Jornal O Globo,
quinta-feira, 13 de novembro de 2003
Milhares de favelas para
pouco planejamento
Pesquisa do IBGE revela que 47% das prefeituras do país não
têm programas para combater déficit habitacional
RIO, SÃO LUÍS e BRASÍLIA. Num país onde um em cada quatro
municípios tem moradores vivendo em favelas ou em loteamentos
clandestinos, 47% das prefeituras declaram não ter qualquer
programa ou ação habitacional, de acordo com o "Perfil dos
municípios brasileiros/2001", divulgado ontem pelo IBGE. A
pesquisa se baseou em informações repassadas pelas
administrações municipais e registrou aumento de domicílios
cadastrados em favelas: de 1999 para 2001, esse número passou
de 921 mil para 2,36 milhões, um crescimento de 156%. Segundo
as prefeituras, o país tem 16.433 favelas, mocambos, palafitas
ou outras residências em precárias condições.
Os pesquisadores do IBGE
acreditam que o número de residências em favelas deve ser
maior, porque algumas prefeituras não repassaram dados. Entre
as 32 cidades com mais de 500 mil habitantes, São Luís e
Manaus informaram não ter cadastros de suas favelas.
- A prefeitura de Belém informou ter cadastro, mas não passou
os dados - disse a pesquisadora Sônia Oliveira, uma das
coordenadoras do estudo.
Governo crê em número maior
A secretária-executiva do Ministério das Cidades, Hermínia
Maricato, também disse acreditar que deve haver mais pessoas
morando em favelas do que o constatado na pesquisa.
- O crescimento está
certo, mas os números absolutos acredito que estão ainda
subestimados - afirmou Hermínia.
Os pesquisadores do IBGE
ainda buscam explicações para alguns dados da pesquisa. Embora
o número de domicílios cadastrados em favelas tenha aumentado,
o de municípios que declaram ter favelas caiu de 1.519 para
1.269, entre 1999 e 2001. Hoje, há favelas em pelo menos 23%
dos 5.560 municípios brasileiros. No mesmo período, também
caiu o número de municípios que cadastram suas favelas: 802
para 704. Apenas 12,9% dos municípios têm registros de suas
favelas.
Para o coordenador de
População e Indicadores Sociais do IBGE, Luiz Antônio
Oliveira, o fenômeno das favelas pode estar se concentrando
cada vez mais nos grandes centros urbanos. Há favelas em todos
os municípios com mais de 500 mil habitantes e em 93% deles há
cadastro dessas moradias. Mas apenas 18% dos municípios com
até 20 mil moradores declaram ter favelas. Apenas 8,9% têm
cadastros.
Nos municípios com mais de 500 mil habitantes, o número de
domicílios cadastrados em favelas passou de 351 mil para 1,65
milhão, enquanto em municípios na faixa de cinco mil a 20 mil
habitantes o número de residências em favelas caiu de 76 mil
para 39 mil. Já nos municípios com até cinco mil moradores, o
número desses domicílios despencou de 5.905 para 2.021.
A existência de
loteamentos clandestinos, que descumprem totalmente a
legislação, foi declarada por 24% das prefeituras, enquanto
87% dos municípios com mais de 500 mil habitantes registram o
problema. Ainda assim, duas das 32 prefeituras dos municípios
mais populosos declararam não ter programas na área
habitacional: São Gonçalo e Nova Iguaçu.
Subsecretário de Urbanismo
de Nova Iguaçu, Giovani Guidone disse ontem que, graças a um
convênio com a Caixa Econômica Federal, desde 2001 foram
entregues 631 unidades habitacionais a famílias com renda até
seis salários mínimos. Mas o déficit habitacional no
município, segundo ele, é de 19 mil unidades.
Prefeito de São Luís culpa IBGE
Em São Luís, famílias
vivem há gerações em palafitas, sem perspectivas.
Moradora da comunidade
Palafitas da Câmboa, Iris Brito Dias divide o barraco com
quatro filhos.
- Minha mãe viveu nesta
mesma situação com os nove filhos. É duro desabafa.
O prefeito de São Luís, Tadeu Palácio (PDT), admite o
problema.
- Quem deveria fazer esse levantamento é o IBGE e não a
prefeitura de São Luís. Mandamos fazer uma carta fotográfica
da cidade que vai nos permitir localizar os pontos para
podermos agir - diz.
COLABORARAM: Lizandra Paraguassú e Raimundo Garrone
ENTREVISTA
LUIZ CESAR DE QUEIROZ
RIBEIRO
'A favelização se associa à crise do transporte'
O coordenador do Observatório das Metrópoles da UFRJ diz que
muitas prefeituras, pressionadas pela população, buscam
soluções locais principalmente para os problemas na área da
habitação. Boas experiências têm surgido, mas não se
sustentam. "As mudanças de prefeito acabam levando-as ao
colapso".
Os municípios têm condições de dar conta das crescentes
responsabilidades?
LUIZ CESAR DE QUEIROZ RIBEIRO: A situação de fragilidade
histórica dos municípios se tornou ainda mais complicada com
as novas responsabilidades. As cidades não estão aparelhadas,
tanto do ponto de vista da capacitação do quadro funcional das
prefeituras como pela inexistência de mecanismos de
planejamento, como cadastros.
Qual a saída a curto
prazo?
RIBEIRO: Muito municípios, sob pressão da população, estão
adotando práticas
inovadoras de política habitacional. Isso ficou claro numa
pesquisa recente
que fizemos, na qual se mapeou essas novidades. São Bernardo
do Campo e Santo André, em São Paulo, e municípios do Sul, a
começar por Porto Alegre, são alguns dos que têm experiências
interessantes de regularização fundiária. Na Região
Metropolitana de Recife destacam-se os bancos de material de
construção, e há bons exemplos também em Belo Horizonte. Mas
essas experiências não têm sustentabilidade, as mudanças de
prefeito acabam levando-as ao colapso. Recife tem uma certa
estabilidade porque há ações em parceria com entidades da
sociedade civil.
A urbanização de favelas
também é um bom exemplo?
RIBEIRO: O programa de urbanização de favelas, moda que o Rio
exportou e que muitos municípios têm adotado, é um exemplo de
ação setorial, e não de uma ação de planejamento urbano. É
importante, mas não resolve o problema sem uma política
habitacional: a favela urbanizada aqui reaparece lá adiante,
porque há escassez de moradia.
Como conter a favelização?
RIBEIRO: No plano municipal, apenas, o problema da habitação é
impossível de ser resolvido. A população que está fora do
mercado imobiliário é muito grande. Apenas cerca de 16% das
moradias produzidas no Brasil destinam-se a quem pode pagar. O
resto se vira das mais variadas formas. A favelização se
associa à crise do transporte público. A população busca
moradia em áreas mais centrais. O sistema de transporte está
cada vez mais caro e precário. É um dos serviços que mais
sobem no Brasil, muito além da inflação.
Jornal O Globo,
sexta-feira, 14 de novembro de 2003
Olívio: 85% dos municípios já têm favelas
Para o ministro das Cidades, crise habitacional só será
resolvida com investimento de R$ 260 bilhões em 20 anos
Ao comentar os resultados da pesquisa "Perfil dos municípios
brasileiros/2001", o ministro das Cidades, Olívio Dutra,
divulgou ontem dados demonstrando que a crise habitacional no
país é ainda pior do que a retratada no estudo, divulgado
anteontem pelo IBGE. Segundo a pesquisa, que se baseou em
dados fornecidos pelas prefeituras, 23% dos municípios
informaram ter favelas em 2001. Mas, segundo Olívio, 85% dos
5.560 municípios brasileiros já têm favelas ou outras moradias
em condições igualmente precárias.
- Temos hoje um bilhão de
pessoas morando em favelas no mundo. E há países onde esta
situação é aguda. Um deles é o Brasil: 85% dos municípios
brasileiros têm pessoas morando em favelas. Algumas vivendo em
situações mais violentas, que são as palafitas - disse o
ministro.
Déficit habitacional no país é de 6,6 milhões de unidades
De acordo com a assessoria do ministro, os dados citados por
Olívio são resultado de estudos sobre o Censo 2000, realizado
pelo próprio IBGE. Para zerar o déficit habitacional no
Brasil, que hoje é de 6,6 milhões de unidades, e garantir
condições dignas de moradia para todos os brasileiros, Olívio
afirmou que será preciso investir R$ 13 bilhões anualmente nos
próximos 20 anos. Isso representa um investimento total de R$
260 bilhões.
Segundo Olívio, o governo
federal sozinho não tem condições de garantir esses recursos,
o que torna necessário a realização de parcerias com governos
estaduais, prefeituras, organismos internacionais de
financiamento e a iniciativa privada. O ministro disse que
este ano o governo federal está investindo R$ 5,4 bilhões em
programas habitacionais e afirmou que, no Orçamento do próximo
ano, estão previstos R$ 5,6 bilhões.
- Nunca vai haver recurso
suficiente num orçamento, nem da União nem de estados e nem de
municípios. Então é preciso somar os recursos dos três
orçamentos. A esses recursos tem que se somar financiamentos
como do BNDES, recursos externos e da iniciativa privada, mas
dentro de um marco regulatório, para garantir o interesse
social - disse o ministro.
Além dos R$ 5,4 bilhões, o
ministro acrescentou outros investimentos federais não
incluídos nesse montante: R$ 600 milhões destinados ao
financiamento de compra de material de construção e de
arrendamento residencial, uma nova modalidade de aquisição de
imóveis de baixa renda executado pela Caixa Econômica Federal
(CEF).
O ministro citou ainda o programa de concessão de títulos de
propriedade a moradores de favelas, anunciado no início do
governo Lula como uma de suas prioridades. Segundo o
ministério, o programa de regularização fundiária já atendeu a
270 mil famílias. Uma das comunidades beneficiadas é a de
Parque Royal, no Caju.
- O programa procura atender às demandas de moradores que
vivem há mais de cinco anos numa determinada área, que não
seja área de risco, de preservação ambiental ou alagadiço É
dever garantir que elas não serão expulsas, dar-lhes a
titulação, e mais do que a titulação, a urbanização básica -
disse Olívio.
Ministro diz que famílias de baixa renda são prioritárias
Olívio explicou que a falta de moradias no país atinge
principalmente a população de baixa renda que, segundo ele,
será o alvo prioritário do governo. Entre as 6,6 milhões de
unidades que precisam ser construídas, 94% devem ser
destinadas às famílias que ganham até cinco salários mínimos.
Olívio criticou ainda o modelo de urbanização que levou ao
inchaço dos grandes centros urbanos que, de acordo com a
pesquisa do IBGE, registraram um crescimento de até 370% no
número de domicílios cadastrados em favelas, entre 1999 e
2001. Esse foi o caso dos municípios com população superior a
500 mil habitantes. No mesmo período, o número de domicílios
registrados em favelas caiu nos municípios menos populosos
(até cem mil habitantes), segundo os dados fornecidos pelas
prefeituras ao IBGE.
- Há que se mudar a lógica
que formou as cidades. Essa lógica esvaziou os pequenos e
médios municípios brasileiros e inchou as regiões
metropolitanas.
Não trouxe nenhum
benefício nem para lá e nem para cá. É uma lógica perversa -
disse Olívio.
BARRACOS, VALAS E LIXÕES
NO MUNICÍPIO SEM FAVELAS
Para Seropédica, é um loteamento
De acordo com os dados repassados ao IBGE pela prefeitura de
Seropédica em 2001, o município é o único entre os 19 que
integram a Região Metropolitana do Rio de Janeiro a não ter
favelas. Mas essa não é a impressão que se tem ao se chegar ao
município, emancipado há sete anos. Cerca de 500 metros após a
divisa com Nova Iguaçu, no quilômetro 40 da antiga rodovia
Rio-São Paulo, lá estão os barracos de compensado e outros
materiais. Entre as moradias
precárias, valas negras e montes de lixo, onde crianças
descalças, algumas nuas, brincam com o que encontram.
Num desses barracos vive
Francisco das Chagas Alves, 32 anos, com a mulher e
cinco filhos. Desempregado, Francisco passa o dia virando a
terra que será
usado na construção de mais uma casa no terreno, invadido por
dezenas de famílias. Pelo serviço, ganha R$ 15 por dia.
- Vivo aqui há anos. A luz
é "gato" e a água a gente puxa de um cano da Cedae. A
prefeitura nem vem aqui porque diz que a gente invadiu. Tentei
conseguir esse tal de "cheque-cidadão", mas não tenho conta de
luz para dar como comprovante de residência - diz Francisco.
A comunidade de Campo
Lindo, onde Francisco vive, encaixa-se na descrição de favela
feita pelo IBGE : habitações instaladas em áreas que não
pertencem aos moradores, ocupadas de maneira desordenada, com
domicílios construídos com diversos materiais e
infra-estrutura precária. Ao GLOBO, a prefeitura, por meio de
sua assessoria de imprensa, informou que o local é um
loteamento de baixa renda, cuja ocupação desordenada começou
há seis meses. (C.A.)
Jornal O globo, sábado, 27
de dezembro de 2003
Casas impróprias
Censo do IBGE mostra que mais da metade das moradias do país
não tem
serviços básicos
Mais da metade dos 42,7 milhões de domicílios dos brasileiros
não tem plenas condições de moradia digna, segundo dados do
Censo 2000 divulgados ontem pelo IBGE. O instituto dividiu os
domicílios nas categorias adequado, semi-adequado e
inadequado. A soma dos percentuais de inadequado e
semi-adequado é maior do que o percentual da primeira
categoria: são 49% de semi-adequados e 5,1% de inadequados -
sem as condições básicas de moradia - contra 43,9% de
adequados.
Melhora grande na década de 90
O IBGE considerou adequadas as moradias que têm até duas
pessoas por
dormitório, acesso à rede geral de abastecimento de água,
coleta direta ou indireta de lixo e acesso à rede de esgoto ou
fossa séptica. Semi-adequadas são aquelas que têm de uma a
três destas quatro condições; e inadequadas são as que não têm
qualquer uma das quatro condições.
Em relação ao Censo de 1991, porém, o índice é bastante
positivo. O percentual de domicílios inadequados caiu 53,6%. O
índice correspondia a 11%
do total dos domicílios no penúltimo censo, quando apenas
32,8% eram adequados. O maior percentual está na região
Sudeste, com quase 60% de moradias adequadas.
- A melhora no país é uma combinação de investimentos de
diferentes níveis de governo. Mas a própria comunidade
aprende, ao longo dos anos, a pressionar para ter serviços. E
existem iniciativas oficiais, como o Favela Bairro, no Rio,
que trouxeram melhorias à habitação - diz Elisa Caillaux,
técnica da coordenadoria da pesquisa sobre domicílios do IBGE.
Elisa diz que seriam necessárias mais variáveis ainda para um
retrato
completo das condições de moradia do brasileiro:
- Usávamos material de construção também, mas deixamos de
perguntar sobre o material porque ele é quase sempre durável.
Nas favelas da Zona Sul do Rio,
por exemplo, quase tudo é material durável. Estamos pensando
em outros formas de diferenciação.
A maioria dos brasileiros mora em residência própria. São 75%
de domicílios próprios, sendo 68,1% já quitados e 6,9% em
aquisição. Este seria um indicador de evolução, não fossem
levadas em conta as realidades regionais.
Os maiores índices de propriedade estão, justamente, nas
regiões em que há
mais domicílios inadequados: Norte e Nordeste, situação
semelhante nas favelas urbanas. Não basta a residência ser
própria para ser digna.
Brancos têm mais lares adequados
Em termos de raça, brancos têm melhores condições de moradia:
53,9% deles vivem em domicílios adequados, 43,3% em
semi-adequadas e 2,8%, em inadequados. Mestiços dividem-se em
61,5% vivendo em moradias
semi-adequadas, 30,4%, em adequadas e 8,1%, em inadequadas. Já
os negros têm 58,7% de sua população em moradias
semi-adequadas, 34% em adequadas e 7,3%, em inadequadas.
No Censo 2000, pela primeira vez o IBGE aferiu condições de
infra-estrutura no entorno dos domicílios, verificando
existência de iluminação pública (83,5%), pavimentação (56,2%)
e identificação da rua (57,9%).
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