Jornal O Globo,Rio, 16 de maio
de 2004
Paulo Marqueiro e Selma Schmidt
O município do Rio terá em 2010 cerca de 1,3 milhão de
moradores de favelas, 210 mil a mais do que em 2000. Isso
corresponde a quase quatro Rocinhas — onde moram 56 mil
pessoas, segundo o IBGE — ou a um município do porte de Nova
Friburgo. A projeção é do Instituto de Estudos de Trabalho e
Sociedade (Iets) e foi feita com base numa taxa constante de
crescimento anual, calculada a partir dos dados dos censos de
1991 e 2000. Ainda de acordo com o estudo, os moradores de
favelas representarão 21,1% da população total em 2010. Hoje,
eles são 18,9%.
— Se não quisermos favelizar ainda mais o Rio, precisamos
estruturar o mercado imobiliário voltado para a baixa renda —
diz o economista André Urani, presidente do Iets.
Os censos mostram que, nos últimos 20 anos, houve uma explosão
demográfica nas favelas do Rio: o número de moradores nessas
áreas — classificadas pelo IBGE como aglomerados subnormais —
passou de 637.518 em 1980 para 1.092.476 em 2000, o que
significa um aumento de 71,3%. O fenômeno é tão acelerado que,
segundo o Instituto Pereira Passos (IPP), entre 1991 e 2000 a
população das favelas cresceu seis vezes mais que a das áreas
formais. A taxa é maior do que a média do país, onde as
comunidades se expandiram num ritmo quatro vezes maior que o
do asfalto.
As projeções do Iets mostram que, em termos de bens de
consumo, favela e asfalto ficarão mais parecidos em 2010. Os
percentuais de domicílios com telefone fixo serão de 78,6% e
80,1%, respectivamente. Na escolaridade, o abismo permanecerá:
as pessoas com 25 anos ou mais nas favelas terão 6,6 anos de
estudo e as do asfalto, dez. O analfabetismo também deverá
diminuir nas favelas, mas ainda será um fator de segregação.
Em 2010, as favelas terão 6,1% de analfabetos (com 15 anos ou
mais). No asfalto, esse percentual será de 1,8% .
— Os números chamam a atenção ainda para outro fato: apesar do
aumento da renda média per capita, a disparidade entre favela
e não-favela continua crescendo — diz Urani.
População cresceu mais na Zona Oeste
Para fazer as projeções, o Iets levou em conta médias
aritméticas anuais (mais conservadoras que as geométricas) a
partir dos números dos censos de 1991 e 2000. Por esse
cálculo, a taxa anual de crescimento da população foi de 1,9%
nas favelas e de 0,4% no asfalto. Já o aumento do número de
domicílios foi de 3,9% e de 1,4%, respectivamente.
Um estudo do IPP mostra que o crescimento da população das
favelas do Rio na última década não foi homogêneo. Em áreas
centrais, como São Cristóvão e Santa Teresa, houve redução do
número de moradores.
O maior aumento ocorreu na Zona Oeste, especialmente na Área
de Planejamento 4 (Jacarepaguá, Barra e Cidade de Deus), onde
a população de favelas dobrou de 1991 a 2000, passando de
72.182 para 144.394. Favelas como Rio das Pedras, em
Jacarepaguá, e Morro do Banco, no Itanhangá, não param de
crescer.
De acordo com o IPP, a população de favelas em Jacarepaguá
cresceu 7,5% ao ano e, na Barra, 10%. Mantidas essas taxas,
assinala a pesquisa, “Jacarepaguá será uma região
majoritariamente favelizada em 2024”.
Uma vista aérea da Favela Rio das Pedras, a maior da região,
impressiona: o conjunto de casas parece avançar em direção à
Lagoa de Jacarepaguá. Pelos dados oficiais, são cerca de 26
mil habitantes, mas a associação de moradores diz que esse
número pode chegar a 90 mil.
A comunidade é formada basicamente por nordestinos, como a
pernambucana Maria José dos Santos, de 54 anos, que veio para
o Rio há 30. No início, morou num barraco de madeira, mas hoje
tem uma casa modesta de dois andares e um terraço, onde
costuma reunir os filhos e os netos para uma feijoada.
A expressão serena de Maria José esconde uma vida de
sacrifícios. Ela teve cinco filhos. Um deles foi assassinado.
Outro morreu num acidente de trânsito na Barra. Analfabeta,
trabalhando como diarista na Barra, ela não
se arrepende de um dia ter deixado a terra natal:
— Volto nada. Não quero carregar lenha na cabeça. Já sofri
muito no Norte (Nordeste). Aqui, com todas as dificuldades,
nunca faltou trabalho.
Para o diretor de Informações Geográficas do IPP, Sergio
Besserman, o aumento das favelas em Jacarepaguá, Barra e em
outros bairros da Zona Oeste acompanha o crescimento das áreas
formais:
— É a dinâmica da cidade. As pessoas, faveladas ou não, vão em
busca de trabalho e de renda. É para a Zona Oeste que o Rio
está crescendo.
Mas por que as favelas crescem tanto? Um estudo do IPP com
base nos censos de 1991 e 2000 indica que a taxa de
fecundidade — maior nas favelas do que no asfalto — foi o
principal fator de expansão na última década. A segunda causa
foram as migrações, tanto de outros estados quanto de
municípios fluminenses.
— O número de migrantes equivale ao dobro do de moradores que
empobreceram e saíram de bairros do Rio para favelas — diz
Besserman.
Outra pesquisa encomendada pelo IPP à Escola Nacional de
Ciências Estatísticas do IBGE estima que a população da
Rocinha passará de 57 mil, em 2001, para 87 mil, em 2020. O
crescimento do Complexo da Maré será menor: de 115 mil para
142 mil. O Jacarezinho e o Complexo do Alemão deverão perder
moradores.
Entre os municípios do estado, Rio das Ostras aparecia em 2000
com o maior percentual de moradores de favelas (40%), segundo
o Atlas de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). A prefeitura, no
entanto, contesta o levantamento, feito com base em números do
IBGE.
— Esses dados não refletem a realidade. Cerca de 80% dos
terrenos de Rio das Ostras não são legalizados. E a cidade não
tem redes de água ou esgoto. Mas nessa situação existem casas
que custam até R$ 400 mil.
Casarões para baixa renda no Centro
Erenice de Jesus, de 52 anos, vende coco com o marido numa
barraca na Praia do Flamengo. Desde novembro, o casal deixou
de pagar aluguel e vive num cortiço centenário, tombado pelo
governo e reformado pela Secretaria municipal de Habitação, na
Rua Senador Pompeu, no Centro. A família é uma das 23 de baixa
renda (ganham entre três e seis salários-mínimos) sorteadas
para comprar um apartamento no imóvel.
Para essa faixa de renda, o cortiço é o primeiro prédio
reformado pelo programa Morando no Centro, criado pela
prefeitura com financiamento da Caixa Econômica. Outros dois
empreendimentos para famílias que ganham de seis a 20 salários
(Moradas da Saúde e Santana) também estão ocupados.
Segundo a secretária municipal de Habitação, Solange Amaral,
há 4.500 pessoas inscritas no Morando no Centro, boa parte
moradora de áreas de risco, inclusive favelas:
— Em vez de pagar aluguel numa favela, a pessoa gasta menos
para morar no que é seu, no Centro, com prestações que variam
de R$ 150 a R$ 220.
Ainda este mês, serão sorteados, pela Loteria Federal, 65
apartamentos de cinco novos empreendimentos do Morando no
Centro para baixa renda, além de 11 unidades de um casarão
para famílias com renda acima de seis salários-mínimos. Mais
220 unidades, distribuídas por 19 imóveis, começarão a ser
reformadas no Centro, todas destinadas a pessoas com renda
entre três e seis mínimos.
Política de remoção de favelas volta ao debate
Paulo Marqueiro e Selma Schmidt
Quem passa pela orla da Lagoa Rodrigo de Freitas e observa a
encosta verde do Parque da Catacumba talvez não imagine que
naquele morro já existiu uma favela. O terreno onde se erguem
os prédios do condomínio Selva de Pedra, no Leblon, também já
foi ocupado por barracos. No Morro do Pasmado, em Botafogo,
onde hoje existe um mirante, as casas de madeira já fizeram
parte da paisagem.
As favelas da Catacumba, na Lagoa; da Praia do Pinto, no
Leblon; e do Pasmado, em Botafogo, foram removidas nas décadas
de 60 e 70 e seus moradores, levados para lugares como Cidade
de Deus, Vila Kennedy e Vila Aliança. Diante da expansão das
favelas — muitas delas dominadas por traficantes, que se
aproveitam da topografia para erguerem seus bunkers — as
políticas de remoção, adotadas por diferentes governos desde a
década de 40, voltam a ser discutidas.
Economista defende presença da polícia
O economista Ib Teixeira, deputado pelo PTB durante o governo
Carlos Lacerda, diz que na época era contra as remoções. Hoje,
afirma que, se os governos Lacerda e Negrão de Lima não
tivessem removido as favelas da Praia do Pinto, da Catacumba e
do Pasmado, a Lagoa Rodrigo de Freitas e o Morro do Pasmado
“não seriam os lugares fantásticos que são”. O erro, segundo
ele, foi remover as comunidades sem dar às pessoas educação,
saúde, transporte e segurança:
— Os reassentamentos teriam de ter a presença da polícia, que
deveria ser dura com os criminosos. O problema não é a
remoção. Em algumas áreas, como as de risco, ela é essencial.
Temos disponibilidade de lugares para construir moradias, como
Cais do Porto e Gamboa.
Para o presidente do Sindicato da Indústria da Construção
Civil (Sinduscon-Rio), Roberto Kauffmann, a solução para
inibir a expansão das favelas depende da aprovação, pelo
Congresso Nacional, de um projeto substitutivo que cria o
Programa Nacional de Subsídio à Habitação de Interesse Social.
Ele defende ainda a implantação de uma agência nacional de
habitação, para regulamentar todos os programas de
financiamento imobiliário. Além desses instrumentos legais, no
caso das favelas do Rio, Kauffmann tem propostas concretas:
— É preciso fazer o cadastramento das famílias que moram em
áreas de risco, de preservação ambiental e em situação
irregular, estudando suas necessidades e onde trabalham. Ao
mesmo tempo, temos de projetar a urbanização dessas
comunidades, criando logradouros, equipamentos comunitários,
de modo que a polícia tenha acesso fácil a toda a área. O que
resultará desses levantamentos é a necessidade da remoção de
parte das sub-habitações.
Ele acredita que poderiam ser criados bairros em terrenos
públicos ociosos na Zona Portuária, em São Cristóvão, na Penha
e na Avenida Brasil, mas sem qualquer semelhança com os
conjuntos do passado.
Empresas poderiam erguer 120 mil moradias em 5 anos
Segundo Kauffmann, as empresas de construção civil teriam
condições de construir, por ano, 24 mil unidades para
moradores de baixa renda:
— Em cinco anos, poderíamos construir 120 mil unidades e
retirar 40% das sub-habitações das favelas. O município e o
estado devem ainda tomar medidas para que não haja expansão
das atuais comunidades — afirma ele, lembrando que, no dia 11,
foi formalizado um convênio pelo qual a Rede Ferroviária
Federal (em processo de liquidação) transfere seus terrenos ao
Ministério das Cidades para que possam ser edificados bairros
populares.
Para o historiador Milton Teixeira, as remoções de favelas nas
décadas de 60 e 70 fracassaram porque foram feitas de forma
violenta e arbitrária:
— Não houve uma política habitacional séria. Criaram conjuntos
sem infra-estrutura e sem transporte — critica.
Cristiane Rose Duarte, professora da Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da UFRJ, também considera equivocadas as remoções
do passado.
— A remoção foi comprovadamente uma política que fracassou. Os
moradores foram mandados para lugares onde não havia
transporte, eram abandonados. Eles vendiam as casas para a
classe média baixa e voltavam para a favela.
Cristiane afirma que, mais importante do que discutir remoção,
é formular
políticas para conter as favelas atuais:
— O importante é não deixar aumentar. E como?
Descentralizando, criando pequenos núcleos no interior do
estado, vilas rurais próximas a cidades. Mas com escola,
emprego, transporte e qualidade de vida.
Segundo a pesquisadora Lidia Medeiros, uma das autoras do
livro “Pensando as favelas do Rio de Janeiro”, o primeiro
programa de remoção de favela foi implantado na década de 40,
no governo Vargas. Foram removidas as comunidades do Largo da
Memória, no Leblon, e de Olaria e Capinzal, na Gávea.
No livro “Rio Operação Favela”, o governo da antiga Guanabara
garantia em 1969 que as favelas da Catacumba, Macedo Sobrinho,
Dona Marta, Cantagalo, Pavão-Pavãozinho, Ary Barroso,
Babilônia, Pedra do Baiano, Tabajaras, Euclides da Rocha,
Túnel Novo e Parque Proletário da Gávea deixariam de “compor a
paisagem urbanística e social de uma grande cidade, com suas
marcas de penúria, promiscuidade e doença”.
Antigo governo tinha planos de remover Rocinha
A promessa foi parcialmente cumprida. O governo da Guanabara
tinha planos de remover também a Rocinha.
“A remoção da imensa favela da Rocinha, com a sua população de
80 mil habitantes, será equacionada ainda no atual governo, de
maneira que a próxima administração tenha condições de
realizar as transferências”, afirma o livro do governo Negrão
de Lima. |