Reportagens 2002

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"O Brasil produz pessoas que têm que pagar pelo que consomem. São homens-monetários, mas que não têm dinheiro para isso. Desde a escravidão, o trabalhador sempre viveu em gueto. Nesse país, até trabalhador acaba excluído"
Paulo Lins, escritor e roteirista, autor do romance "Cidade de Deus"

Reportagens ( 5ª parte)

Reportagens 2002

Tópico 1  Chuvas castigam Vargem Grande
Tópico 2  Engarrafamentos chegam aos morros
Tópico 3  Mais de 800 mil casas irregulares
Tópico 4  O que é favela?
Tópico 5  Violência das favelas atinge preço de imóveis
Tópico 6  Aposentado erra caminho e é morto com tiro no rosto em favela paulista 
Tópico 7  Polícia enfrenta traficantes
Tópico 8 Favelas crescem em ritmo quase 4 vezes maior
Tópico 9  Favelas avançam sobre o asfalto
Tópico 10 Projeto modifica favela
Tópico 11 Pobreza avança sobre o Rio
Tópico 12 Preços altos no mercado imobiliários das favelas
Tópico 13 Obra para comunidade do Morro da Viúva cria polêmica  
Tópico 14 Protesto contra Política Habitacional
Tópico 15 O pesadelo da casa própria
Tópico 16 Favela-Bairro segue a passos lentos
Tópico 17 Cem favelas em quatro anos
Tópico 18 Exército sai do caminho do tráfico 
Tópico 19 Bairro partido chega ao seu limite
Tópico 20 Tráfico criou poder paralelo
Tópico 21   Melhores, porém mais violentas
Tópico 22  Narcoditadura, o poder cada vez menos paralelo no Rio
Tópico 23  Casas viram fortalezas com cercas elétricas, alarmes e blindagem
Tópico 24 Favelas proibidas aos PMs
Tópico 25  Sob lata ou papelão, 2,3 milhões de brasileiros
Tópico 26  Déficit só será suprido com 712 mil moradias ao ano
Tópico 27  Área de risco na favela
Tópico 28  Relatório faz retrato da cidade
Tópico 29 Um Rio estressante em 2012
Tópico 30 O abismo social nos morros
Tópico 31 Cada vez mais verticais
Tópico 32 Laje na Rocinha custa 2 terrenos na Zona Oeste
Tópico 33 A vitória da baderna
Tópico 34 Lider comunitário é assassinado no Recreio
Tópico 35 Arquiteta e mendigos fazem protesto no Rio  
Tópico 36 Quando o descaso fala mais alto
Tópico 37 No meio da favela surge a casa dos sonhos
Tópico 38 Jacarepaguá será das favelas
Tópico 39 A Origem das favelas no Rio de Janeiro

 

Voltar ao Topo       TÓPICO 1

 

 Chuvas castigam Vargem Grande

Jornal O Globo, Barra, quinta-feira, 3 de janeiro de 2002

Chuvas castigam Vargem Grande
Fernanda Pontes

As fortes chuvas que atingiram todo o estado do Rio na semana passada também castigaram a região da Baixada de Jacarepaguá. Foram 57 ocorrências registradas pela Defesa Civil Municipal em quatro dias — todas relativas a riscos de deslizamento de terra e desabamento de casas. Com suas estruturas comprometidas, grande parte das habitações já foi interditada pelo órgão.

Em Vargem Grande, cerca de 20 pessoas que moram na comunidade de Beira-Rio passaram a noite de Natal numa creche da favela, porque suas casas ficaram alagadas.

Segundo relato de moradores, com a chuva forte o Rio Sernambetiba, que corta a comunidade, transbordou na madrugada do dia 24. Durante mais de três horas, seis casas ficaram inundadas.

Moradores perderam eletrodomésticos, colchões, roupas e móveis. As ruas de terra viraram um lamaçal e muitas pessoas, sem ter para onde ir, continuam vivendo às margens do rio. A presidente da associação de moradores da favela, Maria Pergentira, diz que já solicitou à prefeitura a inclusão da comunidade no programa Favela-Bairro, já que é o quarto ano consecutivo de enchentes no local:

— É sempre a mesma coisa. A população perde quase tudo que conseguiu comprar durante o ano. Algumas pessoas já sabem até como agir. Em dias de temporal elas evitam passar por pontes e ruelas.

Maria conta que não acionou a Defesa Civil durante as chuvas porque não havia risco de desabamento de construções na comunidade.

— As casas, por enquanto, não apresentaram problemas em suas estruturas. Não há rachaduras e não houve deslizamentos próximo ao Rio Sernambetiba — afirma Maria.

Depois de passarem o Natal tentando salvar os últimos pertences, os moradores de áreas de risco podem ter mais problemas no início de 2002. O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) prevê que as chuvas vão continuar esta semana e que poderão ocorrer novos deslizamentos de terra em todo o estado.

O drama dos que perderam tudo

A moradora da comunidade de Beira-Rio Terezinha Maria Rocha passou a última semana tentando recuperar o pouco que restou de sua casa depois da enchente causada pelas fortes chuvas. Revoltada, ela reclama da falta de assistência do poder público.

— Isso aqui é uma tristeza. A prefeitura já havia prometido fazer obras na favela e nada aconteceu. Perdi quase tudo — lamentava Terezinha, enquanto lavava toda a roupa da família.

A casa onde mora foi construída há 20 anos entre dois canais. Desde 1996 que o terreno vem afundando.

— A casa está muito mais baixa do que o normal e o pior disso tudo é que os rios transbordam sempre e nós continuamos sem água potável — conta a moradora.

Fim de ano sem comemorações

Com suas casas alagadas, os moradores da comunidade de Beira-Rio tiveram de passar a noite de Natal na creche Cantinho Feliz, dentro da favela. A diretora da creche, Maria Pergentira, acomodou cerca de 20 pessoas nos colchonetes doados pela Associação Gesto de Amor, que também forneceu roupas, sapatos, cobertores e alimentos.

— Telefonamos para o Eduardo Paes (secretário municipal de Meio Ambiente), para a assessora da Solange Amaral (secretária municipal de Habitação) e para alguns líderes comunitários, mas ninguém nos ajudou. Com as doações, improvisamos uma sopa e acomodamos os desalojados — conta.

Atualmente, a presidente da associação luta para conseguir mais donativos e atendimento médico para os moradores:

— Depois da tempestade começam a aparecer as doenças. As crianças contraem hepatite e já houve casos de leptospirose.

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 Engarrafamentos chegam aos morros

 

Jornal do Brasil, Rio, domingo, 13 de dezembro de 2002

As cenas de carros engarrafados ou estacionados nas portas de residências de morros e favelas cariocas denunciam que o caos no trânsito deixou de ser problema enfrentado exclusivamente por quem mora no asfalto. Ainda não há estatísticas oficiais nem estudos específicos sobre o número de veículos que circulam diariamente pelas estreitas ruas que compõem a deficiente malha viária destes locais. Mas o visível crescimento do tráfego aponta para um fenômeno que vinha se anunciando há pelo menos uma década: o da incompatibilidade entre o aumento do número de transportes motorizados e a precária infra-estrutura dos morros e favelas do Rio.

A maioria dos moradores reclama. Acostumados anteriormente a conviver com outro tipo de pertubação - o da disputa de pontos por facções rivais do tráfico - eles são obrigados, agora, a enfrentar retenções no trânsito e até a brigar com os motoristas e vizinhos disciplentes que, com freqüencia, estacionam os carros na porta de suas casas. ''Perdi a linha. Estava chegando exausto do trabalho e me deparei com um carro no portão da minha casa. Simplesmente não pude entrar. Esperei mais de uma hora até o dono do veículo aparecer'', revolta-se Carlos Américo dos Santos, morador do morro da Mangueira.

Lá, e em mais três complexos de morros cariocas - Prazeres-Escondidinho, em Santa Teresa, Borel-Chácara do Céu-Morro da Cruz-Casa Branca, na Tijuca, e Andaraí-Jamelão, no Andaraí - a Prefeitura do Rio investiu na contrução de viadutos e anéis viários para ligar as comunidades e facilitar o acesso de caminhões da Comlurb, de ambulâncias e até de viaturas policiais. Na época, o então prefeito Luiz Paulo Conde, disse que as vias - apelidadas de Transfavelas - poderiam ser usadas não só por moradores, mas por qualquer cidadão carioca. No entanto, por medo das guerras entre traficantes, a população se recusa a encurtar o itinerário passando pelas extensas obras viárias, algumas ainda inacabadas.

Só na Mangueira, a obra do viaduto, batizado de Cartola e com muretas de proteção pintadas de verde-e-rosa, custou R$?????. Os recursos foram liberados pela Secretaria Municipal de Habitação através do Programa Favela-Bairro. Na verdade, a maioria dos veículos que cruzam os ??? metros de concreto é de moradores da própria comunidade. Na maior parte do tempo, o viaduto serve mesmo de área de lazer para as crianças do morro. ''O viaduto é legal à beça. O vento é muito bom para soltar pipa. Além disso, aqui não tem fio'', festeja Wendel Lúcio de Araújo, de 9 anos, que diariamente dribla carros e motos para empinar a sua pipa em meio a uma paisagem contrastante, em que pobreza e beleza natural estão lado a lado.

Apesar de polêmica e dos poucos efeitos práticos gerados, há quem defenda a obra. ''O viaduto e as outras vias melhoraram muito a circulação na Mangueira. Além do mais, essas obras estimularam muitos moradores a comprarem os seus carrinhos'', diz José Roque Ferreira, presidente da Associação de Moradores do Telégrafo, um dos três morros que compõem o complexo da Mangueira. Segundo Ferreira, o número de carros duplicou por causa das melhorias feitas no sistema viário. Passou de 800 para mais de 1,6 mil em menos de dois anos. No complexo Prazeres-Escondidinho, os engarrafamentos e as disputas por vagas são constantes. Flávio Minervino, presidente da Associação de Moradores, conta que já teve de interceder em brigas de vizinhos por causa de uma vaga de carro. ''Era uma área descoberta que um moradores se intitulou dono e ninguém mais podia estacionar lá'', lembra Minervino, para quem a compra de um automóvel representa, na maioria das vezes, muito mais ostentação do que real necessidade. ''Tem gente que prefere deixar de comer e melhorar o barraco para comprar um carro'', comenta.

Vagas garantem lucro

O crescimento desenfreado do número de transportes motorizados no Morro da Rocinha, em São Conrado, traz caos ao cotidiano dos moradores, mas tem gerado lucros para algumas corretoras de imóveis. Na última quinta-feira, Jorge Ricardo dos Santos, gerente da imobiliária Passárgada, contabilizava os lucros das 25 vagas de carros que aluga para moradores do morro. ''Percebemos que havia uma enorme procura para a locação de garagens na área. Começamos a investir também na administração de vagas'', conta. Somente em uma das mansões localizadas no pé do morro, Santos mantém 10 vagas. Por cada uma cobra R$ 100 mensais. A maior parte do aluguel vai para o proprietário do imóvel e um percentual - que ele não quis revelar - fica para a administradora.

De acordo com Santos, a exploração comercial de garagens residenciais na Rocinha está em expansão desde a implantação do Plano Real, há oito anos. ''Foi uma verdadeira festa. Todo mundo saiu comprando carros, mas deixou de pensar onde eles seriam guardados. Afinal, carro é um patrimônio e precisa ser preservado'', frisa ele, que está juntando dinheiro para comprar seu primeiro automóvel.

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Mais de 800 mil casas irregulares

Jornal O Globo, Rio, domingo, 13 de janeiro de 2002

Mais de 800 mil casas irregulares
Selma Schmidt

A cidade informal só faz crescer. Estudo feito pelo Instituto Pereira Passos (IPP), da prefeitura, mostra que, em dez anos, os imóveis residenciais irregulares aumentaram em pelo menos 24%, ou seja, 163.300 novas unidades sem licença do município surgiram na cidade a partir de 1991. Para realizar o trabalho, os técnicos compararam dados de censos do IBGE com cadastros do IPTU. Os números oficiais dão conta de que no mínimo 39,47% domicílios no Rio (ou 839.855 casas e apartamentos) são irregulares. Uma realidade que preocupa o secretário de Urbanismo e presidente do IPP, Alfredo Sirkis, e que poderá ser ainda mais dura:

— Agora, estamos confrontando as informações do censo com as do habite-se. Acredito que o percentual de informalidade suba para 50%, pois vários imóveis que pagam IPTU não têm habite-se.

Numa análise bairro a bairro, a situação se revela mais grave. Em termos percentuais, a Vila Militar chega a ter 88,92% (3.723 domicílios) de seus imóveis residenciais irregulares. O índice atinge 84,70% (25.700 casas) em Guaratiba. No entanto, em termos absolutos é Campo Grande que reúne uma maior quantidade de imóveis construídos sem licença: 52.488 (53,22% das residências).

Em contrapartida, em Todos os Santos o índice é de 2,17%. Em Botafogo, na Lagoa, no Maracanã, no Jardim Botânico e no Flamengo, o índice está abaixo de 7%. No bairro de Copacabana, há 5.590 imóveis irregulares (7,02% do total).

Problema atinge a classe média

Imóveis irregulares se espalham pela cidade e não se limitam a favelas, se estendendo para habitações de classe média. É o caso de um condomínio que está sendo construído sem licença da prefeitura na Rua do Canal 1.700, paralela à Estrada do Pontal, no Recreio dos Bandeirantes. Lá, o proprietário Roberto Fernandes está vendendo um terreno de 360 metros quadrados por R$ 55 mil. Ele mesmo se propõe a construir a casa do comprador por R$ 500 o metro quadrado, o que significaria um custo de R$ 50 mil para uma residência de cem metros quadrados. Quanto à regularização da casa, o vendedor deixa claro:

— Isso o proprietário terá que resolver com a prefeitura. Vendo uma fração de terreno e construo.

Mas é impossível legalizar a casa, pelo menos enquanto a legislação para a região não for alterada. O imóvel ficará de fora do cadastro do IPTU residencial e o proprietário pagará apenas o imposto territorial corresponde a sua fração de terreno (bem mais baixo).

Legislação está sendo revista

Para Sirkis, a informalidade da construção é estimulada pela legislação fora da realidade e burocrática e por mecanismos cartoriais ultrapassados. No âmbito da prefeitura, está sendo elaborado um pacote de projetos, visando a corrigir o problema. A proposta de acabar com algumas áreas agrícolas, por exemplo, está em tramitação na Câmara dos Vereadores.

Após o recesso, também serão enviados ao Legislativo outros projetos, entre eles o de modificação urbanística da região de Vargem Pequena, Vargem Grande, trecho do Recreio e Camorim. Outra proposta que chegará ao Legislativo facilitará o licenciamento de imóveis com até 12 metros de altura. Uma terceira criará a chamada regularização onerosa de imóveis, cobrando taxa alta para legalizar e criando sanções.

— Paralelo à legislação, pretendemos instituir novas formas de repressão. É preciso criar uma estrutura operacional, formada por órgãos municipais e interligada com a PM e o Ministério Público, para descobrimos e derrubarmos construções irregulares antes que fiquem prontas — diz Sirkis. — Estamos correndo atrás do prejuízo. Em um ano e meio, espero estabilizar a situação, para iniciar o processo de reversão do quadro.

Em Vargem Grande e Vargem Pequena o que não falta são condomínios de classe média não regularizados. O Reginas, com entrada pela Estrada dos Bandeirantes, é um deles. Todas as 16 casas pertencem a um único dono. Segundo a Imobiliária Anechino, os imóveis têm entre 50 e 60 metros quadrados e são alugados por cerca de R$ 700. Os inquilinos têm ainda de pagar uma taxa de R$ 120 para custear as despesas com um zelador e um ajudante.

Perto dali, o condomínio Ouro Verde, na Rua Zenetildes Alves, está sendo construído sem licença. Dona de uma das casas já prontas, Vera Lúcia Silva conta que gastou R$ 120 mil com o terreno e as obras. Apesar de ainda não contar com infra-estrutura (a rua não é pavimentada e só recentemente a Light começou a instalar a iluminação pública), Vera não se arrepende de ter trocado um apartamento na Avenida das Américas, na Barra, pela casa em Vargem Grande. Mesmo a legalização do imóvel ela espera pacientemente. E não há somente a pendência com a prefeitura.

— Ainda não foi feito o desmembramento do terreno, porque a questão precisa ser resolvida com os herdeiros — explica Vera.

Segundo dados fornecidos pelo diretor de informações geográficas do IPP, Paulo Bastos, a Zona Oeste é a região que mais concentra imóveis irregulares: representam 60% dos domicílios do lugar. Na Barra, em Jacarepaguá e adjacências, o índice é de cerca de 40% do total de residências. Percentual semelhante é encontrado nos subúrbios da Central e da Leopoldina, mas é nessa região que a quantidade dos domicílios informais é a maior da cidade, ultrapassando os 325 mil.

Sem surpresa, nas favelas transformadas em Regiões Administrativas a quantidade encontrada de casas licenciadas é ínfima. Na Rocinha, por exemplo, 97,49% dos domicílios não estão cadastrados no IPTU. No Jacarezinho, o percentual é de 91,06% e no Complexo do Alemão, 88,65%.

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O que é favela?

 

Vivafavela, domingo, 13 de janeiro de 2002

Todo mundo sabe o que é favela. A 'invenção' não é exclusiva do Brasil - basta ver as 'poblaciones' do Chile, as 'barriadas' do Peru, as 'villas miseria' da Argentina, os 'caniços' de Moçambique. Aqui, porém, favela tem um significado especial. Com prédios erguidos pela especulação imobiliária, agências bancárias e videolocadoras, além de melhorias que sepultaram de vez o fantasma das remoções, elas se tornaram um conceito difícil de definir. E não adianta correr para o dicionário. Ele não ajuda nem um pouco.

As definições simplistas do velho Aurélio e do novíssimo Houaiss - os dicionários mais consagrados do país - não refletem por inteiro a imagem da favela brasileira. Descrita como lugar tosco, de higiene precária e de mau aspecto - a favela que salta desses dicionários é, para muitos, um retrato parcial, ultrapassado e incapaz de sintetizar a nova realidade.

O recém-lançado Houaiss, por exemplo, traz mais informações históricas que os concorrentes. Mas poderia ter se preocupado em dar uma visão "menos preconceituosa" da favela, segundo o doutor em Língua Portuguesa pela USP e escritor Marcos Bagno. "Não ficaria surpreso se descobrisse que os autores do verbete nunca puseram os pés numa favela", espeta o filólogo.

O novo Houaiss não é o único a cometer o pecado de olhar a favela de binóculo. O Aurélio e o Michaelis também se referem à ela como se fosse "um corpo estranho" na cidade, uma "espécie de tumor ou infecção", observa Bagno. Não por acaso, já que "a origem social" do dicionarista influencia diretamente "seu modo de definir as palavras" e os "juízos de valor" que faz sobre elas. "Um dicionário não é uma obra neutra. É reflexo das crenças, noções e preconceitos da classe social do indivíduo", lembra Bagno.

Nesse sentido, seria melhor definir a favela logo como um "bolsão de miséria" destinado a fornecer subempregados. "A favela é vista como um depósito de mão-de-obra barata, onde as classes média e alta vão buscar suas babás, cozinheiras, faxineiras, vigias, lixeiros e zeladores", analisa o filólogo.

"Lixeiras da sociedade elitista"

A estudante Alini dos Santos, de 20 anos, moradora do Cantagalo, está entre os que rejeitam as definições do Aurélio e do Houaiss. Para Alini, elas só reforçam a idéia de favela "como uma forma de se falar das lixeiras da sociedade elitista". Uma forma que, na verdade, "deprecia os moradores" e faz com que eles pensem que "o morro é o seu lugar" e que "o asfalto é só para as madames e os nobres". Alini carrega nas tintas. Mas faz uma análise bem próxima de intelectuais como Bagno, quando diz que a favela continua a ser uma espécie de senzala moderna.

Para o filólogo, seria mais justo se os dicionários dedicassem ao menos uma linha para dizer que as favelas são o resultado de um "processo histórico de exclusão social" no Brasil.

Uma exclusão que seus moradores sentem tão logo pisam no asfalto. "Há um tratamento diferenciado em relação à favela por parte de todos os segmentos da sociedade", observa a universitária Conceição Moreira da Silva, de 42 anos, moradora do Morro do Alemão. Conceição não se espantou ao ler os verbetes do Aurélio ("conjunto de habitações populares toscamente construídas (...) e com recursos higiênicos deficientes") e do Houaiss ("lugar de mau aspecto", com "materiais improvisados em sua construção tosca e onde residem pessoas de baixa renda"). "Tudo de ruim e de desorganizado se atribui à favela ou aos favelados", reclama a universitária.

Estudante do último ano de Pedagogia da UERJ, Conceição é, ela mesma, representante de um contraste que some na definição dos dicionários. Mas que poderia estar lá: "Os dicionários deveriam dizer que na favela também há "empresários e verdadeiras mansões", diz a estudante. "Mas rótulo é uma coisa difícil de se tirar. Tanto que mudamos de século, mas a visão de quem nos desconhece continua a valer".

 

Vinte anos de atraso

O doutor em História Marcos Alvito, autor do livro "As Cores de Acari - Uma favela carioca", concorda. Ele acha que as definições estão defasadas "pelos menos uns vinte anos". Mas acredita que não se pode crucificar os dicionários. "Eles trabalham com o senso comum. O dicionário só acompanha essa percepção".

O problema, para Alvito, é que não importa quantas melhorias as favelas façam - e elas foram muitas nos últimos anos - a idéia sobre elas não muda. "É uma relação historicamente construída. Por isso, a favela nunca vai poder ser definida apenas por suas condições materiais, de infra-estrutura, ou pela sua topografia", diz Alvito. A favela nasce de uma "relação de dominação" que já existia antes e que toma forma no morro.

É preciso não esquecer, lembra o historiador, que a imagem da favela é construída pelos que têm "voz na sociedade" e "idéias que repercutem". Como professores e jornalistas. Assim, rua é sempre viela, mesmo que larga e asfaltada. E casa é casebre, mesmo que seja de alvenaria: "É uma construção simbólica feita por quem as vê de fora", diz o escritor, que para fazer sua tese de doutorado mergulhou no universo de Acari.

De fora, é impossível saber, por exemplo, porque as casas começaram a ser feitas de materiais baratos. "A elite nunca soube que os moradores viviam com tanta humildade porque temiam as remoções", diz o eletricista Feliciano da Silva Pinto, de 70 anos, morador do Cantagalo, na Zona Sul do Rio. "De que valia gastar um dinheiro sacrificado, se podíamos ser despejados a qualquer momento?", diz Feliciano. "Nesse país, todo lugar que pobre pisa tem dono", espanta-se ainda hoje o eletricista, lembrando que "os únicos lugares livres" eram os morros da cidade.

Enquanto a favela crescia, seu morador também alargava sua idéia sobre a comunidade. Em parte, por conta de iniciativas sociais que investiam em cidadania, e profissionalizavam os moradores ajudando-os a entrar no mercado de trabalho. Tudo isso gerou uma mudança na auto-estima, que aparece na descrição de Vânia Miranda, moradora da Rocinha. Vânia acha que favela é uma área de classe baixa ou média baixa, onde as pessoas "vivenciam a busca de desenvolvimento através da solidariedade". Tudo para transformar a área em bairro, com "infra-estrutura, título de propriedade do solo e acesso a princípios básicos de cidadania". Favela, diz Vânia, é um termo rejeitado pela Rocinha porque está associado ao "desleixo, abandono e relaxamento": "Comunidade é um termo muito mais simpático", diz.
O escritor e roteirista Paulo Lins, autor do romance "Cidade de Deus", está entre os que contribuíram para uma reflexão menos estereotipada sobre a favela. Lins não discorda da definição dos dicionários. Mas acha que elas "estão paradas no tempo e só refletem parte da realidade". É difícil para quem não conhece essa realidade, diz Lins, entender o fenômeno de expansão das favelas nas últimas duas décadas, como o surgimento dos complexos - espécie de megafavelas. Mais difícil ainda é perceber porque elas continuam a ser um gueto, onde a população de trabalhadores de baixa renda é obrigada a morar. "O Brasil produz pessoas que têm que pagar pelo que consomem. São homens-monetários, mas que não têm dinheiro para isso. Desde a escravidão, o trabalhador sempre viveu em gueto. Nesse país, até trabalhador acaba excluído", diz Lins.

Adolescentes traçam cenário sombrio

O lanterneiro Marcos Xavier Silva, de 32 anos, admite que a definição dos dicionários "tem a ver com a realidade". E pinta um retrato ainda pior: "Vê aí pelo chão ratos dando mole, barracos de madeira nas margens do rio, pessoas sem ter o que comer. Miséria total", resume Silva, morador da Cidade de Deus.

Ainda mais obscuro e sem retoques é o retrato feito por adolescentes, que associam o lugar à violência, miséria e desemprego. Como os estudantes Tiago Alves e Roberto Jefferson, ambos de 15 anos, moradores da Cidade de Deus: "Favela é um lugar onde moram pessoas muito pobres e desempregadas. As pessoas daqui são todas muito tristes", resumem. A estudante Fernanda Silva, de 14, também da Cidade de Deus, acha que favela "é um lugar muito ruim de se morar, porque tem muita violência e brigas".

A questão da higiene mexe especialmente com os brios dos moradores. "Existem pessoas que não esquentam a cabeça com a limpeza de suas casas, mas isso pode acontecer em qualquer lugar. Até mesmo em bairros chiques. Só pelo aspecto pobre da favela não se pode dizer que sejamos sujos", reclama Tatiane Soares Nascimento, de 20 anos, moradora do Parque Vila Nova, na Zona Oeste.

"Ser favelado é, antes de tudo, um estado de espírito"

A dona de casa Marcília Viana da Silva, de 39 anos, moradora do Morro do Tuiuti, em São Cristóvão, acha que as definições são corretas, mas não explicam tudo. Nem todo morador de favela, diz Marcília, têm baixa renda. "Eles podem até não ser ricos, mas muitos vivem numa situação bem razoável". Renda familiar, Marcília está convencida, não serve para definir uma favela. Nem favelado - quase um palavrão para a dona de casa. Para ela, ser favelado não é ser pobre. É não ter família, nem educação. "O favelado é uma pessoa de índole ruim, com manias feias, tipo roubar, e que não sabe conviver em sociedade. Ser favelado é, antes de tudo, um estado de espírito".

Um estado de espírito carregado de contradições. Ao mesmo tempo em que gostaria de mudar uma série de coisas na comunidade em que vive – a começar pela imagem de violência e marginalidade – o morador da favela tem orgulho e apego ao lugar onde mora. Não por acaso, um trabalhador de Acari disse certa vez ao historiador Marcos Alvito que não saía da favela por não ter "passaporte" - sinônimo para a carteira de trabalho, que daria acesso a outros vínculos com a sociedade. Ali é o lugar onde é possível contar com uma rede de amigos e biscates.

Para o secretário da 30ª Região Administrativa da Maré, Marcos Figueiredo, de 35 anos, "é simples dizer que o favelado é algo à parte", mas "ninguém percebe que o que tiram dele é o direito de ser um verdadeiro cidadão". Marcos elogia a favela como um lugar onde se respeita o outro, porque se sabe de sua "eterna luta para sobreviver". 

Para Jony Ferreira dos Santos, de 24 anos, morador do Morro do Tuiuti, em São Cristóvão, estudante do 8º período de Engenharia da UFRJ, as favelas só se tornaram as regiões "menos desenvolvidas" da cidade por falta de assistência pública. Se tivesse que cravar uma definição para favela numa prova, não teria dúvida: diria que "a característica mais marcante de uma favela é a ausência do Estado".

Uma ausência que não impediu que a favela tivesse uma imensa riqueza cultural. Dali sai boa parte da música brasileira. E é ali que se preservam tradições religiosas e culinárias diversas. Como lembra o filólogo Bagno, as favelas são responsáveis pela preservação e renovação de boa parte "da cultura legitimamente brasileira e urbana". E nem é preciso ver de perto para saber disso.

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Violência das favelas atinge preço de imóveis

Jornal O Globo, Rio, 20 de Janeiro de 2002


Selma Schmidt

Proprietários de apartamentos e casas vizinhos a favelas têm motivo de sobra para preocupações. Análises feitas por representantes de entidades que congregam administradoras, imobiliárias e corretoras mostram que, em cinco anos, a desvalorização desses imóveis se ampliou em relação ao mercado. Mais que isso: um estoque de unidades encalhadas passou a se formar na periferia de favelas. Numa mesma rua, técnicos compararam preços de aluguel e de venda de unidades afastadas e próximas de áreas violentas. Verificaram que, hoje, um imóvel na chamada alça de mira pode valer até menos da metade de outro fora do alcance de balas perdidas.

— O pior é que a liquidez desses imóveis está comprometida. Mesmo que o preço seja baixo, temos dificuldade para vendê-los — afirma Rubem Vasconcelos, diretor-presidente da Patrimóvel e um dos vice-presidentes da Associação Brasileira de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi).

— As pessoas entendem que não adianta economizar e morrer— diz César Thomé, presidente da Associação Brasileira das Administradoras de Imóveis (Abadi) no Rio.

Em 1997, desvalorização não passava de 20%

Nas contas de George Masset, vice-presidente da Abadi e dono da Administradora Masset, a diferença de aluguel entre apartamentos na mesma rua com vista para favela ou afastados dela chegava a 20% em 1997. Hoje, chega a 50%. Já Roland Jardim Júnior, da diretoria da Ademi e dono da R. Jardins Imóveis, diz que a variação pode ultrapassar 50%, enquanto há cinco anos não passava de 30%.

Assim, o metro quadrado para venda de um apartamento na Rua Barão da Torre, em Ipanema, por exemplo, varia hoje entre R$ 4.500 e R$ 6.000 (se o imóvel estiver afastado da favela). Um imóvel do mesmo tamanho pode valer 55% a menos (entre 2 mil e 2.700 o metro quadrado), caso tenha vista ou esteja próximo ao Pavão-Pavãozinho.

Construtores, administradores e corretores apontam o aumento da ousadia dos bandidos, e não propriamente o crescimento das favelas, como a principal causa do aumento da depreciação dos imóveis.

— Com o clima de insegurança aumentando, a desvalorização se amplia — afirma Antônio Rocha, presidente do Conselho Regional de Corretores de Imóveis (Creci-RJ).

O percentual de desvalorização varia não apenas segundo a proximidade, mas ainda de acordo com a visão que se tem da favela. Logo, explica George Masset, um apartamento em andar alto nas ruas Visconde de Pirajá e Prudente de Morais, de onde se vê o Pavão-Pavãozinho, também tem seus valores de venda e locação reduzidos.

Mesmo favelas menos violentas causam impacto no mercado imobiliário da vizinhança. É o caso de imóveis na Estrada da Gávea, que corta a Rocinha mas passa também por trechos de Gávea e São Conrado.

— Quando vim morar aqui, há 25 anos, só havia mata na minha frente. Agora, no morro há um paredão de casas, que se expandem na vertical — lamenta a proprietária de um apartamento de quase 200 metros quadrados na Gávea.

O problema afeta até financiamentos da Caixa Econômica Federal para empreededores. O diretor comercial da Francisco Xavier Imóveis, Cristóvam Queiroz, lamenta que há pouco mais de um ano a construção de um condomínio de baixa renda na Rua Cândido Benício, próximo à Favela do Mato Alto, tenha sido inviabilizada.

— A comunidade do Mato Alto não é violenta. Próximo ao empreendimento projetado, há um posto de gasolina e uma academia de ginástica. Mas a Caixa não autorizou o financiamento, alegando que não haveria compradores — conta Cristóvam Queiroz.

Tijuca é a região mais afetada na cidade

Para Rubem Vasconcelos, a Tijuca tornou-se a região mais afetada da cidade pelos conflitos nas favelas. O problema, acrescenta ele, está contagiando todo o bairro:

— É que a Tijuca está cercada por favelas. Em média, leva-se um ano após a entrega das chaves para se conseguir vender um prédio de 60 apartamentos no bairro. O mesmo edifício numa rua da Zona Sul sem vista para favela está todo vendido seis meses após o lançamento do empreendimento.

Há alguns meses, a Administradora Masset passou por uma situação inusitada. Um dia depois de ter se mudado para um apartamento de frente para o Morro do Borel, na Tijuca, uma inquilina procurou a imobiliária para rescindir o contrato:

— A inquilina dormiu só uma noite no imóvel. O tiroteio foi tão violento que ela e a filha tiveram de passar a noite no chão. Disse que não se importava de pagar a multa, mas queria rescindir o contrato. Tivemos que concordar. O proprietário ficou chateado conosco e até perdemos o imóvel — conta Masset.

Já a administradora Acir anuncia há um ano, sem sucesso, um apartamento de dois quartos e dependências na Rua Conde de Bonfim, também na Tijuca, em que a sala e um dos dormitórios dão vista para o Morro da Formiga.

— Primeiro anunciamos por R$ 450. Baixamos o aluguel para R$ 350 e não encontramos interessados. Quando as pessoas abrem as janelas e vêem a favela, desistem — conta um corretor, que perdeu as contas da quantidade de vezes que mostrou o mesmo apartamento.

Moradora de Vila Isabel pretende vender imóvel

Há um ano morando num apartamento de quarto e sala na Rua Luiz Barbosa, de frente para o Morro dos Macacos, em Vila Isabel, uma psicóloga está pensando seriamente em vender o imóvel. Nem o IPTU barato — R$ 69,30 à vista este ano — faz com que mude de idéia. Ela vive no apartamento onde morou sua mãe por sete anos:

— A situação piorou. Embora há alguns anos a favela já estivesse na nossa frente, não havia a violência de hoje. É muito desagradável ver gente armada. Os tiroteios também passaram a ser constantes.

Moradores de Santa Teresa também enfrentam o problema. Num prédio da Rua Ocidental, três dos seis apartamentos estão para alugar há mais de oito meses. Por um apartamento de dois quartos estão pedindo R$ 300 de aluguel, mas a vizinhança com o Morro da Coroa apavora. O proprietário, também desestimulado, não investe nos imóveis, agravando a situação:

— Já em imóveis perto do Largo do Guimarães, por exemplo, se consegue R$ 500 facilmente — diz Dóris Oliveira, da Queiroz Conceição.

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 Aposentado erra caminho e é morto com tiro no rosto em favela paulista 

 

Jornal O globo, País, quarta-feira, 30 de janeiro 2002



SÃO PAULO. Um erro no caminho de casa custou a vida ao aposentado José Rodrigues Dias, de 65 anos. Na noite de segunda-feira, ele se perdeu na Favela Funerária, na Zona Norte de São Paulo, quando pegou um atalho para tentar chegar mais rápido em casa, na Vila Formosa, Zona Leste da cidade. Dias, que estava acompanhado da mulher, Lourdes Castilho Rodrigues, de 60, levou um tiro no rosto. Ontem à tarde, a Polícia Militar prendeu o traficante Luciano Preto, reconhecido por Lourdes como o assassino de seu marido.

Casal voltava de passeio na cidade de Cafelândia

Dias e Lourdes retornavam de Cafelândia, para onde viajavam a cada duas semanas, quando se perderam. A viagem já durava sete horas e, ao tentar encurtar o caminho, acabaram na favela.

Lourdes contou que, por volta das 22h30m, seu marido pediu informação a um morador da Favela Funerária que se encontrava na janela de um barraco e foi alertado para que se saísse dali o mais rapidamente possível. O homem avisou ao casal que depois das 22h ninguém podia circular pela favela e que o toque de recolher na comunidade fora imposto por traficantes.

Mal o aposentado saía com o carro, um homem, depois identificado como o traficante Luciano Preto, disparou contra seu Palio. Atingido no rosto, Dias perdeu o controle do veículo e bateu em um poste.

Lourdes tentou socorrer o marido, mas não conseguiu: uma moradora a avisou que, se alguém da favela a ajudasse, poderia sofrer represálias dos bandidos.

O tenente Claudinei Pereira, 5 Batalhão da Polícia Militar, porém, negou que os traficantes haviam imposto um toque de recolher na favela.

— Nada disso existe. Nós atuamos na favela e não damos espaço para esse tipo de coisa — enfatizou.


Dois casos no Rio

Entrar em favela por engano também já resultou em mortes no Rio. Foi o caso de 11 torcedores do Santos que foram recebidos a bala por traficantes da Favela Vila do João, no Complexo da Maré. Eles voltavam para São Paulo na madrugada de 14 de dezembro de 1995 depois de assistirem ao jogo Botafogo x Santos, no Maracanã, quando entraram por engano na favela. Ao verem os carros dos torcedores, os traficantes atiraram imaginando que se tratava de uma invasão de uma quadrilha rival. Ronaldo Mattos Ferreira, de 32 anos, foi morto com um tiro na cabeça. Outros três torcedores ficaram feridos.

Outro caso semelhante aconteceu na mesma favela em março do ano passado. O americano Garth Orwin Green, de 51 anos, e seu filho Bradley, de 21, foram baleados ao entrarem por engano, à noite, na Vila do João. Eles voltavam de São Gonçalo e erraram o caminho para o hotel onde estavam hospedados no Flamengo. Garth ficou ferido no peito e no ombro e Bradley, no tórax.

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 Polícia enfrenta traficantes

 

Jornal O Globo, Rio, quinta-feira, 7 de fevereiro de 2002

Polícia enfrenta traficantes durante seis horas em favela de Bonsucesso

Policiais civis e traficantes do Terceiro Comando se enfrentaram ontem de madrugada no Morro do Adeus, em Bonsucesso, durante seis horas de intenso tiroteio. A polícia pretendia prender uma quadrilha que tentava extorquir R$ 250 mil de uma família da Zona Oeste. Dois bandidos foram baleados e levados para o Hospital Geral de Bonsucesso, onde morreram. Outras três pessoas foram presas. Ao fim do confronto, as marcas da violência, que incluiu a explosão de uma granada, estavam em muros e casas da favela. Um policial se feriu levemente.

Outra versão, não confirmada pela polícia, é de que os mesmos policiais estavam tentando recuperar um material roubado de um oficial PM. Na pasta do policial haveria documentos e fotografias que poderiam auxiliar na prisão dos traficantes Paulo César dos Santos, o Linho, e Celso Luís Rodrigues, o Celsinho da Vila Vintém.

O tiroteio começou por volta de meia-noite. Foram mobilizados para a operação 60 policiais da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), da 21 DP(Bonsucesso) e da Delegacia do Aeroporto Internacional Tom Jobim e do 22BPM (Benfica).

De acordo com o delegado Marcos Reimão, diretor da Core, o grupo que estava tentando extorquir os R$ 250 mil agiu com a permissão de três dos principais traficantes da cidade: Ernaldo Pinto Medeiros, o Uê; Celso Luiz Rodrigues, o Celsinho da Vila Vintém; e Paulo César da Silva, o Linho. Todos do Terceiro Comando. Reimão se feriu levemente na perna esquerda com um estilhaço de bala de fuzil.

Segundo o delegado, o drama da família começou no domingo. Oito marginais invadiram a casa na Zona Oeste e levaram R$ 1 milhão em jóias, carros e celulares. Desde então, o bando vem telefonando para a família, exigindo mais dinheiro e ameaçando matar as vítimas caso não dessem o dinheiro.

— Nós preparamos essa operação. Eu trouxe o dinheiro para negociar com eles e tentamos pegá-los — explicou Reimão, com um saco de dinheiro na mão.

O policial disse ainda que a família está sendo protegida pela polícia.

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Favelas crescem em ritmo quase 4 vezes maior

Jornal O Globo, Rio, quinta-feira, 7 de fevereiro de 2002

Favelas crescem em ritmo quase 4 vezes maior
Alan Gripp

A banda pobre cidade partida cresceu num ritmo mais acelerado do que o carioca pôde perceber. Estudo feito pela prefeitura, com base nos dados do IBGE, revela que, na década de 90, o número de pessoas que se instalaram em favelas do Rio cresceu quase quatro vezes mais do que em toda a cidade. Comparando os resultados dos censos de 1991 e de 2000, os pesquisadores do Instituto Pereira Passos (IPP) descobriram que a população aumentou 6,9% durante esse período, contra uma taxa de crescimento de 23,9% apenas nas favelas, como informou ontem Ancelmo Gois em sua coluna no GLOBO. A população dessas comunidades já superou a casa de um milhão de pessoas (1.092.958).

Crescimento é maior em Barra de Guaratiba

De acordo com o estudo, a explosão demográfica nas favelas aconteceu, principalmente, em direção às zonas de expansão da cidade. Barra de Guaratiba teve a maior taxa de crescimento (195%). Em 1991, o bairro tinha 1.462 moradores nessas comunidades e, em 2000, o número subiu para 4.313. A região da Barra da Tijuca e do Recreio não ficou atrás: lá, o número de pessoas que se instalaram em favelas cresceu 132,7%. Segundo o diretor de informações geográficas do IPP, Paulo Bastos, neste caso o aumento foi seis vezes maior na primeira metade da década.

— Na primeira metade da década, as favelas de lá tiveram uma taxa de crescimento anual de 18,6%. Na segunda metade, a média anual foi de 3%. É um número assustador, que se deu a partir de novas invasões — disse Bastos.

Para o prefeito Cesar Maia, o crescimento acelerado é resultado da combinação entre a crise econômica vivida pelo país e a falta de políticas habitacionais:

— Os problemas econômicos criaram uma tendência de esvaziamento do interior e migração para a capital. A ação medíocre do estado e da prefeitura durante anos agravou a tendência — disse.

Cesar Maia defendeu a tese de que a política habitacional de seu primeiro governo (1993-1996) interrompeu, temporariamente, esse processo:

— A prefeitura criou alternativas, como construção de casas, urbanização de favelas e obstáculos ao crescimento. A partir de 1999, as invasões voltaram a ser estimuladas.

Alheios à discussão, os moradores dizem que o adensamento piora a cada dia as condições de vida. Josinaldo Cruz, presidente da Associação de Moradores da Favela Rio das Pedras, em Jacarepaguá, uma das que mais crescem, conta que pelo menos cinco famílias se instalam no lugar todo mês. A maioria, segundo ele, vinda do Nordeste.

— Isso só acontece por omissão do poder público. Por diversas vezes, pedimos à prefeitura que cercasse o entorno da favela e nunca foi feito — reclama.

Complexo do Alemão ganhará obras do Rio Cidade

Paralelamente ao crescimento na Zona Oeste, as favelas da Área de Planejamento 1 — Centro, Zona Portuária, Rio Comprido, São Cristóvão, Paquetá e Santa Teresa — registraram uma queda populacional de 9,7%. Mais uma vez, o prefeito atribui o desempenho à sua administração:

— Aconteceram várias remoções para conjuntos construídos pela prefeitura e programas de urbanização que estabilizaram a situação.

A prefeitura anunciou ontem que o Complexo do Alemão terá obras do Rio Cidade. As favelas serão urbanizadas e ganharão áreas de lazer, creches, novos sistemas de drenagem, água e esgoto. As obras custarão R$ 1 milhão.

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Favelas avançam sobre o asfalto

Jornal do Brasil, Cidade, domingo, 24 de fevereiro de 2002

Se ritmo de crescimento for mantido, região de Jacarepaguá terá, em 2024, mais moradias informais que regulares

Cláudia Amorim

O Rio vive a consagração de uma das diferenças que o fazem uma cidade partida. Desta vez, uma disparidade que altera a proporção entre seus dois lados: a cada ano, a população das favelas cresce seis vezes mais que a do asfalto. E esse ritmo tem se acelerado. Na última década, a taxa de expansão anual dos habitantes de comunidades carentes ficou em 2,4%, enquanto nos anos 80 era de 1,91%. A curva ascendente pode ser confirmada pela análise dos números dos anos 90: a taxa anual de crescimento nas áreas mais pobres passou de 1,54% na primeira metade da década para 3,5% na segunda metade. Na Barra da Tijuca e Jacarepaguá, o problema é ainda mais grave. No atual ritmo de crescimento, em 2024 Jacarepaguá será um bairro majoritariamente ocupado por favelas.

No Rio, atualmente, 18,7% das pessoas moram em comunidades de baixa renda. Em 1991, esse número era de 16%. Onze anos antes, eram 14% da população nessa condição. Dos 5.480.778 habitantes registrados na cidade pelo último Censo, mais de um milhão residem em favelas. A análise desses números foi feita pelos pesquisadores do Instituto Pereira Passos (IPP), órgão da Secretaria Municipal de Urbanismo, com base nos dados do Censo de 2000.

''É uma mazela social e econômica que tem que ser combatida antes que se instale, devido à complexidade de sua solução'', avalia o secretário municipal de Urbanismo, Alfredo Sirkis, que aponta três maneiras de enfrentar o problema.

A primeira, garante Sirkis, já está sendo posta em prática pela Secretaria. ''Estamos simplificando a legislação urbanística para facilitar a construção de pequenas edificações dentro da lei'', afirma o secretário, que pretende evitar que a burocracia empurre a população de baixa renda para a ilegalidade.

O segundo passo é um consenso: a necessidade da criação de linhas de financiamento que permitam ao pobre o acesso à habitação. Para Sirkis, o outro dos três fatores que favorecem a favelização é a ação de ''empresários informais'' que lucram com a indústria da comunidade de baixa renda. ''São faveleiros e loteadores clandestinos. Esses grileiros desmatam e constroem não para morar, mas para vender'', acusa.

Na discussão de ações de combate à essa prática, sobram farpas para o governo estadual. ''A repressão inclui demolir essas construções quando ainda estão sendo erguidas e acionar criminalmente os responsáveis, o que exige a participação do governo estadual, que tem poder de polícia. O problema é que o Estado passa aos grileiros mensagem de impunidade e estímulo quando constrói conjuntos como Nova Sepetiba, sem infra-estrutura e em área de preservação'', alfineta.

Zona Sul - A década de 90 também foi marcada pela expansão das favelas na Zona Sul. O adensamento populacional fez com que, enquanto a taxa de crescimento ao ano no asfalto ficasse negativa (-0,6%), nos morros, ela beirasse 2%. Desde o Censo anterior, de 1991, houve um aumento de 210 mil habitantes de comunidades carentes na cidade. Um terço deles instalados em áreas da Barra e de Jacarepaguá. Na região, além do crescimento horizontal e vertical de favelas já existentes, como a Rio das Pedras - que passou nos últimos dois anos por realocações que retiraram moradores de áreas de risco -, novas comunidades carentes ocuparam principalmente áreas de preservação ambiental.

Embora as taxas de crescimento anual da cidade formal também tenham sido altas nessas áreas, o aumento da população das favelas se destaca. Em Jacarepaguá, as taxas da década passada ficaram em 1,7% no asfalto e 7,5% nas favelas. Na Barra, em 6% e 10%. Na segunda metade dos anos 90, as favelas cresceram quase 19% ao ano na Barra da Tijuca. Nessas regiões, o número absoluto de moradores de comunidades de baixa renda acabou superando o da área do Centro, que ainda mantém o título de maior porcentagem da população vivendo em favelas: 28,7%.

Os técnicos do IPP estimam que, onde o Rio mais cresceu, nas regiões da Barra e Jacarepaguá, o aumento da população tenha sido dividido ao meio: para cada 100 novos moradores da cidade formal, 86 habitantes de favelas.

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Projeto modifica favela

 

Jornal do Brasil, Cidade, sábado, 09 de março de 2002

Prefeitura transfere famílias de área de risco para nova área no Chapéu Mangueira

O cenário que muitos gostariam de ter ao alcance dos olhos, pelo qual se paga um dos IPTUs mais caros do Rio, não custará nada para alguns mortais. Mais precisamente para moradores da favela Chapéu Mangueira, no Leme. O projeto Bairrinho, da Secretaria Municipal de Habitação, orçado em R$ 1,2 milhão, está assentando famílias que moram em área de risco num ponto com uma das vistas mais privilegiadas do bairro. A construção das casas, num terreno acima do Leme Tênis Clube, com vista panorâmica para o mar, é criticada pelos vizinhos do asfalto e também por representantes da própria comunidade. Laura Campello, moradora da rua General Ribeiro da Costa, se assustou ao ver sinais de ocupação na área verde do bairro. ''Pago um IPTU caríssimo para morar perto da praia enquanto outras pessoas sequer pagam impostos. Achava que a ocupação era ilegal, mas quando soube que a Prefeitura estava financiando a construção das casas, não entendi a escolha da localização. Se a questão é a necessidade de moradia, que coloquem as famílias em outro bairro mais barato sem estragar a natureza'', indignou-se a moradora. De acordo com a secretaria, a construção das novas casas na favela que ocupa o morro desde 1936 é permitida pela mesma lei em que se baseou o programa Favela Bairro.

Como a região é cercada por árvores e mata, vizinhos chegaram a pensar que a área era de proteção ambiental. A Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente(Feema) informou que o local não é área de proteção do Estado. O Ibama garantiu não possuir unidade de conservação no morro.

Segundo o presidente da Associação de Moradores do Chapéu Mangueira, Gibeon de Brito Silva, os primeiros a ganhar casas são 13 pessoas que moram em cabanas numa região do morro conhecida como Cota 80. Mas ele garante que isto não significa um crescimento da favela. ''Não nos interessa a expansão do Chapéu Mangueira. Como o uso capião não garante a posse da Cota 80, por ser área do governo e de uso militar, as casas foram construídas na parte mais baixa do morro, no limite da nossa propriedade'', disse Gibeon. A associação não está satisfeita com o projeto que além de assentar as famílias vai urbanizar áreas comuns da favela e fazer obras de saneamento e distribuição de água. ''Quem mora no asfalto e está preocupado com a localização das casas não sabe os transtornos que o Bairrinho tem gerado à comunidade. Se o projeto fosse cumprido como foi apresentado, seria maravilhoso'', reclama Gibeon. De acordo com o presidente, faltam caminhos de acesso às casa e a creche não foi ampliada. ''O pessoal da comunidade, que deveria ter sido contratado, cobra no mínimo R$ 20 por hora. A prefeitura só queria pagar R$ 15. Os moradores acabam tendo que dar almoço aos trabalhadores que ficam semanas sem receber o salário e acabam vendendo o cimento que poderia ser aproveitado para construir outras casas. Estão colocando canos onde a associação já havia instalado em um mutirão. Está havendo um grande desperdício de recursos'', protesta. A secretaria negou as denúncias e informou que o projeto está cumprindo o previsto.

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Pobreza avança sobre o Rio

 

RJ-TV - Rede Globo, sexta-feira, 15 de março de 2002

Um milhão de pessoas. Essa é a população que vive hoje nas favelas do Rio. Um número que cresce em uma proporção quatro vezes maior do que o de moradores dos bairros da cidade. Um crescimento desordenado, que acontece quase sempre em áreas verdes ou em locais com riscos de deslizamento e desabamento. É o que acontece nas favelas Santo Expedito e Parque André Rebouças, no Rio Comprido. A ocupação começou há 24 anos e não pára de crescer. Hoje as casas e barracos chegam ao topo do morro. Histórias de acidentes são muitas nessas comunidades.

“Quando a gente morava mais pra cima, houve um deslizamento que impediu a nossa passagem pela porta”, conta Vanusa do Nascimento, dona de casa.

Em 1995, a prefeitura do Rio chegou a alertar para os riscos da ocupação, que crescia em direção ao Túnel Rebouças. Segundo engenheiros, o peso dos imóveis e o esgoto produzido pelos moradores poderia causar problemas no túnel.

Em 97, algumas casas chegaram a ser retiradas. Hoje, algumas obras tentam conter o crescimento. Mas as áreas devastadas mostram que novos barracos devem surgir rapidamente. Os moradores sabem dos riscos.

“Com o que ganhamos só dá para comer, temos que ficar aqui mesmo”, diz Júlia Moreira, dona de casa.

“De fato, deslizamentos já aconteceram aqui em cima. Não é a área ideal, mas temos que superar isso”, declara Ronaldo Pereira, office boy.

O crescimento de habitações nos morros e nas encostas é tanto que qualquer lugar está servindo de abrigo para a população. Em um pequeno espaço aberto em uma parede de contenção foi encontrado um barraco com móveis, cortinas e até luz. O morador não estava.

Segundo o subprefeito do Centro, Breno Arruda, há um controle para cercar a área e impedir que novos moradores cheguem àquela região.

“A prefeitura faz um monitoramento constante dessa área. Nesse momento, realizamos uma obra de contenção física da comunidade, para impedir a sua expansão”, ele explica.

O subprefeito acredita que em pouco tempo as famílias sejam retiradas da área.

“O cadastramento dos moradores já foi feito pela Secretaria de Habitação, e as famílias serão realocadas a partir do final de abril”, garante Breno Arruda.

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Preços altos no mercado imobiliários das favelas

Jornal O Globo, Rio, domingo, 24 de março de 2002

Preços altos no mercado imobiliário das favelas
Selma Schmidt

Tão dinâmico quanto no asfalto, o mercado imobiliário em favelas também tem seus imóveis de ponta. No topo da lista das mais cotadas das favelas, está uma casa de três andares — com quadra de futebol, piscina, sauna, churrasqueira e dez vagas de garagem — na Rocinha. O imóvel é avaliado pela associação de moradores e pela administradora Passárgada em R$ 500 mil — preço médio de um apartamento de luxo com quatro quartos na Barra e na Gávea.


Conforto no morro: a casa da Rocinha avaliada em R$ 500 mil tem piscina, sauna, churrasqueira, dez vagas na garagem e vista para o mar - Foto: Marizilda Cruppe

Preços altos até na Vila Vintém

Imóveis com preços de classe média não se limitam à Rocinha. Levantamento feito em outras comunidades pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (Ippur), da UFRJ, em parceria com o Instituto Pereira Passos, da prefeitura, identificou valores altos de venda de casas, mesmo em favelas consideradas violentas. Na Vila Vintém, em Padre Miguel, por exemplo, uma casa de quatro quartos, terraço e garagem para três carros é oferecida a R$ 50 mil. Valor igual querem os donos de um prédio da Rua Noruega 3, na Lagartixa, em Fazenda Botafogo, com piscina e duas pequenas lojas no térreo. Pelo mesmo preço é possível comprar um conjugado em Ipanema, um quarto e sala no Flamengo ou um dois quartos em Madureira.

— Um dos fatores de valorização de imóveis em favelas é a rede social que existe em muitas comunidades, ou seja, os vizinhos colaboram entre si. Outro fator de valorização é a liberdade urbanística. Os donos podem ampliar a casa e mudar o seu uso sem as limitações que a lei impõe à sociedade formal — explica o professor Pedro Abramo, do Ippur, coordenador da pesquisa.

Em Vigário Geral foi encontrada uma casa à venda por R$ 45 mil. O contraponto dentro da comunidade são os cerca de 15 imóveis à venda na Rua Onze Unidos, limite com a favela rival de Parada de Lucas. Na área de fogo cruzado, o preço cai para entre R$ 2 mil e R$ 3 mil.

Numa primeira fase, o trabalho foi concluído em 12 comunidades. Uma segunda etapa atinge mais 15 favelas, cinco já com os questionários aplicados.

Dona da chamada casa roxa da Rocinha, avaliada em R$ 500 mil, a espanhola Marina Amor da Pia, de 74 anos, não pensa em vender o imóvel. Ela mora no primeiro andar e o aluguel do segundo pavimento — o mais caro da favela — lhe rende R$ 1.200 por mês. Cada uma das dez vagas também está alugada a R$ 100 mensais. Já a quadra dá retorno de R$ 350 por aluguel para festas.

— Quando viemos para cá, em 1961, as casas eram poucas. São Conrado não tinha tantos prédios e víamos a areia da praia. Hoje, só conseguimos ver o mar — lamenta Marina.

Assim como a Favela de Rio das Pedras — que teve 30% dos entrevistados procedentes do asfalto, segundo a pesquisa — a Rocinha começa a atrair a classe média, sobretudo aqueles que querem fugir do aluguel, de IPTU e de taxas de condomínio, luz e gás. É o caso de Solange Carvalho Silva, que preferiu alugar seu apartamento de dois quartos na Rua Raimundo Correia, em Copacabana, e pagar R$ 300 por um quarto e sala na Estrada da Gávea:

— O apartamento em Copacabana é meu, mas só de condomínio pagava R$ 298.

O mercado de compra, venda e aluguel de imóveis é tão aquecido na Rocinha que cinco administradoras já se instalaram na favela. Gerente financeiro da Administradora Passárgada, Jorge Ricardo Souza conta que de um ano para cá a Rocinha começou a atrair a classe média:

— Há um grupo sendo massacrado na Rocinha, onde o custo de vida e a mão de obra são caros. Tem muito nordestino voltando para sua terra natal. Em compensação, o lugar tem atraído um outro público — diz Jorge Ricardo.

Dependendo da localização, um cômodo com banheiro na Rocinha custa entre R$ 150 e R$ 250, para aluguel, e entre R$ 4 mil e R$ 10 mil, para a compra. Os preços dos conjugados variam entre R$ 200 e R$ 220, para aluguel, e R$ 7 mil e R$ 9 mil, para a compra. Um dois quartos custa entre R$ 350 e R$ 600, para aluguel, e entre R$ 20 mil e R$ 45 mil, para a compra.


O preço de alguns imóveis

ROCINHA: Casa de três andares na Rua Dionéia 30, com quatro quartos, duas salas, dois banheiros, duas cozinhas, sauna, piscina, churrasqueira e quadra de futebol por R$ 500 mil; prédio de três andares na Estrada da Gávea 213 com mercadinho no térreo, dois apartamentos de quarto e sala e um de dois quartos por R$ 200 mil.

VILA VINTÉM: Nessa favela de Padre Miguel, casa na Rua Mesquita 116a com quatro quartos, cozinha, dois banheiros, terraço e garagem para três carros por 50 mil; casa de dois andares na Rua General José Faustino 21, com três quartos, duas salas, dois banheiros, cozinha,.piscina e três vagas por R$ 35 mil.

VIGÁRIO GERAL: Casa de dois andares na Rua Vila Nova, com varanda e fachada em cerâmica e vidro por R$ 45 mil.

LAGARTIXA: Nessa favela da Fazenda Botafogo, prédio de três andares na Rua Noruega 3, com duas lojas no térreo, garagem e piscina por R$ 50 mil); casa de dois andares, terraço, quatro quartos e garagem na Rua Albânia 7 por R$ 30 mil.

VILA CAMPINHO: Casa na Rua Coração de Maria 2, com três quartos, sala, dois banheiros, cozinha, varanda custa R$ 30 mil.

DIVINÉIA: Nessa favela de Paciência, casa na Rua Joaquim Augusto 4, com dois quartos, sala, banheiro, cozinha e varanda por R$ 25 mil.

JACAREZINHO: Na favela, casas de dois quartos com preços médios são vendidas por cerca de R$ 20 mil.

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Obra para comunidade do Morro da Viúva cria polêmica  

Jornal O Globo, Rio, sábado, 30 de março de 2002


Obra para comunidade do Morro da Viúva cria polêmica

O Ministério Público estadual poderá investigar, nos próximos dias, se uma outra obra da Secretaria municipal de Habitação, além da que está sendo feita no Morro Chapéu Mangueira, no Leme, pode causar danos ao meio ambiente, como noticiou Ancelmo Góis em sua coluna. O pedido será feito por moradores de prédios vizinhos ao Morro da Viúva, no Flamengo, que querem retirar as casas de sete famílias, alegando que se iniciou ali um processo de favelização. Há dez dias, a Secretaria de Habitação iniciou no local um projeto de urbanização. Vai retirar uma cerca de madeira e erguer no lugar um muro. Também vai capinar o terreno, reformar a escadaria que dá acesso à área, construir um corrimão e um parque infantil.

As famílias do Morro da Viúva, todas da mesma descendência, moram no local há mais de 50 anos sem que tenham ultrapassado, nesse meio século, o perímetro da primeira casa construída, em 1950, para um funcionário do antigo Departamento de Águas e Esgoto (DAE), atual Cedae. O funcionário era o patriarca da família.

O início das obras gerou uma controvérsia. Em 1997 a vereadora Leila do Flamengo criou no Morro da Viúva uma Área de Proteção Ambiental (APA) — bem depois, portanto, de as famílias habitarem o local. Mesmo assim, Leila encaminhou ao prefeito Cesar Maia carta protestando contra as obras, alegando que as famílias é que teriam invadido a APA.

Documentos da Secretaria municipal de Habitação mostram, no entanto, que todas as famílias estão devidamente cadastradas. Os moradores do Morro da Viúva se defendem dizendo que moram no local há 53 anos, bem antes da criação da APA.

A Secretária de Habitação, Solange Amaral, assegura que a prefeitura não está permitindo a expansão da área.

— Estamos fazendo apenas melhorias — disse ela.

A história da família no local começou com José Amado, já falecido. Ele era manobreiro da caixa d’água do antigo DAE no Morro da Viúva. Aposentado, Amado continuou morando no local. Nas décadas seguintes, a família de Amado cresceu e hoje está na quarta geração. Dentro do terreno da primeira casa foram construídas outras seis, a mais recente há 32 anos. Nem por isso, entretanto, ultrapassaram o terreno da primeira casa.

— Somos os últimos a querer que isso vire uma favela. Foi aqui que nascemos e nos criamos. Somos humildes, temos casas pequenas, mas isso não é uma favela — conta José Amado Júnior, filho do patriarca.

No caso do Chapéu Mangueira, Solange Amaral afirma que não há construção de novas casas, mas sim, a substituição, dentro do programa Favela-Bairro, de seis imóveis que se estavam em áreas de risco:

— Os moradores estão sendo reassentados dentro da própria comunidade, como é a orientação do projeto. Não há agressão ao meio ambiente.

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Protesto contra Política Habitacional

Jornal O Globo, Rio, domingo, 7 de abril de 2002


Protesto contra a política habitacional

Cerca de cem moradores do acampamento Nova Palestina, em Campo Grande, ligados ao Movimento dos Trabalhadores Urbanos (MTU), fizeram ontem um protesto contra a política habitacional do estado. Eles criticaram ainda a dívida de R$ 1 bilhão que Benedita da Silva estaria herdando do Governo Garotinho. O grupo começou a manifestação com um lanche no Shopping Rio Sul. Ao deixar a praça de alimentação, Eric Vermelho, um dos líderes do movimento, prometeu que todos acampariam em frente ao Palácio Guanabara para cobrar da nova governadora uma política habitacional eficiente. Mas acabaram desistindo para evitar confronto com simpatizantes de Garotinho.

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O pesadelo da casa própria

Jornal O Dia, Domingo, 21 de abril de 2002.
  


Amarga luta do carioca pelo lar, doce lar é repleta de invasões, loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais inacabados
Élcio Braga


O Rio parece a casa-da-mãe-joana: a cidade possui 1,5 mil loteamentos irregulares; cadastramento da Companhia Estadual de Habitação (Cehab) indica 679 mil pessoas candidatas a uma moradia, e a área construída para residências caiu 66% em relação há 18 anos. "Hoje, 80% das unidades habitacionais do Rio são irregulares ou estão em fase de regularização", atesta o presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito do Parcelamento do Solo Urbano, vereador Jerominho (PMDB).

É na esperança de conseguir um lar que a dona-de-casa Maria Elizângela de Souza Silva da Costa, 19, passa o dia sobre o alicerce do que deveria ser uma casa, no Conjunto Habitacional Nova Sepetiba II. "À noite, meu marido fica de plantão para afastar invasores", diz ela, cadastrada na Cehab. Com renda familiar de R$ 400, paga R$ 250 de aluguel. "Esta é a nossa melhor chance de conseguir uma casa", sonha.

As invasões ao inacabado Sepetiba II mostram a árdua briga pelo lar. Muitos foram expulsos sob ameaça de morte, como a paraplégica Eunice Corrêa de Almeida e seu neto Wallace de Almeida, o Pimpolho, 5, conforme o DIA mostrou. Só sete mil residências populares foram construídas em três anos pelo estado - 1% da suposta demanda.

Consumidor corre risco de comprar imóvel irregular

No Rio, é cada vez mais comum o pesadelo da casa própria. Os consumidores correm riscos de entrar em arapucas na compra de terreno ou residência. Empresários compram posses, dividem o espaço em lotes e os revendem sem infra-estrutura.

Sem eficiência na fiscalização, a prefeitura pagará caro: deixará de receber a multa e, cedo ou tarde, arcará com os custos de saneamento. O Núcleo de Regularização de Loteamentos da prefeitura possui atualmente 353 condomínios inscritos. Desde janeiro do ano passado, o Programa Morar Legal atuou na regularização de 52 loteamentos.

A CPI já identificou mais de 100 empresários responsáveis por loteamentos e condomínios irregulares. O relatório final da comissão será encaminhado ao Ministério Público para que os envolvidos sejam responsabilizados criminalmente, com penas de um a quatro anos de prisão.

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 Favela-Bairro segue a passos lentos

Jornal do Brasil, Cidade, domingo, 21 de abril de 2002


LUIZ ERNESTO MAGALHÃES

Instalada há quase três anos e caindo aos pedaços, uma imensa placa da prefeitura do Rio na entrada do Jardim Moriçaba, em Santíssimo, informa: ali está sendo feita a segunda etapa do projeto Favela-Bairro - carro-chefe dos programas sociais da prefeitura. Na comunidade, porém, não há sequer um trator em circulação. Segundo o cronograma original, desde o ano passado deveria haver operários trabalhando para construir redes de água, esgoto e áreas de lazer para cerca de 15 mil pessoas. Só que nada saiu do papel.

Jardim Moriçaba está longe de ser uma exceção no programa financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Levantamento feito pela CPI da Câmara de Vereadores que investiga atrasos nas obras iniciadas no governo de Luiz Paulo Conde e que deveriam ser concluídas por Cesar Maia não deixa dúvidas. Em pelo menos 40 das cerca de 70 comunidades beneficiadas pelo Favela-Bairro 2, as obras não começaram ou seguem em ritmo lento. Em alguns, a prefeitura decidiu rever os projetos; em outros, refez as licitações ou teve de substituir empreiteiras falidas.

Em março, fez dois anos que o então prefeito Conde assinou contrato de financiamento com o BID no valor de 180 milhões de dólares para fazer as obras. Pelo contrato, restam 23 meses para que a prefeitura termine o trabalho. ''Mas, pelo ritmo atual, o projeto sofrerá um ano de atraso e a prefeitura será punida com multas'', denuncia o vereador Argemiro Pimentel (PSB), que preside a CPI.

O relatório da investigação será concluído esta semana e entregue ao Ministério Público do Estado. O documento denunciará atrasos na reforma de 12 escolas municipais. Em Santa Cruz, o cronograma elaborado em 1999 previa que a reforma da Escola Municipal do Dreno seria concluída em fevereiro do ano passado. A obra foi suspensa e, na sexta-feira, o município reabriu licitação para concluir o serviço, no qual serão aplicados R$ 1,2 milhão.

Vazamento - Na Favela do Jacaré, também em Santíssimo, as obras começaram em novembro de 2000 para construção das tubulações de água e esgoto. Na semana passada, estavam sendo refeitas, pois foram instaladas de forma errada e surgiram vazamentos na rede. ''As casas continuam sem receber água em quantidade suficiente'', diz o líder comunitário Francisco José Tinoco.

O cronograma original do Jacaré previa a conclusão das obras no fim do ano passado. Como o plano urbanístico passou por revisões, a creche começou a ser construída apenas no mês passado. O alargamento da Rua da Adutora foi cancelado e, como a obra no Rio dos Cachorros não foi retomada, barracos começam a reaparecer em áreas de risco.

Prefeitura culpa administração anterior


O prefeito Cesar Maia reconhece que o cronograma do Favela-Bairro 2 sofreu atrasos, mas diz que apenas herdou um problema. ''A cada mês recuperamos o tempo que eles perderam. O BID está satisfeito com a redinamização do programa, que agora foca mais no social'', argumenta. A Secretaria Municipal de Habitação promete licitar 38 novos projetos até setembro. Constam na lista os morros do Urubu (Abolição), São Carlos (Estácio), Vila Rica de Irajá, Parque Acari e Vila Catiri (Bangu), entre outros.

Sebastião Bruno, gerente de Obras do Favela-Bairro, diz que quando assumiu o cargo, em janeiro de 2001, teve de reavaliar projetos e licitações. Em Jardim Moriçaba, a concorrência foi revista porque, no fim do ano anterior, foram divulgados dois editais - em papel e disquete - com valores diferentes. Em outros lugares, as obras previam intervenções em áreas do governo federal sem que este tivesse intenção de entregá-las à prefeitura.

Mudanças


A equipe de Cesar Maia diz que não encontrou projetos detalhando muitas das obras. ''Tivemos que preparar todas as plantas. Em outras, refizemos as licitações para substituir materiais e garantir manutenção mais barata'', diz Bruno. Segundo ele, a Secretaria de Habitação fechou mês passado contratos de manutenção para todos os Favela-Bairros.

Os argumentos do prefeito e de Bruno são rebatidos pelo ex-secretário municipal de Habitação, Sérgio Magalhães. ''Quando deixei o cargo, em dezembro de 2000, projetos em 55 comunidades já haviam sido licitados ou concluídos.'' Segundo ele, não há motivo para atraso. ''Além do mais, o prefeito está há quase um ano e meio no cargo. Mesmo se tivesse problema, já dava para normalizar tudo'', acredita.

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Cem favelas em quatro anos

Jornal O Globo, Rio, domingo, 19 de maio de 2002


Selma Schmidt

Num período de quatro anos, pelo menos 25 favelas surgiram na cidade a cada 12 meses. E esse número pode até duplicar. Estudo que está sendo feito pelo Instituto Pereira Passos (IPP) identificou cem novas favelas no Rio, que se somarão às 604 cadastradas pela prefeitura. Outras cem que não constavam de levantamento aerofotogramétrico realizado em 1996 — mas são vistas nas fotos aéreas feitas em 2000 — estão sendo visitadas por técnicos do IPP, da prefeitura, e poderão também ser contabilizadas como favelas.

Além de novas áreas estarem sendo invadidas, as favelas já existentes não param de crescer. Mesmo à distância, a Rocinha já é bem visível: as casas do morro se incorporaram à paisagem de quem vive na Avenida Epitácio Pessoa, na Lagoa, mesmo próximo à Fonte da Saudade:

— É uma pena que isso tenha acontecido com um cartão-postal do Rio — desabafa a psiquiatra Ana Simas, ex-presidente da Associação de Moradores da Fonte da Saudade. — Há alguns anos, a mata predominava nesse morro.

Enquanto a Rocinha avançou na parte do morro voltada para a Gávea e a Lagoa, barracos construídos no alto do Vidigal já se voltam para São Conrado e podem ser vistos da praia.

— A virada do Vidigal para São Conrado começou em 1996. O Vidigal só não se encontra com a Rocinha porque existe um paredão rochoso entre as duas favelas — diz o advogado Luiz Fernando Pena, morador do alto da Gávea, que acompanha o crescimento das favelas do Vidigal e da Rocinha

Favelas também na Barra e no Recreio

Segundo Paulo Bastos Cézar, diretor de Informações Geográficas do IPP, as novas favelas surgiram principalmente em Jacarepaguá, na Barra da Tijuca, no Recreio e em outros bairros da Zona Oeste. Na Avenida Brasil, entre Bangu e Campo Grande, estão sendo incluídas cinco áreas favelizadas no cadastro do município. Junto à pista de descida da Avenida Brasil, em Bonsucesso, a Favela Sem-Terra passará a engrossar o banco de dados do IPP.

Outras três invasões recentes estão no terreno da Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá. No Recreio, entre a Avenida das Américas e o Canal do Cortado, também foram identificadas áreas favelizadas. Já a Rio Grande, perto da Cidade de Deus, que tinha sido removida, reapareceu.

— Na Zona Sul, nossos técnicos vão vistoriar um trecho no alto da Rua Dona Castorina, no Jardim Botânico. É um dos lugares onde o levantamento aerofotogramétrico de 2000 identificou uma mancha — explica Bastos Cézar.

Ao comparar dados dos censos de 1991 e de 2000, feitos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o diretor do IPP assinala que a população das favelas aumentou a uma taxa de 2,4% ao ano, enquanto a do município cresceu 0,38%. Em 1991, as favelas tinham 882 mil moradores. Em 2000, passaram a ter 1,09 milhão.

Sociólogo: falta política habitacional

Diferentemente do IPP, o IBGE só considera como favela os grupamentos com pelo menos 51 casas. Isso justifica o fato de o órgão federal ter contado apenas 513 favelas em 2000 e 384 em 1991. Com as novas comunidades localizadas pelo município, o cadastro do IPP terá entre 704 e 804 áreas invadidas.

Para o sociólogo Luiz César de Queiroz Ribeiro, professor titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), da UFRJ, o aumento das favelas existentes e o aparecimento de outras são reflexo da falta de uma política habitacional adequada.

— O governo tem que oferecer casas em lugares onde o acesso ao emprego seja fácil. As casas não precisam ser perto do mercado de trabalho, mas o morador precisa ter um sistema de transporte razoável. Fazer um conjunto como o Nova Sepetiba, por exemplo, é pura demagogia — diz o professor.

Luiz César conta que as favelas começaram a proliferar ainda na década de 80. Um dos motivos, segundo ele, foi o fim dos financiamentos de lotes urbanizados. A crise econômica e o aumento dos preços das passagens de ônibus e trens são outras razões citadas pelo professor para a ampliação das favelas.

— Nos anos 80, praticamente só as áreas centrais da cidade eram ocupadas. A novidade que começou na década de 90 e vem se intensificando é que as pessoas passaram a procurar áreas periféricas. Isso porque comprar ou alugar uma casa na Rocinha, por exemplo, passou a ser muito caro e o poder aquisitivo das pessoas vem caindo — explica Luiz César.

A instalação de delimitadores para evitar que as favelas ganhem território não é uma medida eficaz, na opinião do professor do Ippur:

— Os terrenos são de difícil acesso e a fiscalização é frágil.

Um muro de concreto está conseguindo evitar o encontro da Rocinha com as casas legalizadas, graças à fiscalização permanente dos moradores do alto da Gávea. A Rocinha ganhou ainda cercas (feitas de trilhos interligados por cabos de aço), mas junto aos limites há casas — várias tinham sido construídas antes da delimitação e seus moradores aguardam pelo reassentamento.

— Os delimitadores têm surtido efeito. Eles servem de obstáculo à expansão da Rocinha para as laterais. O crescimento da Rocinha se dá com a verticalização e com a ocupação de espaços no miolo da comunidade, onde são cortadas árvores para dar lugar a casas — argumenta o diretor de Obras da GeoRio, Márcio Machado

Baseado nos censos do IBGE, o diretor de Informações Geográficas do IPP afirma que a Rocinha cresceu 31,3% entre 1991 e 2000. Sua população passou de 42.892 para 56.338, enquanto o número de domicílios aumentou de 11.948 para 16.999.

Vidigal cresceu 9% entre 1991 e 2000

A presidente da Associação de Moradores de São Conrado, Kathryn Kinney Ferreira, volta no tempo. Ela se recorda do fim da década de 60, quando a Rocinha tinha poucas casas e era possível transitar com tranqüilidade pela Estrada da Gávea, que corta a comunidade de uma ponta à outra.

— A Estrada da Gávea deveria ser uma alternativa entre a Zona Sul e São Conrado. Só que ela vive constantemente engarrafada, por causa do crescimento da Rocinha. Mesmo com os mototáxis, os ônibus comuns e os escolares passam cheios por ali — afirma Kathryn.

O Vidigal cresceu bem menos do que a Rocinha. No trecho considerado como favela, o número de moradores passou de 8.580 para 9.349 (mais 9%), entre 1991 e 2000. O número de residências aumentou de 2.296 para 3.119 no mesmo período.

— O bairro do Vidigal como um todo aumentou mais do que a favela: 15,6%. Tinha 13.719 moradores em 2000 — ressalta Bastos Cézar.

Além do avanço da Rocinha, os moradores do alto da Gávea têm ainda que conviver com a expansão da Favela Parque da Cidade. Uma dona-de-casa que mora num apartamento de um condomínio na Estrada da Gávea, com frente para a Rocinha e fundos para a Parque da Cidade, só pensa em mudança:

— Esta semana (semana passada) comecei a ver luz muito perto de janelas do meu apartamento. Depois, ouvi com nitidez uma discussão. Percebi que construíram uma casa grudada no terreno do meu prédio. Estou com medo.

Diferenças entre Vidigal e Rocinha

Apesar de quase vizinhas, as favelas do Vidigal e da Rocinha guardam distâncias. O diretor de Informações Geográficas do Instituto Pereira Passos (IPP), Paulo Bastos Cézar, constata: a Rocinha é mais pobre do que o Vidigal, que conta com uma infra-estrutura semelhante à cidade em geral.

— Em relação às ligações de esgoto, a situação do Vidigal é ainda melhor do que a do município. Setenta e oito por cento dos domicílios da cidade têm ligações de esgoto, enquanto no Vidigal esse percentual atinge 94,8% e na Rocinha, 60,5% — afirma Bastos Cézar, com base em dados do Censo 2000, do IBGE.

A secretária Rosaly Pereira, que vive no Vidigal há sete anos, não vê com tanto otimismo o fato de sua casa ter ligação de esgoto:

— Só que o esgoto cai numa vala, que corta o Vidigal de cima a baixo.

Mas Bastos Cézar contra-argumenta:

— Esse não é um problema da favela, mas da cidade. Faltam redes e cabe à Cedae implantá-las.

Em relação à coleta de lixo, o serviço atende a 100% do Vidigal. Na Rocinha, atende a 99,4% das residências e na cidade, a 98,9%, segundo o Censo 2000.

No quesito abastecimento de água, o Vidigal e a cidade estão empatados: 97,8% das casas contam com rede. Na Rocinha, o percentual é um pouco menor: 97,3%. Quando o assunto passa a ser domicílio próprio (com certidão no Registro de Imóveis ou apenas a posse), o Vidigal também sai na frente: 79% das famílias da comunidade moram em casa própria. Na cidade, o índice é de 73,8% e na Rocinha, de 72,2%.

No item alfabetização, o Vidigal também está em melhor situação que a Rocinha: 91,5% contra 87,7% de moradores acima de 10 anos sabem ler e escrever. Na cidade, o percentual chega a 95,8%.

— Além disso, o Vidigal é uma favela mais carioca. Na Rocinha, existem mais pessoas que vêm de outros lugares, principalmente do Nordeste — complementa Bastos Cézar.

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Exército sai do caminho do tráfico 

Jornal O Globo, Rio, terça-feira, 4 de junho de 2002


Prefeitura alargará estrada para evitar que militares tenham que passar perto da favela

Selma Schmidt e TuIio Brandão



O Exército está fugindo da rota do tráfico no Rio. A pedi­do do Comando Militar do Leste (CML), o prefeito Ce­sar Maia incluiu o alargamento de um trecho da Estrada do Camboatá no projeto de criação de um parque recreativo em Deodoro. Segundo o prefeito, os militares não querem continuar passando com os seus carros em frente às entradas da Favela do Muquíço, onde o roubo de veículos é freqüente. A Estrada do Camboatá, que atualmente dá mão em uma só direção, passará a funcionar nos dois sentidos. Com isso, quem sai da Vila Militar para a Avenida Brasil não precisará mais passar junto à favela.

— O Exército me pediu uma rua de mão e contramão porque há um risco muito grande. Por quê? Pela ostensividade. Quando os delinqüentes estavam na “boca-de-fu­mo” não havia esse risco. Mas, agora, eles estão em torno das comunidades. E, como a presença dos militares não é uma presença enquanto batalhão, mas isolada, claro que há risco. Na verdade, o Muquiço é o caminho das pessoas quando saem com seus carros ou a pé da Vila Militar. O pedido do Exército é adequado e vamos atender — diz Cesar.

O oficial de Comunicação Social do CML, coronel Ivan Cosme de Oliveira Pinheiro, confirmou a conversa entre o prefeito e o comandante Militar do Leste, general Luiz Seldon da Silva Muníz. Segundo, ele, o general solicitou a alteração na estrada para garantir a segurança não só de militares, mas principalmente de seus parentes e de outros civis que passam pela Vila Militar.


Favela é controlada por aliado de Linho

A Favela do Muquiço é controlada pelo traficante Arlei Azevedo de Araújo, de 25 anos. A Delegacia de Repressão a Entorpecentes infor­mou que Anel é o “gerente-geral” do traficante Paulo César Silva dos Santos, o Linho, na favela. Linho é o bandido mais procurado atualmen­te pela policia e controla o tráfico de drogas em grande parte do Complexo da Maré.

Na Vila Militar, uma ilha de segurança onde as casas têm muros baixos e não há criminalidade, a população aprovou as alterações na Estrada do Camboatá:

— Ë a saída mais próxima para os militares e seus parentes que vão para a Avenida Brasil. Aquele trecho estava muito perigoso, com roubos de carros quase diários. Só melhorou um pouco quando a Polícia Militar instalou uma tenda do Polígono de Segurança, também por um pedido do Exército — afirma um oficial de alta patente da corporação, morador da Vila Militar, que prefere não se identificar.

Os civis também comemoraram a decisão do prefeito. O taxista Edwy Frutuoso de Souza, de 43 anos, faz ponto na Vila Militar e afirma que só passa pela região quando é obriga­do pelo passageiro:

— Sozinho, prefiro dar a volta por Marechal Hermes ou pelo caminho que leva a Ricardo de Albuquerque. Antes do início das obras do parque, o local (uma estação de ônibus desativada) era ponto de traficantes. Fora os assaltos na rua, os bandidos se escondiam ali. O lugar virou uma zona de risco — explica o taxista.

A prefeitura está construindo na área o parque Praias da Vizinhança, um complexo de piscinas e quadras de areia para as comunidades próximas a Deodoro. Segundo .o secretário de Esportes e Lazer, Ruy Cezar de Miranda Reis, o empreendimento contará com duas piscinas (uma para cinco mil pessoas e outra para três mil), uma extensa faixa de areia de praia com arenas de futebol e vôlei e playground, entre outras atrações. O secretário informa que a obra do parque deve estar totalmente concluída até janeiro de 2003. Mas ele acredita que a alteração na via esteja pronta ainda em outubro deste ano.

—Será um clube nos moldes da Zona Sul para a população carente. A entrada custará o preço de uma passagem de ônibus e haverá exame médico para aqueles que quiserem entrar na piscina. A idéia é que o projeto afaste definitivamente a violência daquele local _ ressalta o secretário, que diz não ter conhecimento do pedido do Exército _ A alteração na estrada foi feita no projeto original porque para chegar à Avenida Brasil o motorista tinha que dar uma volta enorme para reformar a Estrada do Camboatá.

Alguns moradores da Vila Militar, no entanto, temem que o futuro parque de Deodoro sofra com a guerra do tráfico, como aconteceu com Piscinão de Ramos,.onde houve até mortes na disputa por território, durante o verão passado. Um militar que também preferiu não se identificar, teme que haja confronto com o próprio Exército:

— Não temos autonomia pan atuar naquele parque, mas se os bandidos pensarem em incomodar a paz da Vila Militar vamos ter que reagir. E, podem esperar, o tráfico estará presente nesse clube.

Ruy Cezar descarta essa possibilidade e assegura que o Praias da Vizinhança será um lugar cercado, ao contrário do Piscinão de Ramos.

— Não haverá problema de violência. Será um clube fechado, com roleta na entrada e guarda armada — assegura Ruy Cezar.

Ao voltar a falar das Forças Arma­das, o prefeito mostra a preocupa­ção do Exército, da Marinha e da Aeronáutica em garantir que seus quartéis fiquem a salvo de delinqüentes. Segundo Cesar Maia, as Forças Armadas têm um treinamento específico de defesa das suas unidades contra assaltos.

O prefeito anunciou ainda uma parceria com o Corpo de Bombeiros. A prefeitura construirá um quartel para o Corpo de Bombeiros no Recreio dos Bandeirantes. O ponto foi escolhido, entre outros motivos, para melhorar a segurança na área:

-— Vamos ceder o terreno e construir o quartel ao lado do Terreirão. Enviamos projeto de lei à Câmara e aguardamos que o estado remeta proposta à Assembléia.


A maior concentração de tropas do país

A Vila Militar é formada por mais de 40 unidades do Exército, onde servem cerca. de 20 mil homens, e por áreas residenciais destinadas aos militares e às suas famílias, em Deodoro e Realengo. É a maior guarnição militar do Brasil. Apesar do grande efetivo do Exército na área, a Vila Militar enfrenta problemas de segurança, como assaltos e roubos de carros. Só em novembro do ano 2000, por exemplo, nas duas principais delegacias da área, a 30ª DP (Marechal Hermes) e a 33ª DP (Realengo), o número de roubos de carros chegou a 97.

Problemas de segurança na área também motivaram desentendimentos entre os moradores da região e os militares. Em 1997, o general Valdésio de Figueiredo, então co­mandante da Vila Militar, tomou uma série de medidas impopulares, como proibir que as frentistas dos postos do bairro usassem shorts, além de vetar a circulação de linhas de ônibus dentro da Vila Militar. Ele também impôs o limite de velocidade de 40 km/h nas ruas da região. Houve incidentes com motoristas.

Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano reali­zado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvol­vimento (Pnud), em parceria com a prefeitura e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os moradores da Vila Militar têm o terceiro maior poder aquisitivo da Zona Oeste (excluindo a área da Barra e Jacarepaguá): média de R$ 312 mensais. Na região, apenas o Centro de Campo Grande (R$ 333) e Sulacap (R$ 331) superam a renda per capita da Vila Militar. Tambem no Índice de Condições de Vi­da em Habitação (ICV-Habitação a Vila Militar aparece em terceiro lugar entre os bairros da região. Seu ICV é de 0,956, superado apenas pelos índices do jardim Sulacap (0,974) e Vila Valqueire (0,960).
Saiba mais sobre a favela

O nome Favela do Muquiço foi dado informalmente pela comunidade que se instalou ali há mais 60 anos. Mas o lugar é conhecido pelos técnicos do Instituto Pereira Passos (IPP), órgão da prefeitura, como Vila Eugênia. Segundo o IPP, a Vila Eugênia — ou Favela do Muquiço — surgiu em 1941 num terreno que pertencia à Fazenda Sapopemba, do Exército. Em 1978, os moradores foram ameaça­dos de remoção por advogados de uma família que se dizia proprietária do terreno. Mas a Fundação Leão XIII provou que a documentação apresentada era falsa. O último anuário estatístico do IPP informa que na Vila Eugenia vivem 5.466 pessoas em 1.428 casas.

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Bairro partido chega ao seu limite

Jornal O Globo, Barra, quinta-feira, 13 de junho de 2002


Flávia Rodrigues

Inspirado no modelo urbanístico racional, cujo representante máximo foi o francês Le Corbusier, o projeto da Barra da Tijuca, idealizado por Lúcio Costa em 1969, será questionado pelo professor de arquitetura da UFF e da UnB Wagner Morgan no livro “Urbanismo, arquitetura e violência — O poder local”. Também funcionário do Ministério do Planejamento, em Brasília, Morgan crê que a divisão do bairro em setores, cortados por avenidas, causou exclusão social e, por conseqüência, violência.

— O espaço urbano com avenidas, sem esquinas e cheio de shoppings e condomínios de gabarito alto ficou marcado entre pobres e ricos. A convivência ficou restrita. Hoje, um tem medo do outro, embora exista uma relação de interdependência, conforme dizia o geógrafo Milton Santos. As classes média e alta aceitaram isso como defesa, por medo, já que têm dinheiro. A troca promoveria cidadania — diz Morgan, que considera a Rocinha, em São Conrado, o modelo ideal da relação favela-asfalto porque os pobres interagem com a sociedade.

Morgan afirma ainda que a noção de território foi perdida e que os shoppings reproduzem o desejo de interação humana.

— Só que num gueto — diz.

Discípulo de Lúcio Costa e morador da Barra, o arquiteto Afonso Kuenerz, que tem cerca de 500 projetos no bairro, diz que o urbanista previu, sim, setores habitacionais populares. No entanto, as sucessivas crises econômicas aumentaram a demanda por moradia barata e formaram-se bolsões de pobreza e marginalidade.

— A solução para a violência é dar moradia decente às pessoas, atualizando a legislação urbanística. Fica difícil com seis Planos de Estruturação Urbana (PEUs), inclusive o da Taquara, esperando votação na Câmara de Vereadores. As invasões se proliferam — diz Kuenerz, para quem a Barra ainda é um bom lugar para se viver.

Mesmo o secretário municipal de Urbanismo, Alfredo Sirkis, questiona a ocupação da Barra. Segundo ele, esquinas e calçadas aproximariam moradores de classes sociais distintas, o que seria bom:

— O espaço público é a base da cidadania.


A não-cidade no livro

Há três anos organizando textos e fotos, o professor de arquitetura da UFF e da UnB Wagner Morgan espera lançar, no próximo ano, o livro “Urbanismo, arquitetura e violência — O poder local”. Em suas páginas, o pesquisador discutirá os conceitos de exclusão social e também espacial, e tem a Barra da Tijuca como um dos objetos de estudo. O livro falaria apenas sobre Brasília, mas, recentemente, o arquiteto resolveu incluir a Barra em sua tese, pelas semelhanças entre os dois lugares.

Morgan acredita que, na Barra, os moradores de baixa renda são excluídos. Isso ficaria evidente em shoppings e condomínios fechados, onde o acesso dessas pessoas é restringido primeiro pelo status social, depois pelos seguranças.

O isolamento das classes sociais com maior poder aquisitivo fomenta ainda mais a violência, já que não há espaço público suficiente para os moradores de baixa renda. Sem participar da vida social, eles não vêem o bairro como seu. Ao contrário, sentem-se seguros nas vielas e nos becos das favelas. A Barra teria se transformado, segundo ele, numa não-cidade.

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Tráfico criou poder paralelo

Jornal do Brasil, quinta-feira, 13 de junho de 2002


Presidente do Tribunal de Justiça diz que traficantes criaram um poder paralelo



O presidente do Tribunal de Justiça (TJ) do Rio, desembargador Marcus Faver, afirmou que o tráfico instituiu um poder paralelo no Estado. ''Eles (os traficantes) julgam, condenam e matam'', admitiu Faver, rebatendo as críticas de que brechas na Justiça permitiram a liberdade do traficante Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco. O bandido é acusado de ter comandado a execução do jornalista Tim Lopes, 51 anos, da Rede Globo, dia 2, na Favela da Grota, no Complexo do Alemão, em Ramos.

Para o desembargador, que ontem se reuniu com o chefe de Polícia, Zaqueu Teixeira, ''não há dúvidas de quadrilhas organizadas agem com poder de Estado. Há lugares em que os bandidos determinam quem vai fazer o quê'', acrescentou Faver. Segundo ele, a ausência do Estado nas áreas carentes acaba sendo preenchida pelos traficantes. O presidente do TJ lembrou ainda que há falhas no sistema penitenciário que precisam ser corrigidas.

''Precisamos dar uma basta nessa situação. Acabar com regalias'', afirmou o desembargador, referindo-se ao uso de celulares dentro dos presídios pelos chefes do tráfico, para comandar as ações do crime organizado nas favelas do Rio.

A juíza Fátima Clemente, que preside um processo contra Elias Maluco, apresentou 19 causas que levaram ao atrasamento no caso e à concessão do habeas-corpus, há dois anos. Entre elas, estão o não comparecimento de policiais como testemunhas e sucessivas faltas de presos às audiências. ''O habeas-corpus só foi concedido na quinta tentativa'', ressaltou Faver.

Ontem, o Ministério da Justiça, em nota divulgada pelo secretário Nacional de Segurança Pública, Cláudio Tucci, garantiu que não medirá esforços para ajudar a polícia do Rio a combater o crime organizado. Na nota, Tucci diz ainda que o assassinato de Tim foi uma agressão à liberdade de imprensa e que ''a violência cometida atinge não apenas o Estado do Rio de Janeiro, mas toda a sociedade brasileira''.

 

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 Melhores, porém mais violentas

Jornal O Globo, Rio, quinta-feira, 13 de junho de 2002


Elenilce Bottari

O tráfico de drogas no Rio não desafia apenas seus moradores: põe em xeque também a velha máxima de que o investimento no social é a melhor arma contra a violência. De 1995 para cá, somente as secretarias de Habitação e de Esportes do município investiram R$ 1,8 bilhão em projetos de urbanização, saneamento e lazer nas favelas cariocas. Isto sem contar os investimentos do estado, do governo federal, de ONGs e de empresas privadas. No entanto, estudo feito pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) sobre as causas da violência no Rio, mostra que, em dez anos, houve um crescimento de 41,2% de mortes de jovens entre 15 e 24 anos de idade. Só em 2000, 2.816 adolescentes foram assassinados (107,6 por cem mil habitantes); em 1991, morriam 76,2 por cem mil.

Para criminalista, investimentos sociais não bastam

Na opinião do criminalista Virgílio Donnici, investimentos sociais são importantes para a população, mas não reduzem os índices de criminalidade. Para ele, a principal responsável pela violência hoje é a própria polícia:

— O sistema policial entrou em crise. Hoje não existe mais uma polícia eficiente, pronta e rápida no atendimento social. Não é mais uma instituição social de auxílio ao povo. Ao contrário, o povo teme a polícia. Este é grande dilema social que estamos enfrentando. Ou a polícia desperta e muda sua posição, passando a respeitar a população pobre que mora na favela, ou o caos virá brutalmente.

Segundo o criminalista, outro problema é a própria miséria. Donnici lembrou que é cada vez maior a desigualdade social.

— Tem que mudar a consciência. Ou criamos uma sociedade mais justa com uma polícia gentil, mas rigorosa, ou tudo estará perdido — sentenciou.

Para o comandante do 9 BPM (Rocha Miranda), Antônio Carlos Soares David, responsável por uma das áreas mais violentas da cidade, os investimentos sociais apenas contribuem para reduzir a violência:

— Acho que toda obra de cunho social é importante para a população carente. Mas não sei se necessariamente resolve o problema da violência. Essa é uma das áreas mais problemáticas da cidade. O 9 BPM responde por 66 quilômetros e 55 favelas. E esse número continua crescendo. Isso gera violência.

A secretária de Habitação do município, Maria José Gomes Saraiva, hoje a responsável pelo Favela-Bairro — a maior intervenção social e urbanística realizada nos últimos tempos em comunidades pobres do Rio — acredita que os investimentos que vêm sendo feitos criam opções para uma população que durante anos não teve escolhas:

— Estamos criando atividades na favelas como esportes, teatro e frentes de emprego. Não sei se isso impede um jovem de entrar para o tráfico. Mas pelo menos lhe dá outras escolhas — acredita Maria José Gomes Saraiva.

Segundo a secretária, foram investidos na primeira fase do Favela-Bairro US$ 322 milhões, beneficiando 54 comunidades.

— Em todos os projetos estão previstas creches e áreas de lazer. Depois que o projeto é implantado, empregamos 500 jovens como agente jovem de conservação. Eles trabalham em educação sanitária — explicou a secretária.

Mas a presença do governo nas favelas não chegou a intimidar o tráfico de drogas. Exemplo disso é o projeto das “transfavelas” — extensas pistas e viadutos de concreto que abriram caminho entre becos e casebres dos complexos da Mangueira; do Borel, na Tijuca; dos Prazeres, em Santa Teresa; e do Caricó, na Penha. O objetivo era a integração do asfalto com os morros.

“Transfavelas” em morros inimigos vivem vazias

O que o projeto não contava, no entanto, era que a falta de pontes fosse o único obstáculo entre os morros cariocas: as quadrilhas de traficantes do Borel e da Casa Branca são inimigas e a estrada de ligação passa a maior parte do tempo vazia:

— Ninguém anda por aqui. Era para a polícia poder patrulhar, mas quem passa por aqui é “bonde” — contou uma moradora do Borel.

Outro projeto social que precisou de reforço policial para funcionar foi o Piscinão de Ramos. O governo do estado investiu ali R$ 18 milhões. Logo depois da inauguração, teve início a guerra de quadrilhas das favelas Kelson, Roquete Pinto:

— Na época, fomos impedidos de usar roupas vermelhas pelo tráfico — relembra um morador.

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Narcoditadura, o poder cada vez menos paralelo no Rio

Jornal O globo, Rio, domingo, 16 de junho de 2002


Dimmi Amora e Vera Araújo

Há um lugar no mundo onde grupos fortemente armados mandam na população de determinadas áreas. Lá estabeleceram suas fronteiras e quem é do Estado formal só entra com autorização. Criaram tribunais com leis próprias. Por medo, uma população obedece cegamente a esses grupos. Alguns, contudo, já começam a se considerar como parte deles, adotando seus símbolos e sua cultura. Este lugar se chama Colômbia e a diferença para o Rio de Janeiro é que lá o governo constituído reconheceu que os bandos armados são mesmo os governantes das áreas por eles dominadas.

O Rio não está longe disso. Nas 605 favelas da cidade, 1.092.783 moradores, 18,6% da população do Rio, têm de respeitar as leis dos traficantes. Um em cada cinco moradores do Rio vive sob o domínio do tráfico.

Bandidos delimitam fronteiras de suas áreas

Nos últimos dias, o presidente do Tribunal de Justiça, Marcus Faver; o ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior; o secretário Nacional de Segurança, Cláudio Tucci; e o superintendente da Polícia Federal, Marcelo Itagiba, as maiores autoridades da área de segurança, admitiram que os traficantes constituíram à força um estado paralelo nas comunidades carentes do Rio, onde duas facções disputam o poder impondo o terror tanto no asfalto quanto nos morros.

Um dos sinais dessa narcoditadura é delimitação de suas fronteiras: os bandidos criam barreiras improvisadas para impedir a entrada de estranhos e, principalmente, da polícia do Estado constituído. As autoridades chamam essas regiões de áreas conflagradas e só entram lá em operações previamente planejadas.

Para entrar nos territórios ocupados é preciso um salvo-conduto do representante “legal” da comunidade, o presidente da associação de moradores. Mesmo aqueles que negam envolvimento com os bandidos não conseguem se manter no cargo sem a cumplicidade do tráfico.

No cruel poder judiciário, o chefe do tráfico exerce os papéis de polícia, promotor, juiz e carrasco. Está em suas mãos a decisão sobre quem vai morrer. A pena de morte é a sentença para quem não cumpre as leis impostas. Não são permitidos roubos e estupros na favela. Quem transgride as normas passa por um julgamento e a sentença nunca tem recurso. Assim, o transgressor pode ser condenado a levar um tiro na mão por ter assaltado um ônibus, por exemplo, ou ser brutalmente assassinado, como o jornalista Tim Lopes, que fazia uma reportagem sobre o baile funk na Vila Cruzeiro, na Penha.

Traficante é o primeiro a violar a própria lei

Mas as leis nem sempre são para todos: os bandidos são os primeiros a estuprar a adolescente mais bonita da favela e a praticar assaltos no asfalto quando há queda na venda das drogas. Assim como no Estado formal, o alistamento é obrigatório para o exército do tráfico. Segundo a inspetora Marina Maggessi, da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), os traficantes recrutam “soldados” cada vez mais jovens.

— Como são muito imaturos, acabam se tornando mais sanguinários e desprezam a vida — disse a policial.

Os jovens também vão atrás de dinheiro mais fácil. Um “soldado” chega a ganhar R$ 500 por semana para defender, às vezes com a própria vida, o seu território. A moeda nesse mercado pode ser a maconha ou a cocaína, usadas como salário. Em outros tempos, os traficantes adotavam uma política assistencialista para conquistar a confiança dos moradores. Hoje promovem bailes funk sob o pretexto de levar diversão às favelas.

— Esses bailes têm o objetivo de chamar novos clientes. Eles só visam ao lucro — disse Marina Maggessi.

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Casas viram fortalezas com cercas elétricas, alarmes e blindagem

Jornal O Globo, Especial, domingo, 16 de junho de 2002


Paulo Marqueiro

Há dois anos, o economista e advogado Ib Teixeira resolveu equipar sua casa com portas blindadas. A residência, localizada num dos bairros que sofrem as conseqüências da guerra do tráfico, já tinha sido alvejada durante um tiroteio. A decisão de Ib, seguida por vários vizinhos, representa uma nova fase no violento cotidiano do Rio. Segundo ele, que é pesquisador social, a primeira etapa foi iniciada nos anos 80, com o gradeamento de prédios, casas e praças. Na segunda, que começou no fim dos anos 90, moradores passaram a adotar soluções mais drásticas.

— Por causa da blindagem, nós perdemos uma parte da vista da cidade — conta Ib Teixeira. — Em compensação, quando começa o tiroteio temos uma espécie de bunker onde nos protegemos.

Instalação de uma porta blindada pode custar o valor de um carro

De acordo com o pesquisador, cerca de 80% dos edifícios e casas da cidade estão cercados com grades de ferro.

O empresário Hélio Cudek, de uma firma de equipamentos de segurança, confirma essa tendência. Ele conta que tem aumentado o número de portas blindadas instaladas na cidade.

Segundo Cudek, uma porta blindada com resistência balística, como é chamada, custa em média R$ 4,5 mil, mas dependendo do tipo de equipamento, pode sair até por US$ 12 mil (R$ 32 mil), quantia que dá para comprar um carro.

— A procura tem sido crescente, não só para escritórios, mas também para residências — diz o empresário.

Às portas blindadas se juntam equipamentos como cercas eletrificadas ou de choque, alarmes monitorados a distância (ligados a centrais de segurança, que recebem a informação e a passam para a polícia) e câmeras.

Édison Augusto dos Reis, dono de uma firma de equipamentos de segurança, conta que quando abriu seu negócio, no início dos anos 80, havia apenas oito concorrentes. Hoje, ele disputa o mercado com quase 180 empresas. Um dos equipamentos mais solicitados são as cercas eletrificadas. Segundo Édison, em média são instaladas dez cercas de choque por mês no Rio. O equipamento para uma residência custa em torno de R$ 2 mil.

— Essa preocupação com a segurança e a necessidade de instalar equipamentos de proteção começaram a surgir principalmente nos anos 80, mas recentemente têm aumentado — diz Édison.

Um morador construiu um muro de quase dois metros de altura em volta de sua casa, instalou alarmes que, se disparados, fazem barulho semelhante ao de um carro do Corpo de Bombeiros e sensores de raios infravermelhos que acusam se alguém invadir o lugar. Os parentes — os poucos que sabem detalhes do equipamento de segurança — apelidaram a residência de Alcatraz.

Em condomínio da Barra, boneco faz papel de segurança armado

Às vezes, as soluções adotadas têm mais criatividade do que sofisticação tecnológica. Num condomínio da Barra, moradores puseram um boneco vestido de segurança no portão. Quem está a média distância do lugar pensa que realmente há um guarda de plantão. O boneco tem colete à prova de bala e segura uma arma. Em outra versão, o segurança está com um cachorro de mentira.

A preocupação não atinge apenas os moradores. Os helicópteros da própria polícia apagam as luzes quando sobrevoam à noite os morros da cidade.

Para o sociólogo Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), da UFRJ, esse não é um fenômeno que acontece só no Rio, mas em qualquer grande cidade do mundo.

— O mais preocupante é que esse tipo de comportamento reforça a chamada cultura do medo — disse ele.


Medo no morro e no asfalto

“Quando eu era criança, há 20 anos, havia mais respeito e menos agressividade na favela. Até para ver traficantes era difícil. Eles se escondiam das crianças. E, quando a gente passava, não deixavam armas à mostra. Hoje, está todo mundo de fuzil circulando ao lado dos moradores, mostrando as armas para todos. Isso influencia o pensamento de qualquer criança. Se você não tiver personalidade, vai entrar no tráfico. Eles estão ao seu lado, crescem contigo. É muito fácil porque você pode comprar roupas, andar bonito, conquistar as mulheres e ter poder. Mas nunca me convenci de que essa é uma boa saída. Prefiro continuar humilde, mas ser totalmente livre”.

X. Morador do Vidigal, estudante e resistiu aos apelos do tráfico de drogas

“O tráfico participou da minha vida quando vi uma marca de tiro dentro do meu apartamento. Mas sei que o morro não é isso. Quem sustenta essa violência somos nós, da classe média. Enquanto o garotão sobe o morro às 5h da manhã para cheirar cocaína, a empregada dele desce para trabalhar”.

MAGNO AZEVEDO Diretor de teatro, 30 anos, morou em prédios na entrada dos morros do Vidigal e do Cantagalo

“Pensando em como vivia no passado e como vivo hoje, percebo que perdi muito em qualidade de vida. Hoje, evito sair à noite. Praticamente, só circulo de táxi por achar mais seguro. Caminhar quando escurece, nem pensar. Sempre que saio tarde, uso celular para informar que estou bem”.

VALÉRIA MEDEIROS RIBEIRO Moradora da Tijuca, mudou seus hábitos depois de três assaltos nos últimos quatro anos

“De uns tempos para cá, passei a ter medo de tudo. Se paro num sinal de trânsito, fico morrendo de medo de ser abordada por um pivete ou assaltante, o que já me aconteceu. Com um caco de vidro, um garoto levou meu relógio e dinheiro. Estou cansada de viver numa cidade na qual não posso ter uma vida social normal, porque não sei se vou sair e voltar para casa sã e salva”.

LIDIANE SILVA GOMES Moradora da Barra da Tijuca, quer se mudar do Rio por causa da violência

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Favelas proibidas aos PMs

Jornal O Globo, Rio, domingo, 23 de junho de 2002


Vera Araújo

Apolícia é, na maioria das vezes, a única presença do estado em comunidades pobres. Quando ela consegue chegar lá. Atualmente a PM não consegue entrar em pelo menos 15 favelas do Rio, consideradas por policiais civis e militares como as mais perigosas da cidade. Uma ordem do comando-geral da PM proíbe a entrada de seus homens naquelas áreas de risco, salvo com o apoio de forças de elite como o Batalhão de Operações Especiais (Bope), da PM, e a Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), da Polícia Civil. Depois que o sol se põe, a polícia continua a deixar nas mãos de traficantes os moradores de todas as 604 favelas do Rio: o Boletim da PM já determinou que os policiais não entrem nas favelas à noite.

A orientação da PM segue uma política do governo estadual, com o objetivo de evitar que moradores sejam feridos por balas perdidas durante confrontos. Uma amostra dessa política já tinha sido dada em 29 de abril pelo comandante da PM, coronel Francisco Braz, quando esteve no Complexo do Alemão, em Ramos, e ficou na linha de tiro de traficantes. Na ocasião, ele determinou que a PM não ocupasse a favela.

A PM não quis se pronunciar sobre o assunto. Já o secretário de Segurança, Roberto Aguiar, admitiu que a polícia só entra em favelas com apoio do Bope e em ações planejadas pelo serviço de inteligência:

— A PM entra em qualquer morro, a qualquer hora, sempre que houver necessidade ou qualquer ação agressiva contra a comunidade. O que não podemos fazer são operações que ponham em risco a vida dos moradores e dos policiais — justificou o secretário, lembrando que a determinação de não entrar nas favelas à noite já existia na administração anterior.

Líder dos soldados confirma proibição

As 15 favelas proibidas aos PMs representam 2,5% do total de comunidades carentes do Rio. O presidente da Associação de Cabos e Soldados da PM, Vanderlei Ribeiro, confirmou a norma do comando da PM, apoiando a determinação, já que não há segurança para os policiais nos morros:

— O policial não entrou na PM para morrer. O que observamos é que a polícia não tem o armamento adequado, nem o efetivo necessário para manter o patrulhamento numa favela. Se o PM não tem como proteger sua vida, como vai garantir a vida dos outros? — questiona Vanderlei.

A lista das favelas onde a polícia não entra à noite e, de dia, só com o apoio do Bope foi elaborada pelo presidente da Associação de Cabos e Soldados da PM e por uma das delegacias especializadas da Polícia Civil. São elas: Morro do Chapadão (Costa Barros), Vila Cruzeiro (Penha), Complexo do Alemão (Ramos), São Carlos (Estácio), Adeus (Bonsucesso), Andaraí, Rocinha (São Conrado), Turano (Tijuca), Antares (Santa Cruz), Dendê (Ilha do Governador), Furkim Mendes (Duque de Caxias), Pedreira (Acari), Caixa D’Água, Lagartixa (Costa Barros) e Dique (Jardim América).

Essas favelas perigosas têm em comum a topografia acidentada, barricadas e quebra-molas e exércitos de traficantes bem armados. Nessas áreas, os bandidos impõem o terror, julgando e executando quem desobedece às suas leis. “Vacilou, dançou” é a máxima.

O prefeito Cesar Maia observa que a polícia só tem mobilidade nessas áreas de risco em grupo e fortemente armada, organizada e em operações planejadas.

— O Estado moderno tem três monopólios: uso da força, aplicação das leis e cobrança de impostos. Os dois primeiros não são mais monopólio do Estado nessas áreas — afirmou o prefeito.

Mas não é só a polícia que evita entrar em favelas. O presidente da Associação de Oficiais de Justiça do Estado do Rio, André Moreno, informou que, desde outubro, seis oficiais de Justiça foram agredidos em favelas. Num dos casos, os bandidos quase executaram o funcionário.

— Ver crianças e adolescentes armados já faz parte da rotina. Há favelas onde não podemos entrar. A própria Justiça já não nos cobra mais quando temos dificuldade na entrega de uma citação — disse André.

Para o presidente do Tribunal de Justiça, Marcus Faver, a situação nas favelas é grave:

— Os oficiais de Justiça vão precisar de auxílio militar para cumprir diligências. A própria Justiça sofre com as ordens do tráfico. No mês passado, deram uma ordem para que o Fórum de Niterói fechasse.

Serviços como os dos Correios e da Light também são prejudicados, mas a tática é recorrer às associações de moradores. O diretor dos Correios no Rio, Celso Carvalho, conta que nunca muda os carteiros das favelas. Já a Light amarga prejuízos da ordem de R$ 500 mil por mês com a destruição de transformadores pelo tráfico. São de 30 a 40 casos mensais.

A presença da polícia fica restrita hoje aos postos de policiamento comunitário (PPC). Em média, seis policiais ficam nos postos, mas há alguns com apenas três homens. Segundo o cientista político Gláucio Ary Dillon Soares, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), o reduzido efetivo dos PPCs fortalece o poder do tráfico.

— Os policiais não querem ser heróis, nem devem. O estado tem que manter presença permanente, mas com grande número de policiais.

Um policial que trabalha no PPC de uma favela diz que as rondas noturnas no morro são proibidas:

— Estamos de mãos atadas. Traficantes passam em “bondes” e não podemos fazer nada. Eles vendem drogas livremente. Temos que fazer vista grossa, senão pagamos com a vida — contou o PM.

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Sob lata ou papelão, 2,3 milhões de brasileiros

Jornal O Globo, País, domingo, 07 de julho de 2002


Geralda Doca

BRASÍLIA. Cerca de 2,34 milhões de brasileiros moram em condições degradantes nas cidades. Essa é a população que vive em habitações improvisadas feitas de plástico, papelão e lata, embaixo de pontes ou em carros abandonados. Mais 9,5 milhões vivem amontoados em 3,3 milhões de unidades habitacionais com duas ou mais famílias, muitas vezes em condições semelhantes às de uma cela de presídio com superlotação. Este é o retrato das condições de moradia do brasileiro, segundo estudo feito pelo Banco Mundial com diversas outras instituições.

Segundo a pesquisa, 339.300 brasileiros correm risco de vida sob o teto em que vivem, morando em 117 mil habitações com mais de 30 anos, que estão condenadas pelas autoridades, em péssimo estado de conservação.

Quase uma Bahia vive na penúria

São mais de 12 milhões em 4,2 milhões de unidades habitacionais urbanas consideradas impróprias. É como se praticamente toda a população da Bahia — estimada no Censo 2000 do IBGE em pouco mais de 13 milhões — morasse em casas inadequadas.

Dos 37,3 milhões de unidades habitacionais urbanas, 14,5%, ou 5,4 milhões, não oferecem condições mínimas de dignidade a seus moradores.

O diagnóstico consta do estudo inédito feito em parceria pelo Banco Mundial (Bird), pela Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (Finatec), da Universidade de Brasília (UnB), pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), pela Caixa Econômica Federal e pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano. O trabalho levou oito meses para ser concluído e envolveu 35 especialistas em habitação do governo e do setor privado.

O estudo usou como base dados da Fundação João Pinheiro, Centro de Estatística e Informações e resultou num documento de dois volumes com mais de 800 páginas, intitulado “Nova política habitacional brasileira”.

Descrevem os pesquisadores: “Pode-se observar, atualmente, a coincidência entre o agravamento da carência habitacional e o reaparecimento de epidemias de doenças há muito erradicadas do país. Esta associação é um retrocesso, levando-nos de volta a meados do século 19, quando se deduziu que a insalubridade de certas moradias era foco de epidemias”.

O estudo mostra que 84% dos problemas de moradia estão presentes em famílias com rendimentos inferiores a três salários-mínimos. Segundo o levantamento, quando a renda sobe para a faixa de três a cinco salários-mínimos, o percentual dessas famílias na crise de moradia é de 8,4%, enquanto a renda entre cinco a dez salários-mínimos representa apenas 5,4%. A conclusão dos pesquisadores é que 97,8% dos problemas de habitação afetam famílias que ganham menos de dez salários-mínimos.

“Conclui-se que, nos últimos anos, as famílias de menor poder aquisitivo foram gradativamente afastadas do acesso ao financiamento habitacional”, diz o estudo.

Mas o levantamento também inclui na categoria de déficit habitacional as famílias que ganham até três salários-mínimos e que comprometem mais de 30% de sua renda com o pagamento de aluguel. A estimativa é que 3,6 milhões estejam nessa situação. Com isso, o número de atingidos pela crise habitacional, segundo o estudo, subiria para 15,6 milhões.

A maior carência de moradia está na Região Sudeste. Ela concentra 2,25 milhões de moradias consideradas inadequadas. Em segundo lugar está a Região Nordeste, com 1,72 milhão de unidades consideradas impróprias. Em seguida, aparecem a Região Sul, com 589.100 unidades, a Região Centro-Oeste, com 488.400 e a Região Norte, com 411.600.

Quando são computados os problemas habitacionais também nas áreas rurais, a crise é mais presente no Nordeste e em segundo lugar no Sudeste.

“Parece que hoje a crise habitacional é visível de qualquer ponto em que se esteja nas cidades. Aí estão, em número cada vez maior, os moradores de rua e os cortiços, os loteamentos clandestinos e as favelas, invadindo inclusive áreas de risco e de preservação ambiental”, afirmam os pesquisadores.

No Rio, 505 mil casas precárias

O estudo identificou que nas áreas urbanas do Estado do Rio existem 505 mil habitações precárias, onde moram sem um padrão de dignidade 1,46 milhão de pessoas. Desse total, 77.720 pessoas vivem em condições subumanas. Elas moram em 26.800 moradias consideradas improvisadas, feitas de papelão, de lata ou de restos de caixotes, sob pontes ou dentro de carros e barcos abandonados.

Em outras 338.200 unidades, cômodos cedidos ou alugados e cortiços, existe mais de uma família morando juntas, numa população calculada pelo estudo em 980.780 pessoas.

Já 91.350 moradores do Estado do Rio estão em 31.500 unidades em péssimo estado de conservação e que deveriam ser demolidas.

O comprometimento excessivo da renda, já baixa, com aluguel atinge 314.940 pessoas, com renda de até três salários-mínimos, que ocupam 108.600 unidades habitacionais.


Construindo a casa a cada dia
Adauri Antunes Barbosa

SÃO PAULO. Alheio ao intenso movimento do Minhocão, no bairro de Santa Cecília, no Centro de São Paulo, Aceves Antonio Barros Pereira senta-se no sofá de visitas do lugar onde mora e brinca com seus três cachorros. Há um ano e meio ele vive embaixo do viaduto. O local é sempre o mesmo, ao lado de centenas de outros moradores de rua, mas todo dia ele faz e refaz sua casa com papelão. Cata papel do fim da tarde até a madrugada nas ruas da capital e, quando vai dormir, monta a casa de acordo com o material recolhido no dia.

— Faço a casa conforme a necessidade. Se está frio, uso mais papelão. No calor, preciso de menos proteção — conta o imigrante paraguaio, de 41 anos.

Aceves chegou a São Paulo em 1970, quando havia oferta de emprego na cidade, e foi trabalhar como ajudante de cozinha num grande hotel. Há cerca de cinco anos, segundo ele, foi demitido depois de ter uma tuberculose. Nunca mais conseguiu emprego.

— O dinheiro sempre foi pouco. No começo eu consegui me ajeitar, morava num quarto alugado. Mas depois não deu mais e tive que ficar na rua — diz.

Na Zona Oeste, o baiano Denílson Borges vive o drama de construir casas e não ter onde morar. Aos 21 anos, há sete em São Paulo, ele aprendeu rápido que era preciso sobreviver e que a vida, fora de Feira de Santana, não era tão melhor quanto diziam os irmãos que já tinham migrado. Usando restos de madeira de embalagens descartadas, começou a construir casinhas de cachorro. Foi aperfeiçoando a técnica e hoje faz também casas de boneca.

— Morei aqui debaixo do viaduto um bom tempo. Tinha um barraco de madeirite. Agora a prefeitura tirou a gente daqui e botou ali no alojamento do Centro Têxtil — relata Denílson.

Até novembro, segundo ele, as 32 pessoas que estão no alojamento e trabalham na Marginal Pinheiros como ambulantes deverão voltar para a rua.

— Aqui, onde botaram a gente, ninguém pára para comprar — reclama.

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Déficit só será suprido com 712 mil moradias ao ano

Jornal O Globo, País, domingo, 07 de julho de 2002



BRASÍLIA. Para enfrentar a crise habitacional são necessárias pelo menos 712.700 novas unidades por ano nas cidades. Mesmo assim, o problema só seria resolvido em dez anos. Na última década, pelo Sistema Financeiro da Habitação (SFH), o governo abasteceu o mercado anualmente, em média, com 154 mil unidades.

O estudo “Nova política habitacional brasileira” concluiu que todas as políticas públicas para o setor, adotadas entre 1991 e 2000, fracassaram porque deixaram de atender justamente às pessoas mais necessitadas. Segundo os pesquisadores, o número de moradias inadequadas neste período aumentou em 41,5%.

O trabalho denuncia que o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que, originalmente, tinha 60% dos seus recursos aplicados para dar condições mais dignas de moradia às populações mais pobres, foi desvirtuado. Em 2000, apenas 11% do dinheiro chegou às famílias com renda de até três salários-mínimos.

Além da redução dos recursos destinados a programas de habitação de interesse social, eles ainda ficaram mais caros. Enquanto em 1989 a taxa de juros cobrada nos financiamentos do FGTS para a população de baixa renda era de 3% ao ano, a partir de 1998 o custo para essas famílias dobrou, passando a ser de 6% ao ano.

— A produção de moradia para a baixa renda é o foco do governo nesse estudo. Esse trabalho, além da oferta de moradia, procurou identificar as fontes de recursos e as classes de renda a serem priorizadas — afirmou o secretário de Desenvolvimento Urbano, Ovídio de Angelis.

“Financiamento com base na renda está defasado”

O trabalho faz duras críticas ao critério atual de concessão de crédito. Segundo os pesquisadores, a distribuição de financiamentos com base na renda familiar está defasada e é inadequada.

“As normas de distribuição de recursos do FGTS foram evoluindo numa direção contrária aos interesses das famílias mais carentes”, afirma o estudo.

Consultor da Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (Finatec), da Universidade de Brasília (UnB), Lair Krahenbuhl, que participou do estudo, afirma que a situação financeira de duas famílias com renda de mil reais cada, uma com cinco filhos e outra com apenas um, é totalmente diferente e ambas recebem o mesmo tratamento.

Especialista em habitação de interesse social, Krahenbuhl diz que outro erro é a falta de articulação entre as políticas públicas, com União, estados e municípios indo em direções diferentes, desperdiçando os poucos recursos disponíveis e fazendo programas concorrentes entre si.

— Isso acaba afetando a qualidade dos programas. Existem situações em que uma mesma família é atendida por dois programas diferentes, tirando a vez de outra — diz.

Além da falta de moradia, o estudo aborda outros problemas que afetam diretamente a qualidade de habitação, principalmente nas regiões metropolitanas. O trabalho destaca a inexistência de linhas de financiamento apropriadas para planejamento urbano, programas de aquisição de terrenos, produção de lotes urbanizados, regularização fundiária e execução de obras de infra-estrutura básica e urbanização de favelas. A falta de atenção com esses aspectos, conclui o estudo, compromete os serviços de infra-estrutura urbana (água, esgoto, energia elétrica e coleta de lixo).

Para enfrentar esses problemas, estados e municípios estão limitados atualmente a recorrerem a empréstimos de organismos internacionais, como o Banco Mundial (Bird) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), feitos em dólar e com taxas de juros superiores às que poderiam ser oferecidas caso fossem usados recursos do FGTS.

— Essa é uma proposta técnica desvinculada de interesses políticos e que poderia ser executada por qualquer governo — afirma a coordenadora dos grupos de trabalho que elaboraram o estudo, Rachel Altino Machado, consultora da Finatec.

Estudo sugere programa tipo Bolsa-Escola para o setor

O estudo propõe a inclusão da habitação para famílias que não têm condições de arcar com custos de moradia e a criação do aluguel social entre as políticas compensatórias do governo federal, a exemplo dos programas Bolsa-Alimentação, Vale-Gás e Bolsa-Escola. Essa política envolveria recursos da União e contrapartidas dos estados e dos municípios, que deveriam, por exemplo, executar programas para remoção de favelas, retirada dos moradores de áreas de risco e de preservação ambiental.
(Geralda Doca)


Recife, Ponte Limoeiro
Letícia Lins e Carter Anderson

RECIFE e RIO. Sob uma das cabeceiras da Ponte Limoeiro, que liga os bairros de Boa Vista e Santo Antônio, em Recife, mora Regina Gomes Rodrigues, de 29 anos, com as filhas Rejane, de 5, e Raiane, de 7. O quarto era dividido com o companheiro até 1998, quando ele foi assassinado. Para chegar em casa, usa um barco e uma escada. Lá dentro, o mínimo: um fogão de duas bocas, um aparelho de som, um tambor com água.

— A vida aqui é um sufoco, no verão o calor quase estoura a cabeça da gente — diz.

Maria das Graças Gomes da Silva, de 42 anos, faz biscate, faxina, lava roupa. Também mora num quartinho sob a ponte, que comprou por R$ 100 e tem como único eletrodoméstico uma geladeira velha. Ela acredita que nunca vai ter condições de sair de debaixo da ponte. Paraibano, Elias Macolino da Silva, de 24 anos, está sem emprego, vive de pesca e há 11 mora sob a ponte.

—- Meu banheiro é o mato, o calor do asfalto em dia de sol é como uma sauna. Vejo a toda hora as crianças morrerem. Ficam com o corpo cheio de bolinhas — conta.

João Domingos Paes, de 56 anos, ficou sem casa desde que se separou da mulher:

— Não teve jeito. Fiquei sem nada, juntei R$ 100 e comprei um barraco debaixo da ponte.

Interditado há três anos pela Secretaria de Urbanismo, o prédio centenário de cinco andares da Rua Visconde de Maranguape, na Lapa, no Rio, é o abrigo de 74 famílias que se amontoam nos quartos do antigo Hotel Bragança. Os moradores vivem entre o medo de ser despejados e a esperança de conseguir um local menos insalubre para viver. No prédio, considerado uma área crítica pela secretaria, os sinais de abandono (infiltrações, janelas quebradas, paredes com tijolos aparentes e um cheiro de mofo constante) são facilmente notados.

— Há seis anos foi feito um cadastramento e ficamos esperando. Aqui não tem ninguém bem de vida, senão a gente não morava nesse casarão — diz Tânia, de 44 anos, que mora desde 1990 num quarto com o filho de 9 anos e a filha de 26.

Marli Douglas Melo, de 41 anos, também encontrou num dos quartos do antigo hotel o refúgio para a família, após o incêndio que destruiu há quatro anos a casa onde morava, numa vila do Centro. Alan, de 11 anos, cuida dos irmãos Mateus e Gabriel, de 4 e 5 anos, quando a mãe vira a madrugada trabalhando numa carrocinha de cachorro-quente.


Três Marias e um destino: oito pessoas em três quartos

RECIFE. Viúva há quase 20 anos e sobrevivendo da pensão e do trabalho de empregada doméstica, Maria Áurea da Silva, de 50 anos, passou quase uma década para levantar sua casa, próxima ao Rio Capibaribe. Conseguiu tijolos, barro, cimento e fez uma sala, três quartos e um puxadinho onde funciona a cozinha. O sossego sonhado na casa própria, no entanto, não durou muito: pouco a pouco, parentes foram se agregando e hoje, em vez de morar só com o único filho ainda solteiro, divide a casa com mais duas famílias, todas chefiadas por mulheres.

Maria Josineida da Silva separou-se do marido, mora com um filho e não conseguiu emprego. A outra agregada, Maria José, tem três filhos e também é separada. Vive de faxina e de lavagem de roupa, mas não consegue mais de R$ 150 por mês. Ajuda nas despesas de alimentação mas e não tem dinheiro para pagar aluguel.
(L.L)

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Área de risco na favela

Jornal do Brasil, Cidade, quarta-feira, 17 de julho de 2002


Lotes irregulares ampliam enchentes e desabamentos

Consideradas questões prioritárias no relatório Geo-Cidades do Rio, a ocupação das encostas e a formação de favelas agravam o diagnóstico ambiental do município. As conseqüências são aumento da degradação ambiental, das enchentes e dos escorregamentos. As conclusões, baseadas em dados do Centro de Informações e Dados do Estado, foram apresentadas no encontro do Rio+10, no mês passado.

De acordo com o relatório, Santa Teresa e Tijuca são bairros em que ocorre a maioria dos pontos de escorregamento, relacionado a loteamentos irregulares ou favelas. Segundo o Geo-Cidades, as cerca de 600 favelas ocupam 3,03% do município e 155 hectares de área de conservação. Também foi detectado que a degradação do solo corresponde hoje a 62% da cidade, subtraídas áreas urbanas e de alerta. Como um todo, a área em processo de degradação corresponde a 31% do Rio.

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Relatório faz retrato da cidade

Jornal do Brasil, Cidade, quarta-feira, 17 de julho de 2002


Dados urbanos, ambientais e econômicos - cruzados a partir de recursos naturais como água, solo, ar - resultaram num retrato da situação ecológica do Rio, um dos dois municípios brasileiros escolhidos pelo Programa de Meio Ambiente da ONU para fazer parte do projeto ambiental Geo-Cidades - o outro foi Manaus. ''O objetivo é dar um diagnóstico, com temas prioritários, e recomendações'', diz a coordenadora do estudo, Ana Lucia Nadalutti Larovere, que apresentou os resultados no encontro do Rio+10, em junho. ''Uma prioridade para o Rio é trabalhar políticas de habitação ou redirecionar programas a áreas específicas'', exemplifica.

O material, encomendado pelo Ministério do Meio Ambiente, ficou pronto em junho e será divulgado no site do ministério e publicado em livro e CD-Rom no mês que vem.

O Consórcio Parceria 21, formado pelos Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam), Instituto de Estudos da Religião e Rede de Desenvolvimento Humano, foi contratado para realizar o levantamento. ''Fizemos uma revisão da literatura de indicadores urbanos e um levantamento dos programas de gestão urbana. Definimos os indicadores mais importantes para o município'', explica Ana Lucia, que é tamém superintendente de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do Ibam.

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Um Rio estressante em 2012

Jornal do Brasil, domingo, 21 de julho de 2002


A convite do 'Jornal do Brasil', especialistas de várias áreas projetam o futuro da cidade e de seus habitantes

Daniela Dariano


Trânsito caótico, crescimento acelerado das favelas e aumento da violência estão entre os desafios que o Rio terá pela frente. A convite do Jornal do Brasil, especialistas de diversas áreas traçaram um panorama da cidade na próxima década, com base em informações do IBGE. Em 2012, seremos 6,3 milhões de habitantes - contra os 5,8 milhões de hoje - e a concentração de automóveis será semelhante à de São Paulo hoje. Com um agravante, a falta de vagas de garagem em favelas, o que desafiará os urbanistas. De acordo com a projeção de técnicos em saneamento, os investimentos recentes no setor serão anulados pela expansão das favelas - que hoje crescem seis vezes mais rápido que a cidade formal e já abrigam 20% da população do Rio. A expansão das comunidades pobres, nas quais impera o mercado informal, vai gerar despesas para o poder público sem produzir receita e, assim, ameaçar o equilíbrio econômico do município. O desemprego também criará dificuldades para os cariocas. Mas, neste aspecto, a cidade ainda estará em vantagem, segundo analistas, em relação ao resto do país.

Daqui a 10 anos, o carioca vai precisar de muita paciência para enfrentar um trânsito semelhante ao da capital paulista, com cerca de 500 carros para cada mil habitantes - hoje a relação é de 300. O tempo gasto para se chegar ao trabalho vai ser ainda maior, aumentando o estresse. Isso se você não estiver engordando a fila do desemprego, que será maior. A população do Rio de Janeiro caminha para a Zona Oeste, onde as famílias terão apenas um ou dois filhos. E serão chefiadas por mulheres. ''A tendência é de mais famílias sem pai'', prevê a antropóloga especialista em gêneros, Mirian Goldenberg, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Estudiosos de diversas áreas e instituições, a convite do Jornal do Brasil, projetaram o Rio do futuro, de tendências nada animadoras. Se continuar com a mesma variação populacional da última década, em 2012, a capital
fluminense vai abrigar cerca de 6,3 milhões de habitantes. As favelas, que crescem em velocidade seis vezes maior do que o asfalto, serão responsáveis por 20% desse número. A previsão assusta e deixa uma dúvida: a economia da cidade vai resistir ao crescimento desordenado? Especialistas afirmam que a disputa entre formação de domicílios informais e formalização de moradias irregulares decidirá a viabilidade da cidade, que terá mais crimes
violentos, como seqüestros, estupros, e homicídios. A favela verá tubulações recém-instaladas por programas de urbanização sucumbirem à pressão de uma
população inchada.

Carros cada vez mais numerosos em todas as classes sociais trarão um novo desafio: faltará estacionamento nos morros. ''A favela não tem garagem por definição. Este problema terá de ser equacionado'', adianta o pesquisador de Engenharia do Tráfego da Coordenação dos Programas de Pós-graduação da UFRJ (Coppe) Paulo Cezar Ribeiro.

Mulheres vão chefiar as famílias

A antropóloga da UFRJ Mirian Goldenberg prevê uma mudança radical no perfil da família carioca: em vez de homens, serão as mulheres chefiando o maior número de famílias, uma tendência nas favelas, áreas de maior crescimento populacional no Rio. ''Os homens circulam, não ficam muito tempo numa família e não são os provedores dos lares. Haverá mais famílias sem pai'', conclui.

O historiador Marcos Alvito, da UFF, acrescenta que a favela não foge a uma tendência geral de diminuição da natalidade. ''Já tem muita gente querendo ter um filho ou um casal. Houve uma mudança drástica na mentalidade'', explica. Para os especialistas, a melhora no padrão de vida fará, cada vez mais, que a favela deixe de ser um mundo à parte.

Mas urbanistas acreditam que essa infra-estrutura não vai durar. Se o poder público não contiver o crescimento das favelas, obras recentes de saneamento não suportarão à pressão populacional. ''O crescimento pressiona obras de urbanização, que não agüentarão mais 10 anos'', prevê o economista urbano do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ Pedro Abramo. Segundo ele, as favelas tendem a se adensar e crescer em direção à Zona
Oeste.

O aumento da população de baixa renda expandiu na periferia - áreas
distantes do Centro. ''As novas localizações dos pobres geram um custo de transporte para o trabalho. Então, a tendência é de retorno ao centro, indo para as favelas'', explica Abramo. Segundo ele, a população de alta renda tende a ir para a orla do Recreio e de Vargem Grande, em direção à Zona Oeste. Também Jacarepaguá se consolidará como bairro de classe média baixa.

Crimes violentos vão crescer

Daqui a uma década, o Rio vai assistir ao aumento de roubos, latrocínios, lesões corporais dolosas, extorsões seguidas de seqüestros, homicídios dolosos, estupros, encontros de ossadas e de cadáver. Os crimes violentos continuarão subindo. ''Quando caem, a queda não ultrapassa três anos. Uma curva para baixo com mais de três anos só será possível com grandes interferências'', garante um dos responsáveis pelos Estudos da Violência do Instituto de Filosofia e Comunicação Social da UFRJ, professor Michel Misse. Segundo ele, sem mudanças na estrutura da polícia e da Justiça, a cidade será muito mais violenta em 10 anos. Para Misse, o aumento da criminalidade está ligado à impunidade. Fim da corrupção, melhores condições para presos, integração entre polícias civil e militar, investimento humano nas polícias técnica e investigativa, além de mudanças no código penal. Sem o atendimento a estas condições, o especialista diz é impossível impedir o aumento da violência.

De acordo com Misse e outros estudiosos, o aumento do crime não têm relação direta com o crescimento da favela. O historiador Marcos Alvito, da UFF, concorda que a violência não surge na favela. ''Houve um enorme crescimento da violência quando as favelas estavam estagnadas, na década de 80'', argumenta. ''A favela é um ponto de contato da rede de crimes, sempre foi o lugar mais estigmatizado porque ninguém pode se proteger, usando a internet para encobrir crimes, por exemplo''.

Moradias informais ameaçam recursos


''As favelas não poderão ficar informais'', alerta o professor de Economia do Departamento de economia da UFF, Victor Hugo Klagsbrunn. Caso contrário, acredita ele, o município entrará em colapso, já que a arrecadação de impostos não será suficiente para manter os serviços públicos. Essa parcela da população - que não paga taxas por crescer em moradias sem controle do poder público, esgotamento sanitário, rede de água ou iluminação pública - é a maior usuária dos serviços públicos. Pela necessidade de arrecadar mais, segundo o economista, o governo se interessa por urbanizá-las. ''Também as empresas privadas estão arrecadando mais'', acrescenta, mantendo uma dúvida: ''A formação de moradias informais e o processo de formalização das favelas. Qual das duas tendências vai aumentar mais? Isso vai determinar o futuro do Rio''.

Mesmo considerando que as contagens populacionais do IBGE anteriores a 2000 não foram fiéis à realidade, Klagsbrunn admite que houve crescimento da população favelada. ''Há uma provável subcontagem nos anos anteriores. O crescimento existe mas é menor do que revelam as estatísticas'', acredita.

Klagsbrunn afirma que, em 10 anos, apesar de o desemprego aumentar, não será tanto quanto no resto do país. ''Não vejo o futuro com pessimismo porque o município mostra dinamismo em setores considerados ultrapassados. Mas o
sistema capitalista sempre cria desemprego''.

Um fenômeno ainda em estudo por especialistas é o aumento do emprego com carteira assinada no Rio, que deve persistir. ''O movimento perdurou mesmo com a crise econômica do passado. Isso quer dizer que o emprego está sendo dinamizado, não sei o que está por trás disso. Crescimento industrial? Desenvolvimento nos serviços e comércio? Ainda estou estudando'', disse. O certo é que a visão de que cresceria o número de autônomos não se confirma.

Outra ameaça do futuro é a perda de espaço do turismo de lazer para o de negócio, que surge como uma alternativa mais estável. ''O setor hoteleiro investiu nisso, e o Rio já é a sexta cidade de congressos no mundo. Já tem congresso marcado para os próximos três anos'', anuncia Klagsbrunn.

Cidade congestionada

Até as favelas vão sofrer com a falta de estacionamento


Daqui a 10 anos, trafegar na capital fluminense será um desafio, segundo o pesquisador de Engenharia de Tráfego da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação da UFRJ (Coppe) Paulo Cezar Ribeiro. ''A taxa de motorização está crescendo e os investimentos em transporte público são pequenos''. A tendência é que a população, inclusive na favela, use cada vez mais o carro, aumentando poluição e congestionamentos na cidade.
Enquanto a população de alta renda troca de carro uma vez ao ano, os veículos velhos são comprados por classes mais baixas. ''Este será um problema daqui a 10 anos. Hoje em dia, na Rocinha, que está cheia de carros, já é. Como favela não tem garagem, as pessoas param onde podem.

Segundo ele, o número de automóveis aumenta mais do que a população. ''Não sei se a cidade vai ficar inviável, mas, daqui a 10 anos, será como São Paulo, que investe pesado em transporte público e onde existem mas tem mais de 500 carros por mil habitantes''. O Rio já está com o índice em 300. Em 1999, tinha média de 250 carros por mil habitantes. ''Há áreas na Barra que têm taxa de 850'', afirma.

A taxa de motorização aumentará no Rio todo, com exceção da Zona Sul e da Barra da Tijuca, que já atingiram o máximo de 700 carros para cada mil habitantes. Santa Cruz, na Zona Oeste, que tem taxa de 75, deve aumentar muito o índice.

Além do aumento populacional, a explicação do especialista é a falta de um sistema de transporte público eficiente. Para ele, esse cenário caótico só seria evitado com investimento em melhoria nas vias e transporte público, pistas exclusivas para ônibus e duplicação de avenidas na orla.

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O abismo social nos morros

Jornal O Globo, Rio, domingo, 28 de julho de 2002


Elenilce Bottari

A distância social entre favela e asfalto no Rio é cinco vezes maior do que a proximidade física faz parecer. Segundo dados do Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os chefes de família nas favelas ganham em média apenas 23% do rendimento registrado no resto da cidade. Enquanto, em média, o morador do asfalto recebe R$ 1.533,74, na favela esse rendimento é de R$ 352,41. No caso de muitos bairros, no entanto, essa distância é ainda maior. Enquanto a média salarial de um chefe de família na Barra da Tijuca é de R$ 5.175.50, na Favela do Angu Duro, na Estrada do Itanhangá, esse rendimento cai para R$ 382,46.

Com base no programa Estatcart — Sistema de Recuperação de Informações Georreferenciadas do IBGE, O GLOBO calculou o rendimento médio em várias favelas do Rio e constatou o tamanho da desigualdade social. A distância entre favela e asfalto só cai à medida que os bairros se aproximam da periferia. É o caso da Penha, onde o rendimento médio de um chefe de família é de R$ 828,75, enquanto na favela Vila Cruzeiro, no mesmo bairro, esse valor é de R$ 358,94.

Segundo o chefe em exercício da Unidade Estadual do IBGE, José Roberto Scorza, o Rio tem 514 favelas. Para a realização do Censo foram contratadas 7.589 pessoas dessas comunidades:

— Escolhemos moradores para facilitar a apuração dos dados.

Morando há 40 anos na Favela do Angu Duro, na Barra, às margens da Lagoa da Tijuca, a dona-de-casa Maria da Guia da Silva Braga, de 51 anos, provavelmente nunca conhecerá o shopping Città America, que fica em frente. Ela cuida de seis filhos, enquanto o mais velho, de 20 anos, trabalha como carroceiro para reunir os R$ 200 mensais que alimentam oito bocas.

— As crianças dormem no chão e o frio entra porque não tenho dinheiro para fechar a parede (de compensado). Eu já tentei me inscrever no Cheque-Cidadão, mas não consegui. Os vizinhos tentam ajudar a gente, mas a situação é muito difícil — diz Maria da Guia.

São muito remotas as chances de ela conhecer uma vizinha de bairro, a escrevente Ana Cecília Nogueira, que vive com o filho Carlos Frederico, de 11 anos, no Jardim Oceânico. A renda mensal da família é de R$ 7 mil, 35 vezes a da casa de Maria da Guia:

— Eu não consigo imaginar como essas pessoas conseguem sobreviver com tão pouco. Isto é absurdo. A desigualdade social no Rio é com certeza um dos principais fatores de violência da cidade — afirma Ana Cecília.

No Borel, renda média é de R$ 290

O rendimento médio na Tijuca é de R$ 2.412,80, mas o chefe de família no Borel ganha muito menos: R$ 290,80. O marido de Lúcia de Jesus Pereira da Silva recebe, líquido, um pouco mais que isso:

— O salário é de R$ 380, mas com descontos fica na média de R$ 320. Aqui somos quatro. Dá para comer. O que salva é o vale-alimentação que meu marido traz para casa. Diversão é assistir ao culto da igreja, que fica aqui mesmo no morro.

Morando na entrada do Borel, de frente para a Rua São Miguel, a situação da auxiliar de enfermagem Leni Diamantes é melhor. Além da pensão do ex-marido, ela conta com R$ 400 para sustentar os três filhos:

— Juntando o que o pai dá para eles, tem sido possível sustentar a casa. Mas, se tivesse que pagar aluguel, já ficaria complicado.

Na Rocinha (que está entre os morros considerados em melhor situação socioeconômica, juntamente com o Vidigal), o chefe de família ganha em média R$ 451. Com status de bairro, o morro tem uma mistura de classes sociais. O fotógrafo Jerônimo Batista Ramos, de 50 anos, veio de João Pessoa com a mãe ainda bebê. Apesar das dificuldades, a lavadeira conseguiu criar o filho, que aprendeu uma profissão, tem uma loja de fotografia e outros três imóveis na Rocinha:

— Eu tiro por mês cerca de R$ 3 mil. Vivo com minha mulher e meu filho e ajudo minha mãe. Somos uma das famílias mais antigas do bairro. Nos anos 70 a vida aqui era boa, mas, com a crise econômica, as pessoas começaram a pensar que aqui era o Eldorado e a migração acabou por inchar a região. A situação está difícil outra vez — diz.

Na Favela Fé Em Deus, em Anchieta, a renda média é de R$ 328,43. Mas o lugar é tão esquecido que nem os moradores sabem direito o nome da favela:

— Fé em Deus? Eu nem sei mais. Tem gente que chama de Parque Aroeira, outros de Favela do Cocô. Mas eu prefiro dizer que é Parque Anchieta — conta a moradora Maria da Conceição Santana.

Morando com o marido e os filhos e com uma renda média de R$ 350, Maria lembra que foi sua barraca que deu nome à favela:

— Quando os homens da prefeitura chegaram, a única coisa que tinha nome aqui era a minha barraca de venda.

Professor titular de planejamento urbano e regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o sociólogo Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro analisou os dados do Censo 2000. Segundo ele, os dados demonstram discriminação entre moradores de baixa renda do asfalto e da favela:

— A renda pessoal na favela é sistematicamente menor que a renda fora da favela, mesmo comparando pessoas com as mesmas condições de instrução, idade, sexo ou raça — explica Luiz Cesar.

Entregas em domicílio passam longe das favelas

Michel Alecrim

Um consumidor entra numa loja para comprar um fogão. Um vendedor simpático oferece vários produtos, com pagamento facilitado. Mas quando o comprador informa o endereço de entrega no Morro do Borel, na Tijuca, a expressão do funcionário se transforma e vem a resposta negativa:

— Nesse lugar, nós infelizmente não entregamos.

A cena, que ocorreu com um repórter do GLOBO que se passou por um morador da favela na Tele-Rio da Tijuca, acontece constantemente com trabalhadores de comunidades dominadas por traficantes. A violência que assusta os entregadores transforma moradores de favelas em consumidores de segunda classe.

No teste feito em seis favelas (Borel, Jacarezinho, Grota, Providência, Vidigal e Cabritos), em quatro delas pelo menos uma loja de eletrodomésticos não entregava no endereço perguntado, sempre um local com acesso a veículos. Quando o assunto é entrega de remédio, a restrição às favelas é mais grave. Em duas delas, Grota e Borel, o serviço simplesmente não existe. Na Providência, há entrega somente no horário comercial. Nas demais, os moradores só teriam uma ou duas opções.

Moradores às vezes pagam carreto extra

Quando há restrições, os moradores das favelas acabam tendo despesas a mais. Ana Gomes Santana, de 56 anos, que mora no alto do Borel, teve que pagar R$ 20 para levarem sua geladeira da associação até sua casa:

— Para quem mora na favela, tudo acaba saindo mais caro — diz.

O diretor de Marketing da Tele-Rio, Mário Roberto de Arruda, admitiu que nem em todas as favelas do Rio o caminhão da rede de eletrodomésticos entra. Depois de sofrer muitos assaltos, a loja tomou várias medidas de segurança, como o uso de escolta nas ruas, e deixou de entregar em algumas comunidades.

— Podemos estar perdendo clientes, mas fazemos o possível para atender os consumidores, como entregas nas associação de moradores — afirmou.

As Casas Bahia informaram que entregam no Morro da Providência, ao contrário do que informou um vendedor da loja da Rua Uruguaiana. Segundo a assessoria da rede, a entrega só não é feita na favela de Manguinhos. O Carrefour informou que no Jacarezinho — onde um funcionário do setor de eletrodomésticos da loja do NorteShopping disse que não há entrega — os moradores recebem os produtos na associação de moradores.

Distribuidoras negociariam com traficantes

Um funcionário de uma rede de eletrodomésticos disse que para ser feita a entrega nas favelas é necessário um esquema especial. Além de escolta armada no asfalto, a entrada dos caminhões é negociada com os traficantes.

Segundo o delegado Reginaldo Félix, da Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas (DRFC), os assaltos a transportadores de eletrodomésticos são comuns nas proximidades da favela Kelson's, na Penha, e das favelas do Jacarezinho e de Manguinhos.

— Os traficantes querem fazer o papel de Robin Hood. Roubam os eletrodomésticos para distribuírem na favela — explica o delegado.

A entrega de pizza em casa é grande um filão comercial, mas em algumas favelas o medo da violência faz com as motos nem entrem. É o caso do Borel, do Morro dos Cabritos e do Jacarezinho. A Grota e a Providência não têm o serviço nas proximidades e somente o morador do Vidigal, dos morros pesquisados pelo jornal, pode receber pizza em casa.

A entrega de remédios é uma comodidade às vezes imprescindível quando surge um problema inesperado como febre ou dor-de-cabeça. Entretanto, para muitas favelas ainda é um sonho literalmente distante.

Numa drogaria perto da Providência, um funcionário atribuiu a recusa da entrega à violência. O entregador da loja foi revistado por traficantes no morro e o acompanharam até a casa do cliente.

— Ele ficou traumatizado e jurou que nunca mais entregaria no morro — contou.

Contratar moradores de favelas pode ser uma vantagem para os serviços de entregas. É assim que duas farmácias de Copacabana conseguem manter o serviço no Morro dos Cabritos. A favela, entretanto, não recebe pizza. A alegação de uma pizzaria é que um entregador chegou a ser roubado no lugar.

O Vidigal não pode contar com os serviços do vizinho rico Leblon por causa do medo da violência. Farmácias e pizzaria se recusam a entregar no lugar. Mas a favela é uma das poucas que têm alternativas. A pizzaria Guanabara diz ter contratado um morador do morro só para atender aos pedidos da comunidade. A Rocinha é outra favela da Zona Sul que sofre menos com o isolamento.

O presidente da Associação Nacional de Assistência ao Consumidor e Trabalhador (Anacont), José Roberto de Oliveira, disse que nenhuma loja pode se recusar a vender algo que é oferecido e as recusas poderiam parar na Justiça. Já a promotora Léa Freire disse que a loja só comete erro quando não avisa ao consumidor antes da compra.

Vendedores dizem não

“Aí na Grota o caminhão entra cheio, mas sai vazio”.

FUNCIONÁRIO DE LOJA DE ELETRODOMÉSTICOS

“O senhor parece ser uma pessoa boa, mas por causa de algumas pessoas ruins aí do Morro dos Cabritos todos os moradores pagam”.

FUNCIONÁRIO DE FARMÁCIA DE COPACABANA

“Não entregamos, mas não é preconceito. Cansamos de receber cheques sem fundos ou roubados aí no Morro do Vidigal”.

ATENDENTE DE UMA PIZZARIA DO LEBLON

“Se a gente fizer a entrega aí no Jacarezinho, a gente corre o risco de perder as pizzas, a moto e até o motoqueiro”.

ATENDENTE DE UMA PIZZARIA DE VILA ISABEL

‘Esta desigualdade gera a violência’

A discriminação das favelas por causa da violência pode acirrar ainda mais as diferenças sociais e agravar o problema da segurança no Rio. O alerta é do sociólogo Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, coordenador do Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), da UFRJ. Segundo ele, a comparação dos dados do Censo 2000 com os de 1991 confirma a exclusão social enfrentada pelos moradores de favelas. Luiz Cesar — que participa do seminário “Metrópoles: entre a coesão e a fragmentação, a cooperação e o conflito”, que será realizado de 5 a 9 de agosto, no Hotel Novo Mundo — afirma que no Rio há uma divisão social marcante entre a favela e o asfalto.
Elenilce Bottari

As favelas cariocas já podem ser consideradas guetos?

LUIZ CESAR DE QUEIROZ RIBEIRO: Não, mas podem vir a se constituir se continuarem sendo vistas apenas pela ótica da violência. Gueto é um lugar homogêneo em termos sociais e abandonado pela sociedade, do ponto de vista social, simbólico, cultural. As favelas ainda têm interação com o asfalto e com o poder público. No Rio, elas estão organizadas, com associações, escolas. Já os guetos são desertos cívicos. Não são capazes de se associar em nada.

O poder paralelo do tráfico e sua violência podem transformar favelas em guetos?

LUIZ CESAR: A falta de política de segurança pode levar a esse processo. Esse caso recente do dirigente da Associação de Moradores da Serrinha e diretor de bateria da escola de samba, o Macarrão, assassinado pelo tráfico por tentar estabelecer limites, é um exemplo disso. A desmobilização de associações devido à violência do tráfico pode levar à desertificação cívica.

De acordo com o censo do IBGE, a população de favela aumentou. Por quê?

LUIZ CESAR: Com certeza, por causa da falta de uma política habitacional, dos baixos rendimentos e também da falta de transportes. As favelas seguem o fluxo da renda. Sem dinheiro para se transportar, sem condições de pagar aluguel e à procura de oportunidades de trabalho, as pessoas vão subir para o alto dos morros para ficar perto dos grandes centros urbanos. Daí a aproximação.

O que poderia ser feito para reverter o processo de favelização da cidade?

LUIZ CESAR: Precisaria uma política habitacional voltada para a ocupação de vazios urbanos. No lugar de enormes conjuntos habitacionais fora da cidade, que não deixam qualquer alternativa para seus moradores, o estado e os empresários do setor deveriam fazer pequenos conjuntos nos espaços vazios. Mas os empresários querem investir em grandes obras de baixo custo.

A existência de realidades tão distantes entre favela e asfalto não é prova de que vivemos em uma cidade partida?

LUIZ CESAR: A imagem da cidade partida é interessante, mas acaba reforçando as diferenças. As pessoas que vivem em favela já sofrem preconceitos. Os próprios nomes estão cada vez mais depreciativos, como Rato Molhado, Favela da Lacraia. Se a situação já é violenta, imagine quando eles passarem a discriminar o asfalto.

Mas aumentou a diferença entre favela e asfalto?

LUIZ CESAR: Não tenho dados para afirmar, mas acredito que sim. Creio que aumentou a frustração. Antes predominava em nossa sociedade uma cultura hierárquica, com diferenças de direitos entre ricos e pobres, brancos e não brancos. Uma cultura de subordinação, onde o pobre só poderia crescer até um ponto e o patrão, em contrapartida, era paternalista. O pensamento mudou, mas as condições para que os pobres possam ter as mesmas oportunidades ainda não mudaram. A estrutura é a mesma, ou seja, a justiça é para quem pode pagar, o estado é clientelista e o rico deixou de ser paternalista e passou a pensar mais em si, se isolando em condomínios fechados e contratando seguranças particulares. Isso aumentou a frustração, principalmente no caso dos jovens. Esta desigualdade gera a violência.

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Cada vez mais verticais

Jornal O Globo, Rio, sexta-feira, 9 de agosto de 2002


Dimmi Amora

Delimitadas com cercas pelo poder público,  as favelas cariocas entraram num  ritmo de crescimento vertical mais acentuado. Já é comum ver prédios de mais de quatro andares nas favelas, principalmente nas zonas Norte e Sul. Sem as rígidas leis urbanísticas que regulam obras em imóveis e terrenos no asfalto, a expansão vertical desordenada prejudica os próprios moradores das favelas, com aumento dos problemas de saúde e de falta de infraestrutura.

À falta de espaço físico, muitas vezes imposta também por limites naturais, junta-se o rápido ritmo de crescimento populacional das favelas. Segundo o IBGE, na década de 90 esse índice foi de 2,4% nas áreas informais, contra 0,38% das áreas formais da cidade. Neste início de nova década isso não mudou. Na Rocinha, onde a prefeitura demarcou limites, a administradora regional Valquíria de Souza Dias conta que a Light fez um recadastramento e contabilizou, no início de 2001, aproximadamente 25 mil moradias. Hoje ela acredita que haja pelo menos mais mil novas moradias.

A Rocinha já tem imóveis de sete pavimentos, mais de 20 metros de altura. O limite máximo para o bairro vizinho de São Conrado é 19 metros de altura, com um detalhe: se o imóvel estiver acima da chamada cota cem (na encosta, cem metros acima do nível do mar), as casas só podem ter, no máximo, dois pavimentos. Mas, de acordo com a Secretaria de Urbanismo, a Rocinha não foi incluída na lei de zoneamento da região.

A expansão vertical chegou a tal ponto que a administradora regional da Rocinha conta que reações contrárias a novas obras vêm partindo dos próprios vizinhos - algo que dificilmente acontecia antigamente. Eles vão à ADR para reclamar quando a construção passa de uma determinada altura ou é feita muito próxima a outra casa. Mas, sem legislação, o trabalho tem que ser de convencimento mesmo.

- Muitas vezes nós não conseguimos e as pessoas fazem a obra. Ainda existe um comércio de laje aqui. A pessoa vende o direito a outra para construir sobre a casa dela - conta Valquíria.

Falta de infra-estrutura acompanha o problema

Mas não é só na Rocinha que o problema se agrava. Nas favelas em torno do Itanhangá - bairro nobre da cidade formal onde a maioria casas têm até dois pavimentos - já existem vários prédios com mais de três andares. Na Favela dos Tabajaras, em Copacabana, já é possível ver prédios de quatro andares, embora a favela tivesse, em 1996, apenas 822 habitantes, segundo o senso do IBGE.

O professor da Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFF Gerônimo Leitão afirma que a tendência de verticalização vem se verificando desde a década passada, devido à falta de áreas para a expansão das favelas. Ele lembra o caso da Vila do João, no Complexo da Maré, cuja população já aumentou cinco vezes desde o surgimento da favela, na década de 80, sem que a sua área tenha aumentado. Segundo ele, o efeito mais imediato desse crescimento é o agravamento da falta de infraestrutura, já que os serviços públicos são dimensionados para uma população menor, além da piora dos índices de saúde pública.

- Fizemos uma pesquisa no posto de saúde da Rocinha e constatamos que lá as doenças que aparecem com mais freqüência são as pulmonares. Com o crescimento vertical, as casas ficam sem ventilação e sem iluminação suficientes - explica Leitão.

Além dos problemas para a coletividade, uma construção fora dos padrões pode comprometer a sua própria estrutura. De acordo com Jerônimo de Moraes, coordenador do Programa de Melhorias Habitacionais do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), na maioria das casas de favela não é feito qualquer estudo para saber se o solo resiste à construção de mais pavimentos.

- Nós fazemos um trabalho em cinco favelas para orientar quem está construindo. Quando vemos que o imóvel já está alto demais, alertamos que é melhor não fazer, mas é difícil porque não há poder para impedir. Se o estado já não consegue fazer valer o Código Penal nessas áreas, imagine o Código de Obras - diz Jerônimo.

Só duas favelas têm padrão urbanístico

Quase a totalidade das favelas do Rio não tem qualquer parâmetro urbanístico de construção, segundo a Secretaria de Urbanismo. Apenas duas, a Fernão Cardim e a Quinta do Caju, das 61 comunidades onde as obras do Programa Favela-Bairro terminaram, ganharam legislação específica para definir os tipos de construção permitidos, em ambas limitados a três pavimentos. Na Rocinha está sendo realizado um estudo para criar parâmetros para dois sub-bairros. A Secretaria de Urbanismo informou que estão sendo feitos estudos na legislação que regulamenta o Estatuto da Cidade para que as áreas favelizadas ganhem parâmetros urbanísticos de construção.

- Os instrumentos existentes hoje para regulamentar as áreas de favelas são ultrapassados e isso dificulta o trabalho - diz Márcia Garrido, coordenadora do Favela-Bairro.

De acordo com Gerônimo Leitão, o ideal é que se discuta com cada comunidade os parâmetros adequados e se façam legislações específicas para as comunidades.

- Os instrumentos de controle da cidade formal são ineficazes na favela - afirma.

As cercas do Programa Eco-Limites da Secretaria municipal de Meio Ambiente já chegaram a 27 áreas próximas a matas. A medida visa a impedir a expansão das construções em direção à vegetação. Ao todo já foram estendidos 16.800 metros de cabos de aço ou de alambrados para cercar as áreas. Seis locais ainda estão com a delimitação em andamento.

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Laje na Rocinha custa 2 terrenos na Zona Oeste

Jornal O Globo, Rio, sábado, 10 de agosto de 2002

Venda do direito de construir sobre o teto das casas, a R$ 100,00 o metro quadrado, estimula verticalização de favelas
Dimmi Amora

Troca-se uma laje na Rocinha por dois terrenos, cada um do mesmo tamanho da laje, em Campo Grande. Pode parecer absurdo, mas quem oferece a laje para construção — oferta cada vez mais comum nas favelas das zonas Sul e Norte da cidade — pode estar fazendo um mau negócio. Na Rocinha, a maior favela do Rio, o direito de construir sobre o teto de uma casa é vendido, no mínimo, a cem reais o metro quadrado, enquanto em Campo Grande é possível encontrar terrenos bem localizados e com valor de mercado por, no máximo, R$ 45 o metro quadrado.

A falta de áreas livres para construir fez crescer a tendência nos últimos anos de verticalização das favelas, conforme O GLOBO mostrou em reportagem ontem. Com isso, as próprias lajes das casas acabaram virando objeto de negócio. O contrário da cidade formal, onde a lógica é inversa: construtoras estão comprando o espaço aéreo para garantir vista eterna, impedindo a construção de prédios altos em terrenos vizinhos.

Na cidade formal, laje é vendida para não construir

A história do motorista Lourival Calixto da Silva, de 49 anos, explica bem a distorção criada pelo mercado imobiliário das favelas. Pai de dois filhos, ele chegou há seis anos da Paraíba para trabalhar como vigilante e foi morar na Rocinha pagando R$ 300 de aluguel. Demitido recentemente, usou R$ 4.500 de indenização para comprar o direito a construir nos 45 metros quadrados da segunda laje de uma casa na favela. Nem procurou em outros bairros preço menor ou semelhante ao que pagou.

— Na Zona Oeste e na Baixada não tem trabalho. E os patrões daqui não contratam quem mora longe porque não querem dar vale-transporte — justificou Lourival.

Como Lourival não é o único a pensar assim, o comércio de lajes vai aumentando junto com seus preços e a altura das favelas. Os riscos para a saúde, já que as construções diminuem a ventilação e a luminosidade das casas, e para as próprias construções crescem na mesma proporção. A administradora Regional da Rocinha, Valquíria de Souza Rosa, conta que o número de chamados para a Defesa Civil é cada vez maior. Em média, um por dia na favela.

— O pior é que a laje é vendida, mas a escada para chegar à casa de cima tem que ser feita pelo lado de fora, ocupando um espaço público. É preciso fazer a legislação daqui com urgência — disse Valquíria.

Como não há regulamentação, o direito de comprar a laje inclui o direito de vender a laje depois de construída a casa. Isto, é claro, até o limite que a construção agüentar, o que nem sempre é avisado a quem compra.

— Muitas vezes isso gera confusão porque a pessoa não se conforma em não pode vender a laje que ela fez — diz o professor da Escola de Arquitetura da UFF, Gerônimo Leitão, especialista no estudo urbanísticos de favelas.

Vice-presidente da Ademi acha valor surpreendente

O vice-presidente da Associação de Dirigentes do Mercado Imobiliário (Ademi), Rubem Vasconcelos, mostrou-se surpreso ao saber o preço do direito de construir sobre uma laje na Rocinha. Segundo ele, o preço já começa a se aproximar de áreas da Zona Norte, onde o metro quadrado varia de R$ 150 a R$ 300. No Jardim Botânico, uma das áreas mais caras do Rio, o metro quadrado de um terreno custa, em média, R$ 350.

— É mais surpreendente ainda porque a pessoa não está comprando uma propriedade, e sim um direito, o que torna o negócio ainda mais caro — comentou Rubem.

Na cidade formal, uma laje tem valor pelo inverso da lógica da favela. Este ano o incorporador Marcus Cavalcanti comprou o espaço aéreo da Clínica Beramendi, que fica na Rua Joana Angélica, em Ipanema, para garantir a vista para a rua dos futuros moradores do prédio que está construindo no bairro. A compra do direito de superfície passou a ser prevista no Estatuto da Cidade, aprovado no Congresso Nacional. Em Nova York, o cineasta Wood Allen chegou a fazer um filme contra a construção de um prédio de 17 andares que seria construído na sua vizinhança.


Mais 5 favelas ganham regras urbanísticas

O secretário municipal de Urbanismo, Alfredo Sirkis, anunciou que nos próximos dias cinco favelas da cidade, que já foram beneficiadas pelo programa Favela-Bairro, vão ganhar parâmetros urbanos para as construções: Ladeira dos Funcionários, Parque São Sebastião e Vila Clemente, no Caju, Parque Royal, na Ilha do Governador, e Três Pontes, em Paciência. Além dessas cinco, dois sub-bairros da Rocinha, Vila Cruzeiro e Laboreau, também estão em fase final de estudos para terem suas regras definidas. Duas favelas, Quinta do Caju e Fernão Cardim, já têm parâmetros definidos por lei.

De acordo com o secretário, as leis, que serão definidas por decreto, foram discutidas com as comunidades e limitam, em média, em dois e três pavimentos as construções nesta regiões. Segundo Sirkis, pelo menos 40% das habitações do Rio estão nas áreas das cerca de 400 favelas do Rio, que não têm qualquer parâmetro urbanístico.

— São 40 anos sem política habitacional que tornaram o problema assustador. Estamos começando, mas é preciso começar. O difícil será a fiscalização desses parâmetros, já que nestas áreas o estado não consegue nem manter o monopólio da força armada. Mas não é por isso que não faremos as leis — disse Sirkis.


OPINIÃO

Para o alto

NÃO PARECIA possível que a situação apresentasse problemas mais graves do que os já conhecidos. Mas, como mostrou reportagem do GLOBO, as favelas do Rio descobriram nova forma de crescimento perigoso.

É A expansão para o alto. Sem licença e sem controle, muitas comunidades, ante a impossibilidade de avançar sobre novas áreas, estão construindo verdadeiros edifícios, de até sete andares.

APENAS EM duas favelas da cidade, ambas beneficiadas pelo Favela-Bairro, há parâmetros urbanísticos oficiais. Nas demais, constrói quem pode e quer.

MÁ NOTÍCIA, portanto. Para acompanhar o crescimento das favelas, será preciso aferir área e área construída. E os prédios improvisados exigem fiscalização pela Defesa Civil, antes que algum temporal os transformem em causas de tragédias.

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A vitória da baderna

retirado do site: http://www.nominimo.com.br

Sexta-feira, 06 de setembro de 2002

Xico Vargas

06.Set.2002 |  Na próxima semana, quando acampar na porta do prefeito Cesar Maia, a arquiteta Maria Lúcia Massot espera fazê-lo sentir um pouco do que tem experimentado nos últimos oito anos, desde que ele plantou-lhe diante de casa uma favela que lhe tornou a vida um inferno e a expulsou do lugar onde decidira viver. “Se ele pode fazer isso comigo, por que não posso fazer com ele?”, questiona Maria Lúcia, com a disposição de quem já despejou uma caçamba de entulho ao lado da casa do então prefeito Luiz Paulo Conde, só para lembrá-lo de que a porta da sua não era vazadouro de lixo.

Vem de longe a história dessa mulher de 58 anos, mais de 100 quilos e fôlego de maratonista. Há 18 anos, quando o Recreio dos Bandeirantes era uma terra inóspita na cidade e a imobiliária Litorânea uma companhia saudável, ela comprou um terreno. A ocupação da região havia sido planejada por Lúcio Costa, respeitado urbanista que produziu obra aplaudida por sábios do assunto em congressos internacionais. Quando Maria Lúcia empilhou os primeiros tijolos no terreno de pouco mais de 600m2, em volta era tudo mato. Mas nos planos de Lúcio, a área em frente, de 7 mil m2, estava destinada a um condomínio de 25 casas. Era 1984 e de sua terra se podiam ver alguns casebres de pescadores, a meio caminho da praia, distante algo como 500 metros.

Os 10 anos seguintes, Maria Lúcia gastou em cimento e lágrimas. Inflação alta, dinheiro curto, o lugar era longe. Nas suas contas, porém, o resultado seria positivo. Afinal, já havia percorrido um pedaço do mundo. Trabalhara nas embaixadas do Brasil em Paris e Atenas, no escritório da Petrobras em Paris. Os dólares do cofrinho estavam virando paredes, enquanto à volta, aqui e ali, brotavam construções de boa qualidade. Eram os pioneiros da valorizada gleba C, região absolutamente plana no Km 19 da avenida das Américas. De longe, ainda, dava para ver os primeiros sinais da baderna urbana que viria: a cada semana mais barracos se enfileiravam na margem do canal da Taxas.

Quando deu-se por satisfeita com sua obra, uma construção simples, porém sólida, Maria Lúcia resolveu transformar a calçada em jardim. Plantou grama, árvores, flores, olhou para tudo aquilo e concluiu que tinha valido a pena. Era 1995. A cidade vivia a primeira encarnação de Cesar Maia na prefeitura e em seis meses o prefeito plantou-lhe uma favela à porta da casa. “Foi uma selvageria, um desrespeito. Eles removeram 66 barracos do canal e, não sei como, juntaram mais gente e botaram 81 casas aqui. Fizeram esse monstrengo”, revolta-se a arquiteta. Não é para menos.

O prefeito não só empilhou 81 casas no espaço destinado a 25, como passou batido por quase todas as posturas municipais que regem as construções. Portas, janelas, altura de prédios, muros, afastamentos, tudo ali está em desacordo. É a mais clara exibição de que, do ponto de vista do poder público, não são os brasileiros iguais perante a lei. De um lado da rua, onde está a casa de Maria Lúcia, o município exige que a calçada tenha três metros de largura. No lado da favela, o prefeito botou as casas sobre a calçada e deixou 1,5 metro para as pessoas andarem.

Esse regime de absurdos bateu um dia à porta da arquiteta para dizer-lhe que não poderia construir nos fundos de casa um canil com mais de 1,5 m2, sem pagar a licença de obra à prefeitura. Ela pagou. No outro lado da rua, desde que foram entregues, várias casas já tiveram as fachadas transformadas para instalar biroscas, açougues e lojas de consertos de bicicletas. Na terça-feira, 3, um morador dessa zona livre de impostos erguia mais um andar em sua casa. Não tinha projeto, licença ou visitas da prefeitura. Separa esses dois mundos uma rua com seis metros de largura. Parece piada. Talvez por isso, ocorra na rua Leon Eliachar, humorista que publicava uma página semanal na extinta revista Manchete e, não raro, manifestava perplexidade diante do exótico.

A prefeitura que exibe nos jornais trabalho contínuo para conter as favelas é a mesma que ali incentiva o crescimento. Na continuação da Barra da Tijuca, quando se chega ao Recreio dos Bandeirantes, por trás dos edifícios e shoppings alinhados ao longo da avenida das Américas viceja a ocupação desordenada. Principalmente para o lado da praia. Na faixa de terra que o Plano Lúcio Costa destinou ao que seria Barra Bonita, multiplicam-se os loteamentos clandestinos, a grilagem de terra e as construções ilegais. A Litorânea, grande proprietária da área, foi para o ralo e a maior parte de seus terrenos está inscrita na dívida ativa do município por falta de pagamento do IPTU. Pelo tamanho da conta, a terra já pertence à prefeitura, o que só abre a porta à baderna.

A passagem do projeto Favela Bairro pela área – com o secretário de Habitação, Sérgio Magalhães, caçando votos de microfone em punho – deitou asfalto das ruas informais e deixou as ruas previstas do bairro com a mesma lama de antes. Apenas repetiu o resultado do programa em todos os lugares: favoreceu a especulação imobiliária. As lajes estão sendo negociadas por R$ 30 mil, em média. A venda de lajes é uma modalidade ilegal de negócio produzida pela pressão imobiliária nas favelas do Rio. Nasce da seguinte maneira: uma pessoa constrói um barraco de alvenaria e, em lugar de telhado, cobre-o com uma laje de concreto pré-moldado. Vende o barraco para um e, para outro, o direito de construir sua morada sobre a laje.

Mas não só lajes e barracos entraram em alta na área do Terreirão. Dezenas de edifícios estão em fase de acabamento. Raros são os licenciados pela prefeitura. Pertencem a políticos, policiais, pequenos empresários. Tem de tudo. O deputado Domingos Frazão é dono de um, “mas botou em nome do tio dele”, informa o vizinho do lado. É um prédio de seis andares divididos em kitinetes à venda por R$ 35 mil cada. A expansão acelerada une as favelas à do Terreirão, maior delas, num complexo. Durante o dia, oferece comércio como a rua da Alfândega, no Centro da cidade. À noite, tráfico como o morro do Alemão, na Zona Norte, e muito funk e forró.

Na música, começaram os desentendimentos entre Maria Lúcia Massot e seus novos vizinhos. Na terceira madrugada seguida sem dormir chamou a polícia. Não aguentava mais o volume do funk que saía dos alto-falantes que o dono de uma birosca em frente havia posto na calçada. Descobriu, então, que a lei do silêncio só tinha vigência no seu lado da rua, mas não desistiu. Queixou-se ao prefeito, à Polícia Militar, ao Ministério Público e não conseguiu nada, além da indisposição da vizinhança. Um dia, cansados daquela mulher que insistia em dormir nas noites de sexta, sábado e domingo, os vizinhos apedrejaram-lhe a casa e ela resolveu pular fora enquanto tinha pernas para correr.

Da Justiça, obteve apenas a redução do IPTU à metade. Paga agora R$ 1 mil por ano. Pediu indenização por danos morais, mas perdeu. “E ainda tive de ouvir o advogado da prefeitura me dizer, na frente do juiz, que eu tinha toda a razão”. Perito nomeado pela Justiça avaliou sua casa em 147 mil Ufir, hoje R$ 178 mil. Só o terreno, em ruas próximas sem favela à porta custa R$ 200 mil. Maria Lúcia sabe que, se insistir, poderá conseguir que a prefeitura desaproprie sua casa, mas vai receber em precatório, ou seja, talvez nunca ponha a mão no dinheiro. “Quanto tempo ainda me resta? É muito difícil recomeçar aos 58 anos”, conclui.

Hoje ela vive num apartamento alugado e paga o caseiro, Sílvio, para alimentar e cuidar dos cachorros que ficaram na casa. Quase todos os dias, ao volante de uma camioneta empoeirada, percorre o lugar que há 18 anos escolheu para erguer sua casa. Xinga grileiros e reclama no 31º Batalhão da PM que as leis de trânsito não estão sendo respeitadas. A polícia promete-lhe providências, mas os caminhões de frete continuam estacionados nas esquinas e as vans sobre as calçadas da praça, na avenida Niomar Bitencourt. Ela fotografa tudo e mostra na página que um amigo americano a ajudou a construir na Internet (endereço abaixo). Notícias, artigos, denúncias sobre a desordem urbana do Rio de Janeiro ela remete por e-mail para milhares de destinatários. Sempre lembrando que o prefeito, na campanha, prometeu um choque de ordem na cidade.

Há alguns meses, Maria Lúcia lembrou que Cesar Maia, quando mudou para um endereço nobre na praia de São Conrado, fez calar um trailer que, à noite, tocava música perto de seu prédio. A idéia não a abandonou mais. Comprou uma barraca numa lojinha de camping, um lampião, pequenas tralhas de acampanhamento e já planeja o desembarque. Não vai abrir o som do funk, porque não gosta do gênero, mas talvez possa até fazer um churrasquinho. Se o prefeito desarrumou-lhe completamente a vida, ela está decidida a perturbar um pouco a dele. É possível que não consiga nada, mas vai ser divertido.



xicovargas@nominimo.ibest.com.br

Sites relacionados
Favela Bairro


Texto em questão: A vitória da baderna

Sábado, 14 de setembro de 2002

no mínimo - Fala Leitor com Salomão Antunes


De: Gilmar Pacheco Rezende
Para: Xico Vargas

Prezado Xico,

Na maioria das vezes em que a prefeitura se mete, dá nisso, um prefeito em busca de votos cria um projeto que literalmente chama a todos de favelados, seres do submundo e o povão gosta. Favela bairro, francamente.

Mas o pior é que o prefeito tem razão, não poderia dar-lhe nome diferente. Pagar R$ 35.000,00 (se entendi bem) Para morar em cima dos outros é coisa de burro, com essa grana eu compraria um sítio por aqui no ex-distrito São José (...).

O que me deu mais raiva no caso da Sra. Maria Lúcia, foi o fato de ter sido expulsa de casa por esses macacos, não negros e nem macaquitos, simplesmente macacos. Sou inteiramente contra a violência, mas numa hora destas dá vontade de metralhar todo mundo.(...)

Esse texto não tem qualquer apologia ao preconceito, mas sim ao conceito real dos fatos. Pobreza, riqueza, cor ou religião não têm nada a ver com isso. Índole sim.

Salomão comenta:

Gilmar,

Essa sua vontade de metralhar vizinhos inconvenientes não deixa de ser um sentimento humano. É mais ou menos o que sentem judeus e árabes na Cisjordânia, com a diferença de que lá eles não ficaram na intenção.

O problema é que, como se nota na Palestina, depois do primeiro tiro ou da primeira pedrada fica difícil voltar a ter um fim de semana tranqüilo na vizinhança. É bem pior que baile funk.

De: Claudia Aguiar
Para: Xico Vargas

Sou carioca migrada para Petrópolis. Gostaria de parabenizá-los pela matéria e informar que aqui em Petrópolis a coisa não é diferente. Lutamos há muito tempo junto ao poder público por uma real política de habitação popular sem qualquer êxito.

As invasões são constantes e incontroláveis, o poder público omisso e as cobranças para licenciamento de obras quase impossíveis. Por um lado fecham os olhos para as invasões e por outro erram duplamente ao emitir licenças em locais de preservação ambiental (...).

A cidade enfrenta problemas sérios como falta d'água, poluição de nascentes e rios, inundações (vide a calamidade no Natal ).... e nada de soluções. Coloco-me ao seu dispor para troca de informações. Sou diretora de Educação Ambiental do SOS Piabanha Petrópolis e faço parte do Conselho Gestor da APA Petrópolis.


De: Jorge Geisel
Para: Xico Vargas

Prezado Xico Vargas,

Meus sinceros parabéns pela brava reportagem sobre as vicissitudes e sofrimentos de Maria Lúcia Massot, um raro exemplo de resistência à baderna e degradação urbana instalada no Rio de Janeiro, graças à irresponsabilidade administrativa movida pelos interesses da corrupção eleitoreira, durante anos a fio.

Por outro lado, seu empenho jornalístico em pról da Cidadania e da Verdade, também é um exemplo digno de ser reconhecido por todos nós, habitantes de uma cidade carente de amor, de paz e de governo.

Um abraço, Jorge Ernesto Macedo Geisel
jorgegeisel@hotmail.com

Salomão comenta:

Ernesto Geisel,

Você disse tudo: corrupção eleitoreira. Copacabana também já foi um vazio paradisíaco, transformado em mercado de interesses imediatos.

O chato é que, nesse negócio de ocupação do solo, a autoria da esculhambação, com o tempo, fica que nem cabelo em sabonete: ninguém sabe direito de quem é.

Vitória da baderna II - O que fazer?

De: Ana Paula

Estou solidária ao caso de Maria Lúcia, mas vejo que a cada dia que passa a situação fica mais difícil. Minha pergunta é: O que fazer?

[mailto:apdp24@hotmail.com]

Vitória da baderna III - Vale de lágrimas

De: Marco Souza

Caro Xico,

Tendo em vista que os políticos continuarão sempre os mesmos, e, pior, que se desenha no horizonte de nosso estado uma neo Evita com seu Peronzinho, só resta a Maria Lucia admitir que este vale não é chamado de lágrimas sem motivo... . .
abs,
ma
mailto:marcosouza@infolink.com.br]

Vitória da baderna IV - Realismo

De: Sávio Garcia Pimentel

Prezado Xico Vagas,

Escrevo esta mensagem apenas para parabenizá-lo pelo brilhante texto relatando o drama vivido pela moradora Maria Lúcia e o pouco caso de nossa gestão municipal. É muito difícil encontrarmos alguém que seja tão objetivo, sério e realista ao abordar esta nossa triste mazela social.

Parabéns por seu excelente serviço!

saviogarcia@hotmail.com

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Lider comunitário é assassinado no Recreio

O Globo On Line, Domingo, 29 de setembro de 2002

Líder comunitário do Recreio é assassinado

O líder comunitário da Favela Coroado, no Recreio dos Bandeirantes, José Gonçalves Lício, de 51 anos, foi morto a tiros e teve seu corpo queimado na madrugada de ontem, na porta de sua casa. Alexander de Oliveira da Silva, conhecido como Lequinho, foi preso em flagrante por policiais do 31 BPM (Barra). Ontem à tarde ele foi encaminhado para a carceragem da Polinter, na Praça Mauá.

De acordo com a polícia, Lício não estaria permitindo a instalação de uma boca-de-fumo num local da favela e acabou sendo morto. Segundo depoimentos de testemunhas, seis homens armados e encapuzados atiraram em Lício na porta de casa. Em seguida, os bandidos o arrastaram até a rua, onde atearam fogo em seu corpo.

Dois dos assassinos moram na favela

Lequinho foi preso em flagrante e os outros cinco bandidos conseguiram fugir. Dois deles foram identificados como moradores da favela: Ricardo Alves, o Cadinho, e um homem conhecido apenas como Pará.

Um levantamento feito pela Comissão contra a Violência e a Impunidade da Alerj, publicado no GLOBO em 20 de junho passado, identificou 800 líderes de comunidades po$assassinados, expulsos ou cooptados por traficantes no Grande Rio, entre 1992 e 2001. Metade deles se associou aos bandidos. Outros 300 tiveram que abandonar as favelas e cem foram mortos por não se deixarem intimidar.

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Arquiteta e mendigos fazem protesto no Rio  

Terça-feira, 22 de outubro de 2002

CIDADES

O ESTADO DE S. PAULO


Arquiteta e mendigos fazem protesto no Rio

RIO - A arquiteta Maria Lúcia Massot, de 59 anos, e três mendigos fizeram ontem um protesto em frente da casa do prefeito Cesar Maia. Ela queixava-se de um projeto da prefeitura, Favela-Bairro Canal das Taxas, que teria cercado sua casa de barracos e a obrigado a se mudar do Recreio dos Bandeirantes, zona oeste. Os mendigos querem um lugar para morar. A arquiteta diz que as obras fizeram baixar o preço dos imóveis e deixaram o lugar violento. Ela exige indenização.

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Quando o descaso fala mais alto

retirado do site: http://www.e-recreio.com.br

Quinta-feira, 7 de Novembro de 2002 12:26

Ruas do Recreio se transformam em palco de irregularidades
e atestam o abandono da região pelas autoridades.

Atendendo a denúncia de moradores do bairro esta ouvidoria se dispôs a conhecer de perto os problemas que os moradores da Rua Leon Eliachar sofrem desde a ocupação do Projeto favela bairro ali instalado e do crescimento desordenado do local, que hoje é conhecido como 'terreirão'.

A primeira impressão que se têm ao chegar no lugar é a de desordem, causada pelas kombis que adotaram a Av. Guiomar de Novaes como ponto, atrapalhando o tráfego normal dos veículos que por ali passam e também das linhas de ônibus que precisam dividir a já estreita faixa de rua com toda sorte de transporte irregular.

Infelizmente os problemas não param por aí. Como o acesso a Rua Leon Eliachar é feito justamente pela Av. Guiomar de Novaes, é preciso antes de entrar na rua, desviar de dois enormes buracos que contribuem bastante para piorar as condições do local.

Na sequência de problemas, outro não menos grave está relacionado as condições de higiene e limpeza, pois a rua possui dois enormes terrenos desocupados que foram transformados em depósito de lixo e carros depenados. Apesar de verificarmos que em um deles havia duas caixas coletoras de lixo, boa parte do terreno está tomada por entulho, dando a clara sensação de que a tempos a Comlurb não faz a remoção do lixo ali despejado.

Como se não bastasse, os moradores se vêem obrigados a dividir o espaço dessa pequena e antes calma rua residencial com os ônibus-pirata que adotaram a rua como estacionamento.

Antes de concluir essa visita, fizemos questão de registrar esses fatos como forma de alertar as autoridades para o festival de irregularidades e desordem que impera nessas e em tantas outras ruas do bairro a fim de que a CET-RIO, juntamente com a polícia, realize a fiscalização do transporte irregular atuante na região.

 

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No meio da favela surge a casa dos sonhos

 

Jornal O Globo, Rio, 8 de dezembro de 2002

Ana Cláudia Costa

No meio de ruas mal pavimentadas das favelas cariocas, algumas belas casas se destacam das demais construções de alvenaria com paredes de tijolos sem revestimento. Apesar do luxo aparente dos imóveis, eles perdem valor no mercado imobiliário por causa da localidade. Os proprietários das " pequenas mansões"- como moradores das favelas gostam de chamar- se orgulham de ter construído ao longo de muitos anos um patrimônio confortável que, em muitos casos, inclui piscina e gramado.

O ato de investir e construir casarões dentro de favelas, segundo o economista Pedro Abramo, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (Ippur), tem uma explicação. Segundo ele, as casas não são construídas em tempo recorde como acontece no asfalto. Ele chegou a essa conclusão durante uma pesquisa que fez, em parceria com o Instituto Pereira Passos (IPP), sobre preços de imóveis em comunidades carentes.

O estudo mostrou que os casarões são feitos ao longo dos anos. Os moradores optam por construir ou fazer melhorias em imóveis no local onde possuem amigos e parentes.

Investir no seu bem-estar e morar com conforto, sem sair da comunidade, foi o motivo que levou o comerciante paraibano, Ronaldo Gomes, 49 anos, a fazer melhorias em sua casa ao longo de dez anos. O imóvel tem vista privilegiada para o mar de São Conrado, o Gávea Golf Club e a Pedra da Gávea. Ele garante que não troca sua vida na favela Vila das Canoas, na Estrada da Canoas, por qualquer outro condomínio de luxo no bairro.

No imóvel de três pavimentos e um subsolo estão abrigados sua casa, uma mercearia e uma delicatessen. A casa, segundo ele, está avaliada em apenas R$ 30 mil por causa da localização. Um preço bem abaixo do seu investimento nos dois pavimentos, sala com vidro espelhado e vista para o mar e pisos em lajotas. Vaidoso, ele explica que preferiu investir no estilo da casa a fazer um "caixote com janelas", termo que utiliza para identificar as edificações em favelas:

-Eu não quero sair daqui. Fui criado na favela e preferi investir no meu imóvel para ter um maior conforto.

Ainda de acordo com o levantamento do Ippur e IPP, os proprietários dos casarões em favelas são migrantes de outros estados e a casa é o seu principal patrimônio, por isso o grande investimento.

Um outro atrativo, segundo Pedro Abramo, são os impostos que não são pagos nas favelas. Bem diferente do que acontece no asfalto.

-Na favela existe também a liberdade de edificação. Não existe padrão urbanístico e por isso o proprietário pode aumentar a casa sem licenciamento- disse Pedro Abramo.

O luxo e a isenção dos impostos pode ser observada no imóvel avaliado em R$ 500 mil, na Rocinha. A casa tem três andares, quadra de futebol, piscina, sauna, churrasqueira e dez vagas na garagem. Somente com o aluguel das garagens, a proprietária ganha em média R$ 1 mil por mês.

Alto padrão na Maré e no Itanhangá

O arquiteto do IPP, Adriano Allen, explicou que o proprietário desse tipo de edificação normalmente não está preocupado em vender a casa e prefere investir na melhoria de seu padrão de vida.

Ele analisa que, em geral, as casas nas favelas não possuem padrão arquitetônico das demais casas de luxo da cidade. Para ele, as edificações aumentam aleatoriamente com o decorrer dos anos, como uma " obra de igreja".

O arquiteto do IPP ressaltou que em diversas favelas do Rio, principalmente na Maré e nas favelas do Alto da Boa Vista e Itanhangá, as casas são de alto padrão. No entanto, devido a sua localização, elas têm baixo valor imobiliário.

-Observamos durante nossa pesquisa que os moradores preferem, em sua maioria, investir mais no interior para ter conforto. Muitos evitam ostentar luxo do lado de fora do imóvel.

Comunidade na Barra se destaca pelo luxo

A Favela da Tijuquinha, que há 70 anos começou a surgir na Estrada do Itanhangá, na Barra da Tijuca, foge dos padrões das outras comunidades carentes da cidade. Com 1.400 casas e cerca de cinco mil moradores numa área de 114 mil metros quadrados, a favela chama a atenção por causa de seus casarões. Alguns chegam a ter quatro quartos, dois pavimentos, varandões e até piscina. Tanto luxo, segundo o presidente da Associação de Moradores da Tijuquinha, Ideraldo Luiz da Silva, se deve ao fato de os moradores serem muito antigos e investirem bastante na melhorias dos imóveis.

Casa de dois pavimentos e quintal gramado

Esse é o caso da cabeleireira Maria Lúcia Gouveia, de 37 anos, moradora da Tijuquinha desde que nasceu. Casada há 15 anos, ela construiu com o marido, o comerciante Josimar de Almeida, uma confortável casa de dois pavimentos: os quartos são amplos, a garagem coberta, a escada de madeira e o quintal gramado.

Maria Lúcia diz não saber o valor de sua casa. Ela admite, no entanto, que o preço de um imóvel em favela é sempre baixo mesmo estando numa área nobre como o Itanhangá. Satisfeita com a sua casa, onde também funciona seu salão de beleza, Maria Lúcia disse que não conseguiria morar com tanto conforto em Jacarepaguá, por exemplo.

- Tenho orgulho da casa que construí com meu marido. Não queremos saber o valor dela porque fizemos a casa para morar com conforto. Essa favela é tranqüila - contou.

Uma favela sem tráfico de drogas e violência

Talvez a tranqüilidade da Favela da Tijuquinha, onde segundo o presidente da Associação de Moradores, não há tráfico de drogas ou violência, tenha incentivado moradores a ampliar suas casas. Obras de reurbanização feitas pela prefeitura, como o projeto Bairrinho que pavimentou algumas ruas e canalizou o esgoto, também estimularam a ampliação dos imóveis. Apesar das casas amplas e bem conservadas, a Tijuquinha mantém características de uma favela com suas vielas e a falta de infra-estrutura.

- Os moradores da Tijuquinha se orgulham da favela em que moram. Temos pessoas de classe média que optaram por investir na comunidade. Acho que por estar próximo da Barra da Tijuca, o comportamento e a situação econômica dos moradores incentivaram a construção dessas casas - disse Ideraldo.

A casa de Benedita da Silva

A polêmica sobre a casa da governadora Benedita da Silva no Morro Chapéu Mangueira, no Leme, começou no mês passado, quando a Carteira Hipotecária do Clube da Aeronáutica entrou com uma ação na Justiça, pedindo a desocupação do imóvel onde a governadora morou até há três anos e que hoje serve como sua base política. O advogado da Carteira alega que o terreno, de cinco lotes, com cerca de 480 metros quadrados na subida do morro, é propriedade do clube e que a governadora teria recebido indenização - em valores atuais corresponderia a R$ 51 mil - em 1977 para deixar a área, mas não saiu.

No entanto, Lúcio Bispo, ex-presidente da Associação de Amigos do Chapéu Mangueira, defendeu Benedita. Ele afirmou que em 1977 o acordo feito foi para que todos os moradores deixassem o terreno da entidade no morro, inclusive Benedita, que foi para um terreno mais acima. Segundo ele, esse terreno não pertenceria à Carteira.

O processo que vai julgar quem tem razão será julgado pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça
.

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Jacarepaguá será das favelas

Jornal do Brasil, Cidade, sexta-feira, 20 de dezembro de 200

 

População nas áreas irregulares cresce seis vezes mais que a do asfalto

 

 Daniela Dariano
Se a ocupação do Rio continuar no ritmo em que está, em 2024 os condomínios e prédios de Jacarepaguá estarão todos cercados por favelas. A conclusão está em estudo do Instituto Pereira Passos (IPP), órgão vinculado à Secretaria Municipal de Urbanismo, de autoria do pesquisador Paulo Bastos Cezar. Hoje, o bairro tem 113.227 favelados - 22% de um total de 506.760 moradores. Enquanto a população normal cresceu em média 2% nos últimos quatro anos, a chamada subnormal (favelada) cresceu 12,53% ao ano, o equivalente a um aumento de 160% no período.

- No período anterior (de 1991 a 1996), crescia a 3,72% ao ano. Houve uma explosão - conclui Paulo.

O fenômeno também foi observado na Barra da Tijuca, que nos primeiros cinco anos da década crescia anualmente 3,1% e passou para 18,89% no período seguinte. Atualmente, 135 mil pessoas moram na Barra, 2% (31.071) são favelados. Na média dos dois bairros, a população total cresce 2,9% ao ano; a subnormal (de favela), 8%, e a população normal (de asfalto), 2,63%.

- Não é a taxa mais alta. Na área de Guaratiba, as favelas crescem a 24,62% ao ano, ou seja, a população favelada dobra a cada três anos. Enquanto isso, a normal cresce 7,8%.

Segundo o prefeito Cesar Maia, entre 1991 e 1996, em todo o município, as favelas haviam crescido em torno de 7,8% e, entre 1996 e 2000, cresceram algo próximo de 20%. O aumento vertiginoso da população favelada se concentra na Zona Oeste e é paralelo historicamente à diminuição dos moradores de favela na Área de Planejamento 1 (Zona Portuária, Centro, Rio Comprido, São Cristóvão, Paquetá e Santa Teresa). Mas não se trata de migração interna.

- A redução no Centro é um fenômeno demográfico ligado diretamente à educação e à redução do número de filhos. São menos pessoas vivendo nas casas. Na Zona Oeste, cresceu a migração da Região Metropolitana e de outros Estados. Mas os dados de migração do Censo ainda serão liberados - diz.

Quem passa por Rio Comprido e Santa Teresa pode duvidar. Isso porque o número de domicílios continua crescendo a taxas baixas, mas a população favelada caiu, segundo o Censo 2000, 1,13% nesses locais em 10 anos. Zona Sul e Tijuca estão no mesmo caminho. A Área de Planejamento 2 (Botafogo, Copacabana, Lagoa, Tijuca, Vila Isabel e Rocinha) cresceram em uma década apenas 1,54% ao ano, principalmente na Rocinha e na área da Lagoa - ainda grande diante da retração da população, que foi de 0,42% ao ano, e da população normal, que caiu 0,72%.

A origem das favelas da cidade

Pesquisadora levanta a história dos morros do Rio

 

A primeira favela do Rio de Janeiro a receber essa denominação foi o Morro da Providência, no fim do século 19. Com a ocupação do morro, em 1897, pelos militares sobreviventes da Guerra dos Canudos, os novos moradores passaram a tratar o local como Morro da Favela, em referência a uma planta nordestina com o mesmo nome. Essa e outras curiosidades sobre a história da favelização carioca estão em estudo realizado pela pesquisadora Adriana Mendes de Pinho Vial, do IPP, no site da Prefeitura do Rio (www.armazemdedados.rio.rj.gov.br). No mesmo trabalho, verifica-se que desde 1964 o avanço das favelas em direção à Zona Oeste e à Baixada Fluminense é uma tendência.

A história das favelas acompanha a da cidade. O levantamento da pesquisadora conta como a extinção dos cortiços, por medidas que visavam a saúde e a higiene, no fim do século 19, estimulou a ocupação de morros pela população pobre. De 1900 a 1930, a necessidade de modernizar a configuração urbana e os operários surgidos com o desenvolvimento industrial, os morros da Providência, Santo Antônio e outros até então desabitados são rapidamente ocupados.

Com o nome de Novas Tendências demográficas da cidade do Rio de Janeiro, a pesquisa divide a evolução das favelas em etapas que vão desde a abolição da escravatura até a legitimação da favela pelo poder público, a partir de 1982, com o encarecimento da terra e ocupação das periferias.

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A Origem das favelas no Rio de Janeiro

Pesquisadora levanta a história dos morros do Rio

Jornal do Brasil, 20/DEZ/2002

A primeira favela do Rio de Janeiro a receber essa denominação foi o Morro da Providência, no fim do século 19. Com a ocupação do morro, em 1897, pelos militares sobreviventes da Guerra dos Canudos, os novos moradores passaram a tratar o local como Morro da Favela, em referência a uma planta nordestina com o mesmo nome. Essa e outras curiosidades sobre a história da favelização carioca estão em estudo realizado pela pesquisadora Adriana Mendes de Pinho Vial, do IPP, no site da Prefeitura do Rio (www.armazemdedados.rio.rj.gov.br). No mesmo trabalho, verifica-se que desde 1964 o avanço das favelas em direção à Zona Oeste e à Baixada Fluminense é uma tendência.

A história das favelas acompanha a da cidade. O levantamento da pesquisadora conta como a extinção dos cortiços, por medidas que visavam a saúde e a higiene, no fim do século 19, estimulou a ocupação de morros pela população pobre. De 1900 a 1930, a necessidade de modernizar a configuração urbana e os operários surgidos com o desenvolvimento industrial, os morros da Providência, Santo Antônio e outros até então desabitados são rapidamente ocupados.

Com o nome de Novas Tendências demográficas da cidade do Rio de Janeiro, a pesquisa divide a evolução das favelas em etapas que vão desde a abolição da escravatura até a legitimação da favela pelo poder público, a partir de 1982, com o encarecimento da terra e ocupação das periferias.

 

 
 
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