baixo. Conheço cariocas que fazem compras no comércio daqui nos fins de semana para levar para o Rio —- diz a secretária municipal de Turismo, Iná Siqueira Gomes, que é hoteleira e trocou o Rio por Iguaba há 20 anos.

Produtores de petróleo querem conter migração

Paulo Roberto Araújo

Os nove municípios fluminenses que recebem royalties do petróleo poderão ajudar a conter o êxodo rural do Noroeste fluminense em direção ao Norte Fluminense e à Região dos Lagos, onde alguns municípios montaram barreiras para impedir a entrada de pessoas que não têm moradia ou trabalho. Os municípios, que receberão este ano R$ 450 milhões em royalties do petróleo, pretendem criar um programa de desenvolvimento semelhante ao adotado com sucesso na cidade de Aberdeen, na Escócia, também beneficiada com royalties.

A proposta de assistência social aos municípios do Noroeste será apresentada pelo presidente da Organização dos Municípios Produtores de Petróleo (Ompetro), Arnaldo Vianna, na próxima reunião da entidade, neste mês, em Barra de São João, distrito de Casimiro de Abreu, um dos municípios que recebem royalties juntamente com Campos, Quissamã, São João da Barra, Carapebus, Macaé, Búzios, Rio das Ostras e Cabo Frio.

Dos seis municípios fluminenses que perderam população nos últimos dez anos, segundo o IBGE, cinco estão no Noroeste. O sexto é Nilópolis, na Baixada Fluminense:

—- A migração é ruim para o município que perde a população e para aqueles que recebem os migrantes, que não têm onde morar e se tornam um grave problema social. A solução é fixar o homem no campo e o programa Frutificar, que estimula a produção de frutas, é um bom começo – disse o presidente da Ompetro.

O ambientalista Aristides Soffiati Netto, professor da Universidade Federal Fluminense, disse que o êxodo populacional no Noroeste é conseqüência do esvaziamento econômico e da devastação da vegetação na região, onde a agropecuária é a atividade principal.

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CPI apura desvios no projeto Favela-Bairro

 

Jornal O Globo, 2 de outubro de 2001

CPI apura desvios no projeto Favela-Bairro

RIO - Os vereadores que integram a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do projeto Favela-Bairro estão visitando o Morro do Borel, na Tijuca. A CPI investiga casos de descaracterização, morosidade e paralisação do projeto em algumas comunidades.

O presidente da Associação dos Moradores do Borel, José Ivan Dias, denunciou que, dos 21 serviços previstos para o local, apenas quatro foram feitos.

Segundo o presidente da CPI, vereador Argemiro Pimentel, serão cobradas explicações da Secretaria de Habitação, uma vez que a Prefeitura já recebeu do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) US$ 300 milhões destinados à segunda etapa do Favela-Bairro.


CPI quer informações sobre obras inacabadas

RIO - A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) montada para investigar a situação de obras inacabadas no município, principalmente do Programa Favela Bairro, está colhendo informações sobre projetos que não foram executados. Informações podem ser dadas pelos telefones 3814-2047 e 3814-2046, no gabinete do vereador Argemiro Pimentel (PSB).

Hoje, membros da comissão visitaram o Morro do Borel, na Tijuca, e verificaram que uma série de itens do Favela Bairro não foi cumprida. Nesta quinta-feira, a CPI espera receber a presença da secretária municipal de Habitação, Solange Amaral, às 10h, em audiência pública, para esclarecer o abandono das obras no Borel.

Leticia Matheus, do jornal O Globo

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Puxadinho muda de cores na Rocinha

Jornal O Globo, Rio, quarta-feira, 10 de outubro de 2001


‘Puxadinho’ muda cores na Rocinha

A mania do “puxadinho” não poupou nem as casas coloridas da Favela da Rocinha, em São Conrado. Em apenas quatro meses, desde que a Secretaria municipal de Habitação pintou 25 imóveis da favela, já é possível encontrar três paredes de tijolos à mostra formando um terceiro andar no prédio azul da esquina da Via Ápia com a Estrada da Gávea. A obra, porém, foi embargada sexta-feira pela Defesa Civil municipal. O problema, porém, não foi a descaracterização do edifício, mas o risco de desabamento. No edifício funciona uma creche 24 horas, com 25 crianças.

Obra só recomeça com laudo de engenheiro

Segundo a Secretaria de Habitação, a obra só poderá ser reiniciada quando o laudo de um engenheiro for aprovado, garantindo a segurança da ampliação. O proprietário, o advogado Edvaldo Cozzi, disse que já deu entrada num recurso, para reiniciar a obra.

A reforma da prefeitura, porém, não agradou a todos os moradores, que criticaram as cores fortes que foram usadas. O próprio Cozzi confessou que preferia o creme de antes, embora estivesse sujo.

— Mas a cavalo dado não se olha os dentes — brincou Cozzi, que jura que vai pintar o “puxadinho”, mantendo o azulão do resto do prédio.

Segundo a secretaria, os proprietários não assumiram nenhum compromisso de manter as cores originais do projeto, nem os imóveis inalterados. A secretaria informou que a pintura foi uma maneira de incentivar a preservação e aumentar a auto-estima da comunidade.

A secretaria informou que está em estudo a ampliação do projeto de pintura de casas às margens de outras favelas.

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Moradores de favelas podem requerer título

Jornal O Globo, Rio, quarta-feira, 10 de outubro de 2001


Luciana Conti

A partir de agora os moradores de favelas e loteamentos que ocupam terrenos particulares há mais de cinco anos poderão reclamar na Justiça o direito de terem a propriedade dos imóveis onde moram. O direito é um dos dois únicos previstos no Estatuto da Cidade, em vigor desde segunda-feira, que não precisa de regulamentação. Os outros, como o Estudo de Impacto de Vizinhança, dependem ainda de leis municipais para regulamentar sua aplicação.

O secretário municipal de Urbanismo, Alfredo Sirkis, pretende enviar até o fim do mês à Câmara dos Vereadores um projeto de lei para iniciar o processo de regulamentação das normas previstas no estatuto.

Projeto do Plano Diretor foi enviado sexta-feira à Câmara

Segundo o secretário, com a aprovação desta lei bastaria um decreto do prefeito criando normas para a aplicação de instrumentos como a outorga onerosa de construir (a cobrança pela autorização de se construir um prédio com área maior do que a do terreno, verticalizando a construção).

O projeto de Sirkis seria o segundo de autoria do Executivo a tratar de questões do estatuto. O primeiro deles, o projeto do novo Plano Diretor, que trata da política urbana para a cidade, foi enviado na sexta-feira pelo prefeito Cesar Maia à Câmara.

— A discussão sobre o Plano Diretor só vai se esgotar no próximo ano. Estes instrumentos precisam ser aplicados imediatamente — disse Sirkis, explicando porque quer enviar novo projeto.

Nem todos os mecanismos de política urbana previstos no estatuto serão aplicados. Sirkis adianta que, por ordem do prefeito, o projeto não prevê o IPTU progressivo, criado para punir com impostos mais altos donos de terrenos ociosos.

— O Estatuto da Cidade não obriga os municípios a aplicar os instrumentos que prevê — disse o advogado Francisco Teles, assessor do vereador Eliomar Coelho (PT).

O advogado cobrou da prefeitura garantia da participação popular na elaboração de políticas urbanas prevista no estatuto. Ele explicou que apenas os artigos que tratam de direito fundiário, uma atribuição federal, são auto-aplicáveis.

Terceiros podem ser indenizados por melhorias

Desta forma, é auto-aplicável também o direito de superfície previsto no estatuto. O instrumento, a ser firmado por contrato entre particulares, permite que terrenos sejam usados por terceiros, que poderiam ser indenizados por benfeitorias.

O usucapião coletivo para loteamentos e favelas em áreas públicas também independe da vontade do poder municipal, diz Teles. Inicialmente previsto no Estatuto da Cidade e vetado pelo presidente Fernando Henrique, o mecanismo que permite a legalização de favelas foi criado por medida provisória do presidente em 6 de setembro. Pela MP, moradores há mais de cinco anos de áreas públicas não reclamadas até 30 de junho deste ano poderão requerer o direito à propriedade.

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Casa própria a R$ 5.500

Jornal O Dia, Economia, quarta-feira, 24 de outubro de 2001

Residência popular construída em regime de cooperativa prova que o sonho é possível, quando há iniciativa independente do poder público

Leila Souza Lima

M esmo quem ganha menos de dois salários mínimos por mês (R$ 360), como a auxiliar de escritório Gilda da Silva Rebelo, 51 anos, pode acalentar o sonho da casa própria. Ela compromete 10% do que ganha (R$ 340) com prestações de sua residência – abaixo do teto de 30% exigido no Sistema Financeiro de Habitação (SFH). A unidade (dois quartos e dependências) foi construída em regime de mutirão pelos moradores da cooperativa Shangri-lá, na Taquara, e custou R$ 3.300.

A experiência de Gilda e de outras famílias de Jacarepaguá (Zona Oeste do Rio) e de São Gonçalo mostra que a casa própria não é uma realidade impossível quando se juntam bom projeto, gestão séria e vontade política.

“Eu vivia em condições muito ruins nesse mesmo bairro onde moro hoje. Quando chovia, era obrigada a sair por causa das goteiras”, conta Gilda. “Ajudei a levantar a casa. Ela tem valor sentimental. Temos até um centro comunitário”, orgulha-se. A casa foi erguida com material convencional. Para tornar a proposta viável, a Shangri-lá foi assessorada pela Fundação Bento Rubião – organização não-governamental voltada para terra, infância, habitação e regularização fundiária. As casas são financiadas com dinheiro de uma entidade americana e de um fundo da Bento Rubião.

Objetivo é oferecer solução e provocar as autoridades

Apesar de bem-sucedida, sozinha a iniciativa não tem força e abrangência para resolver o problema de moradia das 360.703 pessoas que compõem o déficit habitacional no Estado do Rio. “Não há como socorrer tanta gente. Nosso objetivo é provocar o poder público. É mais uma ação política que pode levar o Governo a liberar recursos e a criar subsídios para projetos que atendam à população pobre”, explica o arquiteto Ricardo Gouvêa, coordenador-executivo da Fundação Bento Rubião.


Lucro impede avanço de programas

Para o presidente do Sindicato dos Arquitetos e vice do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (Crea-RJ), Canagé Vilhena, os programas populares de financiamento da casa própria não dão certo porque as margens de lucro do mercado são muito altas. “É preciso diminuir o custo da administração técnica, utilizando-se a mão-de-obra dos moradores. No entanto, quando criam um projeto mais barato, degradam o material. Isso não é vantagem. Os conjuntos mais parecem campos de refugiados”, critica. Ele chama atenção para a falta de extensão dos programas de habitação para a baixa renda oferecidos pelo Governo. “Resolvem problemas em pequena escala. Da forma como são gerenciados, apenas levam soluções políticas”, conclui.


Experiência já gerou dois filhotes

A experiência da cooperativa Shangri-lá, em Jacarepaguá, deu frutos: outras duas associações, Herbert de Souza, também na Taquara, e Ipiíba, em São Gonçalo, foram montadas no mesmo formato. O preço da casa de dois quartos passou de R$ 3.300 para R$ 5.500, devido ao aumento de preço do material de construção. O prazo de financiamento é de oito anos.

Para dar certo, o sistema de ajuda mútua deve ter assessoria técnica, que pode ser de engenheiro, arquiteto ou outro profissional do setor da construção. “Os cooperados precisam de orientação para buscar recursos. Não é uma tarefa simples”, explica o arquiteto Ricardo Gouvêa.

As casas propostas pela Fundação Bento Rubião são erguidas com material convencional. Mas esquadrias e lajes são produzidas em pequenas usinas, montadas no canteiro de obras. As unidades podem ter um ou dois quartos. Há também a opção quitinete. A casa de dois quartos tem 46 metros quadrados – um ringue e meio de boxe.

O sucesso desse tipo de empreendimento se deve ao controle rígido. Em muito casos, é necessária a presença de um assistente social, que orienta os moradores sobre problemas como o alcoolismo e desentendimentos. É preciso seguir à risca os traços do projeto e cumprir prazos. Não raro, mulheres constroem as próprias casas.

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Sonho da casa própria é caro e tem alto risco  

Jornal O Dia, domingo, 28 de outubro de 2001

Sonho da casa própria é caro e tem alto risco

Juros de 12% ao ano fazem com que um imóvel de R$ 100 mil saia por R$ 960 mil em 20 anos

Lúcio Santos

Os financiamentos imobiliários oferecidos à classe média são caros e uma aposta de alto risco, segundo avaliação do professor de Finanças Mauro Halfeld. Para ele, os planos da Caixa com recursos do FGTS, que cobram juros de 8% ao ano mais TR, ainda são aceitáveis, mas o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), com juros de 12% ao ano mais TR, pode se tornar impagável. Ele fez as contas e concluiu que o mutuário que financia R$ 100 mil, ao fim de 20 anos, paga R$ 960 mil.

Isso, diz Halfeld, desfaz o mito de que pagar aluguel é jogar dinheiro fora. Muitas vezes, comprar um imóvel é muito pior, principalmente se a prestação for superior a 20% da renda. Ele aconselha aos interessados a compra à vista. "Os juros no Brasil são muito altos, e é preciso fazer com que eles trabalhem a favor. O melhor é alugar um imóvel barato e poupar o suficiente para comprar uma casa à vista", diz.

Tirando a Caixa, que financia em 20 anos, os bancos privados encurtam os prazos para 10 anos, como o Itaú, ou até cinco, como o Bradesco. Isso faz com que as prestações fiquem altas.

No caso do Bradesco, para o candidato comprar um imóvel de R$ 100 mil, precisa ter R$ 50 mil na mão, já que o banco só financia a metade. Além disso, o mutuário deve ganhar R$ 8.916,13 por mês, para pagar R$ 1.355,42 mensais.

Mesmo com essas condições, o consultor técnico da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip), José Pereira Gonçalves, garante que, este ano, os bancos estão financiando mais imóveis do que no ano passado.

Em 2000, foram 27.880 unidades, de janeiro a setembro. Este ano, os bancos já financiaram 28.880 unidades. Muito pouco se comparado com o início da década de 80, quando o SFH financiava 260 mil imóveis por ano, com 15 anos para pagar.

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Paraíso e inferno são vizinhos na Barra

Jornal do Brasil, Cidade, domingo, 3 de novembro de 2001

Renda média três vezes maior do que a do município e coberturas de R$ 6 milhões convivem com crescimento de favelas

Prédios de arquitetura pós-moderna, shopping centers repletos de grifes famosas e letreiros poliglotas cercam uma maioria de ricos. A renda média mensal da população de 175 mil habitantes da Barra, de acordo com as estatísticas do Instituto Pereira Passos, é de 18 salários mínimos, três vezes maior do que a do município. Mas a réplica da Estátua da Liberdade, fincada na entrada do New York City Center convive com as mazelas decorrentes do progresso. Trânsito caótico, aumento da população de rua, favelização, empreendimentos imobiliários falidos e poluição ambiental são alguns dos problemas.

Apesar de o bairro, com 175 mil habitantes, ainda estar engatinhando em termos de ocupação - com 8% da população prevista de 2 milhões de pessoas - são crescentes as preocupações com crescimento desordenado. O arquiteto Rodrigo Azevedo critica o desrespeito à legislação ambiental. ''Não era isso o que Lúcio Costa previa'', afirma, ressaltando que a filosofia do plano de ocupação do urbanista - datado de 1969 - tinha como meta harmonizar crescimento e preservação da natureza.

O arquiteto Marcelo Santiago, professor de Técnicas da Construção da Universidade Estácio de Sá, discorda. ''O fundamental é para não agravar a já precária infra-estrutura sanitária do bairro. Não vejo problemas na construção de edifícios e hotéis'', diza, julgando que a cidade não tem outras opções de espaço para crescer. O vice-presidente da Câmara Comunitária da Barra, David Zee, é ainda mais otimista.''Enquanto o crescimento do resto da cidade foi muito desordenado, estamos empenhados em projetar, aqui, um bairro com qualidade de vida bem melhor. A idéia é não repetir os erros de Copacabana'', diz,

Erros já há muitos e tenta-se evitar outros. Os moradores do condomínio Malibu estão há sete anos travando uma guerra judicial para impedir que a empresa Comércio Importação e Exportação Três Irmãos leve adiante a construção de um clube recreativo às margens da Lagoa de Marapendi. Eles conseguiram embargar a obra, mas aguardam um parecer definitivo da justiça.''Não permitiremos que a especulação imobiliária destrua o local em que moramos'', revolta-se Paulo Carraro, engenheiro civil e morador do condomínio. Ele lembra que o Malibu é um dos poucos condomínios da Barra que tem estação de tratamento de esgoto.

Do outro lado do bairro, moradores dos condomínios Itália Fausta, Village e Engenheiro Neves da Rocha, na área do Itanhangá, também tentam preservar o verde. Eles estão preocupados com o crescimento de construções irregulares do Morro do Banco, que já foi beneficiado pelo Programa Favela-Bairro. ''Se o próprio poder público legalizou o que era irregular, fica complicado fazermos alguma coisa'', censura a publicitária Mariana Rocha Penna, moradora do Village. A menos de sete quilômetros, outra expansão - a da favela de Rio das Pedras - vai encaminhando-se em direção a região central da Barra. O subprefeito Alexander Vieira da Costa garante que está atento ao fenômeno. ''Estamos monitorando estas ocorrências. O controle da ordem urbana é fundamental para o progresso da cidade'', afirma.

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Divergências atrasam Favela-Bairro 

Jornal do Brasil, Cidade, quinta-feira, 6 de dezembro de 2001

Divergências atrasam Favela-Bairro

Carro-chefe dos projetos sociais da Prefeitura do Rio, o projeto Favela-Bairro vem enfrentado dificuldades nos últimos meses. A Secretaria Municipal de Habitação teve que interromper, semana passada, as obras em quatro comunidades, por problemas com a construtora. As obras em outras sete comunidades sofreram atrasos recentemente, porque a empreiteira responsável faliu. E o início das intervenções em outras áreas programadas foi retardado por problemas, como a necessidade de reformulação dos projetos urbanísticos e novas invasões.

''Os problemas existem. Mas o Favela-Bairro passa por uma transição para resgatar sua proposta original. O de ser um empreendimento preocupado principalmente com a integração social'', justificou o prefeito Cesar Maia.

Semana passada, a prefeitura declarou a construtora OAS inidônea, devido divergências em relação ao valor do pedágio da Linha Amarela. Com a decisão, todos os contratos da empreiteira foram suspensos, incluindo dois projetos recém-iniciados: Morro do Juramento (orçado em R$ 8,9 milhões) e Parque Vila Isabel (R$ 5,6 milhões). E mais Vila do Céu (Kosmos) e Parque Proletário (Vigário Geral), que estavam na fase final. A retomada depende de negociações com as demais empreiteiras que participaram das concorrências.

Realizado com recursos da prefeitura e financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bid), o Favela-Bairro teve início há cinco anos, com a urbanização de cerca de 60 favelas de médio porte, incluindo o Morro da Mangueira. Neles, foram investidos cerca de 300 milhões de dólares (R$ 750 milhões). Ano passado, a prefeitura assinou um novo financiamento com o Bid, para estender as obras para cerca de 70 comunidades, no valor de 326 milhões de dólares (R$ 815 milhões). Em 26 favelas as obras já começaram. Todas têm que terminar até março de 2004.

Os atrasos de execução vêm sendo constatados pela CPI da Câmara de Vereadores que apura supostas irregularidades no programa. Ontem, os vereadores ouviram a gerente do Favela Bairro 2, Márcia Garrido; e o coordenador do programa, Aderbal Curvelo. Eles confirmaram problemas, como no Morro do Borel (Tijuca). Lá, a desocupação das áreas de risco surtiu pouco efeito. Os moradores foram indenizados, mas logo depois aconteceram novas invasões.

Favela atrai classe média da Zona Sul
Rocinha tem aumento na procura de imóveis por gente que busca economia em aluguel, impostos e transportes
DANIELA DARIANO

Mansão de três andares, cinco quartos, sala, copa, três banheiros, sala de musculação, quadra de futebol, piscina e vaga para carro. Tudo isso por R$ 1.100 mensais, incluindo aluguel e taxas. Esse anúncio chamou a atenção do comerciante que há oito meses assinou contrato de aluguel com a imobiliária Passárgada, da Rocinha. O inquilino encontrou conforto, economia e quase nenhuma burocracia na hora de alugar um imóvel. Tantas vantagens atraem um número crescente de interessados em se mudar para morros como a Rocinha.

O gerente financeiro da imobiliária,Jorge Ricardo Souza dos Santos, destaca que por mês entre 10 e 15 pessoas o procuram interessadas em alugar imóveis na Rocinha. ''Cerca de 30% são de moradores de outros bairros do Rio. Vem gente de Jacarepaguá, Gávea e, principalmente, de Botafogo. Só nos últimos dois meses, aprovamos fichas de 15 locatários vindos de Copacabana'', disse o gerente financeiro.

A exigência de fiador e o valor das taxas afastam locatários das áreas tradicionais.Com isso, o morro ganha a preferência dos inquilinos. Na Rocinha, o interessado precisa entregar à imobiliária cópias da carteira de identidade, do CIC e do comprovante de renda, além de fazer depósito no valor de um mês de aluguel.

Eduardo Soares Cavalcanti morou 35 anos no Leblon e há seis meses mudou-se para a Rocinha. ''Nunca pensei em morar aqui. Mas a situação apertou e estou numa casa muito boa por R$ 320 ao mês'', conta, descrevendo uma residência com sala, dois quartos, cozinha, banheiro e área de serviço.

A imobiliária Passárgada estima que a procura de imóveis por nordestinos tenha diminuído em 90% nos últimos meses. ''Eles estão voltando para casa porque os novos moradores têm mais poder de compra'', avalia Santos.

No Morro Dona Marta, o anúncio de obras do governo do Estado aqueceu o mercado imobiliário da área. Mas o diretor-executivo da associação de moradores local, João Batista de Aragão, acredita que a valorização só se aplica à compra de imóveis, não ao aluguel.

Deu no New York Times

O New York Times de domingo publicou matéria sobre favelas brasileiras. A reportagem parte da história de um casal de caseiros paulistano, demitido uma mansão no Morumbi, que se muda para Paraisópolis. Marli Roseno, de 54 anos, comprou por US$ 4.400 (R$ 10.687,00) um barraco de alvenaria, onde passou a viver com o marido e quatro filhos menores. Os barracos mais caros atingem até US$ 16.000, quase R$ 40 mil. A matéria mostra como, para os norte-americanos, acostumados com bom sistema de transporte, surpreende o que é óbvio no Brasil - a tendência de os mais pobres preferirem morar próximo ao centro, mesmo que em favelas. Em Paraisópolis vivem 66 mil pessoas e 40% trabalham na própria comunidade. A jornalista Jennifer L. Rich destaca ainda outra economia: o não pagamento de imposto algum. E se surpreende com o fato de compras e vendas não serem documentadas, registrando que a do barraco dos Roseno foi selada com um aperto de mão.

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Brazilians flock to shantytowns

BBC NEWS, sexta-feira, 14 de dezembro de 2001

Brazilians flock to shantytowns

By Isabel Murray

Low prices, proximity to work, very little in the way of bureaucracy and zero property taxes.

These are the factors that are causing an ever-increasing number of Brazilians to buy homes in the favelas, or shantytowns, of Sao Paulo.

According to a census carried out two years ago, 30,000 people live in the Paraisopolis favela - the largest one in the city of Sao Paulo. However, the local residents association puts this number nearer to 60,000.

Situated within the upper-class neighbourhood of Morumbi, the Paraisopolis favela is like a small town inside the mega-city of Sao Paulo.

Normally, the houses are made of wood, but here they are made of bricks. Even so, there is no proper sewage system.

Cash buyers

For 17 years Helena Santos has worked as the local estate agent. She explains how the sort of people buying a home in the favela has changed a lot in recent years:

"I can't tell exactly which class these people come from," she says.

"I know they come from the nice parts of town and come to live here instead. They buy their houses across the whole range of prices and they pay cash."

A normal arrangement would be a two-bedroom house with a lounge, kitchen, bathroom, and utility room, with or without a garage.

Often the buyers add on an extra floor, giving the house a total floor space of up to 100 square metres (1,000 square feet).

According to Ms Santos this would cost something in the region of 35-40,000 reals ($15 -17,000).

In any other neighbourhood within the city that has basic urban services, such as paved streets, sewage and street lighting, this could cost as much as 90,000 reals ($38,000).

Adapting

Rita Silva moved from the city centre with her family of five.

She explains how she adapted to life in the shantytown:

"At the beginning I was a bit scared of the place. Back in 1993 there were loads of murders in this area."

"It's the people who make the neighbourhood," she added. "We don't get involved in anything dubious. We avoid getting involved in all the gossip. That's what's important."

Necessity

Silva is just part of a growing trend, one that's becoming so noticeable that Nelson Baltrusis, an urban planner and sociologist, has studied the property market in the favela.

In his opinion lack of choice is forcing a growing number people to live in the favelas. He explains:

"People come here to live because it is closer to where they work. This is because there are no housing projects for the lower income classes here in Brazil."

"The few housing projects that there are," Baltrusis explains, "are focused on providing accommodation for the working classes and are centred on the outskirts of the big cities.

"Living in the favelas translates into a better salary for these people because they spend less time commuting."

Upheaval

Despite the fact that the residents are squatting on the land, Baltrusis believes that this trend is happening all over Brazil.

"They don't have legal title to the land", says the sociologist. "But in large favelas like Paraisopolis it's very unlikely that the land's legal owners will go to the courts and formally request their land back."

"It would cause social upheaval on a huge scale. In the city of Sao Paulo alone you have more than two million people living in shantytowns and this represents almost 20% of the city population."

"Can you imagine throwing 20% of a city's population out onto the streets? This would be unthinkable in any city anywhere across the world."

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Líderes das favelas pregam luta racial

Jornal O Globo, Rio, 23 de dezembro de 2001

Cidadania a ferro e fogo nas favelas do Rio
Vera Araújo

O radicalismo e o inconformismo crescem nas favelas do Rio. Embalados pelo som do hip-hop e pelo resgate de valores da cultura negra como meio de se adquirir auto-estima e cidadania, movimentos comunitários saem em defesa de uma união entre favelas para pressionar os setores públicos e a iniciativa privada e, assim, forçar uma melhor distribuição de renda. Não são as carências de infra-estrutura que mais preocupam estes grupos, mas a falta de obras sociais que estimulem a educação e a cultura nas favelas.

Com um discurso que não descarta nem uma aliança com o tráfico de drogas para impor sua vontade a ferro e fogo, a Central Única de Favelas (Cufa) chegou a criar um partido — o PPPomar (Partido Popular de Poder pela Maioria), em processo de regulamentação pelo Tribunal Superior Eleitoral — em que o primeiro pré-requisito para integrá-lo é ser negro. Um dos coordenadores da Cufa, o produtor Celso Athayde, defende a idéia de bloquear a entrada de caminhões de cerveja e de cigarros nas favelas, começando pela Cidade de Deus, berço do movimento:

— Se eles lucrarem R$ 10, têm que dar R$ 1 para a comunidade. Eles têm que devolver o dinheiro, revertendo em obras sociais.

Ameaça de recorrer a traficantes de drogas

Segundo Athayde, se houver resistência por parte das empresas, que serão chamadas para um acordo, os integrantes do movimento vão buscar a força do tráfico:

— A comunidade é formada por bandidos, santos, donas de casa, prostitutas. Todos são moradores da favela. Se eles (bandidos) têm a capacidade de proibir a entrada de concessionárias, podem nos ajudar nesta luta .

Atualmente, 107 favelas ou correntes, denominação dada pela Cufa, fazem parte da central. Ela é formada por artistas, acadêmicos, comerciantes, produtores, pessoas que moram ou viveram em comunidades carentes e que falam a mesma linguagem. O movimento hip-hop é o principal instrumento para o resgate da cultura negra.

Outro integrante da Cufa é o rapper MV Bill, que no Natal do ano passado causou rebuliço ao exibir na Cidade de Deus o clipe “Soldado do morro”. As imagens do clipe mostravam garotos, recrutados pelo tráfico, desfilando com armas na favela. Neste Natal, promete mais barulho com a música “O som da guerra”, na qual defende a deflagração desta guerra surda nas favelas. Ele mostrará sua criação durante o projeto Conexões Urbanas, no dia 25, na Cidade de Deus, onde a Cufa passará por sua prova de fogo.

— Não é a filosofia do Bill. É a filosofia de quem quer paz, mas não quer virar refém do medo. Temos que mudar esta realidade. Acabar com a exclusão do negro. Todo mundo tem que se unir para mudar, incorporar o espírito de guerrilheiro — prega Bill.

Para o rapper, é hora de unir as correntes. Ele é contra as disputas do tráfico, que proíbe a entrada de moradores de favelas rivais em seu território.

— Ninguém é bandido e nem tem que agir como bandido. Não há rivalidades entre as correntes, como há no tráfico. Se a gente quer soluções tem que se unir. Esta história de que não posso entrar numa favela porque é de uma facção rival não deve existir.

O rapper sabe que de nada adianta a comunidade ter uma biblioteca, se não houver estímulo à leitura. Há pelo menos dois milhões de negros morando em favelas do Rio. Bill faz críticas à mídia:

— As nossas músicas não tocam nas rádios. Não existe mercado. A melhor propaganda é a feita boca a boca. Temos a vantagem de entrar em lugares em que políticos não entram, juntar a massa e falar de política, sem sermos chatos.

Doutor em antropologia pela Universidade do Texas, Julio Cesar Tavares é membro da Cufa e dá aula de artes marciais para negros.

— A Cufa tem que ser radical para construir um movimento sólido e com raízes negras. O negro está perdendo o medo — disse o antropólogo.

Julio disse que as favelas estão passando por uma revolução silenciosa. O cientista social Jailson de Souza e Silva, do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), já havia previsto este fenômeno:

— Tem muita coisa acontecendo nas favelas que as pessoas de fora nem têm idéia. As bandeiras das comunidades vão além das expectativas. Há pelo menos 150 movimentos comunitários no Rio. A Cufa é uma grande idéia.

Para Jailson, quando a Cufa diz não descartar a ajuda até de bandidos está, na verdade, criando uma frase de efeito e, assim, dando uma demonstração de força.

Para o presidente do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap), Ivanir dos Santos, o inconformismo dos negros pode ter origem no fato de a sociedade não reconhece o racismo.

— A nossa luta é por uma reparação — disse Ivanir.


Grupos conservadores recebem críticas

Movimentos mais conservadores, como a Federação de Favelas do Estado do Rio (Faferj) e a Federação Municipal das Associações de Favelas do Rio (FAV-Rio), ainda têm o seu papel, mas recebem críticas de que se perderam em disputas políticas, priorizando pequenas obras e projetos sociais como escolinhas de futebol para a comunidade. A Faferj, por exemplo, é presidida por uma junta governativa, mas é do ex-presidente João Passos que vem a última palavra.

Rumba Gabriel, presidente da Associação de Moradores do Jacarezinho, que lidera o Movimento Popular das Favelas (MPF), defende o surgimento de novos líderes:

— Estas federações se aliam a políticos. Os moradores das comunidades estão cansados dessas lideranças viciadas.

O líder do MPF desenvolve projetos com os alemães da ONG Bauhaus e com os americanos do grupo Panteras Negras. Rumba quer criar um núcleo de estudos acadêmicos no Jacarezinho e já fez parcerias com a Uerj e a UFRJ.

O Favelania é outro movimento que se destacou ao longo dos últimos dez anos e tem na liderança o presidente da Associação de Moradores do Morro Dona Marta, André Fernandes, jovem de classe média da Tijuca:

— Não queremos levar nada pronto para as comunidades. Elas mesmas têm que se conscientizar de suas necessidades.

João Passos, ex-presidente da Faferj, afirma que as críticas ao seu trabalho partem de pessoas que têm ligação com o tráfico.

— Eu não tenho medo de dizer que tenho um bom relacionamento com a PM. A polícia sempre nos apoiou.

O presidente da FAV-Rio, Antônio Tito, acha que há lugar para todos os movimentos nas 600 favelas do município.


Principais organizações

CUFA: Central Única de Favelas, formada por moradores de 107 favelas, entre os quais artistas, produtores e pessoas ligadas a associações de moradores. Objetivo: união entre favelas, despertando a consciência dos moradores.

MOVIMENTO POPULAR DE FAVELAS: Destaca-se pelos projetos de transformar favelas em centros de estudos, aliando-se a organizações não-governamentais alemã e americana.

FAV: Federação Municipal das Associações de Favelas do Rio. Há cerca de 600 favelas no município do Rio e, segundo o presidente da federação, Antônio Tito, todas são assistidas pela entidade que orienta os moradores de comunidades carentes a regularizar as associações na prefeitura.

FAVELANIA: O movimento objetiva despertar a consciência da cidadania nos moradores das comunidades carentes, sejam brancos ou negros, estimulando a educação.

FAFERJ: Federação das Favelas do Estado do Rio de Janeiro, criada há 40 anos, está sendo presidida por uma junta governativa. Objetivo: integração com as comunidades e com a PM, programação social e cursos profissionalizantes. Segundo seu ex-presidente João Passos, há 200 favelas ativas na Faferj.

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Maioria da população vive em residência própria

Jornal O Globo, Economia, domingo, 23 de dezembro de 2001

Sozinhos ou com uma numerosa família, a maioria dos brasileiros mora em residência própria, revelou semana passada o Censo 2000. Do total de 44,79 milhões de domicílios do Brasil, 33,3 milhões foram declarados próprios pelos entrevistados, uma proporção de 74,4%. A Região Norte registra a maior participação de residências próprias do país, 80,33% do total. No Acre, 83,9% dos domicílios são próprios, seguido de Maranhão e Amazonas (ambos com 83,5%), Pará (81,7%) e Amapá (81,4%).

— A Região Norte tem a maior incidência de residências próprias, pois existe uma tradição muito grande de as casas serem passadas por herança de geração em geração e de se construir uma casa no mesmo terreno da família por causa da pouca tradição de urbanização — explica Luís Antônio Pinto de Oliveira, chefe do Departamento de População e Indicadores Sociais do IBGE.

O aluguel — o inimigo número um da classe média dos grandes centros urbanos — é a condição de ocupação de apenas 14,3% dos domicílios brasileiros. Segundo Pinto de Oliveira, as informações recolhidas pelo Censo 2000 também permitiram concluir que é cada vez mais raro o uso de imóveis cedidos, que representam 11,3% do total.

A taxa, porém, é puxada para baixo pelas áreas urbanas, uma vez que nas zonas rurais a proporção sobe para 23,9% das residências.

— Os dados sobre as condições de ocupação dos imóveis costumam surpreender porque nos grandes centros urbanos a ocorrência de aluguéis é muito maior — explica o chefe de departamento do IBGE.

É o caso da Região Sudeste, em que 17,06% dos imóveis são alugados. A taxa só não é maior do que a da Região Centro-Oeste, 17,39%, onde, porém, o indicador é pressionado pelo Distrito Federal, que ostenta a maior proporção de residências alugadas do Brasil: 23,51%. No Rio, a relação é de 16,94% e em São Paulo, de 18,31%. A menor incidência de domicílios alugados é na Região Norte, com 8,80%.

O Censo 2000, segundo Luís Antônio Pinto de Oliveira, também confirmou que o tipo de moradia mais comum no Brasil é a casa, com 40,01 milhões de unidades, ou 89,4% do total, especialmente nas zonas rurais. A proporção é similar em todas as regiões do país.

A presença de apartamentos, de acordo com o IBGE, é mais comum nos bairros de rendimento mais elevado dos grandes centros urbanos. No Brasil, a média é de 9,6% do total de residências. A moradia em cômodos representa apenas 1% do conjunto de domicílios. Os dados do censo revelaram, ainda, que a média nacional é de 3,8 moradores por residência, sendo de 4,2 nas zonas rurais e de 3,7 nas áreas urbanas.

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Medo da violência cresce nas favelas

Jornal O Globo, Rio, segunda-feira, 24 de dezembro de 2001


Alan Gripp e Paulo Marqueiro

As transformações econômicas e sociais dos últimos 30 anos levaram o progresso para as favelas, mas também reforçaram as desigualdades e resultaram numa explosão de violência. A antropóloga americana Janice Perlman, mais do que muitos brasileiros, pôde comprovar essas mudanças. Em 1969, com o país mergulhado na ditadura, ela percorreu as vielas da Favela da Catacumba, na Lagoa - que depois foi removida para dar lugar ao Parque da Catacumba - para radiografar as vidas de seus moradores. Entrevistou 750 pessoas. Este ano, Janice localizou 244 delas, hoje em diferentes favelas, e repetiu as mesmas perguntas de 32 anos atrás.

Na década de 60, moradores temiam remoção

O melhor indicativo dessa nova realidade aparece quando a socióloga pergunta qual é o maior temor dos moradores. Em 1969, a maioria tinha medo de ser removida, por conta dos esforços do governo para erradicar as favelas. Hoje, 60% dizem que a violência - "da polícia ou do tráfico", observa Janice - é o maior problema. Mais grave ainda: de todos os entrevistados na segunda etapa da pesquisa, 20,2% já tiveram pelo menos um parente assassinado; e 49,6% já foram ou têm algum parente vítima de furto.

O crescimento desenfreado da violência, segundo Janice, fez com que os moradores de favelas mudassem o seu comportamento, saindo cada vez menos de casa e participando pouco de festas e das decisões das associações comunitárias.

- O medo que as pessoas sentem agora é diferente, elas têm medo de morrer. O que me impressiona é que esse sentimento é semelhante àquela sensação que havia nos Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro. Ou seja, o medo de morrer a qualquer hora. É muito brutal - diz a pesquisadora, que é presidente do projeto Megacidades. O projeto visa a encontrar soluções inovadoras para os problemas das grandes cidades.

Em 1969, não houve esse detalhamento sobre a violência porque a questão ainda não chamava tanto a atenção, segundo ela:

- Quando morei seis meses numa favela, em 1969, nunca tranquei a porta do barraco. Deixava minha bolsa lá tranqüilamente. Não havia índices altos de violência.

Número de pessoas com TV e geladeira aumentou

A pesquisa, por outro lado, revelou que as pessoas têm mais bens de consumo individuais e mais serviços urbanos coletivos, como água, esgoto e luz, embora o progresso tenha sido menor do que em outros grupos sociais mais privilegiados. Dos entrevistados, 98% têm geladeira e 95% têm TV. Em 1969, os percentuais eram de 38% e 33%, respectivamente. Mesmo assim, frisa Janice, a desigualdade, a exclusão social e o preconceito cresceram.

- Há mais distância entre ricos e pobres hoje do que havia em 1969 - diz Janice.

Mesmo antes de concluir a pesquisa, ela diz que a grande maioria não melhorou e não piorou de vida. E, apesar dos dados preocupantes, os entrevistados se mostraram otimistas: 54% disseram que a vida é melhor do que antes e só 22% disseram que ela é bem pior. E mais: 70% deles pensam que suas vidas estarão melhores daqui a cinco anos.

 
 
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